Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
379/16.2T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ERRO JUDICIÁRIO
CONDIÇÃO DA ACÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
PRESCRIÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20171016379/16.2T8PVZ.P1
Data do Acordão: 10/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 660, FLS 153-169)
Área Temática: .
Sumário: I - Entre nós vigora um “modelo do recurso de reponderação” em que o seu âmbito se encontra objetivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido, não podendo, assim, o tribunal ad quem conhecer de questão nova que não seja do conhecimento oficioso.
II - O erro de julgamento, enquanto fundamento da responsabilidade civil do Estado por atos da função judicial, deve ser demonstrado no próprio processo em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis, e não na ação de responsabilidade em que se pretenda efetivar o direito de indemnização ou em recurso extraordinário de revisão.
III – A “prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” a que se alude no nº 2 do artigo 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12 constitui uma verdadeira condição (de procedência) da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário e não um pressuposto processual negativo cuja inobservância conduza à absolvição da instância.
IV - Consequentemente se não se fizer a prova dessa prévia revogação da decisão danosa, não será possível considerar verificada a ilicitude, o que determina, só por si, a improcedência dessa ação.
V - Apesar do seu caráter restritivo, a exigência estabelecida no citado nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12 não cerceia de forma arbitrária e desproporcionada o princípio da responsabilidade do Estado, não enfermando consequentemente de vício de inconstitucionalidade material por afronta aos princípios da segurança jurídica, da confiança jurídica e da unidade do sistema jurídico e do Estado de direito, da igualdade, da proporcionalidade e do acesso ao direito plasmados nos arts. 2º, 13º, 18º, 20º e 22º da Lei Fundamental.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 379/16.2T8PVZ.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Póvoa de Varzim – Juízo Central – 2ª Secção Cível, Juiz 3
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário

I- Entre nós vigora um “modelo do recurso de reponderação” em que o seu âmbito se encontra objetivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido, não podendo, assim, o tribunal ad quem conhecer de questão nova que não seja do conhecimento oficioso.
II- O erro de julgamento, enquanto fundamento da responsabilidade civil do Estado por atos da função judicial, deve ser demonstrado no próprio processo em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis, e não na ação de responsabilidade em que se pretenda efetivar o direito de indemnização ou em recurso extraordinário de revisão.
III – A “prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” a que se alude no nº 2 do artigo 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12 constitui uma verdadeira condição (de procedência) da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário e não um pressuposto processual negativo cuja inobservância conduza à absolvição da instância.
IV- Consequentemente se não se fizer a prova dessa prévia revogação da decisão danosa, não será possível considerar verificada a ilicitude, o que determina, só por si, a improcedência dessa ação.
V- Apesar do seu caráter restritivo, a exigência estabelecida no citado nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12 não cerceia de forma arbitrária e desproporcionada o princípio da responsabilidade do Estado, não enfermando consequentemente de vício de inconstitucionalidade material por afronta aos princípios da segurança jurídica, da confiança jurídica e da unidade do sistema jurídico e do Estado de direito, da igualdade, da proporcionalidade e do acesso ao direito plasmados nos arts. 2º, 13º, 18º, 20º e 22º da Lei Fundamental.
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

B..., C... e D... intentaram a presente ação declarativa com processo comum contra o Estado Português alegando, em síntese, que, em 28 de março de 1995, propuseram uma ação declarativa sob a forma de processo sumário (que, sob o nº 188/95, correu termos no extinto 2º Juízo Cível do Tribunal de Santo Tirso) contra E..., Companhia de Seguros, F..., SPA, G... e Fundo de Garantia Automóvel (e em que foram intervenientes Brisa – Auto-Estradas de Portugal, S.A., H..., S.A. (H1...), Companhia de Seguros I..., S.A. e J..., Companhia de Seguros, S.A.), na qual concluíram pela condenação dos demandados no pagamento da quantia de 29.408.050$00, vindo a ser proferida, em 11 de junho de 2009, sentença que julgou essa ação improcedente e, em consequência, absolveu os réus e os intervenientes do pedido formulado, ato decisório esse de que foi sucessivamente interposto recurso para o Tribunal da Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça, que o confirmaram.
Acrescentam que na referida ação, para além da demora na prolação das decisões, foram cometidos erros grosseiros pelos juízes que as proferiram (desde logo porque foram julgados provados factos impossíveis) e geradores de danos aos autores, indemnizáveis no âmbito da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.
Concluem pedindo a condenação do réu no pagamento de um montante a liquidar em execução de sentença, que nessa altura, corresponda à quantia de €146.686,73, segundo o critério do artigo 561º do CC.
O réu Estado Português apresentou contestação na qual, desde logo, se defendeu por exceção dilatória, invocando a incompetência absoluta da jurisdição comum para conhecer do pedido formulado pelos autores por demora na realização da justiça; excecionou ainda a prescrição do direito destes, posto que os factos que substanciam o pedido que aduziram são do seu conhecimento há mais de três anos, considerando a data em que o demandado foi citado para a presente ação.
Acrescenta ainda que a presente ação deverá improceder, já que, neste tipo de ação de indemnização contra o Estado, é seu pressuposto essencial que as decisões proferidas tenham sido objeto de recurso, reclamação ou pedido de reforma no âmbito do próprio processo em que foram proferidas e nessa sequência tenham as decisões danosas sido revogadas pela jurisdição competente, o que, todavia, não se verificou no caso vertente.
Os Autores responderam a esta matéria nos termos que resultam do requerimento de resposta de fls. 101 e seguintes, defendendo que ao caso se aplica o n.º 3 do art. 498º do Código Civil, pois “configurando-se, em concreto, um homicídio por negligência grosseira, o prazo de prescrição é de dez anos, conforme resulta do art. 137º, n.º 2, conjugado com o art. 118º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal”; ademais, defendem que se fosse necessário a prévia revogação da decisão danosa, a presente ação não teria razão de ser, pelo menos em parte, ao que acresce que a necessidade de interpor uma ação declarativa para declarar que o Supremo Tribunal de Justiça errou ou de propor um prévio recurso de revisão da sentença, nos termos dos artigos 696º e seguintes do CPC, cuja revogação seria pressuposto da ação de indemnização, se traduz em qualquer caso em hipóteses burocratizantes, dispendiosas e prolongariam desnecessariamente no tempo o que deve ser julgado de uma só vez.
Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual veio a ser proferido saneador/sentença no qual se declarou “este Tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido de indemnização formulado pelos Autores na parte em que se alicerçam na violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, absolvendo o Réu da instância, quanto a esse pedido”. De igual modo se decidiu “julgar procedente a exceção de prescrição invocada e ainda que assim não fosse, julgar a ação manifestamente improcedente pela não verificação do pressuposto a que alude o nº 2 do art. 13º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, absolvendo assim o Estado Português do pedido que contra si foi formulado pelos Autores”.
Não se conformando com o assim decidido veio a autora B... interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1.ª A sentença de que aqui se recorre, aferrada aos esquemas ou aspectos técnico-jurídicos e técnico-processuais, que mais que uma leitura das essências que dão corpo aos superiores princípios que dão consistência às ideias de direito e de justiça, que são princípios que expressam valores ético-jurídicos que a Constituição acolhe, espelha uma concepção própria do positivismo nominalista, em que este, nas palavras da lei tem o seu sentido e finalidade, relegando as coisas da vida e do convívio humano para posição secundária. Por isso deverá ser revogada. Posto isto:
2.ª Com base no facto dos Autores terem alegado que esperaram 19 anos por uma sentença judicial, facto que impediu o testemunho de uma pessoa que esteve no trágico evento, em que essa alegação teve em vista a demonstração da anormalidade do curso do processo cuja sentença é fundamento da presente acção, o Tribunal absolveu o Estado do pedido, quanto a este aspecto, por ser materialmente incompetente para conhecer de tal pedido. Todavia, os Autores não formularam qualquer pedido com base nesse facto, pelo que, nessa parte, a sentença deve ser revogada, porque violou o disposto nos art.ºs 552.º, n.º 1, e), 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, d) do C.P.C..
3.ª Em relação ao pedido que os Autores formularam, o Tribunal decidiu assim: “Pelo exposto decide o tribunal julgar desde já procedente a excepção de prescrição invocada e ainda que assim não fosse, julgar a acção manifestamente improcedente pela não verificação do pressuposto a que alude o n.º 2 do art.º 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, absolvendo assim o Estado Português do pedido contra si formulado pelos Autores B..., C... e D...”.
4.ª O esquema judicativo seguido pelo Tribunal é ilegal. A prescrição é uma excepção peremptória cuja verificação leva à absolvição do pedido, enquanto o requisito previsto no n.º 2 do referido art.º 13.º da Lei n.º 67/2007 (sem prejuízo do que adiante é alegado) é um pressuposto processual negativo, cuja verificação (caso seja normativamente válido) tem como consequência a absolvição da instância. Assim sendo as coisas, o Tribunal recorrido teria de se pronunciar primeiro sobre esse pressuposto, cuja falta levaria à absolvição da instância, já não podendo pronunciar-se sobre a prescrição. Com este modo de decidir o Tribunal violou o disposto nos art.ºs 577.º, 278.º, n.º 1, e) e 595.º, n.º 1, a) do C.P.C., pelo que a decisão deve ser revogada.
5.ª Ao contrário do que foi escrito na sentença recorrida o direito dos Autores não prescreveu, por várias razões. Na verdade, se esta acção tinha de ser precedida da revogação da sentença proferida na acção que é fundamento da presente, sempre importaria determinar como essa sentença deveria ser revogada (acção autónoma, recurso e que recurso), e dentro de que prazo. Faltando estes esclarecimentos, e faltando a enunciação dos factos que integrariam a matéria jurídica esclarecida, nunca o Tribunal podia declarar o direito prescrito.
6.ª A prescrição também não ocorreu por outras razões. Seja qual for o entendimento que se queira dar ao disposto no nº 2 do art.º 13.º referido, os efeitos do caso julgado da sentença que não reconheceu o direito dos Autores, em consequência de grave erro judiciário, não serão alterados. Essa sentença é que se tornou a causa (causa-título) do direito dos Autores contra Estado Português, resultando esse direito da conjugação do disposto nos art.ºs 2.º; 3.º, nº 1; 13.º; 202.º, nº1 e 22.º da Constituição, directamente aplicáveis por força do seu art.º 18.º, nº1.
7.ª O direito constituído nos termos da conclusão 6.ª resultou do incumprimento do Estado perante os Autores do seu dever de lhes fazer justiça, dever que ele violou gravemente. Esse incumprimento interrompeu o prazo prescricional e provocou a substituição dos sujeitos passivos originários pelo Estado Português. Por isso o prazo prescricional iniciou-se no dia seguinte ao do trânsito em julgado da sentença que causou o dano alegado na petição aos Autores, sendo o prazo da prescrição de 10 anos, por força do disposto nos art.ºs 137.º, nº2 e 118.º, nº1, b) do C.P. e no art.º 498.º, nº3 do C.C., porque a responsabilidade do Estado é a mesma da dos responsáveis originários.
8.ª Por violar as normas referidas nas conclusões 6.ª e 7.ª a sentença deve ser revogada.
9.ª A “segunda parte” do dispositivo também deve ser revogada, não só pelo que já foi alegado e concluído, mas também por lhe ter sido atribuído força para absolver o Estado do pedido, pois, quando muito, apenas poderia fundar uma absolvição da instância.
10.ª Sendo certo que, significando um pressuposto processual a previsão do nº 2 do art.º 13.º da Lei nº 67/2007, em termos práticos tal norma, objectivamente, só tem um sentido: armadilhar o exercício do direito dos que são lesados em consequência de graves erros judiciários. Na verdade, tal norma aparece com uma estrutura e sentido absolutamente inéditos no contexto do sistema jurídico português, quando põe como requisito de exercício desse direito a revogação da sentença anterior, cujos efeitos de caso julgado se mantém, sem esclarecer por que meio processual se processa essa revogação, e sem explicar a necessidade da acção da indemnização, quando o procedimento revogatório só tem sentido se for para demonstrar que houve erro.
11ª Por tal norma (e nada há no sistema que lhe dê qualquer arrimo ao suprimento do que ela não revela) não aponta o caminho da revogação que consagra. Não diz se é uma revogação no processo onde foi proferida a sentença a revogar; se é uma acção autónoma; se é um recurso extraordinário de revisão de sentença, que alargaria o número deste tipo de recurso.
12ª Seja qual for a intenção, que se desconhece, sempre estaremos perante a consagração do burocratismo elevado ao absurdo. Na verdade, se se entende, à luz de tão equívoca norma, que a sentença que, alegadamente, enferma de erro judiciário grave, deve ser revogada, em acção autónoma ou nos próprios autos, não terá sentido haver uma segunda acção, com base no disposto no nº1 do ajuizado art.º 13.º, a não ser para mero cálculo do dano, pois a causa desse dano resultaria da revogação. Se assim fosse, então essa própria acção deveria compreender, no seu pedido, a revogação da sentença anterior, a determinação do dano e seu valor, e a condenação em indemnização. A norma em causa não tem pois um sério sentido normativo.
13.ª Dessa norma também não resulta a consagração de um recurso extraordinário de revisão, pois o mesmo não está previsto na lei, que consagra o princípio da tipicidade (determina o número de tipos) e do “numerus clausus” (este no sentido em que determina os elementos de cada tipo). Ora, iria contra o génio do sistema acrescentar ao “catálogo” dos tipos de recurso extraordinário de revisão mais um tipo, divergente na finalidade (pois não revogaria os efeitos do caso julgado), sem indicação do prazo para ser interposto, e sem especificação de circunstâncias e efeitos.
14.ª O n.º 2 do art.º 13.º acaba assim por contradizer, ou anular, a intenção axiológico-normativa consagrada no n.º 1, cuja valência éticojurídica impõe que esse nº 2, por ab-rogação, seja considerado como norma não vigente, porque a contradição entre ambas é insanável.
15.ª O n.º 2 do art.º 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, é ainda inconstitucional, e como tal deverá ser declarada, pois como se procurou demonstrar nos parágrafos (ou pontos) 20 e 22 destas alegações, viola os princípios constitucionais consagrados na Constituição, nomeadamente os princípios da segurança jurídica, da confiança jurídica e da unidade do sistema jurídico e do Estado de direito consagrado no art.º 2.º da Constituição, viola também o princípio da igualdade jurídica consagrado no art.º 13.º e o da proporcionalidade consagrado no art.º 18.º, n.º 2, também ambos da Constituição e viola as disposições dos art.ºs 3.º, n.º 1, 20.º, n.º 1 e 4 e 202.º, n.º 1 e 2, na medida que dificulta o exercício do direito consignado no n.º 1 desse art.º 13.º. Por isso viola também o disposto no art.º 22.º da Constituição, que consagra o direito à indemnização por danos causados por erro judiciário grave como direito fundamental.
Todos os princípios e direitos constitucionais ora invocados aplicam-se directamente (art.º 18.º, n.º 1 da Constituição).
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O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. da nulidade da sentença por nela ter o tribunal de 1ª instância conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento;
. da ilegalidade da precedência do conhecimento da exceção perentória da prescrição do direito dos autores em relação ao pressuposto estabelecido no nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12;
. da ocorrência da prescrição do direito dos autores;
. da inconstitucionalidade material do nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12, por afrontar os princípios da igualdade e do acesso ao direito plasmados nos arts. 13º e 20º da Lei Fundamental.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

O Tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1 – Após “Participação de Acidente de Viação” elaborada pela GNR de Santo Tirso, que deu lugar ao Inquérito n.º 1456/89.6TASTS, o Ministério Público ordenou a realização de autópsia médico-legal ao cadáver de D..., foram tomadas declarações a G..., K..., L... e a 20.3.1990 foi lavrado despacho de arquivamento onde se concluiu que “… o acidente se terá ficado a dever à imprevidência da vítima que, circulando em auto-estrada não aberta ao tráfego, o fazia animado de velocidade excessiva e quando o tempo estava chuvoso”.
2 – No âmbito do mesmo inquérito, no dia 2.11.1990 foi entregue à viúva, aqui Autora, certidão integral do processo “para acção cível” e no dia 7.1.1992 a mesma senhora requereu a reabertura dos autos e a inquirição de M... e de N..., tendo ainda esclarecido através de requerimento de 27.1.1992 que não tinha intentado acção cível.
3 – O inquérito seguiu os seus termos e a 11.11.1992 o representante legal de F..., SPA, SUCURSAL indicou ainda as testemunhas K... e O..., que foram ouvidas, tendo a última referido que manobrava uma máquina a cerca de um quilómetro e só quando chegou ao local onde ocorreu o acidente é que teve conhecimento do mesmo.
4 – Por despacho de 19.3.1993, o inquérito foi de novo arquivado e a 11.10.1993 foi requerida nova certidão a fim de ser intentada uma acção de responsabilidade civil.
5 – A acção cível (n.º 243/1993) foi intentada a 11.10.1993 pela Autora e filhos contra os Réus G..., F... e E..., mas o tribunal absolveu os Réus da instância.
6 – No dia 28.3.1995, os ora Autores B..., C... e D... instauraram contra E..., Companhia de Seguros, F..., SPA, sociedade comercial, G... e FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL (FGA), acção declarativa sob a forma sumária, pedindo que estes fossem solidariamente condenados a pagar aos demandantes a quantia de Esc. 29.408.050,00, os juros vencidos no montante de Esc. 6.090.000,00 e os juros vincendos a calcular a final, ou, se assim não se entendesse, a condenação dos Réus F..., G... e FGA a pagar as referidas quantias, mas condenando-se o FGA a pagar juros apenas a partir da citação.
7 – Para o efeito alegaram os ali Autores que são viúva e filhos de P..., falecido em 14.11.1989; nesse dia 14.11.1989, o P..., na «auto-estrada» A3 e na faixa de rodagem do lado direito, atento o sentido Porto/Braga, encontrava-se ao volante de um veículo ligeiro Toyota ... que pertencia à sociedade comercial Q..., Lda., numa zona onde a faixa de rodagem se subdivide em três zonas de circulação, seguindo na mais próxima à valeta; em sentido contrário e a circular na mesma faixa de rodagem, conduzido pelo réu G..., seguia uma máquina Caterpillar, pertencente à ré F..., máquina essa de grande porte e equipada com balde para carregar camiões, sendo aquele réu G... empregado da ré F...; o réu G... encontrava-se na autoestrada a fazer serviços por conta, no interesse e por ordem da ré F...; a cerca de 12 metros do local onde o embate ocorreu, local onde existe uma inclinação não inferior a 5%, o caterpillar «começou a deslizar para a sua esquerda», o que determinou o P... a travar e a imobilizar imediatamente o ligeiro, ocupando a berma e valeta do seu lado direito; ao deslizar, o caterpillar percorreu os aludidos 12 metros em sentido oblíquo, ou seja, da sua direita para a sua esquerda, e, já com o ligeiro imobilizado, passou por cima do ligeiro, assim causando a morte ao P...; o acidente deveu-se à gravíssima negligência tanto do condutor do caterpillar como da sua dona; o réu G..., por não ter muita experiência a conduzir tal máquina; o seu condutor habitual recusara-se a operar com ela, por não a considerar em boas condições operacionais; a ré F... por ter ordenado ao réu G... que conduzisse a máquina; após o acidente, verificou-se que a máquina tinha os travões em estado péssimo e que não tinha qualquer mudança de velocidades engrenada; tendo em atenção o declive, a máquina era ingovernável; a morte decorreu só cerca de 30 minutos depois do acidente, com sofrimento para a vítima que justifica uma indemnização de 3.000,000 Esc., verba que inclui a perda do direito à vida; os próprios autores padeceram sofrimento com a morte do marido e pai, que deve ser ressarcido com a verba individual de 1.000.000 Esc.; a privação para os autores do rendimento do trabalho do falecido justifica a indemnização de 23.000.000 Esc., tendo ainda sido gasta a verba de 408.050 Esc. com o funeral da vítima; a responsabilidade pela indemnização de tais danos é da ré F... e do réu G...; a ré E... responde igualmente pelo facto de a ré F... para ela ter transferido a responsabilidade civil por danos causados por aquela máquina, ao abrigo de contrato de seguro; os autores já tinham instaurado outra acção (n.º 243/1993) contra os réus G..., F... e E..., mas o tribunal absolveu tais réus da instância por ter entendido que o contrato de seguro não abrangia o sinistro em causa, pelo que, por economia e cautela, os autores agora também processam o FGA, já que era obrigatório que um contrato de seguro garantisse aqueles danos causados pelo caterpillar.
8 - A acção referida em 6, com o número 188/95, deu lugar ao processo n.º 226/1999, que seguiu sob a forma ordinária.
9 – Depois das contestações apresentadas, no dia 13.10.1995, G..., SPA requereu o chamamento à autoria de BRISA – AUTO ESTRADAS DE PORTUGAL, SA, H..., SA (H1...), COMPANHIA DE SEGUROS I..., SA e J... – Companhia de Seguros, SA.
10 – Foram deferidos os pedidos de apoio judiciário requeridos pela Autora B... e do Réu G... e indeferido o pedido de apoio judiciário da Ré F..., SA, que interpôs recurso de agravo a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo para o Tribunal da Relação do Porto a 26.04.1996.
11 – Por decisão de 17.11.1996, o Tribunal da Relação do Porto alterou o modo de subida do recurso para “em separado”, pelo que o processo baixou para cumprimento da alteração determinada.
12 – Por despacho de 18.3.1997 foi admitido o chamamento à autoria requerido por F..., SPA, o que fez com que fossem apresentadas novas contestações e resposta às excepções deduzidas.
13 – Por despacho de 12.01.1998, o Mmº Juiz decidiu que o Tribunal era competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia e julgou procedente a arguida nulidade principal de erro na forma de processo e, em consequência, determinou que a acção passasse a seguir a forma de processo ordinário e que os autos fossem oportunamente remetidos ao Tribunal de Círculo de Santo Tirso.
14 – Deste despacho interpôs recurso de agravo, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo, o Réu G..., defendendo que se tratava de acidente de viação e pedindo que se julgasse improcedente o invocado erro na forma do processo.
15 – A 19.10.1998, a Demandante B... interpôs recurso da decisão do Mmº Juiz de Círculo que conheceu das invocadas excepções, recurso esse de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
16 – A 19.11.1998, a chamada J... – COMPANHIA DE SEGUROS, SA também interpôs recurso de agravo, nos próprios autos e com efeito suspensivo, mas não alegou.
17 – As alegações da Demandante B... entraram em juízo a 14.12.1998, as outras partes contra-alegaram, tendo os autos sido remetidos ao Tribunal da Relação do Porto a 8.3.1999.
18 – A 26.09.2001 foi publicado Acórdão a confirmar a decisão de qualificação da acção a tramitar com processo ordinário, devendo os autos prosseguir com a consequente anulação de todo o processado posterior, sob pena de detrimento e perda de eventuais garantias processuais das partes, ordenando o prosseguimento dos autos como acção declarativa de condenação com processo ordinário, ficando no demais igualmente prejudicado todo o processado, salvo se porventura as partes, expressamente notificadas para esse efeito se pronunciarem de idêntico modo no sentido do seu aproveitamento de acordo com o disposto no art. 265º-A, até ao momento em que foi proferido o despacho de fls. 554 a 556 inclusive.
19 – A 9.11.2001 foi ordenada a notificação do acórdão e a notificação das partes em conformidade com o disposto no art. 265ºA do CPC, mas quedaram-se inertes.
20 – Não tendo as partes declarado unanimemente que pretendiam a manutenção dos actos posteriores à petição inicial, em consonância com o decidido no mencionado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto e, considerando todo o restante processado anulado, foi determinada a citação dos Réus identificados na PI para a acção.
21 – Entretanto, os dois autores C... e D... atingiram a maioridade e foi necessário regularizar o processado.
22 – Por despacho de 3.11.2006 foi determinada a junção de documentos, nomeadamente apólices de seguro e a notificação da autora para juntar cópias certificadas do inquérito penal pois que, pese embora tenha sido arquivado, poderia entender-se que, não havendo crime, o prazo de três anos ficou suspenso ou interrompido.
23 – A 19.01.2007, os Autores foram aos autos requerer “Incidente de intervenção provocada das requeridas BRISA – Auto-estradas de Portugal, H...., SA, Companhia de Seguros I..., EP, J... – Companhia de Seguros, SA.
24 – Por despacho de 26.3.2008 (após as 17 h, com gr. ac. serv.; gr. complexid.proc) foi lavrado o despacho saneador, tendo, além do mais, o Mmº Juiz ordenado a notificação da Autora para prestar esclarecimentos quanto à eventual pendência de acção no Tribunal de Trabalho e clarificar como chegou ao valor peticionado de Esc. 23.000.000$00.
25 – A 14.4.2008, os Autores foram aos autos pedir a prorrogação do prazo para o efeito.
26 – A 15.4.2008, os Autores indicaram os meios de prova mas não incluíram a pretensa testemunha O..., nem no aditamento de 18.6.2008.
27 – Os demais intervenientes indicaram os seus meios de prova.
28 – A 30.4.2008, a Mmª Juiz ordenou a notificação do Ministério Público, em representação da ausente F..., SPA e do Sr. Liquidatário Judicial em representação de H..., SA.
29 – Por despacho de 6.6.2008, a Mmª Juiz pronunciou-se sobre os meios de prova, admitiu o recurso interposto por E... – Companhia de Seguros, SPA e cominou as Rés seguradoras com a condenação em multa pela falta de colaboração com o Tribunal caso não fizessem juntar aos autos parte da apólice em falta.
30 – A 3.10.2008 foi designado o dia 23.1.2009 para julgamento.
31 – No dia referido em 30 deu-se início à audiência de discussão e julgamento, presidida pelo Mmº Juiz Dr. S..., com a presença do Magistrado do MP Dr. T... e do Escrivão Auxiliar U....
32 - Na aludida audiência, as partes e intervenientes estiveram assim representadas: - Autores B..., C... e D..., tendo como mandatário o Dr. V...; - Ré Companhia de Seguros E..., SPA, tendo como mandatário o Dr. W...; - Ré F..., SPA, representada pelo Ministério Público;- Réu G..., tendo como mandatário o Dr. X...; - Réu Fundo de Garantia Automóvel, tendo como mandatário o Dr. Y...; - Interveniente Principal Centro Nacional de Pensões, tendo como mandatário o Dr. Z...; - Interveniente Principal BRISA – Auto Estradas de Portugal, SA, tendo como mandatária a Dra. AB...; - Interveniente Principal Companhia de Seguros I..., SA, tendo como mandatário o Dr. AC...; - Interveniente Principal J... – Companhia de Seguros, SA, tendo como mandatário o Dr. AD...; - Interveniente Principal H..., SA, representada pelo Liquidatário Judicial Dr. AE....
33 – A inquirição da testemunha O... foi requerida na referida audiência de julgamento, pela Ré E....
34 – Foram juntos aos autos fotografias e documentos relativos às características da máquina Caterpillar interveniente no acidente.
35 - O julgamento continuou nos dias 6 e 26 de Fevereiro de 2009 e, entre outras testemunhas não apresentadas ou prescindidas pelas partes, não foi possível ouvir a testemunha O..., que não compareceu, apesar de convocada duas vezes, pelo tribunal, através de carta registada.
36 – Foi designado o dia 3 de Abril de 2009 para a leitura da resposta aos quesitos e com data de 11.6.2009 foi lavrada sentença, a qual terminou com o seguinte dispositivo: “Em face do exposto, julgo os pedidos dos autores totalmente improcedentes e deles absolvo os réus E..., F..., G... e Fundo de Garantia Automóvel, bem como absolvo as chamadas Brisa, H..., Companhia de Seguros I... e J....
Julgo igualmente os pedidos do Centro Nacional de Pensões e do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo totalmente improcedentes e deles absolvo os réus E..., F..., G... e Fundo de Garantia Automóvel, bem como absolvo as chamadas Brisa, H..., Companhia de Seguros I... e J....
Os autores pagarão as custas correspondentes aos seus pedidos.
Os sucessores legais do Centro Nacional de Pensões e do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo estão isentos de custas em virtude de a acção ter sido intentada em 28.3.1995”.
37 – Os Autores interpuseram recurso da sentença referida em 36.
38 – Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 9.06.2010, foi acordado “Não ocorre nenhum dos fundamentos de alteração da decisão da matéria de facto pelo Tribunal da Relação previstos no citado art. 712º, n.º 1” e “Mantendo-se a matéria de facto que foi considerada provada pelo Tribunal recorrido e não questionando os Autores a conclusão de direito que se extraiu daquela matéria no sentido da atribuição da culpa exclusiva na produção do acidente ao marido e pai dos autores (art. 570º do CC), a apelação terá de ser julgada improcedente, confirmando-se a sentença recorrida”, seguindo-se o seguinte dispositivo: “A) Julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar-se a sentença recorrida; B) Não apreciar os recursos de agravo.”
39 – A Autora B... interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, ao que se seguiram as contra-alegações e a remessa dos autos ao Supremo, a 7.12.2010.
40 - Por acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 16 de Março de 2011, foi negada a revista e confirmado o acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
41 – O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça transitou em julgado a 4.4.2011.
42 – O processo baixou do Supremo Tribunal de Justiça a 19.4.2011, foram elaboradas as contas e os vistos finais (de fiscalização e em correição) são de 3.11.2011.
43 – Os Autores não apresentaram qualquer reclamação para o Conselho Superior da Magistratura.
44 – Os Autores não intentaram no Tribunal do Trabalho qualquer acção por acidente de trabalho ou procedimento cautelar que prevenisse a demora do processo atentos os intervenientes e a inerente complexidade.
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IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1 – Da nulidade da sentença por ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento

Nas suas alegações recursórias a apelante advoga, desde logo, que o ato decisório sob censura enferma de vício de nulidade, que reconduz à previsão da alínea d) do nº 1 do art. 615º do Cód. Processo Civil (CPC), porquanto o tribunal de 1ª instância considerou ser materialmente incompetente para conhecer do pedido na parte em que se funda na não prolação de decisão judicial em prazo razoável, quando, na verdade, os demandantes não formularam qualquer pedido com base nesse facto.
O citado preceito legal prevê, com efeito, a nulidade da sentença quando o juiz não se pronuncia sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões que não podia tomar conhecimento.
A referida consequência anulatória encontra-se, assim, especialmente conexionada com o disposto no nº 2 do art. 608º do CPC, posto que é neste normativo que se mostram definidas quais as questões que o tribunal deve apreciar e quais aquelas cujo conhecimento lhe está vedado. Aí se postula expressamente que, na sentença, o juiz “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Portanto, a assinalada nulidade visa, pelo menos em parte, sancionar a inobservância, por banda do Tribunal do princípio do dispositivo, na vertente em que este limita o conhecimento do juiz às questões que foram suscitadas pelas partes, impondo, por via de regra, que o tribunal conheça das questões suscitadas pelas partes e apenas conheça dessas mesmas questões.
A respeito do conceito questões que devesse apreciar, ANSELMO DE CASTRO[1] advoga que tal expressão deve «ser entendida em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”.
LEBRE DE FREITAS et alii[2] têm a respeito de tal matéria uma visão algo distinta, pois consideram que devendo “o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado”.
Ainda sobre esta temática mostra plena atualidade a lição de ALBERTO DOS REIS[3] para quem resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”.
Na esteira de tal perspetiva das coisas e atendendo ao regime processual vigente, afigura-se-nos ser esta a interpretação que melhor reflete a natureza da atividade do juiz na apreciação e decisão do mérito das questões que lhe são colocadas, pois o juiz não se encontra vinculado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas.
No caso vertente, procedendo à exegese da petição inicial apresentada no âmbito do presente processo, dela resulta que os autores – ao invés do que a ora apelante argumenta em sede recursória - fizeram ancorar a concreta pretensão de tutela jurisdicional que aí aduzem não só na ocorrência de erro judiciário, como também na circunstância de a decisão que consideram ser lesiva do direito a que se arrogam não ter sido prolatada em tempo útil (cfr., v.g., arts. 17º, 18º e 20º do articulado inicial, sendo que neste último expressamente alegam que «O Estado Português também não pode deixar de ser responsabilizado por só quase ao fim de 2 décadas julgar um facto de tão magna gravidade, que atingiu diversos direitos fundamentais da vítima e dos seus familiares, os aqui Dtes»).
Consequentemente, ao declarar (tendo por base o regime jurídico vertido no art. 12º da Lei nº 67/2007, de 31.12) que o tribunal não seria dotado de competência ratione materiae para o conhecimento do pedido que se ancorava na aludida materialidade[4], o tribunal recorrido limitou-se a conhecer (como, aliás, lhe é imposto pela lei adjetiva – cfr. arts. 577º al. a), 578º e 595º, nº 1 al. a) in fine do CPC) de um pressuposto processual cuja afirmação se revelaria necessária para que a lide pudesse prosseguir para apreciação da referida pretensão de tutela tendo igualmente por causa petendi o invocado substrato factual, sendo certo que, conforme tem sido recorrentemente afirmado, esse pressuposto afere-se pela forma como o autor configura os elementos objetivos da instância, isto é, não só face ao pedido formulado como também atendendo à concreta causa de pedir invocada como seu fundamento.
Não ocorre, assim, o apontado vício formal, porquanto o juiz de 1ª instância não decidiu questão cujo conhecimento lhe estivesse proscrito.
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IV.2 – Da invocada ilegalidade cometida na decisão recorrida por ter primeiramente conhecido a exceção perentória da prescrição do direito dos autores antes de conhecer as implicações resultantes da (eventual) não verificação do requisito estabelecido no nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12

Como se viu, no dispositivo da sentença recorrida ficou consignado que “[P]elo exposto decide o tribunal julgar desde já procedente a exceção de prescrição invocada e ainda que assim não fosse, julgar a ação manifestamente improcedente pela não verificação do pressuposto a que alude o n.º 2 do art.º 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, absolvendo assim o Estado Português do pedido contra si formulado pelos Autores B..., C... e D...”.
A apelante rebela-se contra a ordem de conhecimento seguida no ato decisório sob censura, por considerar que “o tribunal recorrido teria de se pronunciar primeiro sobre [o pressuposto processual negativo estabelecido no nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12], cuja falta levaria à absolvição da instância, já não podendo pronunciar-se sobre a prescrição (…) que é uma exceção perentória cuja verificação leva à absolvição do pedido”.
Quid juris?
Dispõe o citado preceito legal que “o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.
A questão que é trazida à apreciação deste tribunal de recurso prende-se, portanto, em dilucidar se “a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” assume natureza de um pressuposto processual negativo (como defende a apelante) ou antes natureza de condição substantiva da ação.
Como é consabido, na processualística vem-se estabelecendo um distinguo entre pressupostos processuais e condições da ação.
Assim, os pressupostos processuais são aquelas exigências legais sem cujo atendimento o processo, como relação jurídica, não se estabelece ou não se desenvolve validamente. São, em suma, requisitos jurídicos para a validade da relação processual.
Por seu turno, as condições da ação são requisitos a observar, depois de estabelecida regularmente a relação processual, para que o juiz possa solucionar a lide (mérito). São, pois, requisitos da sua eficácia.
Os pressupostos processuais são, assim, dados reclamados para análise de viabilidade do exercício do direito de ação sob o ponto de vista estritamente processual, enquanto as condições da ação importam o cotejo do direito de ação concretamente exercido com a viabilidade abstrata da pretensão de direito material. Dito de outro modo, os pressupostos processuais põem a ação em contacto com o direito processual, e as condições de ação põem-na em relação com as regras do direito material.
Ora, conforme vem sendo entendido[5], o legislador ordinário estatuiu no segmento normativo transcrito uma verdadeira condição (de procedência) da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário e não, como preconiza a apelante, um pressuposto processual negativo cuja inobservância conduz à absolvição da instância.
Na esteira desta leitura do regime legal resulta, pois, claro que estando-se em presença de exceções perentórias de direito material não existia qualquer precedência lógica no seu conhecimento por parte do tribunal de 1ª instância, nada obstaculizando à luz da lei adjetiva (cfr. art. 608º, nº 2, 1ª parte do CPC) que esse órgão jurisdicional decretasse a improcedência do pedido formulado pelos autores tendo por base, concomitantemente, a verificação da exceção perentória da prescrição e bem assim a não observância da mencionada condição da ação.
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IV.3 – Da prescrição do direito dos autores

Na decisão recorrida o tribunal de 1ª instância julgou procedente a invocada exceção da prescrição do direito de indemnização que os autores pretendiam fazer valer na presente demanda, por considerar que na data da sua propositura já se havia consumado o prazo trienal estabelecido no nº 1 do art. 498º do Cód. Civil.
Em justificação do sentido decisório assim sufragado, aí se escreveu que «[n]o caso dos autos, temos que os Autores propuseram a presente ação em 18.3.2016 e o Réu Estado foi citado em 29.3.2016, ou seja, já depois de decorridos os 5 dias a que se reporta o nº 2 do art. 323º do Código Civil, pelo que se deve atender a este prazo de cinco dias – e que terminou em 23.3.2016 – para considerar, então, interrompida a prescrição.
Sucede que quando a acção foi proposta, já haviam decorrido mais de três anos sobre a data em que os Autores tiveram conhecimento do direito que lhes competia, ainda que desconhecessem a pessoa do responsável e/ou a extensão integral dos danos.
Efectivamente, na melhor das hipóteses, os Autores viram transitar em julgado o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça na acção referida supra em 4.4.2011 (última decisão proferida, em sede recursiva) e apenas instauraram a presente acção em 18.3.2016, ou seja, quase cinco anos depois, razão pela qual, ainda que atendendo ao disposto no art. 323º, n.º 2 do Código Civil, sempre se teria de considerar que, à data da interposição desta acção, haviam decorrido mais de três anos, encontrando-se assim prescrito o direito dos Autores.
Discorda-se, ainda, do entendimento dos Autores, quando entendem que o prazo de prescrição aplicável aos autos é de dez anos, uma vez que “configurando-se, em concreto, um homicídio por negligência grosseira, o prazo de prescrição é de dez anos, conforme resulta do art. 137º, n.º 2, conjugado com o art. 118º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal”.
Efectivamente, o prazo acrescido indicado pelos Autores (de dez anos), nos termos previstos no art. 498º, n.º 3 do Código Civil, não é aplicável à presente situação, que não se baseia em facto ilícito constitutivo de um crime de homicídio por negligência; tal prazo teria aplicação na acção civil fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos proposta contra os alegados responsáveis pelo acidente que vitimou o marido e pai dos Autores (as acções supra referidas em 5 e 6 e seguintes). A presente acção reporta-se à alegada responsabilidade civil por erro judiciário e inexistência de decisão em prazo razoável, sendo que estes fundamentos são conhecidos dos Autores desde, pelo menos, 4.4.2011 e não integram o alegado crime de homicídio por negligência.
Assim sendo, quando a presente acção foi proposta, encontrava-se prescrito o direito dos Autores».
A ora apelante insurge-se contra o referido segmento decisório, advogando, desde logo - e uma vez mais -, que é de dez anos o prazo para a ocorrência da prescrição, por aplicação do preceituado no nº 3 do art. 498º do Cód. Civil.
Argumenta ainda que a prescrição não ocorreu porque “o Estado, por incumbência popular, outorgada por via constitucional, assumiu o dever de assegurar à recorrente – e seus filhos – a satisfação do seu direito ao reconhecimento de que o seu marido foi vítima de uma negligência grosseira e do seu direito a uma indemnização monetária adequada”, pelo que “como o Estado não cumpriu o seu dever, esse incumprimento interrompeu o prazo prescrional”.
Por último preconiza que a prescrição não ocorreu, já que “se o tribunal entende que a ação de indemnização em causa só pode ser intentada a partir do trânsito em julgado da decisão revogatória da sentença que é elemento constituinte do direito à indemnização, sempre será contraditório declarar prescrito um direito sem se ter verificado o facto a partir do qual se inicia o prazo prescricional”, sendo certo que quando a presente ação “foi intentada ainda estava em tempo o recurso extraordinário de revisão (…) cujo prazo é de 5 anos”.
Começando pelo primeiro dos referidos argumentos, como deflui com meridiana clareza da exegese do nº 3 do art. 498º do Cód. Civil, a extensão (excecional) do prazo prescricional aí contemplada apenas tem aplicação no confronto processual do lesado com o lesante autor de facto ilícito que constitua “crime para o qual a lei [penal] estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo”, o que não é o caso do réu. Consequentemente a autora não pode convocar a sua aplicação por inverificação da respetiva previsão normativa.
No concernente à invocada causa interruptiva da prescrição trata-se de questão que não foi alvo de oportuna alegação no momento processualmente próprio (isto é, no articulado de que os autores dispuseram para se pronunciarem sobre a matéria excetiva que o réu invocara no seu articulado de defesa) e consequentemente sobre ela não recaiu qualquer pronunciamento jurisdicional.
Ora, como é sabido, o recurso consiste no pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer. O recurso ordinário (que nos importa analisar para a situação presente) não é uma nova instância, mas uma mera fase (eventualmente) daquela em que a decisão foi proferida.
O recurso é uma mera fase do mesmo processo e reporta-se à mesma relação jurídica processual ou instância[6]. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência[7] repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.
O tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida.
Podemos concluir que os recursos destinam-se em regra a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, apenas se excetuando: o caso da verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC); a existência de questão de conhecimento oficioso; a alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes (artigo 272º do CPC); e a mera qualificação jurídica diversa da factualidade articulada.
Assim sendo, o novo argumento que a apelante veio introduzir nas conclusões do recurso - no sentido de ter ocorrido causa interruptiva da prescrição - não pode ser considerado, dado que não foi tempestivamente alegado, nem a sentença se pronunciou sobre o mesmo, não se integrando outrossim em qualquer das apontadas exceções.
Idênticas considerações são válidas no que tange ao último argumento apresentado (posto que nada foi alegado nesse sentido na peça processual em que os demandantes o poderiam validamente fazer), sendo de registar, de qualquer modo, que, ao invés do que a ora apelante refere, na decisão recorrida não se afirmou que a presente ação “teria de ser precedida de uma ação de revogação da sentença que praticou o erro grosseiro de apreciação dos pressupostos de facto do caso”, antes se considerando (invocando doutrina e jurisprudência em abono desse posicionamento) que “o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que aí forem admissíveis, não na ação de responsabilização em que se pretenda efetivar o direito de indemnização (…)”.
Improcedem, assim, as conclusões 5ª a 8ª.
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IV.4 – Da (alegada) contradição insanável entre o nº 1 e o nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12 a justificar, por ab-rogação, que o nº 2 seja considerado como norma não vigente

Como é consabido, a questão que é colocada neste ponto das alegações recursórias tem sido, entre nós, objeto de longa e intensa controvérsia no sentido de se encontrar um sistema operativo que permita a densificação e articulação dos diversos pressupostos materiais da responsabilidade por erro judiciário prevista no art. 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12.
De acordo com o nº 1 desse normativo (no qual expressamente se ressalvam os casos de condenação penal injusta e de privação ilegal da liberdade, que se encontram sujeitos a um regime especial) a responsabilidade civil (extracontratual) nele prevista é limitada às situações de erro grave do ponto de vista da perceção do direito ou dos factos exigível ao decisor jurisdicional, já que somente poderá caber nos casos em que tal perceção contrarie, de modo manifesto, o sentido normativo da Constituição ou da lei, ou se traduza numa análise grosseiramente errada dos factos.
O erro judiciário pode, assim, consistir num erro de direito ou num erro de facto.
O erro de direito, como refere CARLOS CADILHA[8], “deverá revestir-se de um suficiente grau de intensidade, no sentido de que deverá resultar de uma decisão que, de modo evidente, seja contrária à Constituição ou à lei, e por isso desconforme ao direito, e que não possa aceitar-se como uma das soluções plausíveis da questão de direito. Deverá tratar-se, nestes termos, de uma decisão proferida contra lei expressa e que, em si, represente um comportamento antijurídico suscetível de gerar, nos termos gerais, um dever de indemnizar”.
Pode consistir num erro de qualificação, de subsunção ou de estatuição jurídicas ou ainda na aplicação de uma norma que devesse ser tida como inconstitucional; mas, como sublinha o mesmo autor, “não se basta com a mera constatação, em sede de recurso, por um tribunal superior, de uma errada interpretação e aplicação do direito, tornando-se ainda exigível que se trate de um erro evidente que, por ser evitável segundo a normalidade das coisas, tenha desnecessariamente gerado prejuízos a uma das partes”.
Já o erro na apreciação dos pressupostos de facto releva se for um erro grosseiro, circunscrevendo-se, como tem sido entendimento da jurisprudência pátria[9], aos casos em que houve um clamoroso erro de avaliação dos meios de prova, erro esse que tanto poderá respeitar a um erro na apreciação das provas, isto é, um erro sobre a admissibilidade e valoração dos meios de provas, como a um erro sobre a fixação dos factos materiais da causa.
Para além dos enunciados pressupostos materiais, o citado normativo, no seu nº 2, exige, como se notou, que o pedido de indemnização se funde na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Trata-se de uma opção do legislador ordinário derivada da necessidade de compatibilizar o instituto da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado.
Assim, ao invés da argumentação expendida pela apelante, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na ação de responsabilidade em que se pretenda efetivar o direito de indemnização ou em recurso extraordinário de revisão.
Isso mesmo é posto em evidência por CARDOSO DA COSTA[10], quando enfatiza não poder “atribuir-se qualquer relevo a um alegado erro judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto”.
Por isso, acrescenta o mesmo autor, a revogação da decisão danosa há-de constar de uma decisão definitiva, isto é transitada em julgado, e é aí que terá de ser reconhecido o pressuposto substantivo da responsabilidade – “o carácter manifesto do erro de direito ou o carácter grosseiro do erro na apreciação dos factos”. Por outro lado, a revogação deve emanar de um tribunal superior em via de recurso ou do próprio tribunal que proferiu a decisão questionada, quando tal seja admissível (através de reclamação ou pedido de reforma – cfr. art. 616º do CPC).
Igual visão das coisas tem sido acolhida na casuística, mormente do STJ[11] e do Tribunal Constitucional[12], que tem defendido constituir evidente ilogismo institucional que uma decisão jurisdicional consolidada, por não ter sido impugnada, pudesse vir a ser posteriormente “desautorizada” por outro tribunal, porventura de diferente espécie ou da mesma espécie mas de grau inferior.
Consequentemente, na esteira desse posicionamento, se não se fizer a prova (como foi o caso), no processo destinado a efetivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que, como bem sentenciou a decisão recorrida, a presente ação teria necessariamente de improceder.
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IV.5 – Da inconstitucionalidade do art. 13º, nº 2 da Lei nº 67/2007, de 31.12

Uma última questão que a apelante submete à apreciação deste tribunal de recurso prende-se com a invocada inconstitucionalidade material da solução legal plasmada no nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007, por afrontar os “princípios da segurança jurídica, da confiança jurídica e da unidade do sistema jurídico e do Estado de direito consagrado no art. 2º da Constituição, viola também o princípio da igualdade jurídica consagrado no art. 13º e o da proporcionalidade consagrado no art. 18º, nº 2, também ambos da Constituição, e viola as disposições dos arts. 3º, nº 1, 20º, nºs 1 e 4 e 202º, nºs 1 e 2, na medida em que dificulta o exercício do direito consignado no nº 1 desse art. 13º (…), violando também o disposto no art. 22º da Constituição, que consagra o direito à indemnização por danos causados por erro judiciário grave como direito fundamental”.
A questão da conformidade constitucional da aludida dimensão normativa já foi alvo de apreciação pelo Tribunal Constitucional, mormente no citado acórdão n.º 363/2015, que decidiu “[N]ão julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.
Sintetizando a argumentação expendida no citado aresto, aí se afirma, em moldes que merecem a nossa concordância, que:
. o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração, mas o mesmo artigo 22.º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito;
. reconhece-se uma larga margem de conformação ao legislador ordinário, quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado, cabendo-lhe densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar, não podendo, porém, restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artigo 22.º da Lei Fundamental;
. sabendo que a efetivação da responsabilidade por erro judiciário implica o reexercício da função jurisdicional relativamente à mesma questão de direito ou de facto, constituirá sempre condição necessária da procedência de uma eventual ação de indemnização, a verificação de que a pretensa decisão danosa incorreu num erro de direito ou de facto, verificação essa que obriga a uma nova apreciação da questão de direito ou de facto;
. o instrumento para superar e corrigir a incorreção de decisões judiciais, tem de ser o recurso (e reclamação);
. é na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respetivo exercício se encontra estruturado – o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais – que se pode encontrar justificação para uma limitação como a estatuída no n.º 2 do artigo 13.º da Lei 67/2007;
. o que está em causa é a racionalidade sistémica e a coerência institucional: uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira; menos ainda se poderá admitir que a decisão judicial definitiva sobre uma determinada questão adotada por um tribunal superior possa vir a ser desconsiderada pela decisão de um tribunal hierarquicamente inferior;
. a segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores, inerente à estrutura hierarquizada do sistema judiciário, constituem bens constitucionalmente reconhecidos.
Tendo em conta as enunciadas ideias-força, resulta assim claro que a solução legal que se mostra vertida em letra de forma no citado nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007 “limita-se a estabelecer que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação. Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2 do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente pré-definido”.
Pelo que, também quanto a esta questão da constitucionalidade, terá que ser julgada improcedente a apelação em análise e, em conclusão, confirmada a decisão recorrida.
***
IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 16.10.2017
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade (tem voto de conformidade, não assina por não estar presente)
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[1] In Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 142.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 704.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 143. No mesmo sentido militam ainda ANTUNES VARELA et alii, Manual de Processo Civil, pág. 688.
[4] Segmento decisório esse que, neste conspecto, se mostra consonante com o entendimento que adrede vem sendo firmado pela jurisprudência pátria, que tem decidido que nos casos de pedido indemnizatório fundado na violação do direito a uma decisão em prazo razoável, a competência é, sempre, dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, à luz do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.02 – cfr., por todos, acórdão do Tribunal de Conflitos de 21.03.2006 (processo nº 0340) e acórdão da Relação de Lisboa de 13.09.2012 (processo nº 299/10.4TBLNH.L1-2), acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., por todos, na doutrina, FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas Anotado, pág. 276 e LUÍS FÁBRICA, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas, pág. 357; na jurisprudência, inter alia, acórdãos do STJ de 24.02.2015 (processo nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1) e de 10.05.2016 (processo nº 136/14.0TBNZR.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Sobre a questão, por todos, RUI PINTO, O recurso civil – uma teoria geral, págs. 69 e seguintes, onde sublinha que os nossos recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas, vigorando um “modelo do recurso de reponderação” em que o âmbito do recurso se encontra objetivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido.
[7] Cfr., inter alia, acórdão do STJ de 15.09.2010 (processo nº 322/05.4TAEVR.E1.S1), acórdão desta Relação de 20.10.2005 (processo nº 0534077) e acórdão da Relação de Lisboa de 14.05.2009 (processo nº 795/05.1TBALM.L1-6), acessíveis em www.dgsi.pt.
[8] Ob. citada, págs. 211 e 214.
[9] Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 24.02.2015 (processo nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1) e de 10.05.2016 (processo nº 136/14.0TBNZR.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por atos da função judicial, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 138º, pág. 163.
[11] Cfr., inter alia, acórdãos do STJ de 24.02.2015 (processo nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1) e de 10.05.2016 (processo nº 136/14.0TBNZR.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[12] Cfr., neste sentido, acórdão n.º 363/2015, publicado no DR 2.ª Série, n.º 186, de 23.09.2015.