Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
437/11.0TBBGC.G1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
PROVA TESTEMUNHAL
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
TRANSCRIÇÃO
CUMPRIMENTO
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / ÓNUS DO RECORRENTE / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, 228.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 639.º, N.ºS 1 E 2, 640.º, N.ºS 1 E 2, 662.º, N.ºS 1 E 2, 671.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 26-10-2013, DE 16-12-2010, DE 1-7-2010, DE 9-5-2010, DE 1-6-2010 E DE 12-3-2009, EM WWW.DGSI.PT , DE 19-10-04, IN COL. JUR. 2004, ACS. STJ, TOMO III, 72, E ACÓRDÃO PROFERIDO NO PROCESSO N.º 2043/06.1TBGMR-E-G1.S1 SUBSCRITO PELO RELATOR E 1º ADJUNTO DESTE ACÓRDÃO.
-DE 28-4-2016, DE 19-1-2016, DE 29-10-2015, DE 9-7-2015, DE 1-7-2014, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
Na impugnação da matéria de facto com base em provas gravadas, deve o recorrente mencionar os depoimentos em que funda o seu entendimento indicando, com exactidão as passagens da gravação em que baseia o seu recurso. Deverá, outrossim, indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, referindo qual o sentido da resposta que, na sua óptica, se impõe ser dada a tais pontos.

No caso vertente, os recorrentes indicaram, por referência a cada um dos depoimentos das testemunhas (em que baseiam o seu entendimento), o início e o termo deles por referência ao ficou exarado nas actas de audiência de julgamento e referiram a data em que os depoimentos foram realizados. Referenciaram ainda os trechos dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, justificavam a alteração almejada. Ou seja, transcrevendo parte dos depoimentos e fornecendo as indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se referem, os recorrentes forneceram à Relação os elementos relevantes e concretos que permitiriam ao tribunal a reapreciação da matéria de facto.

Por isso, os recorrentes cumpriram o ónus em causa, pelo que a reapreciação da matéria de facto impugnada deveria ter sido efectuada.

Decisão Texto Integral:

                                              

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

                       

                       

                       

I- Relatório:

Processo principal nº 437/11.0TBBGC

1-1- AA e mulher BB, residentes na rua ..., ..., ..., propõem a presente acção declarativa de simples apreciação, sob a forma ordinária, para impugnar em juízo factos justificados por escritura pública, contra os RR., CC e mulher DD, residentes na Av. ..., ..., ....

Fundamentam este pedido, em síntese, dizendo que os RR., através de duas escrituras de justificação notarial, outorgadas a 23/3/2011, a primeira, e a 25/3/2011, a segunda, declararam a aquisição, a seu favor e por usucapião, do direito de propriedade sobre os prédios nelas referidos; tais declarações porém, são falsas, pois, por um lado, os prédios sempre pertenceram a EE, FF, durante a vida destes, e, depois, a GG, seu único e universal herdeiro, e, à morte deste, integraram a sua herança, vindo as suas herdeiras (sobrinhas) a alienar os respectivos quinhões ao ora A. marido.

Terminam pedindo que:

a) Devem declarar-se nulas e de nenhum efeito as escrituras de justificação notarial em que intervieram os RR., CC e DD, lavradas no cartório notarial a cargo do notário HH sito na Av. …, ..., exaradas, respectivamente, a fls. 49 a 51 v e 70 a 72 v. do livro de notas para escrituras diversas nº 21-G e juntas aos autos como docs. 1 e 3 relativamente aos prédios rústicos e urbano nelas referidos, designadamente, art. urbano 106 e arts. rústicos 0009, 0911, 0913, 0990, 0053, 0006, 0766, 0478, 0543, 0554, 0582, todos da freguesia de ... do concelho de ....                         

b) Declararem-se inexistentes os direitos justificados sobre os aludidos prédios.

c) Declarar-se a falsidade dos factos, cuja justificação se pretendeu através das referidas escrituras, não podendo os mesmos produzir quaisquer efeitos jurídicos, especialmente o de fundamentar o registo dos aludidos prédios na conservatória do registo predial.

Citados, os RR contestaram, em síntese, admitindo a outorga das duas escrituras de justificação em causa, excepcionando a simulação da venda dos quinhões, das herdeiras do GG para o A. marido, e, invocando que, até 1987, o EE, a FF e o GG eram os donos, em comum e sem determinação de parte ou direito, dos prédios justificados, por os terem adquiridos por usucapião; porém, em 1987, doaram-lhes, a eles RR., os prédios em causa, verbalmente e sob compromisso de lhes prestarem, os necessários cuidados e de saúde e pessoais, o que efectivamente, fizeram. Tal doação não deve surpreender, porque a R. passou a sua infância e adolescência com aqueles, sendo tratada como filha pelos dois primeiros e por irmã pelo terceiro, sendo que desde 1987 que estão na posse dos prédios por tempo e com as características necessárias e suficientes para ter operado a usucapião, pelo que as suas declarações, em sede de escrituras de justificação, são verdadeiras.

Com base nessa alegação, deduziram reconvenção, e face aos efeitos retroactivos da usucapião, pedem se anulem os negócios celebrados pelos AA relativamente a tais prédios o cancelamento dos respectivos registos.

Pugnam ainda pela consideração que a lide dos AA./reconvindos foi de má-fé, peticionando 10.000 € de indemnização e multa.

Concluem pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção, e, em consequência, devem os AA/Reconvindos condenados a reconhecer que os RR./Reconvintes se são os únicos e exclusivos donos dos prédios urbano e rústicos id. nos arts. 3 e 7 da p.i., por os terem adquirido por usucapião, devendo, por isso, os AA absterem-se de praticar quaisquer actos lesivos ou perturbadores do direito dos. RR./Reconvintes, declarando-se a nulidade dos negócios celebrados pelos AA. relativos aos quinhões hereditários referidos em P) dos factos assentes e ordenando-se, ainda, a anulação e o cancelamento dos actos de registo promovidos pelos Reconvindos sobre os mesmos quinhões; e, ainda, pela condenação dos AA. como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a arbitrar aos RR, de montante não inferior a 10.000 €.

Os AA. replicaram, em síntese, sustentando a improcedência da arguida simulação, visto que a alienação dos quinhões foi querida e correspondeu à vontade real das alienantes e adquirente; no mais, reafirmam que os prédios (não só os justificados, mas sim todos os que constituíam o casal do EE e de FF) estiveram, sempre, na posse destes últimos e que, à sua morte, passaram para o GG, seu herdeiro testamentário universal, que lhes sucedeu na posse, até à sua morte ocorrida em 1/3/2011. Sustentam a inadmissibilidade do pedido reconvencional, atenta a natureza da acção e pugnam pela condenação dos RR./Reconvintes em litigância de má-fé, em multa e indemnização.

Terminam sustentando que deve improceder a simulação invocada pelos RR., devendo a reconvenção deduzida, atenta a natureza da presente acção (se simples apreciação negativa), ser considerada inadmissível e a acção julgada procedente, com condenação dos RR. como litigantes de má-fé em multa e indemnização a favor dos AA. e a fixar em conformidade com o disposto no art. 457º CPC.

Por despacho de fls. 442, foi ordenada a apensação, aos presentes, dos autos de acções sumárias 731/11.0TBBGC (do então 2º J do TJ …) e 734/11.4TBBGC (do então 1º J do TJ de …), passando a constituir os apensos E) e C), respectivamente.

                       

Processo apenso E (731/11.0TBBGC):

Os mesmos AA., AA e mulher BB, moveram acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, aos mesmos RR., CC e mulher DD, alegando, em síntese, serem donos de vários prédios rústicos, que identificam, entre os quais os que correspondem aos arts. matriciais de ..., ..., 0543, 0478, 0582, 0766, 0006, 0009 e 0053, por terem adquirido, por escrituras públicas outorgadas a 25/3 e 26/3, ambos de 2011, os quinhões hereditários das herdeiras de GG, cuja herança aqueles prédios integravam, pois que, como único e universal herdeiro de EE (falecido a 30/6/96) e mulher FF (falecida a 27/3/06), sucedeu-lhes na posse dos prédios, que os falecidos havia mais de 20, 30, 40 e mais anos, cultivavam, tendo adquirido o respectivo direito de propriedade por usucapião, que os AA. invocam expressamente, alegando os pertinentes factos; mais alegaram actos de ocupação dos prédios por banda dos RR.

Concluem formulando os seguintes pedidos:

a) Declarar-se que os AA são donos e legítimos proprietários dos prédios rústicos id. e descritos nos arts. 1, 2 e 3 da petição inicial.

b) Condenar-se os RR, tendo como referência os mencionados prédios rústicos, a reconhecerem que os AA são titulares do correspondente direito de propriedade.

c) Condenar-se os RR a restituírem aos AA a posse dos imóveis id. pelos arts. 0543, 0478, 0582, 0766, 0006, 0009 e 0053.

d) Condenar-se os RR a absterem-se, de futuro, da prática de actos que impeçam, diminuam, estorvem, perturbem ou lesem a posse e o direito de propriedade dos AA sobre todos os prédios rústicos id. nos itens 1, 2 e 3 da petição inicial.

Citados, os RR contestaram, excepcionando a simulação da alegada aquisição dos quinhões, quer porque, pura e simplesmente, a mesma nunca ocorreu, quer porque, a ter ocorrido, foi por um preço diverso, sempre com o fim de enganar terceiros.

Sem prescindirem, aceitaram parte dos factos – designadamente que os prédios id. em 3) da p.i. integravam a herança do GG à data da usa morte – mas impugnaram os restantes, designadamente, os atinentes aos prédios id. no art. 2) da p.i. em relação aos quais sustentam que até 1987 eram propriedade em comum e sem determinação de parte ou direito de EE, a FF e o GG através da usucapião, que invocam e cuja factualidade alega pormenorizadamente. Porém, em 1987, doaram aos ora RR. os prédios id. em 2º da p.i., os prédios em causa, verbalmente e sob compromisso de lhes prestarem, aos três os necessários cuidados e de saúde e pessoais, o que os RR., efectivamente, fizeram., até face aos laços de afecto existentes entre a A. mulher e os RR., tratando os dois primeiros como pais e o terceiro como irmão, e sendo por eles assim considerada. A partir daquele ano, de 1987, e mercê da doação verbal, tal doação não deve surpreender, porque a R. passou a sua infância e adolescência com aqueles, sendo tratada como filha pelos dois primeiros e por irmã pelo terceiro sendo ainda certo que desde 1987 estão na posse dos prédios, em termos, que alegam devidamente, conducentes à aquisição por usucapião, cujos efeitos invocam por via de excepção material.

Pugnam, ainda, pela condenação dos AA como litigantes de má-fé em multa e em 10.000 € de indemnização.

Concluem pela improcedência da acção (excepto em relação aos id. em 3º da p.i.), e consequente absolvição do pedido.

Os AA responderam, pugnando pela improcedência da excepção de simulação, visto que a alienação dos quinhões correspondeu à vontade real das alienantes e adquirente; no mais, reafirmam que os prédios (não só os justificados, mas sim todos os que constituíam o casal do EE e de FF) estiveram, sempre, na posse destes últimos e que, à sua morte, passaram para o GG, seu herdeiro testamentário universal, que lhes sucedeu na posse, até à sua morte ocorrida em 1/3/2011, nos termos no essencial já constantes da réplica apresentada nos autos principais.

Deduzem, eles próprios, a litigância de má-fé dos AA., peticionando multa e indemnização

Processo apenso C (734/11.4TBBGC):

Os mesmos AA., AA e mulher BB, moveram acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, aos mesmos RR., CC e mulher DD, alegando, em síntese, serem donos de uma casa de habitação, devidamente identificada, por a mesma integrar a herança de GG, falecido a 1/3/2011, que lhe foi cedida pelas herdeiras daquele em negócio jurídico válido, sendo que o GG, por seu turno, como único e universal herdeiro, testamentário, sucedeu na posse (pormenorizando a necessária factualidade) da casa aos antigos donos, EE e FF, invocando que estes haviam adquirido por usucapião, concretizando a pertinente factualidade. Mais disseram beneficiar da presunção registral e, ainda, que no dia 1/4/2011, o R. marido arrombou a porta da casa, substituindo as fechaduras e impedindo os AA. de acederem à casa, o que os obrigou, a eles AA., perante tal esbulho violento, a lançarem mão do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, que constitui o apenso D, instrumental da presente acção.

Concluem formulando o seguinte pedido:

a) Declarar-se que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio urbano id. e descrito em 1º da petição inicial.

b) Condenar-se os RR., tendo como referência o mencionado prédio urbano, a reconhecerem que os AA. são titulares do correspondente direito de propriedade.

c) Condenar-se os RR. a restituírem aos AA., de forma definitiva, a posse do prédio urbano supra referido.

Os RR. contestaram começando por excepcionar a nulidade por simulação da invocada alienação/aquisição dos quinhões, por banda das herdeiras do GG e por bando dos AA., respectivamente, por nenhum negócio ter sido celebrado ou, pelo menos, tê-lo sido por preço diverso do declarado, com o intuito de enganar ou o Estado ou os próprios RR. ou terceiros confinantes. No mais, impugnam o essencial da versão dos AA., e invocam que, em 1987, o EE, FF e GG doaram-lhes, a eles RR., verbalmente, a casa, com a condição, logo aceite, de cuidarem deles, o que s RR. fizeram, até à morte dos três, comportando-se, a partir de então, os RR. como donos, pormenorizando os factos pertinentes, e esclarecendo que deixaram que os doadores permanecessem na casa, por mera tolerância, pelo que, rematam, adquiriram por usucapião a titularidade do direito sobre ela.

Pugnam para que se considerem os AA como litigantes de má-fé.

Concluem, pedindo a improcedência da acção e a condenação dos AA. como litigantes de má-fé, em multa e em indemnização não inferior a 10.000 €.

Os AA. responderam, pugnando pela improcedência da invocada simulação, por o negócio documentado corresponder à vontade real das partes e impugnando a matéria atinente à usucapião, invocada pelos RR. sustentando que não houve a doação que alegam, sendo que, se o EE e mulher quisessem ter doado algo à R., o que nunca quiseram, tê-lo-iam feito por escritura pública, ou seja, respeitando a forma legal, tal como fizeram com o testamento outorgado a favor do GG, pois bem sabiam que a doação verbal nenhum valor tinha .

Pugnam pela condenação dos RR como litigantes de má-fé.

Concluem, pedindo que:

a) Devem as excepções – simulação e posse – deduzidas pelos RR ser julgadas improcedentes.

b) Ser a acção julgada procedente.

c) Serem os RR condenados como litigantes de má-fé em multa e indemnização a favor dos AA.

                       

O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se realizado a audiência de discussão e julgamento.

No início desta verificando-se a existência de um despacho de selecção da matéria de facto para cada processo, no uso dos poderes de gestão processual, por despacho judicial exarado em acta (fls. 776 e 777), foi delimitado o objecto do litígio e, dentro da matéria constante dos três saneadores, seleccionou-se a constante da factualidade assente nos três processos e a constante da então base instrutória destes autos principais, e, ainda, a constante dos arts. 1, 7, 29 a 31, 33 a 40 da então base instrutória referente à matéria do apenso C) e a constante da matéria dos arts. 1, 2, 6, 9 a 15, 25, 33, 35 a 40, 50 a 55, 61 a 64, 66, 68, 77 da então base instrutória referente à matéria do apenso E).  

Sobre o objecto assim fixado recaiu a actividade instrutória do tribunal.

Após o julgamento, foi proferida sentença em que, respondendo à matéria de facto controvertida, se decidiu nos seguintes termos:

A) Julgar improcedente, por não provada, a excepção peremptória de simulação, suscitada pelos RR., nos presentes autos principais nº 437/11.0TBBGC e nos autos apensos nºs 437/11.0TBBGC-C) e 437/11.0TBBGC-E), absolvendo os AA. do pedido, quanto a ela.

B) Julgar improcedente, por não provada, a excepção peremptória de usucapião, suscitada pelos RR. nos autos apensos nºs 437/11.0TBBGC-C) e 437/11.0TBBGC-E, E), absolvendo os AA. do pedido, quanto a ela.

C) Julgar totalmente procedente por provada a acção destes autos principais, nº 437/11.0TBBGC, e, consequentemente:

1) Declarar validamente impugnadas, e por isso ineficazes e de nenhum efeito, designadamente para efeitos de registo, as escrituras de justificação notarial em que intervieram os RR., CC e DD, lavradas no cartório notarial a cargo do notário HH sito na Av. …, ..., exaradas, respectivamente, a fls. 49 a 51 v e 70 a 72 v. do livro de notas para escrituras diversas nº 21-G, relativamente aos prédios rústicos e urbano nelas referidos, concretamente, ao art. urbano 106 e aos arts. rústicos 0009, 0911, 0913, 0990,0053, 0006, 0766, 0478, 0543, 0554, 0582, todos da freguesia de ... do concelho de ..., por os factos constantes das declarações nelas prestadas não corresponderem à verdade.

2) Julgar totalmente improcedente a reconvenção deduzida nestes mesmos autos principais pelos RR./Reconvintes, pelo que absolvo os AA/Reconvindos dos pedidos formulados.

D) Julgar totalmente procedente por provada a acção que constitui o apenso nº 437/11.0TBBGC-C) e, consequentemente:

a) Declarar, e condeno os RR. a tal reconhecerem, que os AA. são os únicos titulares do direito de propriedade sobre o prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de ... do concelho de ... sob o art. 106 e referido supra em III C) 1).

b) Condenar os RR. a restituírem aos AA., de forma definitiva, a posse do referido prédio urbano.

E) Julgar totalmente procedente por provada a acção que constitui a acção dos autos apensos nº 437/11.0TBBGC-E) e, consequentemente,

a) Declarar, e condeno os RR. a tal reconhecerem, que os AA. são os únicos titulares do direito de propriedade sobre os prédios rústicos descritos nos arts. 2º e 3 da p.i.,

b) Condenar os RR. a entregarem aos AA. os seguintes prédios, que integram os descritos no art. 2º da p.i.: os inscritos na matriz rústica da freguesia de ..., do concelho de ..., sob os arts. 0543, 0478, 0582, 0766. 0006, 0009 e 0053.

c) Condenar os RR. a absterem-se, de futuro, da prática de actos que impeçam, diminuam, estorvem, perturbem ou lesem a posse e o direito de propriedade dos AA. sobre todos os prédios rústicos id. nos referidos arts. 2 e 3 da p.i.

F) 1- Não considerar ter ocorrido litigância de ma fé por parte dos AA, pelo que não se condenam em multa e se absolvem do pedido de indemnização contra eles formulado a tal título.

2. Como litigantes de má fé, condenar os RR. em 7 (sete) Ucs. de multa e no pagamento, a título de honorários, de 5.000 € (cinco mil euros), a entregar directamente ao Il. mandatário dos AA. (arts. 456º/1 e 2,-a) e b) e 457º/1-a) ambos do CPC).

           

1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreram os RR. de apelação para o Tribunal da Relação de … tendo-se aí, por acórdão de 7-4-2016, julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

                       

1-3- Irresignados com este acórdão, dele recorreram os RR. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.

                       

Os recorrentes alegaram, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:

1ª- Os Recorrentes interpuseram recurso de Apelação da aliás, douta sentença proferida nos autos pela 1ª instância, pretendendo em tal recurso, desde logo, sindicar a decisão proferida por aquele Tribunal sobre a matéria de facto.

2ª- Correspondendo à exigência legal, especificaram nas suas Alegações, os factos que os recorrentes consideram incorrectamente julgados, apresentaram a dis­cussão dos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida e indicaram a decisão que no seu entender deveria ter sido proferida pela 1ª instância sobre as ques­tões de facto concretamente impugnadas.

3ª- Finalmente, dado que os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova se consubstanciavam em declarações de parte ou depoimentos testemunhais que foram gravados, os Recorrentes indicaram com exac­tidão, as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, consignando expres­samente nas suas Alegações, a identificação dos autores das declarações e dos depoimentos em que assentaram a sua impugnação da decisão da matéria de facto, a especificação, por referência à gravação de áudio e às Actas das várias sessões de julgamento, das datas, horas, minutos e segundos em que tais declarações e depoi­mentos foram prestados e inclusivamente, a transcrição "ipsis verbis" de algumas dessas declarações e depoimentos.

4ª- Exigir que os Recorrentes na impugnação da matéria de facto, tivessem procedido, além de tudo o mais, à especificação das próprias passagens dos depoi­mentos em que fundam a sua discordância quanto à decisão da matéria de facto, é fazer do julgamento da matéria de facto um espartilho e exigir uma segmentação que de todo são inadequadas e despropositadas no caso sub judice, para a boa decisão da causa.

5ª - Não tem qualquer sentido lógico, nem ontológico, nem jurídico, admitir que uma simples frase, um concreto minuto de um depoimento de duas ou três horas, pode ou deve alterar a decisão de certa questão de facto, sobretudo, quando os factos em causa são tão extensos e simultaneamente, encadeados entre si, como sucede no caso concreto em apreciação.

6ª- Tal argumento constitui um contra-senso desprovido de qualquer razoabilidade e sensibilidade jurídica e viola o paradigma da correcta e adequada apreciação da prova.

7ª- Basta analisar as doutas contra-alegações oferecidas pelos AA./Recorrido, para constatar que a alegada falta apontada pelo douto aresto recor­rido não impediu a contraparte de exercerem cabalmente o contraditório.

8ª- Quando esteja em causa, como sucedia nos autos, matéria de facto com­plexa e extensa, mais evidente se torna que qualquer depoimento testemunhal invo­cado pelos Recorrentes terá de ser apreciado antes de mais, na sua globalidade, em toda a sua extensão, para determinação desde logo, da sua razão de ciência, do seu conhecimento global ou meramente parcial dos factos, do seu conhecimento reitera­do pela convivência com os próprios interessados ao longo de vários anos ou pelo contrário, meramente circunstancial e episódico.

9ª- Sem se proceder a tal avaliação de todos os depoimentos invocados, não se pode acreditar nem confiar que a mera apreciação de pequenos excertos dos referidos depoimentos, possa só por si, alterar o julgamento da matéria de facto e condu­zir à sua modificação.

10ª- O que está em causa no vertente caso e em concreto, na impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não é um mero juízo circunstancial, retirado de cer­tos excertos que possam ser transcritos, dos depoimentos invocados, mas antes, a decisão diversa a que o Tribunal podia chegar, se procedesse à análise global dos depoimentos invocados.

11ª- Só com tal análise global será possível levar a cabo uma correcta, com­pleta, cabal, justa e ponderada apreciação da matéria de facto impugnada, podendo e devendo ser revertida a decisão da 1ª instância sobre a factualidade provada e não provada, nomeadamente, nas várias questões de facto suscitadas pelos Recorrentes.

12ª- Não podia por isso, a decisão revidenda exigir que além das especifica­ções cumpridas pelos Recorrentes, estes tivessem também, adicionalmente, de pro­ceder à concretização não apenas dos depoimentos, mas das próprias passagens das gravações de cada um dos depoimentos, em que se funda a sua impugnação da maté­ria de facto.

13ª- Tal exigência é inadmissível e intolerável, sobretudo atenta a extensão da matéria de facto impugnada e dos próprios depoimentos invocados, constituindo um ónus injustificável e até inútil, visto que o Tribunal sempre poderá oficiosamente, averiguar a existência de outros meios probatórios que imponham solução diversa da pugnada pelos Recorrentes.

14ª - O Tribunal deve não só evitar a prática de actos inúteis, como inclusiva­mente, adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adap­tar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.

15ª- No caso sub judice, a douta decisão recorrida privilegia em demasia uma minudência processual em detrimento da verdade material, abstendo-se infundada­mente, de conhecer do mérito do recurso.

16ª- Foram violados ou mal interpretados os artigos 547°, 607°, nºs 3, 4 e 5 e 640°, nºs 1 e 2, do C.P.C.

Os recorridos pronunciaram-se pela não admissão da revista.                  

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

                       

II- Fundamentação:

2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas o tema que ali foi enunciado (art. 639º nºs 1 e 2 do C.P.Civil).

Nesta conformidade, será a seguinte a questão a apreciar e decidir:

- Se a Relação deveria ter reapreciado a matéria de facto porque os recorrentes cumpriram integralmente os requisitos de que dependia essa apreciação.                    

2-2- Como ponto prévio referiremos que, pese embora tenha existido a chamada dupla conforme quanto ao mérito dos autos (a decisão de 1ª instância foi confirmada pela Relação sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente) e que, por isso, não seria admissível a revista (art. 671º nº 3 do C.P.Civil, diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem), o certo é que a questão da não reapreciação da matéria de facto pela Relação suscitada no presente recurso, constitui tema novo (a questão foi somente submetida a apreciação na Relação), pelo que a revista será, quanto a ele, possível. Ou seja, sobre a concreta questão do incumprimento pelos apelantes dos ónus específicos fixado no art. 640º nºs 1 e 2 só existe a decisão da Relação, não se verificando, assim, quanto a esse ponto, a dupla conformidade, que pressupõe duas apreciações sucessivas da mesma questão de direito em que a última é confirmativa da primeira. Por isso, a revista será admissível.

                       

Afirmam os recorrentes que, face à exigência legal, especificaram nas suas alegações, os factos que consideraram incorrectamente julgados, apresentando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida pela 1ª instância sobre as ques­tões de facto concretamente impugnadas. Dado que os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova se consubstanciavam em declarações de parte ou depoimentos testemunhais que foram gravados, indicaram com exac­tidão, as passagens da gravação em que se fundavam o seu recurso, consignando expres­samente nas suas alegações, a identificação dos autores das declarações e dos depoimentos em que assentaram a sua impugnação da decisão da matéria de facto, a especificação, por referência à gravação de áudio e às actas das várias sessões de julgamento, das datas, horas, minutos e segundos em que tais declarações e depoi­mentos foram prestados e inclusivamente, a transcrição "ipsis verbis" de algumas dessas declarações e depoimentos. Exigir que os recorrentes na impugnação da matéria de facto, tivessem procedido, além de tudo o mais, à especificação das próprias passagens dos depoi­mentos em que fundam a sua discordância quanto à decisão da matéria de facto, é fazer do julgamento da matéria de facto um espartilho e exigir uma segmentação que de todo são inadequadas e despropositadas no caso sub judice, para a boa decisão da causa. Não tem qualquer sentido lógico, nem ontológico, nem jurídico, admitir que uma simples frase, um concreto minuto de um depoimento de duas ou três horas, pode ou deve alterar a decisão de certa questão de facto, sobretudo, quando os factos em causa são tão extensos e simultaneamente, encadeados entre si, como sucede no caso em apreciação. Tal argumento constitui um contra-senso desprovido de qualquer razoabilidade e sensibilidade jurídica e viola o paradigma da correcta e adequada apreciação da prova. Basta analisar as doutas contra-alegações oferecidas pelos AA./recorridos, para constatar que a alegada falta apontada pelo douto aresto recor­rido não impediu a contraparte de exercerem cabalmente o contraditório. Quando esteja em causa, como sucedia nos autos, matéria de facto com­plexa e extensa, mais evidente se torna que qualquer depoimento testemunhal invo­cado pelos recorrentes terá de ser apreciado antes de mais, na sua globalidade, em toda a sua extensão, para determinação desde logo, da sua razão de ciência, do seu conhecimento global ou meramente parcial dos factos, do seu conhecimento reitera­do pela convivência com os próprios interessados ao longo de vários anos ou pelo contrário, meramente circunstancial e episódico. Sem se proceder a tal avaliação de todos os depoimentos invocados, não se pode acreditar nem confiar que a mera apreciação de pequenos excertos dos referidos depoimentos, possa só por si, alterar o julgamento da matéria de facto e condu­zir à sua modificação. O que está em causa no vertente caso e em concreto, na impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não é um mero juízo circunstancial, retirado de cer­tos excertos que possam ser transcritos, dos depoimentos invocados, mas antes, a decisão diversa a que o Tribunal podia chegar, se procedesse à análise global dos depoimentos invocados. Só com tal análise global será possível levar a cabo uma correcta, com­pleta, cabal, justa e ponderada apreciação da matéria de facto impugnada, podendo e devendo ser revertida a decisão da 1ª instância sobre a factualidade provada e não provada, nomeadamente, nas várias questões de facto suscitadas pelos recorrentes. Não podia por isso, a decisão recorrida exigir que além das especifica­ções cumpridas pelos recorrentes, estes tivessem também, adicionalmente, de pro­ceder à concretização não apenas dos depoimentos, mas das próprias passagens das gravações de cada um dos depoimentos, em que se funda a sua impugnação da maté­ria de facto. Tal exigência é inadmissível e intolerável, sobretudo atenta a extensão da matéria de facto impugnada e dos próprios depoimentos invocados, constituindo um ónus injustificável e até inútil, visto que o Tribunal sempre poderá oficiosamente, averiguar a existência de outros meios probatórios que imponham solução diversa da pugnada pelos recorrentes. O Tribunal deve não só evitar a prática de actos inúteis, como inclusiva­mente, adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adap­tar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo. No caso sub judice, a douta decisão recorrida privilegia em demasia uma minudência processual em detrimento da verdade material, abstendo-se infundada­mente, de conhecer do mérito do recurso.  

Ou seja, os recorrentes insurgem-se pela não reapreciação da matéria de facto pela Relação, em razão desta ter considerado que os recorrentes deveriam, para além das especifica­ções legais cumpridas por eles, adicionalmente pro­ceder à concretização das próprias passagens das gravações de cada um dos depoimentos em que fundavam a sua impugnação da maté­ria de facto, sendo tal exigência inadmissível e intolerável, atenta a extensão da matéria de facto impugnada e dos próprios depoimentos invocados, constituindo um ónus injustificável e até inútil, visto que o Tribunal sempre poderá oficiosamente, averiguar a existência de outros meios probatórios que imponham solução diversa da pugnada pelos recorrentes.

Sobre a questão no douto acórdão recorrido afirmou-se que “… pese embora em decorrência de discussão que se encetou em torno da questão de saber se o ónus de indicação, com exactidão, das concretas passagens dos registos fonográficos em que fundam a sua discordância, no segmento referente à impugnação da decisão das questões de facto deve ser feita nas conclusões das alegações ou se se bastará com a sua indicação no corpo das alegações, se venha hoje a entender ser este último entendimento que vem merecendo maior acolhimento, indubitável resulta que, sem o cumprimento deste ónus, pelo menos, nas alegações, o recurso terá de ser rejeitado nesta parte. Isto assente, analisado o teor das alegações dos Recorrentes à evidência se constata que as menções que delas constam, reproduzindo as que ficaram a constar das actas que documentam a audiência final, apenas são indicativas do início e do termo dos identificados depoimentos, conforme ficou exarado nessas mesmas actas… E assim sendo, o procedimento adoptado pelos Apelantes traduziu-se, pois, na indicação do início e fim do registo fonográfico de cada um dos aludidos depoimentos. Destarte, sendo, como se deixou dito, a questão que se coloca e que importa dirimir, a de saber se esse procedimento satisfaz o aludido ónus de indicação que, em conformidade e decorrência do supra mencionado preceito, impõe ao apelante, sob pena de rejeição do recurso, a “indicação exacta das passagens da gravação em que se funda”, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, dúvidas se não podem suscitar de que os Apelantes não deram cabal ou adequado cumprimento a este ónus… Isto considerado, a doutrina tem sido praticamente unânime no sentido de que o incumprimento do ónus de indicação, com exactidão, das concretas passagens dos registos fonográficos em que fundam a impugnação factual implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento, dado, desde logo, o uso da expressão peremptória da lei, através do emprego do adjectivo imediata. … E assim sendo, incumprindo os Apelantes o ónus imposto na 1ª parte da al. a) do nº 2 do art. 640º do Cód. Processo Civil, ao recorrente que impugna a matéria de facto, está o tribunal impedido de sindicar o julgamento da matéria de facto, não podendo, por decorrência, esta Relação apreciar o recurso, na vertente da impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 662, nº 1, do C.P.C., impondo-se, assim, a rejeição, nessa parte, do recurso interposto”.

Quer isto dizer que o tribunal recorrido absteve-se de reapreciar a matéria de facto por entender que os recorrentes não haviam indicado, com precisão, as concretas passagens dos registos fonográficos em que fundavam a impugnação factual, tendo-se limitado a apontar o início e fim do registo fonográfico em relação a cada um dos invocados depoimentos.

Vejamos:

O DL nº 39/95, de 15.2 introduziu profundas alterações no nosso ordenamento jurídico ao prever a possibilidade do registo das audiências finais e da prova produzida, concretizando, deste modo, aos interessados o exercício de um completo controlo sob a prova produzida, possibilitando-lhe o recurso a um verdadeiro e duplo grau de jurisdição, já que lhes facultava uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito. No próprio preâmbulo do diploma se aludiu ao duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, dizendo-se, designadamente que “a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto não deverá redundar na criação de factores de agravamento da morosidade na administração da justiça civil” e mais adiante “a consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação …”

Com vista à concretização do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto impôs-se a gravação e registo de prova, abrindo-se assim o recurso amplo sobre a matéria de facto.

Esta possibilidade foi reforçada com a publicação posteriormente pelo Dec-Leis 329 A/95 de 12/12, 180/86 de 25/9 e 183/2000 de 10/8. Para a prossecução deste desiderato o legislador aditou ao Código de Processo Civil um conjunto de normas relativas ao registo dos depoimentos, designadamente o disposto nos arts. 512º nº 1, 522º A, 552º B e 522º C e 690º A do antigo C.P.Civil.

Nos termos do art. 662º nº1 do actual Código, a Relação “deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos com assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Segundo cremos, o legislador ao exprimir-se deste modo e ao dar à Relação as prorrogativas definidas nas alíneas do nº 2 do mesmo art. 662º, pretendeu que o tribunal de 2ª instância fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto. Deve-se, assim, repudiar a posição segundo a qual a actividade da Relação deverá circunscrever-se a um mero controlo formal da motivação efectuada em 1ª instância, procedendo à detecção e correcção de pontuais e excepcionais erros de julgamento, ou a orientação de que o tribunal da 2ª instância não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.

Como refere Amâncio Ferreira[1] “…por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu. Também aqui a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a 1ª instância”.

Em síntese, quando exista gravação dos depoimentos prestados em audiência, a Relação reapreciará e reponderará a prova produzida sobre que assentou a decisão impugnada, atendendo aos elementos indicados, de forma a formar a sua própria convicção[2]. O Tribunal da Relação deve, pois, exercer um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma com a 1ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão. Só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição em matéria de facto que a reforma processual de 1995 (Dec-Lei 329 A/95 de 12/12)[3] visou assegurar e que o actual Código, através dos dispositivos indicados, confirmou e reforçou.

A questão que se levanta no caso concreto diz respeito a saber-se se o recorrente cumpriu os pressupostos legais de que depende a reapreciação, pela Relação, da matéria de facto, designadamente os requisitos definidos no art. 640º nºs 1 e 2, mais particularmente as condições definidas no nº 2 al. a) do referido art. 640º.

Estabelece este art. 640º nº 1, als. a), b) c), que deve, aquele que impugne a matéria de facto, especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, indicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Acrescenta o nº 2 da disposição, que no caso previsto na alínea b), quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Quer isto dizer e para o que aqui importa, que na impugnação da matéria de facto com base em provas gravadas, deve o recorrente mencionar os depoimentos em que funda o seu entendimento indicando, com exactidão as passagens da gravação em que baseia o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. Deverá, outrossim, referir os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, referindo qual o sentido da resposta que, na sua óptica, se impõe ser dada a tais pontos.

Em sintonia com estas disposições estabelece o art. 662º nº 1 que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto poderá ser alterada pela Relação “…se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Isto é, desde que o recorrente cumpra as determinações ínsitas no art. 640º, o Tribunal da Relação fará a reapreciação da matéria de facto podendo alterar o circunstancialismo dado como assente na 1ª instância.

A Relação poderá, inclusivamente, “ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta” (art. 662º nº 2 als. a), b) e c)).

Quer dizer, um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição por parte da Relação, e não um simples controlo sobre a forma com a 1ª instância respondeu à matéria factual, tem hoje expressão legal de forma mais categórica.

                       

No caso vertente, a questão que se coloca, consiste em saber se os recorrentes teriam de especificar, e especificaram, no recurso, com rigor, as concretas passagens dos registos fonográficos em que fundaram a impugnação factual que efectuaram.

Não se levanta qualquer dúvida de que os recorrentes cumpriram os outros encargos, a que alude o art. 640º, necessários para a reapreciação da matéria de facto. Com efeito, identificaram os pontos de facto que consideravam mal julgados, por referência aos pontos da base instrutória, indicaram os depoimentos das testemunhas que justificavam o seu entendimento, referiram qual o resultado probatório que nos seu entender deveria ter ocorrido relativamente a cada ponto impugnado e o correspondente meio de prova.

Quanto à questão em debate, como já vimos, o texto da lei afirma que “…incumbe ainda ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso (sublinhado nosso), sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Todavia esta disposição, a nosso ver, deve ser interpretada com cautela nunca perdendo de vista o objectivo primordial que se encontra subjacente ao sistema, que é o proporcionar à parte a reapreciação efectiva da prova, o que leva a repudiar uma posição que valorize excessivamente os aspectos de ordem formal de tal operação. Deve, pois, adoptar-se uma interpretação conciliável com as exigências de princípio fundamental de proporcionalidade e adequação, com vista à realização da justiça material. O pretendido pela norma é claramente facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contem a gravação da audiência, eliminando dificuldades relevantes no encontro, pelo tribunal, dos excertos da gravação em que a parte haja fundado a sua posição, permitindo-se, simultaneamente, à parte contrária o exercício do contraditório. Assim sendo, tais objectivos poderão também ser alcançados e eventuais obstáculos ultrapassados, através da transcrição das partes dos depoimentos que interessam ao sujeito processual que pretende a reavaliação da prova, com reporte à fixação fonográfica de tais elementos probatórios.

Neste sentido, afirma-se no acórdão deste de STJ 28-4-2016 (www.dgsi.pt/jstj.nsf) “sem ceder a facilitismos que acabem por desprezar os objectivos e os fundamentos do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, não é legítimo que se faça do regime vigente uma interpretação excessiva, como a que se recolhe do acórdão recorrido que não encontra tradução no preceituado no art. 640º do CPC, representando uma inaceitável sobreposição de aspectos de ordem formal numa situação em que se mostra razoavelmente cumprido o ónus de alegação”.

Em situação semelhante à dos presentes autos, refere-se no acórdão deste STJ de 19-1-2016 (no mesmo site) “a falta da indicação exacta e precisa do segmento da gravação em que se funda o recurso, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC não implica, só por si a rejeição do pedido de impugnação sobre a decisão da matéria de facto, desde que o recorrente se reporte à fixação electrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório”.

Também em caso análogo, no esclarecedor acórdão deste STJ de 29-10-2015 (no mesmo site), afirma-se: “…Percorrendo, deste modo, os regimes processuais que têm vigorado quanto a este tema, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes. Ora, se é certo que – relativamente ao cumprimento de tais ónus, primário e secundário – não se permite a formulação de um sistemático convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, não poderá deixar de ser avaliada diferentemente a falha da parte consoante ocorra num ou noutro âmbito: como é óbvio, a ausência de objecto delimitado e de fundamentação minimamente concludente da impugnação deduzida deverá ditar, de forma inevitável e em termos proporcionais, a liminar rejeição do recurso quanto à matéria de facto. Pelo contrário, o incumprimento do referido ónus secundário, tendente apenas a facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contem a gravação da audiência, deverá ser avaliado com muito maior cautela: é que, por um lado, o conceito usado pela lei de processo (exacta indicação das passagens da gravação) é, até certo ponto, equívoco, pressupondo a necessidade de distinguir entre a (insuficiente) mera indicação e a indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados; por outro lado, por força do princípio da proporcionalidade, não parece justificável a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa - não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado (como ocorrerá normalmente nos casos, como o dos autos, em que tal indicação do recorrente das passagens da gravação, é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso). Saliente-se que, na interpretação da norma que consagra este ónus de indicação exacta a cargo do recorrente que impugna prova gravada, não pode deixar de se ter em consideração a filosofia subjacente ao actual CPC, acentuando a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais, carecidos de uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação - evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais… Por outro lado, esta ideia base, segundo a qual não deve adoptar-se uma interpretação rígida e desproporcionadamente exigente de ónus ou cominações de natureza essencialmente formal ou secundária – devendo adoptar-se interpretação conciliável com as exigências de um princípio fundamental de proporcionalidade e adequação – vem encontrando acolhimento claro na jurisprudência recente deste Supremo, nomeadamente a propósito do grau de exigência e intensidade do ónus do recorrente que presentemente nos ocupa”.

Ainda no acórdão deste STJ de 9-7-2015 (igualmente no mesmo site) e em caso análogo ao do caso vertente, em sumário, exarou-se: “Tendo o apelante, nas suas alegações de recurso, (i) identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, (ii) indicado o depoimento das testemunhas, que entendeu mal valorados, (iii) fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados e do início e termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição, (iv) bem como referido qual o resultado probatório que nos seu entender deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar”.

Também no acórdão deste Supremo de 1-7-2014 (sempre no mesmo site) igualmente em caso comparável ao do caso vertente, afirmou-se, em sumário: “Não podendo o julgamento a que o tribunal de recurso procede redundar num novo e total julgamento da causa, não deixa de ser menos verdade que, tal como o legislador entendeu dever regular o recurso da decisão de facto – cf., v.g, arts. 690.º-A e 522.º-C, do CPC, na redacção emergente do DL n.º 303/2007, de 24-08 –, não pode esse tribunal eximir-se à reapreciação da prova, escoltado e respaldado numa ausência de indicação expressa das passagens das gravações em que se encontrem registados os depoimentos que impõem decisão diversa. … Se, em concreto, se extrai das alegações de recurso que é feita uma resenha dos depoimentos das testemunhas que, no juízo do recorrente, serviram para contraditar a solução que o tribunal tinha conferido aos enunciados de facto a que devia dar resposta e fez menção das gravações em que tais depoimentos se encontravam inseridos, o recorrente cumpriu, no essencial, o comando legal, pelo que o tribunal deveria ter procedido à reapreciação da decisão de facto”.

Quer dizer, é jurisprudência pacífica deste STJ que o Tribunal da Relação não pode deixar de reapreciar a matéria de facto impugnada no caso de omissão da indicação expressa das passagens das gravações em que se encontrem registados os depoimentos que impõem decisão diversa, desde que, nos termos do recurso, se faça a transcrição da parte dos depoimentos em que o sujeito se serve para contrariar a posição assumida pelo tribunal recorrido, fornecendo indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se baseia a impugnação.

Voltando ao caso vertente, verifica-se que os recorrentes indicaram, por referência a cada um dos depoimentos das testemunhas (em que baseiam o seu entendimento), o início e o termo deles por referência ao ficou exarado nas actas de audiência de julgamento e referiram a data em que os depoimentos foram realizados. Referenciaram ainda os trechos dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, justificavam a alteração almejada. Ou seja, transcrevendo parte dos depoimentos e fornecendo as indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se referem, os recorrentes, a nosso ver, forneceram à Relação os elementos relevantes e concretos que permitiam ao tribunal a reapreciação da matéria de facto. Não se verifica, assim, dificuldades de monta na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que os recorrentes fundam o seu entendimento. Tanto assim é que a parte contrária, como se vê pelas suas contra-alegações, apreendeu a factualidade colocada em causa e a prova utilizada para a impugnação e exerceu o contraditório, fornecendo a sua perspectiva sobre tal matéria transcrevendo parte dos depoimentos das testemunhas inquiridas, o que serve para afirmar que não ocorreu qualquer impedimento de a contraparte tomar posição sobre a factualidade colocada em causa pelos apelantes.

Por isso, nos parece que os recorrentes cumpriram o ónus em causa, pelo que a reapreciação da matéria de facto impugnada deveria ter sido efectuada.

O recurso procede, por conseguinte.

                         

III- Decisão:

Por tudo o exposto, concede-se a revista, revogando-se a decisão recorrida determinando-se a remessa dos autos à Relação para que seja apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pelos RR. apelantes e, após, se proceda à apreciação das restantes questões suscitadas na apelação.

Custas pela parte vencida a final.

                       

Elabora-se o seguinte sumário (arts. 679º e 663º nº 7 do C.P.Civil):

Na impugnação da matéria de facto com base em provas gravadas, deve o recorrente mencionar os depoimentos em que funda o seu entendimento indicando, com exactidão as passagens da gravação em que baseia o seu recurso. Deverá, outrossim, indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, referindo qual o sentido da resposta que, na sua óptica, se impõe ser dada a tais pontos.

No caso vertente, os recorrentes indicaram, por referência a cada um dos depoimentos das testemunhas (em que baseiam o seu entendimento), o início e o termo deles por referência ao ficou exarado nas actas de audiência de julgamento e referiram a data em que os depoimentos foram realizados. Referenciaram ainda os trechos dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, justificavam a alteração almejada. Ou seja, transcrevendo parte dos depoimentos e fornecendo as indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se referem, os recorrentes forneceram à Relação os elementos relevantes e concretos que permitiriam ao tribunal a reapreciação da matéria de facto.

Por isso, os recorrentes cumpriram o ónus em causa, pelo que a reapreciação da matéria de facto impugnada deveria ter sido efectuada.

Lisboa, 06 de dezembro de 2016

Garcia Calejo - Relator

Hélder Roque

Gabriel Catarino

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[1] Manual dos recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 228
[2] Esta posição é a que actualmente recorrente neste Supremo Tribunal (vide entre outros Acs. de 26-10-2013, de 16-12-2010, de 1-7-2010, de 9-5-2010, de 1-6-2010 e de 12-3-2009 -in www.dgsi.pt/jstj.nsf -, de 19-10-04 in Col. Jur. 2004, Acs STJ, Tomo III, pág. 72 e acórdão proferido no processo nº 2043/06.1TBGMR-E-G1.S1 subscrito pelo relator e 1º adjunto deste acórdão.
[3] Complementada pelos Decretos-Lei 39/95 e 183/00.