Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23113/19.0T8LSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REDUÇÃO DO PREÇO
ABUSO DO DIREITO
QUESTÕES DE CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1- Por força dos princípios da concentração da defesa e da preclusão, não podem as partes invocar em sede de recurso meios de defesa que não tenham oportunamente suscitado nos articulados, excepto se se tratar de questões de conhecimento oficioso.

2- A excepção de enriquecimento sem causa (arts. 473º ss. do Código Civil ) e a redução do preço (arts. 911º e 913º, nº 1 do CC) não constituem questões de conhecimento oficioso, razão pela qual, sendo invocadas apenas em alegações de recurso de apelação, deve o Tribunal da Relação abster-se de as apreciar.

3- Diversamente, a questão de abuso do direito (art. 334º do CC) configura uma questão de conhecimento oficioso, razão pela qual podem as partes invoca-la, ex novo apenas em sede de alegações de recurso de apelação, devendo o Tribunal da Relação apreciá-la considerando os factos alegados nos articulados que devam considerar-se provados.

4- A excepção de não cumprimento (art. 428º ss. do CC) tem como fundamento o incumprimento ou o cumprimento defeituoso imputável a um dos contraentes em contrato que envolva prestações recíprocas, pelo que apenas pode assentar no incumprimento das prestações ajustadas no mesmo contrato, e não em eventual incumprimento de prestações acessórias não previstas no mesmo.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.-Relatório


A, intentou, no juízo central cível de Lisboa, a presente ação declarativa de condenação com processo comum, contra B, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia global de € 89.645,21, dos quais € 77.500,00 a título de capital, e € 12.145,21 a título de juros de mora desde 06-12-2015 até à propositura da presente ação.

Para tanto alega, em síntese, o que segue:
-Em 20-06-2014 autor e réu celebraram um contrato de cessão de quotas e um “acordo de pagamento e de reconhecimento de dívida”;
-Mediante o contrato de cessão de quotas, o réu adquiriu ao autor uma quota de 25% da sociedade comercial C., com o NIPC 5.......9;
-Nos termos previstos no “acordo de pagamento e de reconhecimento de dívida”, o réu declarou ser devedor ao autor da quantia de € 100.000,00, dos quais € 25.000,00 seriam pagos até ao dia 05-09-2014 e os restantes € 75.000,00 até ao dia 05-12-2015;
-O Réu apenas efetuou o pagamento de € 22.500;
-Apesar de instado por escrito, o réu não pagou o montante em falta.

Citado o réu, o mesmo contestou, invocando as exceções de ilegitimidade passiva e de não cumprimento do contrato, e impugnando a factualidade alegada pelo autor.
Notificado, o autor apresentou novo articulado, pronunciando-se acerca das exceções invocadas pelo réu na contestação, e pugnando pela
Findos os articulados, o Tribunal suscitou oficiosamente a exceção de incompetência relativa em função do território, convidando as partes a pronunciarem-se, o que estas fizeram, após o que julgou procedente a mencionada exceção, concluindo julgando incompetente o Juízo Central Cível de Lisboa e competente o Juízo Central Cível de Cascais, determinando a remessa do processo para este último Tribunal.
Remetidos os autos ao Juízo Central Cível de Cascais, foi proferido despacho dispensando a realização da audiência prévia, seguido de despacho saneador que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade passiva, e bem de despacho dispensando a delimitação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Por todas as razões expostas, julgo procedente o pedido formulado pelo A. A e consequentemente condeno o R. B, a pagar àquele:
a)-a quantia de € 77.500,00;
b)-acrescida de juros de mora a contar de 06/12/2015 à taxa de juros comercial, até efectivo e integral pagamento.
***

Custas a cargo do R., nos termos do artigo 527º nºs 1 e 2 do CPC.”
Inconformado, o réu interpôs o presente recurso de apelação, cuja motivação do sintetizou nas seguintes conclusões:
1.-O Recorrente discorda da decisão do ponto 10 da decisão da matéria de facto, por entender que deveria ter sido dado como provado, com a seguinte redacção: “O R. efectuou o pagamento do montante de 25 000,00 €”, com a consequente eliminação do ponto c dos factos não provados. Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são as declarações prestadas pelo Réu na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 00:45 a 03:20, as declarações prestadas pelo Autor na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 01:28 a 03:30, e o depoimento prestado pela testemunha Francisco ..... em 14/05/2021, no excerto de minutos 06:16 a 06:55.
2.-Discorda ainda do decidido no ponto 11 da decisão da matéria de facto, por entender que a factualidade aí vertida deveria ter sido dada como provada, com a seguinte redacção: “Na data de 5 de Dezembro de 2015 referida na alínea b) do artigo 2. ° do acordo de pagamento e de reconhecimento de dívida o Réu não tinha pago ao Autor o montante de 75 000,00 € (setenta e cinco mil euros).” Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são as declarações prestadas pelo Réu na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 00:45 a 03:20, as declarações prestadas pelo Autor na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 01:28 a 03:30, e o depoimento prestado pela testemunha Francisco ..... em 14/05/2021, no excerto de minutos 06:16 a 06:55.
3.-Requer-se a V. Exas. se dignem julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação da decisão da matéria de facto e sua substituição por decisão que dê como provado o ponto 10 dos factos provados, com a seguinte redacção: “O R. efectuou o pagamento do montante de 25 000,00 €”, que dê como provado o ponto 11 dos factos provados, com a seguinte redacção: “Na data de 5 de Dezembro de 2015 referida na alínea b) do artigo 2. ° do acordo de pagamento e de reconhecimento de dívida o Réu não tinha pago ao Autor o montante de 75 000,00 € (setenta e cinco mil euros)” e que dê como provado o ponto C dos factos não provados.
4.-O Recorrente discorda, ainda, da decisão da matéria de facto, na parte em que deu como não provados os pontos a e b dos factos não provados, por entender que os mesmos deveriam ter sido dados como provados. Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são as declarações prestadas pelo Réu na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 23:30 a 26:00, as declarações prestadas pela testemunha Francisco ..... em 14/05/2021, no excerto de minutos 02:00 a 06:10, declarações prestadas pela testemunha Maria ..... na sessão de 28/05/2021 da audiência de julgamento, no excerto de minutos 02:00 a 18:00 e docs. n.° 5, 6 e 9, juntos com a p.i.
5.-Com base nos meios de prova acima referidos, o Recorrente entende que o Tribunal recorrido andou mal ao dar como não provados os pontos A e B dos factos não provados, pelo que requer a V. Exa. se digne julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida, na parte em que deu os pontos A e B dos factos não provados como não provados, e sua substituição por douta decisão que dê esses factos como provados - o que se requer.
6.-O Recorrente discorda, por fim, da decisão da matéria de facto, na parte em que não incluiu no leque dos factos provados e não provados a factualidade vertida no art. 27.° da contestação, já que entende não só que a mesma era relevante para a apreciação do mérito da causa, como que da mesma foi feita prova, o que impunha a sua inclusão no leque dos factos provados. Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são as declarações prestadas pelo Réu na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 08:20 a 12:00 e 16:00 a 22:40, as declarações prestadas pelo Autor na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 07:00 a 03:30, o depoimento prestado pela testemunha Ricardo ..... em 14/05/2021, no excerto de minutos 06:30 a 07:10, o depoimento prestado pela testemunha Francisco ..... em 14/05/2021, no excerto de minutos 02:00 a 04:20 e o depoimento prestado pela testemunha Maria ..... em 28/05/2021, no excerto de minutos 08:50 a 26:00.
7.-Ao não incluir a factualidade alegada no art. 27.° da contestação no leque dos factos provados, o Tribunal recorrido errou no julgamento da matéria de facto, o que impõe a procedência do recurso e consequente revogação desse segmento da decisão recorrida, que deverá ser substituída por douta decisão que dê como provados os factos contidos no art. 27.° da contestação.
8.-Sempre que a coisa vendida não se reveste das qualidades anunciadas - que é claramente o caso dos autos -, o comprador (no caso, cessionário) tem direito à redução do preço, atento o disposto nos arts. 933.°, n.° 1 e 913.°, n.° 1 do Cód. Civil.
9.-Confirmando-se que os resultados da actividade societária não eram de molde a permitir a fixação do preço de 25 % do capital social em 100 000,00 € (e é isso que os resultados operacionais indicam), era perfeitamente legítimo que o Autor, antes de pagar a parcela remanescente do preço, esclarecesse o porquê dos reduzidos resultados operacionais, a fim de aferir se esse preço era devido ou se, pelo contrário, não deveria ser pago, ao abrigo do regime dos arts 933.°, n.° 1 e 913.°, n.° 1 do Cód. Civil, designadamente, por o valor da sociedade não corresponder ao anunciado aquando da formalização da cessão de quotas.
10.-Ao condenar o Réu no pagamento ao Autor do valor peticionado, num contexto em que ficou apurado que as quotas societárias não tinham o valor anunciado, o Tribunal recorrido violou, além de outras, as disposições dos arts. 933.°, n.° 1 e 913.°, n.° 1 do Cód. Civil.
11.-Pelas razões expostas, requer-se a V. Exas- se dignem julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida e prolação, em sua substituição, de douto acórdão que absolva o Réu dos pedidos contra ele formulados ou, no limite, e caso assim se não entenda, que o condene tão-somente no pagamento de indemnização a liquidar em execução de sentença, de montante equivalente ao valor real e de mercado das quotas societárias adquiridas, conforme previsto no art. 609.°, n.° 2 do Cód. Proc. Civil.
12.-Ao decidir como decidiu, gerando uma situação de enriquecimento sem causa, por parte do Autor, o Tribunal recorrido violou, além de outras, a disposição do art. 473.°, n.° 1 do Cód. Civil.
13.-Pelas razões expostas, requer-se a V. Exas- se dignem julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida e prolação, em sua substituição, de douto acórdão que absolva o Réu dos pedidos contra ele formulados ou, no limite, e caso assim se não entenda, que o condene tão-somente no pagamento de indemnização a liquidar em execução de sentença, de montante equivalente ao valor real e de mercado das quotas societárias adquiridas, conforme previsto no art. 609.°, n.° 2 do Cód. Proc. Civil.
14.-Face à factualidade alegada, que aponta para a existência de constrangimentos do Réu no acesso a documentação contabilística necessária para auditar as contas da empresa e, ademais, para o facto de a sociedade ter gerado rendimentos muito inferiores aos anunciados, era perfeitamente legítimo ao Réu recusar o cumprimento da sua contraprestação (pagamento do remanescente do preço) enquanto essas questões não fossem resolvidas e, concretamente, enquanto não ficasse totalmente esclarecido se o preço seria ou não devido.
15.-Por essa razão, ao decidir como decidiu, julgando improcedente a excepção peremptória de não cumprimento, o Tribunal recorrido violou, além de outras, a disposição do art. 428.°, n.° 1 do Cód. Civil.
16.-Pelas razões expostas, requer-se a V. Exas- se dignem julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida e prolação, em sua substituição, de douto acórdão que absolva o Réu dos pedidos contra ele formulados ou, no limite, e caso assim se não entenda, que o condene tão-somente no pagamento de indemnização a liquidar em execução de sentença, de montante equivalente ao valor real e de mercado das quotas societárias adquiridas, conforme previsto no art. 609.°, n.° 2 do Cód. Proc. Civil.
17.-Caso as precedentes conclusões improcedessem, estar-se-ia a reconhecer ao Autor o direito ao recebimento de uma quantia avultada - 75 000,00 € ou 77 500,00 € -, a título de preço de um bem ou direito com valor consideravelmente inferior. Por outras palavras, estar-se-ia a gerar, através de uma decisão judicial, uma situação materialmente injusta, pois estar-se-ia a permitir o enriquecimento injustificado de uma das partes (o Autor) à custa da outra (o Réu).
18.-Num tal quadro, ainda que assistisse ao Autor o direito que veio exercer nesta acção, o seu exercício, porque susceptível de gerar a descrita situação de desequilíbrio de prestações, sempre excederia os limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico do direito ao recebimento do preço, sempre seria manifestamente abusivo, confirme previsto no art. 334.°, n.° 1 do Cód. Civil.
19.-A excepção de abuso de direito é de conhecimento oficioso.
20.-Pelo que, ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou, além de outras, a disposição do art. 334.°, n.° 1 do Cód. Civil.
21.-Pelas razões expostas, requer-se a V. Exas- se dignem julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida e prolação, em sua substituição, de douto acórdão que absolva o Réu dos pedidos contra ele formulados ou, no limite, e caso assim se não entenda, que o condene tão-somente no pagamento de indemnização a liquidar em execução de sentença, de montante equivalente ao valor real e de mercado das quotas societárias adquiridas, conforme previsto no art. 609.°, n.° 2 do Cód. Proc. Civil.
22.-A aplicação da taxa supletiva comercial está reservada para “créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas” (§ 3 do art. 103.° do Cód. Comercial) ou para “transacções comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n. ° 62/2013, de 10 de maio”, sendo certo que o caso dos autos não se enquadra em nenhuma dessas situações.
23.-Nessa medida, ao condenar o Réu no pagamento de juros moratórios à taxa comercial, o Tribunal recorrido violou, além de outras, as disposições do par. § 3 e § 5 do art. 103.° do Cód. Comercial, o que impõe a sua revogação e substituição por Douto Acórdão que fixe os juros porventura em dívida à taxa civil - o que se requer.
Remata as suas conclusões nos seguintes termos:
“(…) deve o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação da douta sentença recorrida, que deverá ser substituída por Douto Acórdão que esteja em conformidade com as conclusões acima formuladas (…)”

O autor não apresentou contra-alegações.

Admitido o recurso, e remetido o mesmo a este Tribunal da Relação, onde foi recebido, foram colhidos os vistos.

2.- Questões a decidir
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
O caso em apreço, da leitura das conclusões de recurso emerge que o apelante invocou os seguintes fundamentos:
-A impugnação da decisão sobre matéria de facto – conclusões 1. a 7.
-A redução do preço – conclusões 8. a 11.
-O enriquecimento sem causa – conclusões 12. e 13.
-A exceção de não cumprimento – conclusões 14. a 16.
-O abuso do direito - conclusões 17. a 21.
-Os juros de mora – conclusões 22. e 23.
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119.
Ora, verifica-se que que a pretendida redução do preço e as exceções de enriquecimento sem causa e abuso do direito configuram questões que foram invocadas apenas nas alegações de recurso, a oportunidade dessa invocação poderá ser questionada.
No que respeita ao abuso do direito, ao enriquecimento sem causa, e à redução do preço, afigura-se inequívoco que o mesmo obsta ao exercício do mesmo, ou seja, constituem causa impeditivas do direito invocado pelo autor, pelo que configuram exceções perentória – arts. 334º do CC, e 576º, nº 3 do CPC.
Contudo, estabelece o art. 573º do nº 1 do CPC que “toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado”, acrescentando o nº 3 do mesmo preceito que “Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes, e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente”.
O preceito citado consagra o princípio da concentração da defesa, do qual decorre que o demandado deve deduzir na contestação ou oposição todos os meios de defesa que tenha ao seu alcance, sob pena de preclusão dos mesmos.

Não obstante, a lei processual consagra quatro exceções a esse princípio:
-os incidentes que devem ser deduzidos em separado;
-os meios de defesa supervenientes, ou seja, os fundados em factos que se verifiquem depois de esgotado o prazo para contestar ou deduzir oposição (superveniência objetiva), ou de que o demandado só tenha conhecimento depois de esgotado esse prazo (superveniência subjetiva);
-os meios de defesa que a lei expressamente admita após tal momento;
-os meios de defesa de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente.
Como decorrência deste princípio, a doutrina e a jurisprudência têm sublinhado que os recursos não servem para apreciar questões (de direito ou de facto) novas, mas apenas reapreciar questões já debatidas.
Nessa medida, bem aponta ABRANTES GERALDES Ob. cit., p. 119., “A natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Segundo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos um modelo de reponderação que vis o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”
Por seu turno sustenta FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2.ª Ed., Almedina, 2019, p. 468.: “No nosso sistema processual (no que concerne à apelação e à revista) predomina o «esquema do recurso de reponderação: o objeto do recurso é a decisão impugnada, encontrando-se à partida, vedada a produção de efeitos jurídicos “ex-novo”. Através do recurso, o que se visa é a impugnação de uma decisão já ex ante proferida, que não o julgamento de uma qualquer questão nova.”
RUI PINTO “O Recurso Civil. Uma Teoria Geral”, AAFDL, 2017, p. 69. sintetiza os efeitos práticos do sistema de reponderação nos seguintes termos: “não se admitem nem novos factos, nem novos fundamentos de ação ou de defesa, nem novas provas. A estes recursos dá-se a qualificação de recursos de reponderação: a decisão impugnada é reavaliada no quadro do seu próprio objeto e em razão dos seus vícios específicos, pelo que o objeto do pedido é na parte da revogação a própria decisão e na substituição a matéria que fora objeto da decisão revogada, tal e qual fora conhecida pelo tribunal a quo.”

Este entendimento foi amplamente acolhido pela jurisprudência. Como se refere no ac. STJ de 07-07-2016 (Gonçalves Rocha), p.156/12.0TTCSC.L1.S1, “Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”. – No mesmo sentido, cfr. RC 14-01-2014 (Mª Inês Moura), p. 154/12.3TBMGR.C1, e RP 16-10-2017 (Miguel Baldaia de Morais), p. 379/16.2T8PVZ.P1.
Mas precisamente porque a lei processual admite a invocação de exceções de conhecimento oficioso após a contestação, a jurisprudência tem sublinhado que essas questões podem ser suscitadas apenas em sede de recurso – neste sentido cfr. ac. STJ 17-11-2016 (Ana Luísa Geraldes), p. 861/13.3TTVIS.C1.S2.
No caso em apreço, é inegável que só nas alegações de recurso é que o réu e ora apelante veio suscitar as exceções de enriquecimento sem causa e de abuso do direito, bem como a questão da redução do preço.
No tocante à exceção de enriquecimento sem causa, e tanto quanto nos foi possível apurar, a jurisprudência tem, de forma unânime, considerado que não se trata de questão de conhecimento oficioso, razão pela qual não pode a parte invocá-la em sede de recurso. Neste sentido cfr. acs. STJ 01-10-1992 (Tavares Lebre), p. 082390; STJ 09-11-1995 (Metello de Nápoles), p. 087085; STJ 07-04-2005 (Ferreira Girão), p. 05B175; e STJ 14-10-2021 (Abrantes Geraldes), p. 2927/18.4T8VCT.G1.S1; bem como o ac. RL 24-02-2015 (Mª do Rosário Barbosa), p. 6952/05.7TCLRS.L1-1.
Nesta conformidade, desde já se decide não tomar conhecimento da exceção de enriquecimento sem causa.
Quanto à questão da redução do preço, também se verifica que a mesma não foi invocada na contestação, seja por via de exceção, seja em sede de reconvenção.
Trata-se, obviamente de uma questão que não é de conhecimento oficioso, razão pela qual, tendo sido suscitada apenas em sede de recurso, não pode este Tribunal apreciá-la. No sentido exposto cfr. ac. STJ 14-12-2016 (Fernanda Isabel Pereira), p. 1341/12.0TBVFR.P1.S1.
Assim sendo, decide este Tribunal não tomar conhecimento do recurso, quanto a esta questão.
Finalmente, e no que tange à figura do abuso do direito, a jurisprudência tem entendido que colhendo tal exceção o seu fundamento em princípios de ordem pública (art. 334º do CC), a mesma constitui uma exceção de conhecimento oficioso (art. 579º do CPC), e que por tal razão pode ser invocada pela primeira vez em sede de alegações perante a Relação, no âmbito de recurso de apelação [vd. acs. STJ 21-09-1993 (Fernando Fabião), p. 083983; STJ 01-07-2004 (Salvador da Costa), p. 04B4671; STJ 28-11-2013 (Salazar Casanova), p. 161/09.3TBGDM.P2.S1; STJ 14-07-2018 (João Camilo), p. 1530/15.5T8STS-C.P1.S1; e STJ 12-07-2018 (Rosa Ribeiro Coelho), p. 2069/14.1T8PRT.P1.S1], ou mesmo perante o Supremo em alegações de recurso de revista [cfr. acs. STJ 09-10-2001 (Araújo de Barros), p. 02B749 e STJ 04-04-2002 (Araújo de Barros), p. 02B749] No sentido oposto cfr., no entanto, o ac. STJ 07-05-2009 (Pires da Rosa), p. 09B0057..
Assim sendo, cumpre conhecer da invocada exceção de abuso do direito.
Em consequência, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
-A impugnação da decisão sobre matéria de facto – conclusões 1. a 7.
-A exceção de não cumprimento – conclusões 14. a 16.
-O abuso do direito - conclusões 17. a 21.
-Os juros de mora – conclusões 22. e 23.

3.-Fundamentação

3.1.- Os factos

3.1.1.- Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1.-Mostra-se inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Cascais a sociedade comercial C, com o NIPC 5.......9, tendo como objeto social consultoria para os negócios e a gestão, distribuição, divulgação e comercialização de equipamentos e produtos de telecomunicações e produção de eventos, tendo como gerente A, sociedade essa constituída em 11/12/2013(cfr. certidão de registo comercial junta como doc.3).
2.-Eram sócios à data da sua constituição A e Ricardo ..... (cfr. certidão de registo comercial junta como doc.3).
3.-Em 04/03/2014 A adquiriu a quota de Ricardo ..... (cfr. certidão de registo comercial junta como doc.3).
4.-Na data de 20 de junho de 2014, o Autor e o Réu por mútuo acordo e de boa fé ajustaram e assinaram o teor do escrito que designaram de “contrato de cessão de quotas”, conforme documento n.° 1 junto com a PI.
5.-Por via desse contrato o Réu adquiriu ao Autor uma quota de 25% da sociedade comercial C.
6.-Consta da clausula 2ª que "o cedente declara que é legítimo titular das quotas suprarreferidas a qual se encontram liberadas, livres de quaisquer ónus e encargos e que as mesmas não são objeto de qualquer litígio de natureza judicial ou extrajudicial.
7.-Mais consta da clausula 6ª que o “O cedente declara que a sociedade, a que corresponde a quota cedida:
a)-Tem a sua situação contributiva regularizada, nomeadamente perante a administração fiscal e a segurança social.
b)-Não foi citado no âmbito de qualquer acção judicial para cobrança de dívida”.
8.-Pela menção Dep. 11561/2014-07-09 foi inscrita a transmissão dessa quota no registo comercial (cfr. certidão de registo comercial junta como doc.3).
9.-Na mesma data de 20/06/2014 A. e R. assinaram e ajustaram o teor do escrito designado de “acordo de pagamento com reconhecimento de dívida”, conforme documento n.° 2 junto com a PI.
Tendo como “Considerando que o primeiro contraente adquiriu ao segundo contraente na presente data uma quota correspondente a 25% do capital social, pelo valor nominal de €2.500,00 (...) da sociedade coma firma C, com sede na Avenida ... ..., número ..., 1.° andar, letra A, freguesia ..... ....., concelho de L_____, com o capital social de €10.000,00(...)"
Que por mútuo acordo e de boa fé celebram o presente acordo de pagamento com reconhecimento de dívida, nos seguintes termos:
1.°
Pelo presente o primeiro contraente reconhece que deve ao segundo contraente a quantia de €100.000,00 pela aquisição da quota referida nos considerandos do presente.
2.°
Sendo que o pagamento do montante referido no artigo anterior irá ser liquidado da seguinte forma:
a)-a quantia de €25.000,00 até ao dia de 05 de Setembro de 2014, através de transferência bancária ou deposito bancário na conta pertencente ao segundo contraente(...)
b)-a quantia de €75.000,00 (...) até ao dia 05 de dezembro de 2015, através de transferência bancária ou deposito bancário na conta pertencente ao segundo contraente”.
10.-O R. efetuou o pagamento do montante de €22.500,00.
11.-Na data de 5 de dezembro de 2015 referida na alínea b) do artigo 2.° do acordo de pagamento e de reconhecimento de dívida o Réu não tinha pago ao Autor o montante de Eur. 77.500,00 (setenta e sete mil e quinhentos euros).
12.-Em comunicação enviada pelo mandatário judicial do Réu ao Autor, com data de 24 de Novembro de 2015, é referido que “têm sido sucessivos os contactos, por parte do nosso constituinte, para que seja facultada documentação e elementos da empresa que sejam esclarecedores do real movimento contabilístico e financeiro da empresa, tal pedido teve que ser oficialmente efectuado por escrito dado que, até à data, as informações prestadas nunca foram claras e muito menos transparentes (...) não será cumprido (...) o contrato outorgado até que todas as informações lhe sejam devidamente prestadas”, conforme documento n.° 4 junto com a PI.
13.-O Autor respondeu por comunicação dirigida ao Réu, datada de 30 de Novembro de 2015, informando-o que “... foram enviadas todas as documentações por ora solicitadas por parte do seu cliente (...) as contas relativas ao exercício do ano de 2014 foram prestadas e aprovadas pelo seu cliente em assembleia geral realizada no dia 9 de Julho 2015, pelas 16 horas, na sede de sociedades (...) todas as informações peia sociedade prestadas são informações oficiais nomeadamente IRC, Balanço, demonstrativo de resultados, IES, contratos oficiais (...) se não houver nenhuma justificativa para o atraso do pagamento até o dia 31 de Dezembro do ano corrente irei recorrer judicialmente”, conforme documento n.° 5 junto com a PI.
14.-A 4 de Dezembro de 2015, novamente os mandatários do Réu responderam, ao Autor afirmando que o Réu “não irá efectuar qualquer pagamento por conta do contrato assinado (...) relativamente à cedência de quotas”, conforme documento n.° 6 junto com a PI.
15.-Tendo o Autor respondido àqueles mandatários do Réu, por carta com registo de 18 de dezembro de 2015, informando que não aceitaria “o não cumprimento do pagamento da divida” pois da sua parte “as quotas foram cedidas” e encontravam-se na posse do Réu, que estaria “utilizando manobras de dilação e delongas afim de não assumir o compromisso firmado”, conforme documento n.° 7 junto com a PI.
16.-Em carta enviada aos mandatários do R. datada de 4 de janeiro de 2016, o A. enviou o extrato das contas dos anos de 2014 e 2015 conforme documento n.° 8 junto com a PI.
17.-Os mandatários do Réu responderam em 16 de setembro de 2016, onde comunicam além do mais que “o nosso constituinte está disposto a ceder-lhe a quota pelo mesmo valor que a comprou para que a relação existente entre ambas as partes cesse permanentemente. E, para além disso, exige-se, igualmente que lhe sejam pagas todas as percentagens devidas peias vendas efectuadas de cartões- sendo que Vexa sabe bem a que valores nos referimos, pelo que nos dispensamos por ora de identificar os valores concretos(...)”, conforme documento n.° 9 junto com a PI.
18.-No dia 09/07/2015 realizou-se a Assembleia Geral da sociedade por quotas Youngster, Lda tendo como ponto único da ordem de trabalhos a aprovação das contas e seus resultados referentes ao exercício de 2014, encontrando-se presentes os sócios aqui A. e R. a que corresponde a Ata número cinco, constando da mesma que “Aberta a sessão, verificou-se pelos balancetes e demonstração de resultados que a empresa terminou o referido exercício, apresentando um resultado líquido de 1.505,52 euros, tendo este resultado sido aprovado pelos sócios presentes(...)” (cfr. ata junta com o requerimento ref.ª 37504734).
19.-No dia 31 de maio de 2016 realizou-se a Assembleia Geral da sociedade por quotas C tendo como ponto da ordem de trabalhos a aprovação das contas do exercício de dois mil e quinze e deliberação da afetação do resultado do exercício, encontrando-se presentes os sócios aqui A. e R. a que corresponde a Ata número 6, em que o R. votou contra a aprovação (cfr. ata junta com o requerimento ref.ª 29267128).
20.-No dia 24 de abril de 2017 realizou-se a Assembleia Geral da sociedade por quotas C tendo como ponto da ordem de trabalhos análise da atuação da gerência, a aprovação das contas do exercício de dois mil e dezasseis e deliberação sobre a afetação do resultado do exercício, encontrando-se presentes os sócios aqui A. e R. a que corresponde a ata número 8, em que o R. votou contra a aprovação (cfr. aca junta com o requerimento ref.ª 29267128).
21.-Pela menção DEP 4122/2015-07-01 foi inscrita na conservatória do registo comercial a prestação de contas individual relativa ao ano de 2014 (01/01/2014 a 31/12/2014) relativa à sociedade referida em 1(cfr. certidão de registo comercial junta como doc.3).
22.-Pela menção DEP 10972/2016/07/19 foi inscrita na conservatória do registo comercial a prestação de contas individual relativa ao ano de 2015 (01/01/2015 a 31/12/2015) relativa à sociedade referida em 1(cfr. certidão de registo comercial junta como doc.3).
23.-Pela menção DEP 10145/2017-07-19 foi inscrita na conservatória do registo comercial a prestação de contas individual relativa ao ano de 2016 (01/01/2016 a 31/12/2016) relativa à sociedade referida em 1(cfr. certidão de registo comercial junta como doc.3).
24.-Pela menção DEP 2005/2019-06-07 foi inscrita na conservatória do registo comercial a prestação de contas individual relativa ao ano de 2017 (01/01/2017 a 31/12/2017) relativa à sociedade referida em 1(cfr. certidão de registo comercial junta como doc.3).
25.-Pela menção DEP 2015/2019-06-07 foi inscrita na conservatória do registo comercial a atualização da prestação de contas individual relativa ao ano de 2017 (01/01/2017 a 31/12/2017) relativa à sociedade referida em 1.
26.-Pela menção DEP 8852/2019-07-16 foi inscrita na conservatória do registo comercial a prestação de contas individual relativa ao ano de 2018 (01/01/2018 a 31/12/2018) relativa à sociedade referida em 1(cfr. certidão de registo comercial junta como doc.3).
27.-O R. intentou, em 7 de maio de 2018, Inquérito Judicial à supramencionada Sociedade Comercial, que corre termos no Juízo 5, Juízo do Comércio de Lisboa, processo n.° 10738/18.0T8LSB, cfr. certidão junta por requerimento ref.ª 37504734.

3.1.2.- Factos não provados

No tocante a factos não provados, consignou o Tribunal a quo que não resultou provado qualquer outro facto com relevo para a decisão dos autos, não tendo ficado demonstrado que:
a.-O incumprimento parcial do acordo de pagamento e reconhecimento de dívida prende-se exclusivamente com o facto de o A., na sua qualidade de gerente, não ter prestado contas ao R. no que se refere aos exercícios anuais de 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018, sonegando-lhe informação relevante e limitando-se a apresentar ao R., no decurso destes anos, documentação dispersa e difusa, que não reflete os resultados reais obtidos pela C.
b.-Foi totalmente coartado pelo A. o direito à informação que assiste ao R., na sua qualidade de sócio, bem como o direito de consulta do R. a todos os documentos contabilísticos da sociedade comercial C.
c.-O R. pagou mais 2.500,00€ ao A. em mão em junho de 2014.

3.2.- Os factos e o direito

3.2.1.- Da impugnação da decisão sobre matéria de facto

3.2.1.1.- Considerações gerais
Dispõe o art. 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Por seu turno estatui o art. 640º n.º 1 do mesmo código que quando seja impugnada a decisão sobre matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, sempre que o recorrente se baseie no teor de depoimentos prestados, incumbe-lhe, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. A observância desse ónus pressupõe a indicação do início e fim das passagens dos depoimentos tidas por relevantes, podendo o recorrente, se assim o entender, proceder à transcrição dessas passagens. Tal indicação não tem necessariamente que constar das conclusões, mas deve constar da motivação do recurso. No sentido exposto cfr., entre muitos outros, os acs. RC de 17-12-2017 (Isaías Pádua), proc. 320/15.0T8MGR.C1; e STJ 06-12-2016 (Garcia Calejo), p. 437/11.0TBBGC.G1.S1.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.

Sumariando os ónus impostos pelo citado preceito, ensina ABRANTES GERALDES “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pp. 165-166.:
“(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a)-Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso, e síntese nas conclusões;
b)-Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c)-Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d)- (…)
e)-O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
f)-(…).”

3.2.1.2.- O caso dos autos

No caso em apreço, considera este Tribunal que o apelante observou de modo suficiente os ónus probatórios acima enunciados.
3.2.1.2.1.- Pontos 10. e 11. dos factos provados e al. c. dos factos não provados
Os pontos 10. e 11. dos factos provados têm a seguinte redação:
10.-O R. efetuou o pagamento do montante de € 22.500,00.
11.-Na data de 5 de dezembro de 2015 referida na alínea b) do artigo 2.° do acordo de pagamento e de reconhecimento de dívida o Réu não tinha pago ao Autor o montante de Eur. 77.500,00 (setenta e sete mil e quinhentos euros).
Por seu turno, a al. c. dos factos não provados tem o seguinte teor:
c.-O R. pagou mais 2.500,00€ ao A. em mão em junho de 2014.
Da leitura do trecho da sentença que contém a motivação a decisão sobre matéria de facto avulta, quanto ao facto em questão, o seguinte excerto:
-Declarações do A. que confirmou os factos constantes da contestação negando que lhe tenha sido paga quantia em dinheiro no valor de € 2.500,00. (…).
-Declarações do R., diz que pagou 25.000. 22.500 por transferência bancária e o remanescente em dinheiro que entregou ao A.. Diz que foi o A. que pediu para ser pago em dinheiro. Diz que não pagou o resto.
(…)
-Ricardo ....., conhece ambas as partes. Foi contabilista da sociedade comercial C no ano de 2014. Continuou a prestar serviços, deixou de ter contacto com a C mas continuou a ter contacto com o A. enquanto consultor, desde 2014 até ao presente. Foi contabilista no primeiro ano da sua actividade. Afirma que há uma dívida do B Teve conhecimento da assinatura do contrato de cessão de quota em causa nos autos e do acordo de reconhecimento da dívida. Assegura que o pagamento da quantia não ficou condicionado ao recebimento de determinados lucros ou entrega de documentação/informação. Ficou acordada a transmissão da quota contra o pagamento acordado. Foram acordados 100 mil euros. Foi feito o pagamento de 22.500 euros. Não teve conhecimento do pagamento de qualquer outra quantia. Os 22.500,00 foram pagos por transferência bancária. Não era normal receber quantias deste montante em dinheiro sem emissão de recibo. Nunca viu nenhum recibo.
(…)
Quanto ao ponto c) à excepção do R. que o referiu, nenhuma testemunha ou documento confirmou que o R. pagou mais 2 500,00€ ao A. em mão em Junho de 2014, sendo certo que a testemunha Francisco ..... referiu tal, mas a razão de ciência lhe advinha de conversas com o R. e não de ter visto ser realizado tal pagamento ou documento que o comprovasse.
Incumbindo ao R. o ónus da prova desses factos mais não restou do que dá-los como não provados.”
O réu discorda do entendimento manifestado pelo Tribunal, considerando que a al. c. dos factos não provados deve ser eliminada, e que a redação dos pontos 10. e 11. deve ser alterada nos seguintes termos:
10.-O R. efectuou o pagamento do montante de 25 000,00 €.
11.-Na data de 5 de dezembro de 2015 referida na alínea b) do artigo 2. ° do acordo de pagamento e de reconhecimento de dívida o Réu não tinha pago ao Autor o montante de 75 000,00 € (setenta e cinco mil euros).
Para tanto argumentou:
«Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são os seguintes:
a)-declarações prestadas pelo Réu na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 00:45 a 03:20;
b)-declarações prestadas pelo Autor na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 01:28 a 03:30;
c)-depoimento prestado pela testemunha Francisco ..... em 14/05/2021, no excerto de minutos 06:16 a 06:55.
A prova acima referida é a única que abordou a temática em discussão nos pontos 10 e 11 dos factos provados e o balanço da mesma é o que se passa a expor:
O Réu afirmou categoricamente que pagou ao Autor, por conta do preço da aquisição das quotas societárias em referência nos autos, um total de 25.000,00 €, sendo 22.500,00 € por transferência bancária e os restantes 2.500,00 € numa entrega em numerário.
A testemunha Francisco ....., não tendo presenciado esse pagamento, afirmou que o Réu lhe confidenciou que, na referida cessão de quotas, tinha feito já pagamentos no valor global de 25.000,00 €.
O Autor, por sua vez, quando questionado se recebeu alguma quantia em dinheiro, limitou-se a afirmar que não se recordava. Isso é absolutamente claro no excerto de minutos 02:00 a 02:20, em que é claro o constrangimento do Autor em afirmar que não recebeu o pagamento em numerário, preferindo escudar-se na afirmação de que não se recordava.
Ora, considerando as regras da experiência comum e a diligência própria de um homem médio, em negócios de valor elevado é pouco crível que um dos intervenientes não se recorde de ter recebido alguma quantia. Em tais circunstâncias, ou o interveniente não recebeu e declara-o inequivocamente e sem reservas ou, se o recebeu e não pretende confessar o facto, refugia-se no facto de não se recordar de tal recebimento. Do exposto resulta que não se pode valorar o depoimento do Autor, na parte em que afirma não se ter recordado de ter recebido um pagamento em numerário, já que, em circunstâncias normais, caso não tivesse recebido essa quantia, tê-lo-ia afirmado categoricamente. Pelo contrário, a forma pouco comprometida como decorreu o depoimento do Autor reduz substancialmente a sua fidedignidade, até porque, sempre que depôs espontaneamente, ele acabou por referir não se recordar dos recebimentos.
Por outro lado, feito o confronto entre as declarações prestadas por ambas as partes, tendo o Réu declarado inequivocamente que pagou 2.500,00 € em dinheiro e tendo o Autor afirmado não se recordar desse facto, terá forçosamente de se atribuir um valor probatório superior, por o seu depoimento ter sido mais seguro, às declarações do Autor. Tanto mais que essas declarações são reforçadas por uma testemunha que, não tendo, é certo, presenciado o pagamento, afirmou ter contactado com o Réu, tendo-lhe este afirmado ter pago a quantia de 25.000,00 €.»
Apreciando, diremos que, tal como decidiu o Tribunal a quo, a prova produzida é manifestamente insuficiente para concluir pela demonstração do invocado pagamento.
Com efeito, e desde logo, é altamente inverosímil que um empresário faça pagamentos em numerário, muito menos quando o pagamento invocado se destina a cumprir parcialmente uma obrigação assumida em contrato escrito, e sem exigir imediata quitação.
Um tal procedimento seria de reputar de muito ingénuo, até para um comum cidadão, na qualidade de consumidor, quanto mais para um empresário...
Depois, como refere o Tribunal a quo, e o apelante reconhece, nenhuma das testemunhas declarou ter presenciado tal pagamento, embora uma delas refira que ouviu dizer ao réu que efetuou esse mesmo pagamento.
O réu, por sua vez, diz que efetuou esse pagamento, mas o autor nega-o.
E se é certo que, como evidenciou o réu, o autor não foi particularmente categórico ao refutar o invocado pagamento, nem por isso se pode concluir que tal circunstância permite formar convicção de que o mesmo teve lugar.
Quanto a nós, neste contexto probatório não pode de modo algum afirmar-se superada toda e qualquer dúvida razoável quanto à verificação de tal facto.
Nesta conformidade, deve a redação dos pontos 10. e 11. dos factos provados manter-se inalterada, mantendo-se igualmente a al. c. dos factos não provados.

3.2.2.2.3.- Als. a. e b. dos factos não provados

As als. a. e b. do elenco de factos não provados têm a seguinte redação:
a.-O incumprimento parcial do acordo de pagamento e reconhecimento de dívida prende-se exclusivamente com o facto de o A., na sua qualidade de gerente, não ter prestado contas ao R. no que se refere aos exercícios anuais de 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018, sonegando-lhe informação relevante e limitando-se a apresentar ao R., no decurso destes anos, documentação dispersa e difusa, que não reflete os resultados reais obtidos pela C.
b.-Foi totalmente coartado pelo A. o direito à informação que assiste ao R., na sua qualidade de sócio, bem como o direito de consulta do R. a todos os documentos contabilísticos da sociedade comercial C.
A motivação do Tribunal a quo relativamente a estes pontos de facto foi por este justificada nos seguintes termos:
“Os factos dados como não provados devem-se à falta de produção de prova suficiente.
Na verdade quantos aos pontos a) e b) não ficou provado que o não pagamento da quantia em falta pelo R. se tenha ficado a dever ao facto de o A., na sua qualidade de gerente, não ter prestado contas ao R. no que se refere aos exercícios anuais de 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018, sonegando-lhe informação relevante e limitando- se a apresentar ao R., no decurso destes anos, documentação dispersa e difusa, a seu bel prazer, que não reflete minimamente os resultados reais obtidos pela C, pois que ficou provado que foram prestadas contas e aprovadas em assembleias gerais, as quais não foram impugnadas pelo R., Ademais, decorre das comunicações referidas nos factos provados que o A. enviou documentação ao R., sendo que o R. limita-se a alegar conclusivamente, sem concretizar, qual a documentação não lhe foi enviada e que tenha sido solicitada, nem tendo alegado convenientemente que documentação afinal é que não estava correcta.
Ademais o R. diz nas declarações que lhe foi entregue a contabilidade falsa em 2014 por isso é que não pagou a diferença, e não porque não tivessem sido prestadas as contas.
A testemunha Maria ..... embora tenha afirmado que o A. se sentia enganado, que ele não tinha acesso a nada. Que há coisas que não estão bem a nível fiscal. Que o A. comprou uma quota de um empresa falida. Porém, não sabe o que se passou antes da celebração do contrato de cessão de quotas e não estava presente quando assinaram o contrato. Só começou a inteirar-se no ano de 2016 a partir do momento em que foi contratada para ver as contas de 2015.
Refere que um protocolo que o A. e que era impossível a facturação de 2015 e 2016 face ao protocolo existente, porém, não foi alegado pelo R. que “protocolo" era esse nem pelo A. em sede de articulados, depreendendo-se que se trata do protocolo com a MEO - Serviços de Comunicações e Multimédia, SA junto no inquérito judicial à empresa mencionado nos factos provados, mas que não foi objecto de alegação nestes autos.
Quanto ao b) o R. não provou que lhe tenha sido coartado totalmente pelo A. o direito à informação que assiste ao R., na sua qualidade de sócio, e muito menos o direito de consulta do R. a todos os documentos contabilísticos da sociedade comercial C, pois que por um lado, ficou demonstrado que foi enviada documentação pelo A. ao R. e, por outro, nenhuma prova, documental ou testemunhal afirmou que o A. tivesse obstaculizado a consulta pelo R. da contabilidade da sociedade C.
A apelante discorda deste entendimento, considerando que os factos vertidos neste ponto devem considerar-se provados.

Para sustentar este entendimento argumentou a apelante:
“O Recorrente discorda, ainda, da decisão da matéria de facto, na parte em que deu como não provados os pontos a e b dos factos não provados, por entender que os mesmos deveriam ter sido dados como provados.
Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diferente são os seguintes:
a)-declarações prestadas pelo Réu na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 23:30 a 26:00;
b)-depoimento prestado pela testemunha Francisco ..... em 14/05/2021, no excerto de minutos 02:00 a 06:10.
c)-depoimento prestado pela testemunha Maria ..... em 28/05/2021, no excerto de minutos 02:00 a 18:00;
d)-docs. n.° 5, 6 e 9, juntos com a p.i.

A análise deste ponto da decisão da matéria de facto deve ter como ponto de partida a factualidade vertida no art. 27.° da contestação (também objecto de recurso em parte mais adiantada desta alegação). Como aí se referiu, o Réu acordou com o Autor pagar uma quantia de 100.000,00 €, como contrapartida pela aquisição de 25 % do capital social, no pressuposto de que a sociedade comercial em causa tinha um valor global de 400.000,00 €, por gerar rendimentos elevados, susceptíveis de permitirem recuperar o investimento em pouco mais de um exercício fiscal. Isso foi afirmado não só pelo Réu, como pelo Autor e pelas testemunhas Ricardo ....., Francisco ..... e Maria ......
O que mais se apurou no decurso da produção de prova - em particular, com o depoimento de Maria ..... - é que, nos exercícios de 2015 e 2016, a sociedade em causa teve uma facturação global (não lucro, mas meramente volume de negócios) de 48.000,00€ e 24.000,00€, ou seja, valores claramente abaixo do pressuposto que serviu de base ao negócio e, concretamente, à fixação do valor global da sociedade em 400.000,00€ e da quota adquirida pelo Autor (25 %) em 100.000,00 €.
Num tal contexto, aquilo que obviamente interessava ao adquirente (no caso, o Réu) era apurar o porquê de a sociedade em causa não gerar os rendimentos expectáveis e, concretamente, os que serviram de base à fixação do valor da quota adquirida em 100.000,00€. E para isso interessava não tanto receber a documentação contabilística apresentada em sede de aprovação de contas anuais, mas ter acesso a documentação contabilística concreta, nomeadamente, facturas, despesas, protocolos com outras entidades (em especial, a PT), extractos bancários, entre outros, que permitisse ter uma perspectiva da origem das receitas e despesas da sociedade, e não uma visão genérica dos valores apurados no final do exercício.
Só assim se compreende que o Réu tenha recorrido aos serviços da testemunha Maria ..... para fazer uma auditoria às contas da sociedade, a fim de compreender as razões para um tão reduzido volume de negócios societário. Como o Réu salientou no seu depoimento, a margem de lucro na venda de cada cartão pré-pago ascendia a sensivelmente 40 % o que significava que de duas uma: ou o volume de negócios da sociedade não era o esperado (o que implicava perceber o porquê da não concretização da facturação anunciada) ou, se o fosse, o volume de despesa era excessivo e impedia a produção dos lucros anunciados.
E aquilo que foi afirmado pelo Réu e pela testemunha Maria ..... foi que, no decurso da auditoria feita à sociedade, não tiveram acesso à documentação necessária para cumprir esse desiderato, ou seja, não tiveram acesso a documentação contabilística concreta, nomeadamente, facturas, despesas, protocolos com outras entidades (em especial, a PT), extractos bancários, número de cartões vendidos, documentos de suporte de despesas, entre outros, que permitisse ter uma perspectiva concreta da origem das receitas e despesas da sociedade, e não uma visão genérica dos valores apurados no final do exercício. Em suma, não lhes foi possível escrutinar o porquê de a sociedade não produzir o rendimento anunciado. E note-se que tal informação era vital para perceber se o valor acordado pela aquisição de 25 % do capital social era justo e tinha correspondência com o valor real da sociedade e, por inerência, se se imporia ao Réu pagar uma quantia por uma sociedade que, aparentemente, não valia o preço anunciado.
De resto, a testemunha Maria ..... afirmou que só em 31/03/2015 é que o Réu recebeu alguma documentação da empresa e que depois disso ele deixou de ter contacto com o Autor, tendo ainda afirmado que, no ano de 2017, para auditar as contas de 2016, foi muito difícil aceder a qualquer documentação, tendo posteriormente a sociedade sido dissolvida.
Essa posição é, de resto, confirmada pela troca de correspondência entre as partes (em especial, os docs. n.° 5, 6 e 9, juntos com a p.i.), que confirma os constrangimentos do Réu na obtenção de documentação que lhe permitisse fazer um verdadeiro escrutínio à actividade societária e à idoneidade e adequação do preço acordado.
Por banda dos Réus e das testemunhas que aderiram à sua tese, os mesmos não infirmaram essas afirmações, tendo-se limitado a dizer que foi entregue a documentação legal, por ocasião das assembleias-gerais para aprovação de contas, e que tais contas, pelo menos em relação ao ano de 2014, foram aprovadas.
Feito o balanço da prova produzida, pode-se concluir que a pretensão do Réu de fazer uma auditoria às contas societárias era legítima, porque os resultados operacionais eram claramente inferiores ao previsto e, sobretudo, insusceptíveis de justificar o pagamento de 100 000,00 € pela aquisição de uma posição de 25 % no capital social.
Pode, ainda, concluir-se que o Réu não logrou fazer essa auditoria, por ausência e/ou não disponibilização de documentação contabilística, tanto assim que instaurou processos judiciais, cujas certidões se encontram juntas aos autos, destinados precisamente a servir esse propósito - o que foi claramente explicado pela testemunha Maria ..... .
Por fim, relevam as regras da experiência comum, que demonstram que a contabilidade de uma sociedade comercial é, em condições normais, contabilisticamente correcta, mas também que a única forma de apurar se essa realidade contabilística coincide com a realidade dos negócios da sociedade é mediante uma análise exaustiva e necessariamente prolongada aos documentos de suporte, pois só desse modo é possível detectar eventuais discrepâncias. E uma análise morosa dessa natureza não se compadece com:
a)-a mera disponibilização da documentação contabilística para aprovação de contas;
b)-o curto prazo que a lei confere para essa análise, antes da AG anual (15 dias);
c)-a análise à documentação contabilística nas instalações da própria empresa auditada, sem acesso a documentos de suporte.
Nesse sentido, com base nos meios de prova acima referidos, o Recorrente entende que o Tribunal recorrido andou mal ao dar como não provados os pontos A e B dos factos não provados, pelo que requer a V. Exa. se digne julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida, na parte em que deu os pontos A e B dos factos não provados como não provados, e sua substituição por douta decisão que dê esses factos como provados.”.

Vejamos então.

Considerando o teor das duas alíneas em apreço, face ao teor destas importa chamar à colação a clássica distinção entre factos e Direito.
Na verdade, cremos poder afirmar com segurança que se acha há muito estabilizado o entendimento de que as alegações genéricas, abstratas, vagas, imprecisas e conclusivas não podem ser consideradas factos; e que os juízos conclusivos que constituem ou podem constituir de matéria de Direito devem ser tratados de modo análogo.
Não obstante, em apesar de em abstrato, a distinção entre factos e Direito poder parecer clara e inequívoca, o certo é que a experiência demonstra que por vezes a fronteira que divide os dois conceitos nem sempre assume contornos evidentes.
Com efeito, já ANSELMO DE CASTRO “Direito Processual Civil Declaratório”, III, Almedina, 1982, pp. 268-269. ensinava que “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto, num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes.”
Por outro lado, nem todos os juízos conclusivos constituem necessariamente matéria de Direito.
Assim, as expressões de cariz normativo, poderão integrar a matéria de facto da decisão judicial se corresponderem a conceitos imbuídos na linguagem comum e não tiverem relação direta com o thema decidendum ou seja, se não tiverem relação direta com o pedido ou elementos integradores da causa de pedir.
Finalmente, há que considerar que o Código de Processo Civil de 1961, continha um preceito – o art. 646º, nº 4 - que determinava que se deveriam considerar não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito ou sobre factos que só possam provar-se por documentos ou que se achem plenamente provados, não versando expressamente sobre juízos conclusivos, e que o CPC 2013 não contém disposição semelhante.

Sobre esta questão se pronunciou o ac. STJ 29-04-2015 (Fernandes da Silva), p. 306/12.6TTCVL.C1.S1, nos seguintes termos:
«Dispunha o n.º 4 do art. 646.º do C.P.C./1961 (disposição que não foi mantida, ao menos em termos de directa correspondência, na disciplina homóloga da nova Codificação Embora o STJ ressalve o entendimento de que idêntica norma se deve extrair do art 607.º, nº 4 do CPC2013.) que se têm por não escritas as respostas do Tribunal sobre questões de direito … assim como as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Não se contempla/va a circunstância de se tratar – … como, em parte, no caso – de matéria (respostas de facto) vaga, genérica e conclusiva.
Foi-se consolidando, porém, na produção jurisprudencial – … por se ter admitido que assume feição de recorte jurídico a operação de escrutinar se determinada proposição de facto tem ou não natureza conclusiva –, o entendimento de que ”… não porque tal preceito contemple expressamente a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas (…) porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos, objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum.
(…)
a proposição será conclusiva (na tríplice perspectiva dilucidada) se exprimir uma valoração jurídico-subsuntiva essencial, devendo ser expurgada, por isso.”»
Em sentido semelhante, sustentando que do atual nº 4 do art. 607º do CPC2013 se deve extrair uma leitura idêntica à que resultava do art. 646º, nº 4 do CPC1961 vd. tb., entre outros, o ac. STJ 28-09-2017 (Fernanda Isabel Pereira), p. 809/10.7TBLMG.C1.S1, bem como o ac. STJ 01-10-2019 (Fernando Samões), p. 109/17.1T8ACB.C1.S1. Sobre a mesma matéria, mas fazendo eco de leituras diversas do art. 607º, nº 4 do CPC, vd. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, pp. 720-722.
Não obstante, este entendimento foi objeto de crítica por parte de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Blog do IPPC, entrada de 05-02-2018, intitulada “Jurisprudência (784), disponível em https://blogippc.blogspot.com/2018/02/jurisprudencia-784.html. que, em comentário ao último aresto citado sustentou que “A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há de afetar a sua prova).
O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova.
(…)
A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”

O ac. STJ 22-03-2018 (Abrantes Geraldes), p. 1568/09.1TBGDM.P1.S1 parece ter-se aproximado deste entendimento, sem que contudo se possa concluir que o sufragou totalmente.
Apreciando, diremos que as alíneas a. e b. dos factos não provados não contêm quaisquer factos provados, mas afirmações genéricas e conclusivas, que traduzem juízos de valor de pendor jurídico razão pela qual nem sequer deveriam integrar o elenco de factos não provados.
Com efeito, como se alcança da leitura da contestação, as afirmações vertidas nestas alíneas foram extraídas dos arts. 6º e 7º da contestação, e configuram conclusões resultantes da interpretação que o réu faz da troca de correspondência que manteve com o autor (vd. referência constante da 1ª parte do art. 6º da petição inicial), correspondência invocada nos arts. 12º e segs. do mesmo articulado.
Esta troca de correspondência, bem como outros factos relacionados com a atividade da sociedade de que autor e réu são sócios relevam os pontos 12. e segs. do elenco de factos provados.
Nesta conformidade, conclui-se pela improcedência da pretensão manifestada pelo réu, no sentido de o teor das als. a e b do elenco de factos não provados ser considerado provado, e decide-se eliminar as mesmas alíneas.

3.2.2.2.5.- Art. 27º da contestação

O art. da contestação tem a seguinte redação:
27º
Ademais, cumpre esclarecer que o valor de 100,000,00€ acordado como preço de aquisição da quota sub judice, sempre teria por base a expectativa fundada do R. na obtenção de elevados lucros anuais, em conformidade com a informação que sempre lhe adveio do A.
O réu pretende que seja aditado um novo ponto ao elenco de factos provados com o teor do citado artigo da contestação, argumentando para tanto como segue:
“O Recorrente discorda, por fim, da decisão da matéria de facto, na parte em que não incluiu no leque dos factos provados e não provados a factualidade vertida no art. 27.° da contestação, já que entende não só que a mesma era relevante para a apreciação do mérito da causa, como que da mesma foi feita prova, o que impunha a sua inclusão no leque dos factos provados.

Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diferente são os seguintes:
a)-declarações prestadas pelo Réu na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 08:20 a 12:00 e 16:00 a 22:40;
b)-declarações prestadas pelo Autor na sessão de 10/12/2020, no excerto de minutos 07:00 a 03:30;
c)-depoimento prestado pela testemunha Ricardo ..... em 14/05/2021, no excerto de minutos 06:30 a 07:10;
d)-depoimento prestado pela testemunha Francisco ..... em 14/05/2021, no excerto de minutos 02:00 a 04:20.
e)-depoimento prestado pela testemunha Maria ..... a em 28/05/2021, no excerto de minutos 08:50 a 26:00.
Como acima referido, o Réu acordou com o Autor pagar uma quantia de 100 000,00 €, como contrapartida pela aquisição de 25 % do capital social, no pressuposto de que a sociedade comercial em causa tinha um valor global de 400 000,00 €, por gerar rendimentos elevados, susceptíveis de permitirem recuperar o investimento em pouco mais de um exercício fiscal. Isso foi afirmado não só pelo Réu, como pelo Autor e pelas testemunhas Ricardo ....., Francisco ..... e Maria ..... .
Assim, todas as testemunhas (e as partes) acima referidas afirmaram expressa e inequivocamente que o valor de 400 000,00 €, em que foi avaliada a totalidade do capital social da sociedade, teve como pressuposto um volume de negócios que foi anunciado e que serviu de critério à fixação desse valor, e que claramente acabou por não se verificar.
O que mais se apurou no decurso da produção de prova - em particular, com o depoimento de Maria ..... - é que, nos exercícios de 2015 e 2016, a sociedade em causa teve uma facturação global (não lucro, mas meramente volume de negócios) de 48 000,00 € e 24 000,00 €, ou seja, valores claramente abaixo do pressuposto que serviu de base ao negócio e, concretamente, à fixação do valor global da sociedade em 400 000,00 € e da quota adquirida pelo Autor (25 %) em 100 000,00 €.
De resto, a produção de resultados e volume de negócios abaixo do anunciado foi afirmada por todas as testemunhas. Basta dizer que, em condições normais, não seria minimamente expectável que alguém se predispusesse a desembolsar 100 000,00 € por 25 % do capital social de uma sociedade que, como referido pelas testemunhas, não tinha qualquer património e tinha apenas a suposta capacidade de gerar elevados rendimentos - que não se verificaram.
Uma última palavra para referir que, se o teor do art. 27.° da contestação não fosse verdadeiro, dificilmente se compreenderia que o Autor, como afirmado no depoimento da testemunha Maria ....., a dado momento do diferendo com o Réu, estivesse disposto a renunciar ao recebimento do valor remanescente convencionado com o Réu (75 000,00 €), o que só é concebível num quadro como o acima relatado.
Em suma: a factualidade vertida no art. 27.° da contestação foi, de tal forma clara e, sobretudo, inquestionada, porque afirmada por todas as testemunhas, que a consideração da mesma como provada era o corolário lógico e necessário do balanço da prova produzida.
O que significa que, ao não incluir a factualidade alegada no art. 27.° da contestação no leque dos factos provados, o Tribunal recorrido errou no julgamento da matéria de facto, o que impõe a procedência do recurso e consequente revogação desse segmento da decisão recorrida, que deverá ser substituída por douta decisão que dê como provados os factos contidos no art. 27.° da contestação.”
Apreciando, diremos que o art. 27º da contestação não contém um único facto concreto, mas antes um conjunto de afirmações vagas e conclusivas (“expectativas fundadas”, “elevados lucros”, “informação que sempre lhe adveio do autor”), razão pela qual carece em absoluto de fundamento a pretensão manifestada pelo réu no sentido da sua consagração no elenco de factos provados.
Tanto basta para concluir pela improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto também nesta parte.

3.2.2.2.6.-Síntese conclusiva
Face ao supra exposto, conclui-se pela total improcedência da impugnação da decisão sobre matéria de facto, bem como pela supressão das als a. e b. do elenco de factos não provados.

3.2.2.- Do mérito da causa

3.2.2.1.- Da exceção de não cumprimento do contrato
Dispõe o art. 428º, nº 1 do CC que “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”
Como ensina ANTUNES VARELA “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9ª Ed., Almedina, 1998, pp. 406-407. “O vínculo que, segundo a intenção dos contraentes, acompanha as obrigações típicas do contrato desde o nascimento deste (sinalagma genético) continua a reflectir-se no regime da relação contratual, durante todo o período de execução do negócio e em todas as vicissitudes registadas ao longo da existência das obrigações (sinalagma funcional).
Fala-se em sinalagma genético para significar que, na géneseou raiz do contrato, a obrigação assumida por cada um dos contraentes constitui a razão de ser da obrigação contraída pelo outro.
O sinalagma funcional aponta essencialmente para a ideia de que as obrigações têm de ser exercidas em paralelo (visto que a execução de cada uma delas constitui, na intenção dos contraentes, o pressuposto lógico do cumprimento da outra) e ainda para o pensamento de que todo o acidente ocorrido na vida de uma delas repercute necessariamente no ciclo vital da outra.”
E, como sublinha JOSÉ JOÃO ABRANTES “A excepção de não cumprimento do contrato no direito civil português”, 3ª ed., Almedina, 2018, p. 37., a exceção do não cumprimento do contrato constitui um corolário lógico da relação contratual estabelecida nos contratos bilaterais, enformado pelo princípio da Boa-Fé contratual (art. 762º, nº 2 do CC): Estando cada uma das partes contratantes obrigada a uma ou mais prestações, que constituem a(s) contrapartida(s) da(s) contraprestação(ões) a que a parte contrária está obrigada, é legítimo a cada uma delas recusar a prestação(ões) a que está obrigada, enquanto a parte contrária não cumprir a obrigação de prestar a que se vinculou.
Por outro lado, como salienta a doutrina, de modo pacífico, , tal exceção opera tanto em caso de incumprimento total, como de incumprimento parcial, acrescentando que a mesma exceção pode também ser invocada nos casos de cumprimento defeituoso da prestação – Tal é o entendimento sufragado, entre outros, por PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA “Código Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, 1982, p. 81, ALMEIDA COSTA “Direito das obrigações”, 12ª ed. (8ª reimpressão), Almedina, 2020, pp. 363-364., MENEZES CORDEIRO “Tratado de direito civil”, IX, 3ª ed., Almedina, 2017, p. 295. e PEDRO ROMANO MARTINEZ “Cumprimento Defeituoso”, Almedina, 2015, p. 328..
Nesta conformidade, tendo presentes os ensinamentos de JOSÉ JOÃO ABRANTES Ob. cit., pp. 39 ss., diremos que a procedência da exceção de não cumprimento do contrato depende da verificação dos seguintes pressupostos:
-Um contrato bilateral;
-O não cumprimento ou não oferecimento do cumprimento simultâneo da contraprestação;
-A não contrariedade à boa-fé.

Quanto aos efeitos da procedência desta exceção, a doutrina e a jurisprudência dividem-se, descortinando-se basicamente duas correntes de pensamento.

Assim, para uns, a exceção de não cumprimento configura uma exceção material dilatória, cuja procedência não obsta ao conhecimento do mérito da ação, devendo o Tribunal proferir uma decisão de condenação quid pro quo, isto é, condenando o demandado a realizar a sua prestação contra o cumprimento simultâneo da contraprestação do parte do demandante, ou do seu cumprimento sem defeito – Neste sentido se pronunciaram, no campo da doutrina, VAZ SERRA “A excepção do contrato não cumprido”, BMJ 67, pp. 33 ss.. e CALVÃO DA SILVA “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4ª ed., Almedina, 2007, pp. 329 ss., em especial pp. 335-336., bem como, no plano da jurisprudência, os acs. Aqui indicados por ordem cronológica, independentemente dos Tribunais que as proferiram. RC 27-09-2005 (Ferreira de Barros), p. 2257/2005; RL 26-06-2008 (Granja da Fonseca), p. 4703/2008-6, RC 27-05-2005 (Ferreira de Barros), p. 2257/05; STJ 26-10-2010 (Urbano Dias), p. 571/2002.P1.S1; RC 13-09-2011 (Teles Pereira), p. 458/2007; RG 20-02-2014 (Jorge Teixeira), p. 3730/11.8TBVCT-F.G1; RE 11-06-2015 (Cristina Cerdeira), p. 408/05.5TBALR.E1; RG 05-11-2015 (Conceição Bucho), p. 39599/10.6YIPRT.G1; RP 28-11-2017 (Mª Graça Mira), p. 9394/15.2YIPRT.P1; e RC 21-12-2018 (Luís Cravo), p. 131004/16.4YIPRT.C1.

Já de acordo com outra orientação, uma vez que o CPC não admite a possibilidade de condenações condicionais, a procedência da exceção de não cumprimento determina absolvição do pedido, embora isso não impeça a eventual e futura propositura de nova ação logo que a parte cumpra a sua prestação, ou supra os defeitos da sua prestação. Louvam-se os defensores desta tese no disposto no art. 673º do CPC e de igual preceito do CPC 1961, que atualmente corresponde ao art. 621º do CPC2013, o qual estabelece que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.”
Para esta corrente de pensamento, a exceção do não cumprimento configura uma exceção material dilatória que produz os efeitos de uma exceção perentória.

Neste sentido se pronunciaram ALBERTO DOS REIS “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, Coimbra Editora, pp. 80-81. e MIGUEL MESQUITA “Reconvenção e Excepção no Processo Civil”, Almedina, 2009, p.95 e, no plano da jurisprudência, os acs. STJ 26-11-2009 (Santos Bernardino), p. 674/02.8TJVNF.S1; STJ 30-09-2010 (Maria dos Prazeres Beleza), p. 184/06; e STJ 15-03-2012 (Maria dos Prazeres Beleza), p. 925/08; RP de 30-01-2012, p. 3341-08.

No caso dos autos, o réu invocou a exceção de não cumprimento do contrato de cessão de quotas que outorgara com o autor.
De acordo com o alegado pelo réu, tal exceção funda-se na mora do autor em cumprir deveres de informação relativamente aos resultados efetivos da atividade da sociedade a que se reporta a quota que adquiriu mediante a outorga do mencionado contrato.
Contudo, lidos e analisados o contrato de cessão de quotas e o “acordo de reconhecimento de dívida” celebrados entre as partes, não se descortina em qualquer um deles que o autor se tenha obrigado a prestar tais informações ao réu.
Ora, a exceção do não cumprimento tem necessariamente que se fundar no incumprimento das prestações diretamente emergentes do contrato, que são contrapartida da obrigação de prestar a que o contraente que invoca a exceção se obrigou, não podendo reportar-se a outras obrigações.
Da leitura dos mencionados contratos resulta que a prestação a que o autor se obrigou consistiu na transmissão de uma quota da sociedade C, para o réu, prestação essa que ocorreu logo a quando da outorga do contrato de cessão de quotas, e foi complementada pelo registo da transmissão de quotas Cfr. pontos 1 a 9. dos factos provados..
Por seu turno, e em contrapartida da cessão da mencionada quota, o réu obrigou-se a pagar o preço ajustado pela transmissão da mesma Idem..
Na economia dos dois contratos outorgados entre autor e réu, a relação sinalagmática estabeleceu-se claramente entre estas duas prestações: cessão da quota e pagamento do preço.
A eventual violação de deveres de informação poderia relevar no período pré-contratual, no âmbito de institutos como a responsabilidade pré-contratual, ou eventualmente no âmbito da invocação de algum dos vícios da vontade e da declaração.
Porém, o réu não invocou nenhum dos apontados institutos jurídicos.
De outra banda, transposto o limiar da outorga dos já referidos contrato de cessão de quota e acordo de pagamento, os eventuais deveres de informação recíproca emergem da qualidade de sócio que autor e réu detêm, regulando-se por isso nos termos previstos no Código das Sociedades Comerciais.
Donde não se verifica qualquer correspetividade entre o dever de informação invocado pelo réu, e a obrigação de pagar o remanescente do preço devido pela aquisição da quota.
Tanto basta para concluir pela improcedência da exceção de não cumprimento.

3.2.2.2.- Do abuso do direito
Argumenta o apelante que caso a presente ação seja julgada procedente “estar-se-ia a reconhecer ao Autor o direito ao recebimento de uma quantia avultada 75000,00 € ou €77000,00-, a título de preço de um bem ou direito com valor consideravelmente inferior. Por outras palavras, estar-se-ia a gerar, através de uma decisão judicial, uma situação materialmente injusta, pois estar-se-ia a permitir o enriquecimento injustificado de uma das partes (o Autor) à custa da outra (o Réu).
Num tal quadro, ainda que assistisse ao Autor o direito que veio exercer nesta acção, o seu exercício, porque susceptível de geral a descrita situação de desequilíbrio de prestações, sempre excederia os limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico do direito ao recebimento do preço, sempre seira manifestamente abusivo, conforme previsto no art. 334.º, n.º 1 do Cód. Civil.” Vd. al. d) das alegações, e conclusões 17. e 18..
Estabelece o art. 334º do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Interpretando este preceito, diz ANTUNES VARELA “Das obrigações em geral”, 7ª Ed., p. 536. que “Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. Quer isto dizer que o Código Civil consagrou uma conceção objetiva de abuso do direito.
No que respeita aos limites impostos pela boa-fé, avulta em especial a vertente da tutela da confiança legítima. A este propósito sublinhou BAPTISTA MACHADO RLJ, ano 119, p. 232. que “Dentro da comunidade das pessoas responsáveis (ou imputáveis), a toda a conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente uma “responsabilidade” – no sentido de um “responder” pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite (...).
Desta “autovinculação” inerente à nossa conduta comunicativa derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis (...).
Do exposto podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem”.

Nesta medida, ensina MENEZES CORDEIRO “Teoria Geral do Direito Civil”, AAFDL, 1989, pp.372-383. Para uma análise detalhada de cada um dos tipos de atos abusivos cfr. do mesmo autor, “Tratado de Direito Civil”, V, 2ª ed., Almedina, 2015, pp. 295-381. que a figura do abuso do direito abrange uma tipologia diversificada de situações de exercício inadmissível de posições jurídicas e que compreende, nomeadamente, as seguintes modalidades:

-a exceptio doli: o exercício de uma posição jurídica poderia ser detido com a alegação de que o seu autor incorre em dolo, isto é (neste caso), defronta diretamente a boa fé;
-o venire contra factum proprium: o exercente deixa entender – ou declara – ir tomar uma certa atitude e, depois, toma atitude contrária ou diversa;
-as inalegabilidades formais: o exercente vem alegar a invalidade de um negócio jurídico por vício de forma, em termos contrários à boa fé;
-a supressio: o exercente deixa passar um tal lapso de tempo sem exercer o seu direito que, quando o faça, contraria a boa fé;
-a surrectio: por força da boa fé, o exercente vê, contra ele ou em termos que ele deva respeitar, formar-se um direito que, de outro modo, não existiria;
-o tu quoque: o exercente pratica um facto ilícito ou indevido e depois alega-o contra outrem;
-o exercício em desequilíbrio: o exercente desenvolve uma atividade danosa inútil, o exercente exige algo que deve restituir de seguida (…) ou o exercente provoca uma desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício que impõe a outrem.”

No caso vertente, verifica-se que a invocação da figura do abuso do direito se estriba numa alegada desproporção entre o preço atribuído à quota que o autor cedeu ao réu e o seu valor real.
Sucede, contudo, que da factualidade provada não se colhem elementos que permitam considerar demonstrada tal desproporção.
Com efeito, o real valor da quota transacionada há-de resultar da aferição do valor de mercado da sociedade C, enquanto universalidade, considerando fatores como o património da mesma sociedade, a sua carteira de clientes, o seu volume de negócios, os seus ativo e passivo, etc…
Ora basta uma simples leitura da factualidade provada para se concluir que dali não emergem elementos que permitam elaborar, sequer, um esboço da situação patrimonial, operacional e financeira da mencionada sociedade, o que inviabiliza liminarmente qualquer cálculo do valor aproximado da quota transacionada.
Acresce que o preço da cedência da mesma quota resulta da negociação entre os outorgantes…
Nesta conformidade, forçoso será ter por indemonstrados os pressupostos da figura do abuso do direito, concluindo por isso pela total improcedência desta exceção.

3.2.2.3.- Do enriquecimento sem causa e da redução do preço
Tal como sucedeu com a invocação da exceção de abuso do direito, também as exceções de enriquecimento sem causa e redução do preço assentavam no pressuposto de que se verificaria manifesta desproporção entre o preço atribuído à quota que o autor cedeu ao réu e o seu valor real.
Ora, como já se mencionou no ponto anterior, o apelante não logrou demonstrar tal desproporção.
Termos em que, sem necessidade de quaisquer outras considerações, se conclui pela improcedência das exceções em apreço.

3.2.2.4.- Dos juros de mora
Sustentou o apelante que em caso algum poderia ser condenado a pagar ao apelado juros de mora contados à taxa legal prevista para as obrigações de natureza comercial, por não se encontrarem reunidos os pressupostos previstos no art. 102º do Código Comercial Aprovado pela Carta de Lei de 28-06-1888. À data vigorava na redação que lhe foi conferida pelo DL 62/2013, de 10-05. Adiante passaremos a designar este Código pela sigla “CCom”. e/ou no DL nº 62/2013, de 10-05 Vd. al. e) das alegações de recurso e conclusões 22. e 23... Entende por isso que, quando muito, a serem devidos juros de mora, os mesmos deverão contar-se “à taxa civil”.
Assiste razão ao autor, mas por razões diversas das invocadas.

Expliquemo-nos.

Estabelece o art. 102º do CCom:
“Artigo 102º
Há lugar ao decurso e contagem de juros em todos os actos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos especiais fixados no presente Código.
- A taxa de juros comerciais só pode ser fixada por escrito.
- Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artigos 559º-A e 1146º do Código Civil.
- Os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça.
-4.º A taxa de juro referida no parágrafo anterior não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de sete pontos percentuais, sem prejuízo do disposto no parágrafo seguinte.
-5.º No caso de transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, a taxa de juro referida no parágrafo terceiro não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de oito pontos percentuais.”
Conforme decorre do corpo do preceito citado, são devidos juros em todos os atos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se.

Daqui emergem dois requisitos para que sejam devidos juros nos termos deste preceito:
a)-Que a obrigação de juros se reporte a um ato de comércio; e
b)-Que a obrigação de juros resulte de acordo das partes, ou da lei.
No caso vertente, estão em causa juros de mora, pelo que resultam de imposição legal, nos termos previstos nos arts. 804º, nº 1, 806º, nº 1, e 559º do CC, este último aplicável ex vi do §2º do preceito supracitado.
Quanto à obrigação principal à qual a mora se reporta, constitui a mesma um acordo de pagamento do preço de um contrato de cessão de quotas.
Tal cessão de quotas operou-se através de uma compra-e-venda de uma quota de uma sociedade comercial por quotas.
Ora, estabelece o art. 463º, 5º do CCom que “são consideradas comerciais (…) as compras e vendas de partes ou de ações de sociedades comerciais”.
Desta disposição legal decorre que as cessões de quotas com as caraterísticas acima enunciadas constituem atos de comércio objetivos.
A mora que incide sobre obrigações emergentes de atos de comércio objetivos é indemnizável mediante o pagamento de juros de mora comerciais.
Portanto, ao contrário do sustentado pelo réu, podia o autor peticionar juros de mora à taxa comercial.
Podia.
Mas não o fez.
Com efeito, como se alcança da leitura daquele articulado, o autor invocou o disposto nos arts. 762.º, n.º 1; 763.º n,º 1; 798º, 799º, 801º e 804º, todos do CC, não fazendo qualquer referência a qualquer disposição do CCom, ou ao mencionado DL nº 62/2013.
E foi assente em tal enquadramento que o autor clamou por juros de mora contados desde 06-12-2015, concluindo que os vencidos até a data da propositura da ação ascendem a € 12.145,21.
Ora, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos arts. 806º, nº 2, e 559º-A do CC, e da Portaria nº 291/2003, de 08-04, a taxa de juros aplicável aos chamados “juros civis” é de 4% ao ano.
Tendo a presente ação sido intentada em 05-11-2019, verificamos que os juros de mora, contados sobre € 77.500,00, à taxa legal de 4% ao ano, até à mencionada data (mais precisamente até 04-11-2015 inclusive) totalizam precisamente o montante de € 12.145,21 peticionado pelo autor.
Ora, a taxa de juros moratórios comerciais prevista nas diversas portarias que a que se reporta o art. 102º do CCom sempre foi superior.
Na verdade, essa taxa foi de 7,05% até 30-06-2016, e de 7% ao ano nos semestres subsequentes Cfr. avisos n.ºs 7758/2015, de 14 de 07; 890/2016, de 27-01; 8671/2016, de 12-07; 2583/2017, de 19-03; 8544/2017, de 01-08; 1989/2018, de 13-02; 9938/2018, de 26-07; e 11571/2019, de 17-07..
Nessa medida, os juros de mora vencidos até à data da propositura da presente ação, calculados à taxa de juros comerciais, totalizariam € 21.246,36, montante substancialmente superior ao peticionado.
Ora, nos termos do disposto no art. 609º, nº 1 do CPC a sentença não pode condenar em objeto diverso ou quantidade superior à pedida.
Ao condenar o réu a pagar ao autor juros comerciais, a sentença apelada desrespeitou tal comando, tal como o desrespeitou na parte em que condenou no pagamento de juros vincendos, que claramente não foram pedidos Nem tinham que ser, porquanto transitada a sentença em julgado, e condenado a mesma no pagamento de quantia em dinheiro, esses juros incorporam-se no título, por força do disposto no art. 703º nº 2 do CPC..
É certo que o réu não invocou o vício da condenação em quantidade superior à pedida, mas também é certo que sustentou não serem devidos juros comerciais. E é igualmente certo que o Tribunal não está adstrito ao Direito invocado pelas partes, podendo aplicar livremente o Direito, desde que respeitando os limites objetivos da causa (pedido e causa de pedir), isto nos termos previstos no art. 5º, nº 3 do CPC.
Assim sendo, importa alterar o decidido, na parte que respeita aos juros de mora, condenando-se o réu a pagar ao autor juros de mora nos termos estritamente peticionados, ou seja, a quantia de € 12.145,21, relativa aos vencidos até à propositura da presente ação.

3.3.- Da comunicação à Autoridade Tributária
Da factualidade provada resulta, de modo evidente, que autor e réu fizeram constar no contrato de cessão de quotas que celebraram um preço substancialmente inferior ao real.
Com efeito, nesse contrato declararam que a quota transacionada era cedida pelo seu valor nominal, ou seja, € 2.500,00, quando na realidade o preço que realmente ajustaram, e fizeram constar do “acordo de pagamento com reconhecimento de dívida” foi de € 100.000,00.
Uma tal simulação do preço poderá ter permitido ao autor, na qualidade de cedente, evitar o pagamento de IRS relativo a eventuais mais valias pela cessão da quota alienada.
Não cabe, obviamente, a este Tribunal apreciar de eventuais ilícitos fiscais por parte dos litigantes.
Contudo, detetados indícios de infração fiscal, cumpre-lhe comunicá-los às Autoridade Tributária.
Assim sendo, determinar-se-á a remessa de certidão do presente acórdão à Autoridade Tributária e Aduaneira, para os efeitos tidos por convenientes.
Tal remessa não depende do prévio trânsito em julgado do presente acórdão, porquanto o objeto da comunicação são meros indícios de infração fiscal, que não dispensam as necessárias averiguações que esta entidade entenda por bem levar a cabo.

3.4.- Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
No caso vertente, face à parcial procedência da presente apelação, devem as custas ser suportadas por autor e réu, na proporção dos respetivos decaimentos.

4.- Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
1.-Não tomar conhecimento do objeto da presente apelação, no tocante à pretendida redução do preço e à exceção de abuso do direito;
2.-No mais, julgar a apelação parcialmente procedente, alterando a al. b) do dispositivo da sentença, que passará ter a seguinte redação:
b)- € 12.145,21 a título de juros de mora sobre a quantia referida em a), contados desde 06-12-2015 até à data da propositura da presente ação.
3.-Determinar a imediata remessa de certidão do presente acórdão à Autoridade Tributária e Aduaneira, para os efeitos tidos por convenientes.
Custas por autor e réu na proporção dos respetivos decaimentos.



Lisboa, 22 de fevereiro de 2022


Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.


Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa