Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B175
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: RECURSO
ÂMBITO DO RECURSO
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: SJ200504070001752
Data do Acordão: 04/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3468/03
Data: 06/22/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas;
II - Só não será assim quando a própria lei estabeleça uma excepção a essa regra, ou quando esteja em causa matéria de conhecimento oficioso.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Na presente acção "A", Bar e Esplanada, Ldª pede a condenação dos réus B e C a pagarem-lhe a quantia de 4.257.881$00, com juros de mora, alegando, em síntese, que os réus foram seus sócios fundadores e enquanto tal:
-- deixaram um passivo na empresa quando, no momento em que cederam as suas quotas aos actuais sócios, disseram que ele não existia;
-- utilizaram em proveito próprio dinheiro que havia sido entregue à autora por uma empresa de distribuição de café no âmbito de um contrato firmado entre esta e aquela;
-- não preencheram correctamente a declaração de IRC relativamente à actividade da sociedade no ano de 1995, o que determinou que esta viesse a pagar posteriormente a quantia em dívida, além do montante em que foi sancionada.

Os réus contestaram por impugnação e pediram a condenação da autora como litigante de má fé.
Houve tréplica e, realizado o julgamento, foi proferido julgamento que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou os réus a pagarem à autora a quantia de 1.141,50 euros, acrescida de juros de mora, à taxa de 7%, contados desde 22 de Dezembro de 2000 até pagamento, absolvendo-os do demais pedido.
Apelou a autora desta sentença, mas a Relação do Porto confirmou-a.
A autora continua inconformada e pede agora revista do acórdão da Relação, formulando as seguintes conclusões:

1. A cessão de posição contratual pelo qual o B, na qualidade de gerente da sociedade comercial, transferiu, em 19 de Abril de 1995, para a autora "A", Ldª obrigações que, individualmente e antes da existência da sociedade por quotas, havia assumido em 18 de Maio de 1993 (a sociedade foi constituída em 20/7/94) reservando para si os lucros, os benefícios ou vantagens do mesmo contrato, é acto ilícito ou ineficaz em relação à sociedade, pelo que a douta sentença violou os artigos 16, n. 2 e 19, n. 4 do DL 262/86, de 2 de Setembro e bem assim o artigo 998 do Código Civil;

2. Tendo o B declarado que em 18 de Maio de 1993 recebeu de uma firma D, 2.283.180$00 não se entende e nem pode explicar-se como é que não beneficiou de tal montante, pelo que a resposta ao quesito 4º ofende o artigo 514 do Código de Processo Civil" e bem assim o artigo 668, nº1, al. b) do Código de Processo Civil;

3. A autora, dado que o contrato de cessão de posição contratual foi feito com intuito único de lesar os direitos da autora e à revelia dos outros sócios, com violação grosseira dos direitos de terceiro e com o compromisso assumido de que não havia passivo, tem o direito de ser indemnizada por todos os danos que os réus estão a causar-lhe, pelo que a douta sentença violou os artigos 483 e 562 e ss. do Código Civil e bem assim as alíneas b) e c) do n. 1 do artigo 668 do Código de Processo Civil;

4. A sentença e o acórdão já proferidos violam o espírito e letra do artigo 473 do Código Civil porquanto vem provado que o B recebeu a quantia de 2.283.180$00 em 18 de Maio de 1993 "ora se recebeu tem que entregar a contrapartida" mas se investiu na firma autora e recorrente ou em seu bens, o B recebeu a contrapartida do seu investimento na valorização das quotas, pelo que, conforme as coisas estão, os RR recebem mas não pagam!

Os réus/recorridos contra-alegaram defendendo a confirmação do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Coloca a recorrente, na presente revista, as seguintes questões:
-- ALTERAÇÃO DA RESPOSTA AO QUESITO 4º;
-- ILICITUDE OU INEFICÁCIA DA CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL DO RÉU B PARA A AUTORA NO NEGÓCIO DE FORNECIMENTO DE CAFÉ COM A D;
-- VIOLAÇÃO DO ARTIGO 473 DO CÓDIGO CIVIL.

1ª QUESTÃO

Vem provado que, em 19 de Abril de 1995, o réu B, na qualidade de então gerente da autora, celebrou com a sociedade D - Comercialização e Distribuição de Café, Ldª um contrato de fornecimento de café, através do qual a autora obrigava-se a adquirir à D 5605 quilos de café, no prazo de 4 anos e 16 semanas, sendo certo que, no seguimento do contrato, durante a gerência da autora pelos réus, foram gastos 120 quilos de café.

Alegou ainda a autora que os réus fizeram sua a quantia de 2.087.206$00 -- do montante que a D entregara ao réu B, por força do referido contrato --, tendo-a gasto em proveito próprio.

Submetida esta matéria a julgamento enquadrada nos quesitos 3º e 4º, ambos obtiveram a resposta de «Não provado».

Entende, no entanto, a recorrente, que a resposta dada ao quesito 4º -- onde se pergunta se «os RR gastaram em proveito próprio a quantia indicada no quesito 3º» (os tais 2.087.206$00) - ofende os artigos 514 e 668, nº1, al. b) do CPC.

A Relação não acolheu esta pretensão da recorrente com o fundamento de que a matéria perguntada no quesito 4º não se enquadra na previsão do artigo 514 do CPC e que a resposta se encontra devidamente fundamentada, não estando, por isso, o respectivo despacho ferido com a nulidade prevista na alínea b) do n. 1 do artigo 668 do CPC.
Consequentemente manteve a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.

Ora, esta decisão da Relação é definitiva, pois que dela não há recurso para o STJ, nos termos do nº6 do artigo 712 do CPC, sendo certo ainda que, antes do acrescentamento desta norma expressa ao artigo 712 pelo DL 375-A/99, de 20 de Setembro, vinha sendo pacificamente entendido estar vedado ao Supremo sindicar o não uso pelas Relações do seu poder de alterar a matéria de facto.

Por outro lado, o Supremo, como tribunal essencialmente de revista, só pode intervir no âmbito da matéria de facto nos dois casos excepcionais previstos no nº2 do artigo 722 do CPC - ofensa duma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova --, sendo certo que nenhuma destas situações se verifica no caso que nos ocupa.

Improcede, portanto, esta 1ª questão, com a consequente manutenção da matéria de facto tal como foi fixada pelas instâncias e que, por isso, se dá aqui como integralmente reproduzida, ao abrigo do nº6 do artigo 713, ex vi artigo 726, ambos do CPC.

2ª e 3ª QUESTÕES

A causa de pedir na presente acção assenta na ilicitude da conduta dos réus enquanto sócios da autora, traduzida em terem:
-- deixado, quando cederam as suas quotas aos actuais sócios da autora e ao contrário do que haviam declarado, um passivo na empresa;
-- utilizado em proveito próprio a referida quantia que o réu B recebera da D;
-- preenchido incorrectamente a declaração de IRC da autora relativa ao ano de 1995, o que levou a que esta tivesse sido sancionada em penalidades e encargos que pagou.

De tudo isto veio apenas a provar-se esta última factualidade e, por conseguinte, a acção veio a proceder só nessa parte, com a consequente condenação dos réus a pagarem à autora o somatório das respectivas quantias, acrescido dos peticionados juros de mora.

No sentido de ver alterada a sentença em termos da procedência total da acção, a recorrente veio alegar no recurso de apelação a ilicitude/ineficácia da cessão da posição contratual pela qual o réu B, na qualidade de gerente da sociedade comercial, transferira para a autora obrigações que tinha assumido individualmente para com a D, através do já referido contrato de fornecimento de café, reservando para si os lucros e os benefícios de tal contrato.

O acórdão sob recurso considerou como nova esta questão, por não ter sido levantada nem conhecida na 1ª Instância e por também não ser de conhecimento oficioso.

Apesar disso, a recorrente reitera agora a mesma questão, acrescentando-lhe a da pretensa violação artigo 473 do Código Civil (enriquecimento sem causa), também nunca invocada nos articulados e, em consequência, igualmente nunca abordada quer pela sentença da 1ª Instância, quer pelo acórdão recorrido, por se tratar de matéria vedada ao conhecimento oficioso.

Ora, como bem salienta o acórdão sob análise -- espelhando, aliás, jurisprudência firme e pacífica --, os recursos visam modificar decisões do tribunal «a quo» e não criar decisões sobre matéria que não tenha sido objecto de decisão impugnada (artigo 676, nº1 do CPC).

«À partida, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas. De facto, por definição, e como decorre dos artigos 676º, nº1 e 690º, nº1, do CPC, os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas. Só não será assim quando a própria lei estabeleça uma excepção a essa regra como é o caso, por exemplo, da norma do nº3 do artigo 668 do PC, ou quando esteja em causa matéria de conhecimento oficioso.» -- acórdão do STJ, de 21/1/1993, CJSTJ, ano I, tomo I, página 72.

Está-nos, assim, vedado o conhecimento destas duas últimas questões, que também não deixam de traduzir uma alteração da causa de pedir, de todo inadmissível, por manifesta extemporaneidade (cfr. artigo 273, n. 1 do CPC).

Resta dizer que a invocação (a esmo) pela recorrente de uma pretensa violação das alíneas b) e c) do nº1 do artigo 668 do CPC se revela completamente inconsequente, porque não se encontra objectivada, nem se vislumbra em que é que se fundamenta.

DECISÃO
Pelo exposto nega-se a revista, com custas pela recorrente.

Lisboa, 7 de Abril de 2005
Ferreira Girão,
Luís Fonseca,
Lucas Coelho.