Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1568/09.1TBGDM.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO SUCESSÓRIA
USUCAPIÃO
REQUISITOS
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
POSSE
SUCESSÃO
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / O TEMPO E A SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / PRESCRIÇÃO – DIREITO DAS COISAS / POSSE / USUCAPIÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / APELAÇÃO / INTERPOSIÇÃO E EFEITOS DO RECURSO.
Doutrina:
-António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª Edição;
-Teixeira de Sousa, in https//blogippc.blospot.pt.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): -ARTIGOS 303.º, 1255.º E 1292.º;
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 646.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 28-09-2017, PROCESSO N.º 809/10.
Sumário :
I. O atual CPC não contém um preceito como o do art. 646º, nº 4, do CPC de 1961, que titulava de “não escrita” “as respostas do coletivo sobre questões de direito”, o que não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui “matéria de facto” e “matéria de direito”.

II. Tendo as partes expressado na ata da audiência final um acordo no sentido de se considerar provado, sem mais, que “do património (de uma antecessora) constava um determinado prédio, segmento que já havia sido considerado numa ação anterior, não existe motivo algum para o desconsiderar na ação em que, além do mais, se pretende apurar se o referido prédio se teria transmitido sucessivamente por via hereditária, até chegar à esfera dos autores.

III. A invocação da titularidade de um direito de propriedade adquirido por via hereditária não se basta com a prova de que determinados antecessores foram proprietários do bem em causa, mas ainda que esse bem integrava o acervo da herança que foi partilhada pelos AA., como herdeiros do imediato antecessor.

IV. A aquisição do direito de propriedade por via da usucapião deve ser invocada pelos interessados em cuja esfera jurídica produz efeitos essa forma de aquisição originária (art. 303º, ex vi art. 1292º do CC), ainda que para o efeito possa ser contabilizada a posse exercida pelos respetivos antepossuidores.

V. Os AA. também não reúnem os pressupostos para a invocação da aquisição por usucapião de um determinado prédio se, para além de não se ter provado que sejam os atuais possuidores desse prédio, nem sequer se apurou, para efeitos do art. 1255º do CC (sucessão na posse independentemente da apreensão material), que essa posse existisse e se mantivesse na esfera dos imediatos antecessores na ocasião em que faleceram.

Decisão Texto Integral:
I - AA e Outros que foram chamados a intervir como partes principais ativas e BB e mulher CC e Outros, instauraram ação judicial contra DD e Outros, formulando os seguintes pedidos:

a) Serem os AA. e os Intervenientes declarados proprietários de um prédio designado por “Campo EE”, cuja implantação corresponde sensivelmente ao demarcado a vermelho no doc. nº 13 e igualmente ao demarcado a vermelho na fotografia atrás junta como doc. nº 25 (…).

b) Ser declarado nulo o registo efetuado a favor dos RR. na CRP de G…, mediante a apresentação nº 4… de 18.11.1999, respeitante ao prédio aí descrito com o nº 4….3 da freguesia de …, e cancelado o referido registo de inscrição da propriedade a favor dos réus.

c) Ser reconhecido e declarado que o prédio em causa nestes autos é o prédio registado a favor dos RR., ou seja, o prédio descrito com o n.º 4.423, da freguesia de ….

d) Subsidiariamente, se assim não se entender quanto aos pedidos formulados em I, deverá ser declarado nulo o registo referido no item II e o mesmo cancelado.

Para o efeito, alegaram que o terreno designado por Campo EE pertenceu a uma antepassada comum, FF, e que, por morte desta e dos subsequentes sucessores que identificaram, a propriedade desse prédio se transmitiu até se integrar na esfera dos AA. e dos Intervenientes, tal como se lhes transmitiu pela mesma via a posse pública, pacífica e reiterada do mesmo prédio.

No entanto, os RR. afirmam serem proprietários do mesmo prédio por o terem herdado de um antepassado, o qual logrou inscrevê-lo no registo predial a seu favor, registo que é nulo por enfermar de graves inexatidões que criam incerteza quanto ao seu objeto.

A ação foi contestada mediante a alegação da exceção de caso julgado, uma vez que a presente ação não passa da repetição da ação nº 1051/01 do 2º Juízo Cível, na qual os pedidos ora formulados pelos AA. foram julgados improcedentes, decisão já transitada em julgado.

Quanto ao mérito, defenderam os RR. que o prédio em causa nos autos se encontra inscrito no registo predial a favor dos RR., a quem pertence, por o terem herdado de GG, estando desde Novembro de 1953 na posse pública, pacífica, titulada e contínua deste e dos seus herdeiros, não enfermando o registo de qualquer vício gerador de nulidade.

Em reconvenção pediram a condenação dos AA. a pagarem-lhes uma indemnização a liquidar em execução de sentença, alegando que ao intentarem esta nova ação depois de terem perdido a anterior os AA. praticam um facto ilícito que impediu os RR. de venderem o prédio e usufruírem do produto da venda e lhes causa ainda danos não patrimoniais.

No despacho saneador a exceção do caso julgado foi desatendida com o argumento de que nesta ação intervêm do lado ativo outras pessoas que não intervieram na primeira ação e ainda que, atendendo à sua qualidade jurídica, não está demonstrado que os Intervenientes possam ser equiparados às partes da primitiva ação.

Foi proferida sentença julgando a ação e a reconvenção improcedentes e absolvendo os RR. dos pedidos.

Os RR. interpuseram recurso da “decisão proferida no despacho saneador” que julgou “improcedente a exceção de caso julgado” e os AA. apresentaram recurso de apelação da sentença. A Relação julgou verificada a exceção do caso julgado, com exceção apenas da parte relativa ao pedido de declaração de nulidade do registo predial, absolvendo os RR. da instância no que concerne aos restantes pedidos. Julgou ainda improcedente o recurso da sentença na parte relativa ao pedido de nulidade do registo e confirmou a sentença recorrida na parte em que julgou esse pedido improcedente.

Desse acórdão foi interposto recurso de revista para este Supremo, tendo este mesmo coletivo proferido acórdão que confirmou a exceção de caso julgado quanto ao pedido de declaração de contitularidade do direito de propriedade apresentado pelos primeiros elementos dos 1º a 9º subgrupos de Coautores e de ambos os elementos do 10º subgrupo de Coautores, revogando o mesmo acórdão na parte em que decretou a absolvição da instância com respeito às pretensões deduzidas pelos segundos elementos dos 2º, 3º, 5º, 7º, 8º e 9º subgrupos de Coautores e aos intervenientes principais (11º subgrupo de Coautores).

Foi determinada a remessa dos autos à Relação para que, relativamente às partes em relação às quais não se formara caso julgado fossem apreciadas as questões que ficaram prejudicadas pela resposta que a Relação deu à exceção dilatória de caso julgado.

Os autos foram remetidos à Relação que apreciou o recurso de apelação e julgou a improcedente as pretensões respeitantes aos Coautores que ainda se mantiveram na instância.

Desse acórdão foi interposto novo recurso de revista pelos Coautores, suscitando as seguintes questões:

- Modificação da decisão da matéria de facto;

- Verificação dos requisitos da sucessão hereditária quanto ao prédio;

- Verificação dos requisitos da aquisição do direito de contitularidade por usucapião;

- Verificação da nulidade da inscrição no registo predial em benefício dos RR.


Houve contra-alegações.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II - Factos provados:

A) A 15-2-1879, FF casou, em segundas núpcias dela, com HH, tendo sido casada anteriormente com II em segundas núpcias deste.

B) Do casamento com HH resultaram dois filhos: JJ (nascido a 4-6-1880) e KK (nascido a 20-4-1882).

C) A 26-2-1894 e 31-3-1918 faleceram, respetivamente, HH e FF.

D) A 15-7-1921 e 5-12-1919 faleceram, no estado de solteiros, os dois filhos de FF, respetivamente JJ e KK.

E) JJ e LL tiveram dois filhos: MM e NN.

F) MM contraiu matrimónio com OO e NN com PP.

G) A 27-11-1976 faleceu o marido de MM, tendo ela falecido, no estado de viúva, a 20-10-88.

H) A referida MM deixou como seus únicos e universais herdeiros os 1º a 8º AA., e QQ, todos seus filhos, como resulta da escritura de habilitação de herdeiros outorgada a 13-10-97 no 8º Cart. Not. do Porto, junta aos autos.

I) O referido QQ faleceu a 5-12-94, deixando como seus únicos e universais herdeiros a sua esposa, RR, e os seus filhos, 9º e 10º AA., conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros outorgada a 13-10-97 no 8º Cart. Not. do Porto, junta aos autos.

J) A 12-1-99 faleceu RR, deixando como seus únicos e universais herdeiros os seus filhos, os mesmos 9º e 10º AA., conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros outorgada a 12-2-99 no 8º Cartório Not. do Porto, junta aos autos.

L) O NN faleceu, no estado de viúvo, a 19-10-92, deixando como seus únicos e universais herdeiros os seguintes filhos: SS, TT, UU, VV, XX, ZZ, e a ora 11.ª autora, AAA, conforme consta da respetiva habilitação de herdeiros, outorgada a 8-7-86 no 8º Cart. Not. do Porto, junta aos autos.

M) Do património pertencente a FF constava uma área de terreno de aproximadamente 100.000m2, sito na que é hoje freguesia de …, G…, nela se englobando uma casa de habitação, engenho de tirar água, cortes de animais, e diversos terrenos que estão a mato e campos lavradios, área essa cujas confrontações não se podem, atualmente, identificar com exatidão, mas cuja implantação correspondia aproximadamente à demarcada a verde na planta topográfica junta a fls. 76.

P) A área aludida no referenciado item 23, incluía diversos campos, entre eles o “Campo EE” e o “Campo BBB”, sendo o "Campo BBB", por ser o de maior dimensão e importância na época, o que acabou por identificar toda essa área, conhecida até meados do presente século como “Campo BBB”.

S) A 23-9-1896, a FF doou a CCC um terreno denominado “Campo BBB”.

T) A doação desse terreno, dizia respeito a uma parte do terreno referido em M), e não a toda essa área de terreno, igualmente conhecida na época como “Campo BBB”.

U) A localização do designado “Campo EE” era a demarcada a vermelho no doc. fls. 76.

V) Esse terreno foi cultivado, até finais dos anos 20, por LL, MM e NN, aí plantando e colhendo couves, hortaliças e pencas e consentindo a terceiros o roçar de erva para o gado, o que fizeram à vista de toda a gente, sem interrupções e sem oposição de ninguém, conscientes, pelo menos até 1933, que o Campo EE pertencia a FF (alterado pela Relação)

V1) Em G… havia pessoas que consideravam que o Campo EE pertencia à família dos DDD (aditado pela Relação).

AA) Depois que a MM casou com o OO, em 1929, foi viver para A….

AB) E a sua ocupação diária passou a ser, daí em diante, cuidar do marido, da casa e dos filhos, que entretanto iam nascendo e assentando a economia doméstica na atividade do marido ourives, por ela ajudado.

AC) E, por isso, foi diminuindo o cultivo do “Campo EE”, até que em finais dos anos 30 o cessou completamente.

AD) O NN, em meados dos anos 30, foi viver para o Lugar …, em …, G…, exercendo a profissão de m… e deixando de cultivar diretamente o referido campo.

AF) O “Campo EE” passou a ser, assim, um terreno com um aspeto baldio, local de brincadeiras dos filhos de MM e do NN e amigos de infância, de roço de ervas para o gado que a MM e o NN consentiam a terceiros e, por vezes, do cultivo, em alguma da sua área, de couves e pencas que eles igualmente consentiam a terceiro, com a contrapartida da entrega a ambos de uma parte desses produtos.

AL) Em virtude do aspeto “baldio”, parte do “Campo EE” passou, em dias de feira ou de festa, a ser ocupado por feirantes, principalmente nas partes confrontantes com a via pública, situação que ainda hoje se mantém.

AO) Por escritura pública outorgada a 9-11-53, no 2º Cartório Not. do Porto, EEE declarou vender e GG declarou comprar diversos prédios de entre os quais o chamado "C…", que se encontrava inscrito na matriz rústica sob os arts. 1…4º, 1..5º e 1…6º, sitos no Lugar da …, …, G…, neles se incluindo o designado “Campo EE”, sendo que nenhum destes prédios se encontrava, ainda, descrito na competente CRP, tendo sido exibidos na referida escritura uma certidão de omissão da descrição dos prédios na 3.ª Secção da 1ª CRP do Porto e o conhecimento do pagamento de sisa nº 353.

AP) O prédio rústico, denominado “C…”, encontra-se descrito na CRP de G…, sob o nº 04…3, inscrito na matriz, sob o artigo matricial rústico de … n.º 1…4, foi extratado do prédio nº 7…3 a fls. 187 do Livro B-20, e encontra-se inscrito a favor dos RR. por o haverem adquirido por sucessão hereditária de GG.

AQ) Em finais do ano 2000, os AA. viram afixadas no terreno registado em nome dos RR., placas da sociedade de Mediação Imobiliária “FFF”, a promover a venda do mesmo e contactaram a referida sociedade para saberem o que se passava, tendo sido informados que o terreno em apreço pertenceria a uns seus clientes, os ora RR., que por seu intermédio o pretendiam vender, tendo-lhes entregue fotocópia da certidão do registo do terreno em nome dos RR., tendo os AA. protestado serem os donos do terreno e arrancado as referidas placas.

AR) “GGG” é a alcunha da família da MM cujo marido OO era conhecido pela alcunha de “GGG”.


II – Decidindo:

1. O direito de contitularidade que é invocado sobre o prédio registado a favor dos RR. é afirmado pelos AA. por duas distintas vias: por um lado, com base na sucessão hereditária que recua ao tempo (Séc. XIX) em que o prédio fizera parte do património de FF, o qual teria sido transferido sucessivamente para os respetivos herdeiros, até chegar à esfera dos AA.; por outro lado, por via da usucapião resultante do exercício da posse quer da referida FF, quer dos subsequentes sucessores e dos ora AA.

Tal pretensão foi julgada improcedente pela 1ª instância. A Relação, relativamente aos AA. que não estavam abarcados pelo caso julgado formado na anterior ação, confirmou a improcedência da pretensão tanto com base na aquisição hereditária, como na usucapião.

É contra esta decisão que se rebelam os AA. relativamente aos quais ainda prossegue a instância, por não estarem submetidos ao caso julgado formado na anterior ação.


2. O primeiro argumento da Relação assenta num aspeto de ordem formal relacionado com a matéria de facto que agora cumpre reponderar.

2.1. Concluiu a Relação que, apesar de as partes terem acordado em assumir para a sentença factos que na anterior ação haviam sido considerados provados (fls. 1131 e ss.), haveria que fazer uma restrição quanto a um deles, por se tratar de matéria de direito.

Assim aconteceu relativamente ao seguinte segmento factual:

Do património pertencente a FF constava uma área de terreno de aproximadamente 100.000m2, sito na que é hoje freguesia de …, G…, nela se englobando uma casa de habitação, engenho de tirar água, cortes de animais, e diversos terrenos que estão a mato e campos lavradios, área essa cujas confrontações não se podem, atualmente, identificar com exatidão, mas cuja implantação correspondia aproximadamente à demarcada a verde na planta topográfica junta a fls. 76” (M).

Considerou a Relação para tal que estava vedado às partes assumirem, desde logo, que o referido prédio fazia parte do “património” de FF e, assim, concluiu que:

 “ … não nos parece correto sustentar que para efeitos da procedência da ação já se encontra definido nos autos que a FF era titular do direito de propriedade sobre o Campo EE. Para que isso sucedesse era necessário que estivesse demonstrada uma forma de aquisição originária do direito ou, pelo menos, uma fonte de presunção de titularidade do direito, não ilidida pela parte contrária. Vindo pedida a declaração judicial da titularidade do direito de propriedade e não se alegando sequer como é que esse direito foi transmitido até à titularidade da FF, a procedência da ação só pode provir da demonstração de uma fonte de aquisição originária do direito, a aquisição por usucapião.

A lei permite às partes confessar factos (arts. 352.º e ss. do CC) ou confessar pedidos (art. 283.º do CPC). Também é possível o reconhecimento de qualidades jurídicas, mas isso apenas quando essas qualidades jurídicas não são precisamente o objeto do processo, nem são determinantes para a solução do caso.

O réu pode confessar factos ou pode confessar o pedido, dispondo do direito, mas não pode confessar a conclusão jurídica que está em discussão na ação de que é responsável pelos danos, a qual resultará sempre da aplicação do direito aos factos, conforme decorre do n.º 3 do art. 536.º do CPC, segundo o qual «o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito».


O mesmo vale para a presente ação. Nesta, as partes acordaram considerar provada, para efeitos da decisão a proferir, a materialidade julgada provada na anterior ação instaurada com o mesmo objetivo. A circunstância de entre esses factos constar que o prédio estava incluído no património da FF é insuficiente para satisfazer a regra do nemo plus iuris… porque esta exige a demonstração de uma forma de aquisição originária.

As partes podem, por exemplo, acordar que a FF praticou atos de posse sobre o imóvel com a intenção de ser titular do direito correspondente e que esses atos se prolongaram por tempo suficiente para permitir a aquisição do direito por usucapião. Nessa situação, tais factos têm de se considerar confessados, mas, ainda que isso ocorra, o tribunal, ao fazer a aplicação do direito a esses factos, pode ou não concluir que a FF adquiriu o direito de propriedade, uma vez que para assim concluir o tribunal carece de ter como demonstrada uma situação de aquisição originária do direito de propriedade.

Mas as partes não podem, à revelia do princípio nemo plus iuris …, considerar provado que a antecessora dos autores era proprietária do imóvel, impondo ao tribunal essa solução jurídica. Em rigor, portanto, o que nesse item está provado não é um facto, é uma conclusão jurídica que, como tal, deve ser considerada não escrita.

Entendemos pois, com tal fundamento, que não é possível considerar confessado que a FF era proprietária do Campo EE para efeitos de julgar demonstrada a aquisição derivada do direito de propriedade daquela para os autores em termos de dispensar a demonstração da aquisição originária do direito para obter a procedência da ação”.

Os recorrentes insurgem-se contra este segmento do aresto e com toda a razão.


2.2. A Relação extraiu uma conclusão que não corresponde (ou já não corresponde) ao modelo processual que passou a vigorar com o CPC de 2013, o qual, apostando no julgamento simultâneo da matéria de facto e da matéria de direito, deve levar necessariamente a que se moderem os juízos que, posto que excessivos em alguns casos, ainda encontravam algum arrimo na norma do nº 4 do art. 646º do CPC de 1961.

Este preceito (que, aliás, respeitava à distinção entre o julgamento da matéria de facto feito pelo coletivo e o julgamento da matéria de direito a cargo do respetivo presidente) já não consta do atual CPC a que é agora estranha a existência de um tribunal coletivo.

Verifica-se ainda que, depois de ainda no âmbito do anterior CPC ter sido abolido o “questionário!, peça que substituída pela “base instrutória”, e de, em face do atual CPC, a instrução relativa à matéria de facto controvertida ser feita em torno de “temas de prova”, é tempo de repensar o assunto e extrair do novo modelo processual outras soluções que deixem de lado os excessos formalistas em que anteriormente eram pródigos alguns arestos dos tribunais, por assentarem numa delimitação pretensamente objetiva , ainda que muitas vezes artificial, do que constituía matéria de facto e matéria de direito.

No caso concreto, a desconsideração daquele segmento da matéria de facto torna-se particularmente insustentável quando nos deparamos com uma situação em que foram as próprias partes, devidamente patrocinadas e que já haviam sido patrocinadas na anterior ação, a admiti-lo como verdadeiro, com todas as suas consequências, deixando para apreciação do tribunal apenas o julgamento de outros factos relacionados com o exercício da posse sobre o prédio “Campo EE”.

Na verdade, as partes, no decurso da audiência final que incidia sobre diversos temas de prova, apresentaram ao Mº Juiz um acordo quanto a uma parte substancial da matéria de facto que permanecia formalmente controvertida (considerando a impugnação global da versão que os AA. apresentaram), aproveitando para o efeito o que já fora considerado provado numa anterior ação com o nº 1051/2001 (fls. 1393 e ss.).

É de notar ainda que nessa primeira ação tiveram intervenção os mesmos RR., sendo AA. os herdeiros das pessoas que agora são indicados como anteriores proprietários ou anteriores possuidores do prédio, sendo que nesta segunda ação tais AA. foram considerados abarcados pelo caso julgado material e absolvidos da instância, prosseguindo esta apenas quanto aos demais (na realidade, na maior parte dos casos, a ação prosseguiu tendo como AA. os cônjuges daqueles que intervieram na anterior ação)..

Nestas circunstâncias, e sem que se possa ignorar que o interesse principal estava do lado dos AA. que foram abarcados pelo caso julgado formado na anterior ação e não tanto pelos respetivos cônjuges que nesta ação ganharam relevo, a iniciativa das partes (de ambas as partes, diga-se) correspondeu a algo mais do que uma admissão por acordo de certos factos, representando a aceitação, para efeitos da resolução do litígio, de um acervo de factos que já haviam sido judicialmente afirmados na anterior decisão (inclusive, no acórdão do Supremo com que terminou a anterior ação) e que os interessados consideraram, naquela ocasião, estar fora de qualquer controvérsia.

As partes têm a liberdade e a responsabilidade de configurar os termos do litígio. Numa ação em que se invoca o direito de propriedade adquirido por via sucessória, a partir de uma série de transmissões que partiu do óbito de FF (de cujo “património” faria parte o prédio em causa), e em que se invoca ainda a aquisição por via da usucapião, a partir de uma situação de posse que os antecessores dos ora AA. teriam iniciado depois daquele óbito, estando as partes de acordo que o prédio designado “Campo EE” fizera parte daquele primitivo “património”, não se vê motivo algum para considerar ineficaz tal acordo, nessa parte.

Ainda que estejamos no âmbito de uma ação que visa o reconhecimento da contitularidade relativa a um determinado prédio, o facto de aquele facto se localizar temporalmente no Séc. XIX, nem sequer faz dele um elemento crucial para a decisão da causa que essencialmente depende da existência do correspondente direito de propriedade na esfera jurídica dos antecessores imediatos dos AA.

Além disso, configurar-se um determinado prédio como integrando o “património” de uma determinada pessoa constitui uma expressão de conteúdo misto, isto é que, assumindo, embora, uma vertente jurídica, não deixa de ter um significado real que o torna compreensível e a partir do qual se poderão extrair as respetivas consequências jurídicas, mais a mais quando são as próprias partes que deixaram de questionar a veracidade dessa afirmação que foi feita na petição inicial.


2.3. Para além de tudo quanto se possa dizer sobre a delimitação do que é matéria de facto e matéria de direito (questão dilemática que tem sido profusamente tratada em numerosos arestos e obras doutrinárias), com reflexos na elaboração da sentença, importa que, agora, com base na norma do art. 607º do CPC, se faça um certo aggiornamento do que pode ou não figurar como “matéria de facto”.

Par o efeito pode servir de guião o pertinente comentário de Teixeira de Sousa, em https//blogippc.blospot.pt, à margem do Ac. do STJ 28-9-17 (809/10), num caso de responsabilidade civil, mas que se revela da maior pertinência para o caso presente e do qual se extratou o seguinte:

 “Sob pena de se cair num inaceitável formalismo, não pode constituir motivo de censura que o tribunal, depois de considerar provados determinados factos que consubstanciam a violação de deveres de cuidado, conclua que está demonstrada a negligência da parte. Estranho seria, aliás, que, constando dos temas da prova a atuação negligente da parte e, por isso, carecendo esta atuação de prova, o tribunal, ao analisar a prova produzida sobre esse tema, pudesse dizer tudo o que achasse adequado ao julgamento dessa matéria, exceto que está provada a negligência da parte.

Cabe ainda referir que, realizando-se a prova da negligência através de factos probatórios ou instrumentais (cf. art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC), o tribunal não pode deixar de inferir a negligência do facto probatório, ou seja, não pode deixar de utilizar esse facto probatório como base de uma presunção judicial e verificar se desse facto decorre aquela negligência. Por exemplo: se ficar provado que o adulto estava distraído a falar ao telemóvel quando a criança foi brincar para a estrada, cabe ao tribunal valorar se desse facto pode inferir a negligência do adulto. A omissão desta inferência corresponde, afinal, à omissão da valoração da prova.


A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há de afetar a sua prova).

O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova. A ideia é, efetivamente, incorreta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respetivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art. 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova.


A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto”.


2.4. Esta mesma temática que ganhou relevo com a aprovação do NCPC, com a não integração do nº 4 do art. 646º do anterior CPC e com a opção pela integração na mesma peça processual (sentença) da decisão da matéria de facto e da matéria de direito, já fora abordada pelo ora relator em Recursos no NCPC, 4ª ed., no Apêndice intitulado “Sentença Cível”. Aí se expressou a ideia de que se tornava necessário modificar a metodologia no que concerne à elaboração da sentença e especificamente em relação ao que deveria considerar-se matéria de facto e matéria de direito, em teros que o seguinte extrato revela:.

“A separação entre o que constitui matéria de facto e o que integra matéria de direito é questão que percorre toda a instância processual, desde os articulados, passando pela sentença, até aos recursos, maxime ao recurso de revista.

Mas pese embora o relevo que essa delimitação apresenta, jamais se conseguiu ou conseguirá a enunciação de um critério universal que responda a todas as questões suscitadas. Continuando a lei a prever tal delimitação, os respetivos contornos poderão sofrer variações em função das concretas circunstâncias, designadamente em razão do verdadeiro objeto do processo, de tal modo que uma mesma proposição pode assumir, num determinado contexto, uma questão de facto e, noutro contexto, uma questão de direito.

Posto que o julgamento da matéria de facto não deva confundir-se com o julgamento da matéria de direito, a manutenção, a todo o custo, de uma linha de separação revela-se frequentemente artificial e prejudicial à justa resolução da lide, sendo, por isso, admissível e desejável uma maior concentração da factualidade considerada provada, ainda que com auxílio de formulações de pendor mais genérico, mas que permitam uma correta e inteligível compreensão da realidade que o Tribunal conseguiu isolar.


No que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961.

Quanto ao ónus de alegação cumpre destacar o que agora dispõe o art. 5º, nº 1, devendo o autor e o réu concentrar-se nos factos essenciais que constituem a causa ou causas de pedir ou em que se baseiam as exceções invocadas (a que deve acrescer a alegação, ainda que não preclusiva, dos respetivos factos complementares), sem excessiva preocupação pelos factos instrumentais, já que estes poderão ser livremente discutidos na audiência final.

Naturalmente o referido ónus de alegação exerce influência na enunciação dos temas da prova que deverão ter por base os fundamentos de facto da ação e da defesa, sem que essa vinculação leve ao extremo (revelado pela prática anterior) de inserir toda a factualidade alegada (e controvertida) só por que foi alegada.

Como regra que deve ser adaptada às circunstâncias do caso, os temas da prova devem centrar-se apenas nos factos essenciais relativamente aos quais persista a controvérsia, excluindo, por isso, em regra, os factos instrumentais que não integrem qualquer pressuposto legal da ação ou da defesa.

A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961.

Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, nos temas de prova se inscreveram factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos convertida num relato natural da realidade fixada.

Já quando porventura se tenha optado por proposições de carácter mais abrangente ou de pendor mais genérico ou conclusivo, mas que permitam delimitar e compreender a matéria de facto que é relevante para a resolução do concreto litígio, poderá justificar-se um maior labor na sua concretização, seguindo um critério funcional que atenda às necessidades do concreto litígio, desde que, como é natural, seja respeitada a correspondência com a prova que foi produzida e bem assim os limites materiais.

Como se disse anteriormente, na enunciação dos factos apurados o juiz deve usar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso é inadmissível (tal como já o era anteriormente) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.


Em tal enunciação cabem necessariamente os factos essenciais que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as exceções ainda não apreciadas no despacho saneador, a par dos factos complementares (que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a ação ou a exceção proceda) e, se se mostrar necessário, dos factos concretizadores daquela factualidade, na medida em que a mesma se mostre necessária”.


2.5. As considerações anteriores foram feitas em torno do modo como devem ser encarados, em face do atual CPC, os temas de temas da prova ou os segmentos que assumam alguma matriz conclusiva, tornando-se ainda mais prementes quando nos confrontamos nos presentes autos com uma opção livre e esclarecida das partes, assente, aliás, numa anterior ação em que a mesma factualidade foi aceite pacificamente pelos três graus de jurisdição.

Efetivamente já na anterior ação, cuja decisão final foi tomada por este Supremo (fls. 1516 e ss.), fora dado como provado que “do património pertencente a FF constava uma área de terreno de aproximadamente 100.000 m2, sito na que é hoje a Freguesia de …, G… …”

Assumindo as partes como incontroverso o referido segmento da realidade respeitante à integração de um prédio num determinado “património”, expressaram a intenção de que, a partir daí, fossem retiradas as respetivas consequências jurídicas na presente ação.

Ora, se as partes estiveram de acordo que o referido prédio fizera parte do “património” de uma pessoa que viveu no Séc. XIX, sendo apenas discutido se esse prédio foi ou não transmitido por via sucessória até chegar à esfera dos AA., ou se estes, por si ou pelos seus antecessores, adquiriram esse mesmo prédio por via da usucapião a partir daquele titular inicial, mas sem olvidar o relevo que tem a manutenção desse bem no património dos antecessores mais próximos dos ora AA., não se colhe qualquer motivo, nem legal nem racional, para desprezar aquilo sobre o qual deixou de existir qualquer controvérsia.

Por isso, na apreciação do direito será ponderado ainda o referido facto que a Relação excluiu, ou seja, que do património pertencente a FF constava uma área de terreno de aproximadamente 100.000m2, sito na que é hoje freguesia de …, G…, nela se englobando uma casa de habitação, engenho de tirar água, cortes de animais, e diversos terrenos que estão a mato e campos lavradios, área essa cujas confrontações não se podem, atualmente, identificar com exatidão, mas cuja implantação correspondia aproximadamente à demarcada a verde na planta topográfica junta a fls. 76”.

Já quanto à alegada existência de contradição que os recorrentes colocam quanto à decisão da matéria de facto não se comprova, resultando a decisão da Relação da livre convicção formada sobre os meios de prova que foram produzidos quanto aos pontos 71º a 74º da petição inicial.


3. Resolvida esta questão, importa verificar agora se vinga a invocação a favor dos recorrentes da transmissão sucessória que, tendo tido a origem em FF, teria sido “adquirida” pelos AA. dos seus mais próximos antecessores entretanto falecidos.


3.1. Para o efeito está provado essencialmente que:

- Do património pertencente a FF constava uma área de terreno de aproximadamente 100.000m2, sito na que é hoje freguesia de …, G…, nela se englobando uma casa de habitação, engenho de tirar água, cortes de animais, e diversos terrenos que estão a mato e campos lavradios, área essa cujas confrontações não se podem, atualmente, identificar com exatidão, mas cuja implantação correspondia aproximadamente à demarcada a verde na planta topográfica junta a fls. 76.

- A área referida incluía diversos campos, entre eles o “Campo EE” e o “Campo BBB”, sendo o "Campo BBB", por ser o de maior dimensão e importância na época, o que acabou por identificar toda essa área, conhecida até meados do presente século como “Campo BBB”. A localização do designado “Campo EE” era a demarcada a vermelho no doc. fls. 76.

- A 23-9-1896, a FF doou a CCC um terreno denominado “Campo BBB”, doação que dizia respeito a uma parte do terreno e não a toda essa área de terreno, igualmente conhecida na época como “Campo BBB”.

- A 15-2-1879, FF casou, em segundas núpcias dela, com HH, tendo sido casada anteriormente com II em segundas núpcias deste. Deste casamento com HH resultaram dois filhos: JJ (nascido a 4-6-1880) e KK (nascido a 20-4-1882).

- A 26-2-1894 e 31-3-1918 faleceram, respetivamente, HH e FF e a 15-7-1921 e 5-12-1919 faleceram, no estado de solteiros, os dois filhos de FF, respetivamente JJ e KK.

- JJ e LL tiveram dois filhos: MM e NN, sendo que MM contraiu matrimónio com OO e NN com PP.

- A 27-11-1976 faleceu o marido de MM, tendo ela falecido, no estado de viúva, a 20-10-88., deixando como seus únicos e universais herdeiros os 1º a 8º AA.,

- QQ faleceu a 5-12-1994, deixando como seus únicos e universais herdeiros a sua esposa, RR, e os seus filhos, 9º e 10º AA., conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros outorgada a 13-10-97 no 8º Cartório Not. do Porto, junta aos autos. A 12-1-99 faleceu RR, deixando como seus únicos e universais herdeiros os seus filhos, os mesmos 9º e 10º AA., conforme resulta da escritura de habilitação de herdeiros outorgada a 12-2-99 no 8º Cartório Not. do Porto, junta aos autos.

- NN faleceu, no estado de viúvo, a 19-10-92, deixando como seus únicos e universais herdeiros os seguintes filhos: SS, TT, UU, VV, XX, ZZ, e a ora 11.ª autora, AAA, conforme consta da respetiva habilitação de herdeiros, outorgada a 8-7-1986 no 8º Cartório Not. do Porto, junta aos autos.

- O terreno “Campo EE” foi cultivado, até finais dos anos 20, por LL, MM e NN, aí plantando e colhendo couves, hortaliças e pencas e consentindo a terceiros o roçar de erva para o gado, o que fizeram à vista de toda a gente, sem interrupções e sem oposição de ninguém, conscientes, pelo menos até 1933, que o Campo EE pertencia a FF,.

- Em G… havia pessoas que consideravam que o “Campo EE” pertencia à família dos «DDD».

- Depois que a MM casou com o OO, em 1929, foi viver para A… e foi diminuindo o cultivo do “Campo EE”, até que em finais dos anos 30 o cessou completamente e NN, em meados dos anos 30, foi viver para o Lugar …, em …, G…, deixando de cultivar diretamente o referido campo.

- O “Campo EE” passou a ser, assim, um terreno com um aspeto baldio, local de brincadeiras dos filhos de MM e do NN e amigos de infância, de roço de ervas para o gado que a MM e o NN consentiam a terceiros e, por vezes, do cultivo, em alguma da sua área, de couves e pencas que eles igualmente consentiam a terceiro, com a contrapartida da entrega a ambos de uma parte desses produtos.

- Em virtude do aspeto “baldio”, parte do “Campo EE” passou, em dias de feira ou de festa, a ser ocupado por feirantes, principalmente nas partes confrontantes com a via pública, situação que ainda hoje se mantém.

- Por escritura pública outorgada a 9-11-1953, no 2º Cartório Not. do Porto, EEE declarou vender e GG declarou comprar diversos prédios de entre os quais o chamado "C…", que se encontrava inscrito na matriz rústica sob os arts. 1…4º, 1…5º e 1…6º, sitos no Lugar da …, …, G…, neles se incluindo o designado “Campo EE”, sendo que nenhum destes prédios se encontrava, ainda, descrito na competente CRP, tendo sido exibidos na referida escritura uma certidão de omissão da descrição dos prédios na 3.ª Secção da 1ª CRP do Porto e o conhecimento do pagamento de sisa nº 353.

- O prédio rústico, denominado “C…”, encontra-se descrito na CRP de G…, sob o nº 04…3, inscrito na matriz, sob o artigo matricial rústico de … .º 1…4, foi extratado do prédio nº 7…3 a fls. 187 do Livro B-20, e encontra-se inscrito a favor dos RR. por o haverem adquirido por sucessão hereditária de GG.

- Em finais do ano 2000, os AA. viram afixadas no terreno registado em nome dos RR., placas da sociedade de Mediação Imobiliária "FFF", a promover a venda do mesmo e contactaram a referida sociedade para saberem o que se passava, tendo sido informados que o terreno em apreço pertenceria a uns seus clientes, os ora RR., que por seu intermédio o pretendiam vender, tendo-lhes entregue fotocópia da certidão do registo do terreno em nome dos RR., tendo os AA. protestado serem os donos do terreno e arrancado as referidas placas.


3.2. Perante estes factos, a Relação negou o vínculo sucessório como fundamento para a declaração da contitularidade no direito de propriedade do “Campo EE” com base em juízos de facto e de direito que a levaram a concluir que não se apurou que os AA. fossem os únicos herdeiros de uma linha sucessória iniciada com o óbito de FF. Para o efeito procedeu a uma análise pormenorizada do regime sucessório resultante do Código de Seabra, designadamente quanto ao tratamento dos filhos nascidos fora do casamento, em ligação com as sucessivas gerações de antecessores dos ora AA.

Não cremos que fosse preciso ir tão longe quanto foi a Relação para justificar a improcedência do pedido fundado na sucessão hereditária (que é uma forma de aquisição derivada), bastando ponderar outros argumentos menos complexos mas que permitem a mesma conclusão.

Na verdade, não se vê qualquer interesse em abordar a problemática sob a perspetiva da identificação total dos herdeiros da referida FF, designadamente quando se alude à existência de duas filhas do primeiro casamento, a par dos filhos nascidos do segundo casamento, JJ e KK. Igualmente dispensável nos parece a verificação do regime jurídico a que obedecia a sucessão nos casos em que, na pendência do Cód. Civil de 1867, existiam filhos nascidos fora do casamento (estes apelidados de filhos “ilegítimos”, qualificação que apenas foi abolida com a alteração do CC de 1967 ocorrida em 1976), como seriam os filhos deixados por JJ e LL.

Por conseguinte, não iremos sequer apreciar se o raciocínio exposto pela Relação encontra ou não fundamento em face das normas jurídicas que sobre sucessão vigoraram no período em que esteve em vigor o Código de Seabra (e que designadamente estabelecia um regime especial para filhos nascidos fora do casamento), bastando-nos a constatação, bem mais simples e pragmática, de que não está demonstrada a transmissão por essa via de qualquer direito de propriedade sobre o bem cuja titularidade é reclamada pelos AA. desta ação.


3.3. Explicitando:

A quem invoca a aquisição por via sucessória da titularidade de um determinado bem que integrou a esfera jurídica de alguém que entretanto faleceu não lhe basta alegar e demonstrar que se encontra na respetiva linha sucessória.

A mera prova de que se faz parte de um determinado leque de sucessíveis ou mesmo de sucessores é manifestamente insuficiente para se afirmar tal forma de aquisição derivada de um direito real sobre bens que em determinada altura pertenceram a um familiar entretanto falecido. Mais do que isso, a invocação da aquisição derivada do direito por essa via exige que se demonstre que, quando o antecessor imediato faleceu, o bem em causa integrava (ou ainda integrava) o seu património, constituindo parte do respetivo acervo hereditário, ao qual se habilitaram os respetivos sucessores que como tal foram reconhecidos.

É o que, entre outras disposições, emerge do art. 2024º do CC, segundo o qual a sucessão corresponde ao chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertencem.

Ora, nada disso foi feito no caso concreto.

FF, a cujo “património” pertenceu o terreno que dá pelo nome de “Campo EE”, faleceu em 1918. Mas para além das dúvidas que foram expostas pela Relação quanto à identificação de todos os seus sucessores e até quanto à qualidade de sucessores de MM e de NN, por serem filhos extraconjugais do filho de FF, JJ (tendo estes filhos do seu casamento), nada está demonstrado quanto à permanência desse imóvel na titularidade de FF na data do seu falecimento.

Também está por demonstrar que o mesmo prédio tivesse passado por essa via para a titularidade dos seus filhos, ou de algum deles, sendo que os mesmos vieram a falecer em 1918 (KK) e 1921 (JJ) e por provar está ainda que o mesmo bem fizesse parte do património de JJ ou de KK quando estes faleceram.

O mesmo se diga, aliás, relativamente aos antecessores mais próximos dos AA. e Intervenientes, MM e NN, pois igualmente faltam elementos que permitam situar nos respetivos patrimónios, à data em que cada um deles faleceu.

Dificuldades tanto maiores quanto é certo que não existe documento algum demonstrativo da titularidade do direito de propriedade em algum dos referidos antecessores dos ora AA. ou sequer de alguma transmissão para os subsequentes herdeiros. Ademais, não existe sequer qualquer registo predial que beneficie qualquer dos antecessores dos ora AA.

Os vínculos que conduzem à sucessão legítima ou legitimária constituem fatores que podem sustentar a invocação da aquisição derivada por essa via sucessória, mas não dispensam obviamente a demonstração de que o autor de cada sucessão (e foram várias os fenómenos que lhes deram causa desde o falecimento de FF) mantinha no seu património o bem que agora é reivindicado pelos seus sucessores.

Tão pouco basta para o efeito a prova de que foram formalizadas certas habilitações de herdeiros, atos que servem tão só para demonstrar a qualidade de herdeiro, mas que se revelam insuficientes para sustentar a transmissão de determinado bem através da sucessão.

Improcede, assim, o primeiro fundamento invocado pelos recorrentes para a reivindicação do prédio que está registado a favor dos RR.


4. Quanto à aquisição por via da usucapião:

4.1. Mais uma vez partimos do pressuposto que as partes, aliás, aceitaram, de que o prédio denominado “Campo EE” integrou o património de FF. E podemos ainda afirmar, em face da matéria de facto apurada, que essa antecessora comum dos AA. também teve a qualidade de “possuidora” do prédio maior de que fazia parte o “Campo EE” e do qual foi separada a parcela que a mesma doou a uma das filhas, CCC.

A Relação, modificando parcialmente a decisão da matéria de facto exposta pela 1ª instância, considerou provado que o prédio “Campo EE” foi cultivado, até finais dos anos 20, por LL (que viveu maritalmente com um filho de FF, JJ), MM e NN (filhos de LL e de JJ), o que fizeram à vista de toda a gente, sem interrupções e sem oposição de ninguém, conscientes, pelo menos até 1933, que o “Campo EE” pertencia a FF (sic), aí plantando e colhendo couves, hortaliças e pencas e consentindo a terceiros o roçar de erva para o gado.

Os recorrentes suscitam uma objeção óbvia a tal segmento da matéria de facto.

Efetivamente, se FF faleceu em 1918, não se poderia considerar provado, como fez a Relação, que a atuação dos referidos sucessores (LL, MM e NN), fosse feita estando eles “conscientes” de que o mesmo prédio “pertencia a FF”, desde a data desse óbito, até 1933.

Trata-se de uma impossibilidade lógica que, por via integrativa, deve ser resolvida considerando que, a partir de 1918, ano em que faleceu FF, o “Campo EE” (que pertencera a FF) foi cultivado, até finais dos anos 20, por LL, MM e NN, aí plantando e colhendo couves, hortaliças e pencas e consentindo a terceiros o roçar de erva para o gado, o que fizeram à vista de toda a gente, sem interrupções e sem oposição de ninguém.


4.2. Continuemos, depois de ultrapassado este escolho.

A referida situação entretanto modificou-se:

a) E 1929, MM foi viver para A… e, por isso, foi diminuindo o cultivo do “Campo EE”, até que em finais dos anos 30 o cessou completamente;

b) Por seu lado, o seu irmão NN, em meados dos anos 30, foi viver para o Lugar …, em …, G…, deixando também de cultivar diretamente o referido terreno.

O “Campo EE” passou a ser, assim, segundo o que está provado, “um terreno com um aspeto baldio, local de brincadeiras dos filhos de MM e do NN e amigos de infância, de roço de ervas para o gado que a MM e o NN consentiam a terceiros e, por vezes, do cultivo, em alguma da sua área, de couves e pencas que eles igualmente consentiam a terceiro, com a contrapartida da entrega a ambos de uma parte desses produtos”.

Desconhece-se até quando perdurou esta situação, sabendo-se, contudo, que em virtude do referido aspeto de “baldio”, parte do “Campo EE” passou, em dias de feira ou de festa, a ser ocupado por feirantes, principalmente nas partes que confrontavam com a via pública, situação que ainda hoje se mantém.

Neste contexto e tendo em conta as dificuldades em qualificar factos que ocorreram há mais de 90 anos, não custa aceitar que, durante um certo período de tempo, pelo menos até finais dos anos 30, LL, MM e NN assumiram-se como possuidores do “Campo EE” (de que FF já fora também possuidora), assim se compreendendo o facto de pelos mesmos ser “cultivado”, “aí plantando e colhendo couves, hortaliças e pencas e consentindo a terceiros o roçar de erva para o gado”, “à vista de toda a gente, sem interrupções e sem oposição de ninguém”.

Todavia, a partir de 1929 e 1930 e, com mais certeza, a partir de 1933, iniciou-se um novo estádio: os filhos de FF, MM e NN deixaram de ter qualquer ligação material ao prédio que, por isso mesmo, ganhou uma parte aspeto de “baldio” e passou, em dias de feira ou de festa, a ser ocupado por feirantes, principalmente nas partes confrontantes com a via pública, situação que ainda hoje se mantém.


4.3. A matéria de facto apurada não contém qualquer elemento que permita concluir que, quando ocorreu o óbito dos referidos possuidores (MM, em 1988, e NN, em 1992), estes ainda se mantivessem na posse do prédio, para que pudesse ser transmitida aos respetivos sucessores, nos termos do art. 1255º do CC.

Mesmo que não esteja provado que os AA. tiveram a apreensão material do terreno em causa nestes autos, para que pudessem invocar a qualidade de atuais compossuidores do “Campo EE”, nos termos e para os efeitos previstos no art. 1255º do CC, era necessário que a situação de posse se mantivesse na data em que faleceram os referidos antecessores imediatos, pois é disso que se trata quando se prevê naquele preceito que, por via do óbito, a posse continua nos sucessores do falecido.

A invocação da usucapião deve ser feita por aquele a quem aproveita (arts. 1292º e 303º do CC) e a verdade é que, ainda que os AA., na sua qualidade de sucessores de anteriores possuidores pudessem invocar a sucessão na posse, nos termos do já mencionado art. 1255º do CC, não lhes é facultado a invocação da aquisição do direito por usucapião reportado a um momento anterior à sucessão.

Com efeito, atento o art. 303º, para o qual renete o art. 1292º do CC, a usucapião, como forma de aquisição originária do direito de propriedade, deve ser invocada para produzir efeitos na esfera de quem, na ocasião da sua invocação, tem a qualidade de possuidor.

É verdade que quem invoca a usucapião pode adicionar a sua posse à posse que anteriormente foi exercida pelos antepossuidores, mas já não lhe é facultada a invocação daquela forma de aquisição originária na esfera jurídica de outrem.

De todo o modo, a matéria de facto nem sequer permitiria que se considerasse que na esfera dos antecessores dos ora AA., fossem os filhos de FF, fossem os seus netos MM e NN, tivessem ocorrido as condições necessárias ao preenchimento da usucapião relativamente ao direito de propriedade sobre o referido prédio, considerando que o período de tempo durante o qual MM e NN exerceram a posse, desde a morte de FF, isto é, desde 1918 até 1930 ou mesmo 1933, é insuficiente para se considerar constituído o direito de propriedade por via da usucapião, em face do regime que emergia do Cód. Civil de 1867.

Por outro lado, não pode considerar-se para o mesmo efeito o período posterior a 1933, na medida em que, pelo menos a partir de então, deixou de existir qualquer sinal revelador do exercício da posse exercida quer pelos netos de FF, MM e NN, quer pelos descendentes destes e que nesta ação se apresentaram como AA.

A realidade refletida pela matéria de facto provada revela, isso sim, que essa situação de facto correspondente ao exercício do direito de propriedade deixou de se verificar, como demonstra o aspeto de “baldio” que o prédio passou a ostentar e a manifesta inadequação do comportamento dos filhos de MM e NN para qualificar uma situação de posse que, além do mais, não se encontra temporalmente localizada.

Por estes motivos conjugados, improcede também a ação de reivindicação sustentada na aquisição do direito por usucapião.


5. Quanto à nulidade do registo:

A improcedência das anteriores questões necessariamente afeta a possibilidade de os AA. conseguirem nesta ação a procedência da pretensão relacionada com o registo predial.

Se é certo que a nulidade pode ser invocada por qualquer interessado, necessário seria a demonstração de um interesse direto na questão, o que não ocorrer com qualquer “terceiro”, mas apenas com aquele indivíduo que possa extrair algum benefício direto da declaração de nulidade do registo.

Tal não ocorre no caso concreto pelos motivos anteriormente expostos.

De todo o modo, tal pretensão sempre improcederia.

Com efeito, não basta juntar uma resma de documentos relacionados com o processo do registo predial para daí extrair a nulidade ou algum outro vício que afete a descrição do prédio no registo. Necessário seria que se provassem factos que redundassem nesse vício, o que também não se verifica.

Aliás, a maior parte dos documentos que foram apresentados, sendo de natureza pública, é certo, não deixam transparecer factos que possam considerar-se plenamente provados, não podendo confundir-se a natureza dos documentos com a veracidade – isto é, com força probatória plena – dos elementos que dele constam.

Seguro é que a matéria de facto apurada não revela a existência de qualquer vício que afete de nulidade o registo que favorece os RR.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando, ainda que por via não inteiramente coincidente, o acórdão recorrido.

Custas desta segunda revista a cargo dos recorrentes.

Notifique.

Lisboa, 22-3-18


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo

______


Declaração de voto
 

Embora vote o presente acórdão, tanto no plano dos seus fundamentos essenciais como na parte dispositiva, não subscrevo algumas das considerações teóricas prévias sobre a distinção entre matéria de facto e matéria de direito constantes da citação doutrinária convocada, ainda que depois não inteiramente perfilhadas nas considerações subsequentes.

Em primeiro lugar, em sintonia com o referido no presente acórdão, considero que os juízos de facto em direito não consistem em mera representação ou reprodução naturalística de uma realidade a se, mas antes consubstanciam um constructus intelectivo sobre as perceções colhidas de determinada realidade objetiva, na perspetiva da previsão normativa aplicável. Nesta medida, a configuração do facto jurídico relevante e a densidade com que deve ser enunciado são, de algum modo, tributárias do respetivo perfil e alcance normativo.

Porém, já o método da sua valoração probatória obedece a critérios epistemológicos bem distintos dos cânones da hermenêutica jurídica, na medida em que repousa em critérios de probabilidade pautados pelas regras da experiência comum ou qualificada (técnica ou científica), numa lógica de raciocínio predominantemente empírico-indutiva, não estritamente estruturalista e diacrónica, mas aferível em função dos contextos factológicos em presença.

Por isso mesmo, parece-me que um esbatimento demasiado generalizador da fronteira entre matéria de facto e matéria de direito, como parece decorrer da sobredita citação doutrinária, pode conduzir a um indesejável afeiçoamento do julgamento de facto, perigo que, outrora, em face das críticas então suscitadas, levou à introdução, em 1961, do sistema de cisão da discussão de facto e da discussão de direito e que vigorou até à Reforma do CPC operada pela Lei n.º 41/2103, de 26-06. De resto, na generalidade dos casos, não se colocará sequer dificuldades práticas nessa distinção.

A este propósito, ocorre-me observar que uma tal generalização, quando veiculada pela enunciação dos “temas da prova”, tem levado a que escapem, depois, à produção da prova, factos pertinentes alegados ou até alguns equívocos sobre a repartição do ónus da prova, abrindo caminho a uma desgastante especulação no domínio da impugnação da decisão de facto perante os tribunais da Relação. Por outro lado, não vejo que o metodo de enunciação dos temas da prova tenha, até agora, propiciado a pretendida economia na decisão de facto. Pelo contrário, tenho verificado, com alguma frequência, decisões de facto prolixas, desarrumadas e dispersas em múltiplos juízos de prova e contra-prova, roçando por vezes, a incongruência ou a aporia.  

Quer-me assim parecer que, diferentemente do afirmado na citação doutrinária transcrita no presente acórdão – o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova -, não se deve confundir o enunciado do “tema da prova” com o enunciado do objeto da prova: aquele consiste numa delimitação periférica dos assuntos factológicos a submeter a instrução, enquanto que o enunciado probatório encerra a própria substância factual e singular de cada juízo de prova (art.º 607.º, n.º 5, do CPC). 

Também não partilho inteiramente as considerações feitas na mesma citação sobre os ditos “factos instrumentais” quando reportados a conceitos de direito indeterminados, como são, por exemplo, os conceitos de negligência ou culpa, dolo ou de boa fé, entre muitos outros.

Salvo o devido respeito, considero que os factos tendentes a preencher tais conceitos não se reconduzem a factos instrumentais, em sentido técnico. São antes factos moleculares que, na sua aglutinação, corporizam o facto essencial complexo integrador do conceito indeterminado, devendo ser, a essa luz, ponderada a admissibilidade, mesmo em audiência, de factos parcelares concretizadores ou complementares não alegados, nos termos permitidos pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC.

Assim, a não conclusão pela negligência ou pelo dolo ante factos que os revelam não constitui, a meu ver, uma “omissão da valoração da prova”, mas antes um erro de qualificação jurídica dos referidos factos.

E não partilho a tese de que os factos a dar como provados ou não provados se devam confinar, sem mais, aos factos essenciais, na base de uma categorização meramente abstrata, como, de resto, ficou ressalvado no acórdão.

Com efeito, nalguns casos, como, por exemplo, no campo de factos do foro psicológico, os factos instrumentais são epistemologicamente fundamentais como base das presunções judiciais sobre a verificação do facto psicológico em causa, a extrair nos termos do artigo 607.º, n.º 4, primeira parte, do CPC.

Assim, neste tipo de situações, considero haver toda a conveniência em submeter, casuisticamente, aqueles factos instrumentais a juízos probatórios específicos conexionados com os meios concretos de prova em que se estribam, em vez de ficarem disseminados, de forma difua e pouco precisa, em sede da motivação da decisão de facto. Nem se divisa, como é que, sem se fazer aquela formulação do juízo probatório sobre o facto instrumental, se poderá sindicar, em sede de revista, a ilogicidade manifesta do julgamento presuntivo.      

Relativamente “aos juízos de facto conclusivos” subscrevo as considerações feitas no presente acórdão, em particular no que respeita ao caso presente.

De todo o modo, concordo que o atual sistema processual civil requer um novo olhar sobre a metodologia do julgamento de facto e a superação de algumas rotinas que se têm revelado redutoras do aproveitamento dos fluxos colhidos na produção da prova em ordem à boa decisão da causa.

Em suma, não obstante as reservas acima expostas, concordo com a análise feita, no presente caso, sobre a matéria de facto a considerar, o seu enquadramento jurídico e a solução adotada.

Lisboa, 22 de março de 2018

Manuel Tomé Soares Gomes