Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B4671
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: QUESTÃO DE DIREITO
QUESTÃO NOVA
PRESTAÇÃO DE CONTAS
LEGITIMIDADE
ABUSO DO DIREITO
CÔNJUGE
Nº do Documento: SJ200502030046717
Data do Acordão: 02/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 4671/04
Data: 07/01/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. As questões relevantes para efeitos processuais são os pontos essenciais de facto e ou de direito em que as partes baseiam as suas pretensões, incluindo as excepções, e as questões novas são as que não foram apreciadas no tribunal recorrido, por lá não terem sido suscitadas nem serem de conhecimento oficioso.
2. É questão de direito substantivo e, por isso, integrada na esfera de conhecimento oficioso pelos tribunais, independentemente da sua posição hierárquica, a de saber se uma pessoa tem o direito de exigir a outra a prestação de contas.
3. A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação de quem administra bens alheios, designadamente o cônjuge, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.
4. Embora a legitimidade para exigir a prestação de contas apenas surja com a extinção do vínculo conjugal, uma vez que ela ocorra, o cônjuge não administrador dos bens do casal pode exigir prestação de contas ao cônjuge administrador daqueles bens desde a data da propositura da acção, designadamente daquela em foi decretado o divórcio.
5. O abuso do direito, excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, envolve situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
"A" propôs, no dia 3 de Maio de 2001, contra B, na sequência de acção de divórcio e de inventário de partilha, acção declarativa de condenação, com processo especial de prestação de contas, pedindo o apuramento das receitas obtidas e das despesas realizadas quanto a um armazém e quatro apartamentos arrendados entre Janeiro de 1982 e Outubro de 1990 e, no caso de haver saldo a seu favor, a condenação do réu a pagar-lhe metade desse montante, com fundamento na compropriedade do usufruto do prédio urbano sito em Matosinhos e na administração por ele daquele arrendamento.

Citado o réu nos termos e para os efeitos do artigo 1014º, nº 1, do Código de Processo Civil, não apresentou contas, a autora foi notificada para as apresentar, o que ela fez, o perito nomeado pronunciou-se sobre elas, primeiramente em sede de relatório e, posteriormente, a título de esclarecimento.

No dia 12 de Novembro de 2003 foi proferida sentença na 1ª instância, na qual o relatório pericial foi considerado conscienciosa e cuidadosamente efectuado, de forma clara e precisa e revelando os conhecimentos técnicos do seu subscritor e apoiando-se nos documentos disponíveis e julgada dispensável a produção de outra prova julgou parcialmente válidas as contas prestadas pela autora com a admissão de receitas no montante de 36.353.342$00 e de despesas no montante de 12.882.962$00 e o saldo positivo de 23.470.380$00 e condenado o réu a pagar à autora a quantia de € 58.534,88.

Apelou o réu, e a Relação, por acórdão proferido no dia 1 de Julho de 2004, negou provimento ao recurso, sob o fundamento de as questões suscitadas pelo apelante no recurso serem novas, por o recorrente as não ter suscitado na 1ª instância em contestação, que não deduziu.

Interpôs o apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:

- está provado documentalmente a data da propositura da acção de separação de pessoas e bens e da dedução do pedido reconvencional de divórcio e do trânsito em julgado da sentença homologatória do mapa da partilha, por via da qual os bens passaram a ser próprios de cada um;

- a acção de prestação de contas apenas visa apurar os saldos positivos da gestão de bens alheios;

- só a partir do dia 21 de Março de 1996, data do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha é que o recorrente é obrigado a prestar contas da gestão dos bens da recorrida, nos termos do artigo 1014º do Código Civil, por só nessa data ter passado a administrar bens alheios;

- o normativo que consagra o princípio da retroactividade dos efeitos patrimoniais à data da propositura da acção de separação e ou de divórcio queda inaplicável ao caso em análise;

- a entender-se o contrário, como a recorrida pretende, estaria a abusar do exercício do direito, o que é vedado pelo artigo 334º do Código Civil;
- o acórdão recorrido violou os artigos 676º, 684º e 1014º do Código de Processo Civil e 334º e 1789º do Código Civil, matéria que é de conhecimento oficioso do tribunal;

- deve ser dado provimento ao recurso, considerando-se que o saldo a apurar deverá considerar-se a partir de 20 de Março de 1996 ou, quanto muito, a partir de 15 de Fevereiro de 1989, data do trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:

- os efeitos do divórcio quanto às relações patrimoniais entre o recorrente e a recorrida retrotraem-se à data da propositura da acção de divórcio nos termos do artigo 1789º, nº 1, do Código Civil;

- decretado o divórcio, o ex-cônjuge administrador tem a obrigação de prestar contas da administração dos bens do casal desde a data da propositura da acção de divórcio, a partir da qual há obrigação de prestação de contas;

- o regime do artigo 1681º do Código Civil pressupõe a não oposição expressa do cônjuge que não tenha a administração, e tal situação não foi alegada nem provada na 1ª instância;

- a circunstância de a recorrida não haver afirmado na petição inicial a oposição à administração do recorrente não tem valor declarativo, não podendo significar a inexistência dessa oposição por não haver sido necessária nem pertinente;

- o regime do artigo 1681º, nº 3, do Código Civil não é aplicável no caso em análise, porque pressupõe a manutenção da relação jurídica matrimonial;

- jamais se poderia entender que a prestação de contas se deveria reportar aos cinco anos anteriores à data da propositura da acção, as referidas questões não são objecto de conhecimento oficioso do tribunal, e os factos que o recorrente invocou como integrando abuso do direito não estão provados e, ainda que o estivessem, não o integravam.

II
Está assente, face à prova documental não impugnada, a seguinte factualidade:

1. A autora e o réu casaram canonicamente no dia 5 de Dezembro de 1959 sem convenção antenupcial, e o seu divórcio foi decidido por sentença proferida no dia 16 de Abril de 1986, transitada em julgado dia 15 de Fevereiro de 1989, na sequência de reconvenção deduzida no dia 22 de Novembro de 1983 pelo segundo na acção de separação judicial de pessoas e bens intentada contra ele, pela primeira, no dia 3 de Outubro de 1983.

2. No inventário de separação de meações instaurado pela autora contra o réu foi relacionado o usufruto do prédio urbano composto de uma casa de três pavimentos, com uma divisão no primeiro, dezoito no segundo e dezoito com dois sanitários no terceiro, sito na freguesia e município de Matosinhos, a confrontar do norte com C e D, do sul com Conservas Universal, do nascente com E e do poente com a via pública, omisso no registo predial, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 5433.

3. O rés-do-chão do prédio mencionado sob 2 era utilizado como armazém e os primeiro e segundo andar são integrados por quatro apartamentos, os quais tem sido objecto de arrendamento desde há mais de vinte anos e à data de 22 de Novembro de 2003.

4. As referidas rendas têm sido pagas ao réu, o qual tem sido administrador, e não presta contas das receitas e das despesas relativas aos quatro apartamentos e ao armazém arrendados.

5. Na conferência de interessados que ocorreu no dia 17 de Janeiro de 1996, a autora e o réu declararam acordar em que o bem mencionado sob 2 fosse a ambos adjudicado em comum e partes iguais.

6. No mapa de partilha elaborado no dia 15 de Fevereiro de 1996, os quinhões da autora e do réu referidos sob 5 foram preenchidos na proporção de metade para cada um.

7. A partilha constante do mapa mencionado sob 5 foi homologada por sentença proferida no dia 8 de Março de 1996, que transitou em julgado no dia 21 de Março de 1996.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida tem ou não o direito de exigir do recorrente o pagamento de € 58 534,88 a título de saldo decorrente da prestação de contas.

Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação do recorrente e da recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:

- conceito de questões novas em sede de recurso;
- objecto da acção de prestação de contas;

- regime de administração dos bens comuns de cônjuges casados sob o regime patrimonial de comunhão;

- efeitos do divórcio nas relações pessoais patrimoniais dos cônjuges e tempo a partir do qual decorre a obrigação de prestação de contas por parte do cônjuge administrador de bens comuns do casal;

- estrutura da excepção peremptória do abuso do direito;
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pelo conceito de questões novas em sede de recurso no confronto com o princípio da liberdade de apreciação da matéria de direito pelo tribunal a partir dos factos de que lhe seja lícito conhecer.

B suscitou no recurso de apelação e suscita no recurso de revista, com base nos factos considerados assentes na 1ª instância e na lei que considera aplicável, a questão de saber se deve prestar contas de administração de bens comuns do casal que constituiu com a recorrida desde da data da propositura da acção em que foi decretado o divórcio, ou desde o trânsito em julgado da sentença de divórcio ou desde a data do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha dos bens do casal ou se, a entender-se a primeira situação, a última agiu na acção de prestação de contas com abuso do direito.

A Relação negou provimento ao recurso interposto por B sob o fundamento de as questões suscitadas pelo apelante no recurso serem novas, por o recorrente as não ter suscitado na 1ª instância na contestação que não deduziu.

As questões relevantes para efeitos processuais são os pontos essenciais de facto e ou de direito em que as partes baseiam as suas pretensões, incluindo as excepções.

Os recursos são meios instrumentais ao reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para proferir decisões sobre matéria nova, isto é, que não tenha sido submetida à apreciação do tribunal de que se recorre (artigos 676º, n.º 1, e 690º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Decorrentemente, questões novas são aquelas que não foram apreciadas pelo tribunal recorrido por lá não terem sido suscitadas nem serem de conhecimento oficioso.

Assim, a Relação e o Supremo Tribunal de Justiça não podem conhecer em recurso de questões não suscitadas pelas partes no tribunal a quo, salvo na hipótese de se tratar de questões de conhecimento oficioso e houver factos assentes ou conhecidos em razão, além do mais, de notoriedade geral que o permita.

Mas essa conclusão jurídica nada tem a ver com a incumbência dos tribunais em geral de seleccionar, interpretar e aplicar aos factos provados as normas jurídicas correspondentes sem sujeição às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigos 659º, n.º 2, 664º, 713º, nº 2 e 726º do Código de Processo Civil).

É questão de direito substantivo e, por isso, integrada na esfera de conhecimento pelos tribunais, independentemente da sua posição hierárquica, a de saber se uma pessoa tem direito de exigir a outra a prestação de contas.

Acresce que o tribunal conhece oficiosamente da excepção peremptória do abuso do direito (artigos 487º, nº 2 e 496º do Código de Processo Civil).

A circunstância de o recorrente não haver deduzido contestação na acção de prestação de contas apenas consequência a faculdade de a recorrida as apresentar e de o primeiro as não poder contestar (artigo 1015º, nºs 1 e 2, do Código Civil).

Assim, a consequência da omissão de contestação da acção de prestação de contas não extravasa da situação de facto, ou seja, não impede que se conheça da pretensão das partes no plano do direito e dos factos envolventes.

Das questões invocadas pelo recorrente no recurso de apelação, por também se reportar a factos, que a Relação não podia conhecer, era a relativa à obrigação de prestação de contas circunscrita aos últimos cinco anos anteriores à propositura da acção.

Decorrentemente devia a Relação conhecer das outras questões estritamente de direito suscitadas pelo apelante, tal como este Tribunal, pelos aludidos motivos, delas deve conhecer em sede de recurso de revista.

2.
Atentemos agora na questão processual relativa ao objecto da acção de prestação de contas.

A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.

A acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de as exigir e por quem tenha a obrigação de as prestar, e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios (artigo 1014º do Código de Processo Civil).

Assim, é exigível judicialmente a prestação de contas contra o administrador de bens alheios que se recusa a prestá-las bem como contra aquele que se recusou a aprová-las na sequência da sua apresentação extrajudicial que tenha ocorrido.

Assim, a obrigação de prestação de contas só pode ser assumida por quem administre bens ou interesses alheios, e a referida prestação pode ser espontânea ou provocada.

Trata-se de uma obrigação de natureza material ou substantiva, pelo que o artigo 1014º do Código de Processo Civil pressupõe a existência de norma legal ou de contrato que imponha a prestação de contas.

Tendo em conta a letra e o fim do referido normativo, conforme de algum modo decorre do disposto no artigo 1681º, nº 2, do Código Civil, o conceito de administração de bens alheios abrange os bens de que o obrigado à prestação de contas também seja titular, como é o caso dos bens comuns do casal.

3.
Vejamos agora o regime de administração dos bens comuns de cônjuges casados sob o regime patrimonial de comunhão, como é o caso vertente.
O cônjuge que administra bens comuns do casal beneficia de um estatuto especial no confronto com os restantes administradores de bens alheios, certo que, em regra, não está obrigado à prestação de contas.

Essa especialidade de estatuto é motivada, por um lado, pela recíproca confiança que é pressuposto da relação matrimonial, pela conveniência da inexistência de litígios entre os cônjuges e pela especificidade da estrutura dessa gestão no confronto com a da administração de bens alheios em geral.

Com efeito, a regra relativa à administração de bens comuns de cônjuges casados sob o regime patrimonial de comunhão é a da administração conjunta ou gestão simultânea (artigo 1678º, nº 2, alíneas a) a e) do Código Civil)

A lei excepciona, porém, o mencionado princípio, certo que cada um deles tem legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comum do casal, ou seja, o provimento da sua conservação ou frutificação normal (artigo 1678º, nº 3, do Código Civil).
O cônjuge administrador de bens comuns a que se reporta o artigo 1678º, nº 2, alíneas a) a e), do Código Civil não é obrigado a prestar contas da sua administração (artigo 1681º, nº 1, do Código Civil).

Mas quando a administração por um dos cônjuges dos bens comuns se fundar em mandato, o cônjuge administrador, salvo convenção em contrário, só tem de prestar contas e entregar o respectivo saldo, se o houver, relativamente aos actos praticados durante os últimos cinco anos (artigo 1681º, nº 2, do Código Civil).

Do mesmo modo, o cônjuge que tenha entrado na administração de bens comuns que lhe não caiba, sem mandato escrito mas com o conhecimento e sem oposição expressa do outro cônjuge, só tem obrigação de prestar contas e de entregar o respectivo saldo, se o houver, relativamente aos actos praticados durante os últimos cinco anos (artigo 1681º, nº 3, do Código Civil).

Este normativo reporta-se aos casos em que um dos cônjuges, sem apoio legal nem mandato escrito do outro, mas sem o conhecimento e sem oposição expressa deste último, entra na administração de bens comuns do casal.

4.
Atentemos agora nos efeitos do divórcio nas relações patrimoniais dos cônjuges e no tempo a partir do qual decorre a obrigação de prestação de contas por parte do cônjuge administrador de bens comuns do casal.
O divórcio dissolve o casamento e, em regra, tem os mesmos efeitos da dissolução por morte (artigos 1789º e 1791º do Código Civil).

Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da sentença que o declare, mas, no que concerne às respectivas relações jurídicas patrimoniais, retrotraem-se à data da propositura da acção (artigo 1789º, nº 1, do Código Civil).

As relações jurídicas patrimoniais entre os cônjuges são aquelas cujo objecto tenha um conteúdo patrimonial, como é o caso, por exemplo, das relacionadas com o respectivo património comum.

Em razão do segmento normativo relativo à retroactividade, para efeitos patrimoniais, o cônjuge é havido como divorciado a partir da data da propositura da acção, para evitar o dano sobre o património comum provocado por um dos cônjuges desde aquele accionamento por motivos relacionados com a eminente rotura da sociedade conjugal.

Tendo em conta a letra e o escopo finalístico do mencionado normativo, não obstante a legitimidade para exigir a prestação de contas apenas surja com a extinção do vínculo conjugal, uma vez que ela ocorra, o cônjuge não administrador dos bens do casal pode exigir a prestação de contas ao cônjuge administrador daqueles bens desde a data propositura da acção respectiva, designadamente daquela em que foi declarado o divórcio.

5.
Vejamos agora a estrutura da excepção peremptória do abuso do direito em aproximação ao caso vertente.

Afirmou o recorrente que, a admitir-se que a recorrida tinha direito a exigir-lhe a prestação de contas desde a data da propositura da acção, abusaria, na espécie, do seu exercício por o reportar à data em que ambos viviam em perfeita harmonia e em que ela se aproveitava dos rendimentos dos bens comuns, visando agora novo aproveitamento à sua custa.

O abuso do direito, excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, está legalmente previsto em termos de ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334º do Código Civil).

Rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo (ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, pág. 241).

Na vertente do chamado venire contra factum proprium traduz-se o abuso do direito na conduta contraditória, ou seja, na conduta anterior do seu titular que, objectivamente interpretada no confronto da lei, da boa fé e dos bons costumes, gerou a convicção na outra parte de que o direito não seria por aquele exercido e, com base nisso programou a sua actividade, isto é, pressupõe uma situação objectiva de confiança, um investimento de confiança.

A conclusão jurídica sobre a verificação da excepção peremptória do abuso do direito em qualquer das suas modalidades deve resultar, naturalmente, da existência de factos provados que a revelem.

6.
Atentemos, finalmente, com base nos factos provados e nas considerações de ordem jurídica que antecedem, na síntese da solução para o caso concreto decorrente dos factos e da lei.

As questões que o recorrente suscitou no recurso de revista, salvo a relativa ao limite temporal da obrigação de prestação de contas aos cinco anos anteriores à propositura da acção para o efeito, são de direito, não são novas, integrando-se no âmbito de conhecimento dos tribunais em geral e deste Tribunal em particular.

O objecto da acção de prestação de contas é essencialmente o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios, abrangendo este conceito o património comum dos cônjuges em que ambos são titulares de um direito sobre ele.

Decorrentemente não tem apoio legal a afirmação do recorrente no sentido de que só era obrigado a prestar contas no confronto com a recorrida a partir do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha dos seus bens comuns.

Por virtude do princípio da retroactividade dos efeitos do divórcio no que concerne às relações jurídicas patrimoniais dos cônjuges à data da propositura da respectiva acção, é essa a data a partir da qual a recorrida podia exigir do recorrente a prestação de contas relativas à administração dos bens integrantes do património comum do casal, e não apenas desde a data do trânsito em julgado da sentença que decretou o respectivo divórcio.

Os factos que o recorrente invoca no confronto com a recorrida a título de fundamento da alegação do abuso do direito não foram por ele alegados na acção, certo que não a contestou, não estão provados e, consequentemente, não podem relevar no sentido da sua verificação.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencido é o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil)

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se o recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2005.
Salvador da Costa,
Ferreira de Sousa,
Armindo Luís.