Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
809/10.7TBLMG.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
FACTOS CONCLUSIVOS
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÕES LEGAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ERRO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / FUNDAMENTOS DO RECURSO DE REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
Doutrina:
- Isabel Pereira Mendes, “Código de Registo Predial” Anotado e Comentado, Almedina, 12.ª ed., 101.
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, 312.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º 4, 674.º, N.º 3, 682.º, N.ºS 1 E 2, 683.º, N.º 1.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRGP): - ARTIGO 7.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 19.09.2017, PROCESSO N.º 120/14.4T8EPS.G1.S1.
Sumário :
I - A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado.

II - Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.

III - Estando em causa na acção saber se a construção realizada pela ré ocupa uma parte do terreno pertencente às autoras, não podem manter-se na matéria de facto provada as expressões «parcialmente implantada na estrema do prédio das autoras» e «retirando ao quintal do prédio das autoras parte da sua área», porquanto estes segmentos encerram matéria de índole conclusiva cuja afirmação é susceptível de conduzir, só por si, ao desfecho da acção.

IV - Já não será assim, em relação à expressão «o prédio das autoras confronta a poente com a Quelha do Montepio» na medida em que o está em causa é determinar os limites materiais do terreno das autoras – que integra o conteúdo do seu direito de propriedade – e tal constitui matéria de facto passível de ser demonstrada com recurso aos meios de prova admissíveis, nomeadamente, documentais e testemunhais.

V - As presunções registrais emergentes do art. 7.º do CRgP não abrangem factores descritivos, como as áreas, limites ou confrontações, cingindo-se apenas à existência do direito e que o mesmo pertence às pessoas em cujo nome se encontra inscrito, exorbitando do seu âmbito tudo o que se relacione com os elementos identificadores do prédio.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:

AA e BB intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra, CC, pedindo a condenação da ré a demolir a construção que ergueu no quintal das autoras e a repô-lo no estado em que estava, sem a referida construção, e ainda a respeitar os limites da propriedade das autoras tal como se encontram definidos na descrição predial.


Alegaram, em síntese, que são comproprietárias de um prédio urbano, sito na cidade de …, e que, após o falecimento, em 2008, da arrendatária de muitos anos, a ré retirou a rede divisória do jardim e levantou uma construção que ocupa o prédio das autoras e lhes retira o acesso, que anteriormente tinham, à Quelha …, ocupando uma área de cerca de um terço do jardim das autoras.

Na sua contestação a ré alegou, em suma, que o quintal do prédio urbano das autoras não confronta com a Quelha …, mas com o prédio da ré adquirido em resultado da partilha por óbito do seu marido, prédio que o casal havia comprado no ano de 1986 e que mantém a mesma composição e mesma confrontação, tendo-se limitado a substituir a anterior rede, degradada e apodrecida, por um material mais resistente, deixando os pilaretes que a suportavam. Mais alegou que sempre cultivou o seu quintal, colocando aí flores e ajardinando-o, dele colhendo alguns legumes e primores hortícolas ao longo de 24 anos, de forma ininterrupta.

Concluiu pela improcedência acção.

Realizada audiência final, foi proferida sentença a julgar a acção procedente, condenando a Ré:

«a) A demolir a parte da construção situada na estrema poente do prédio das autoras, na extensão que ocupa o prédio das autoras (tendo em consideração que o limite das propriedades, nos respectivos logradouros, é definida por uma linha reta desde o ponto que divide as duas casas até à Quelha …, linha essa que é paralela aos muros dos prédios confinantes);

b) A repor o quintal das autoras como anteriormente se encontrava, respeitando os limites da propriedade das autoras, acima referido».


      Desta sentença apelaram as rés, pugnando pela improcedência da acção.

O Tribunal da Relação de Coimbra proferiu acórdão, em 17 de Janeiro de 2017, a julgar a apelação procedente e revogar a decisão recorrida, e, em consequência, julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.


      Inconformadas, recorreram as autoras de revista, aduzindo na respectiva alegação de recurso as seguintes conclusões:

«A) As AA. não se conformam com a decisão recorrida, uma vez que, em seu entender, não julgou bem a questão, ao contrário da 1ª Instância, sendo certo como é que "não resolve o cerne da discussão, ou seja, a situação que levou a que a presente acção fosse intentada";

B) Os factos alegados e/ou dados como provados são mais que suficientes para a procedência da acção;

C) Na produção de prova, em julgamento, mal ou bem, as AA. provaram que o seu prédio confrontava com a Quelha … e que a construção levantada estava a ocupar o seu prédio, pelo menos foi essa a convicção da Mma. Juiz de Direito que, após verificação pessoal, deixou isso mesmo exarado em acta e na sentença;

D) A R. além de não produzir qualquer prova, nada disse ou provou a respeito das confrontações do seu próprio prédio, e falta à verdade quando refere a existência de uma porta para a Quelha, fechada há mais de 50 anos;

E) O Tribunal da Relação apesar de constatar, e bem, que se está perante "um conflito entre prédios, e da extensão da respectiva área, optou por discorrer sobre o grau de exigência da prova em acção de reivindicação concluindo que, neste caso, se pedia muito mais às AA. do que a prova que produziram, pois era-lhes exigido prova dos factos constitutivos do seu direito que não alegaram, deixou a questão principal por decidir quando o processo dispõe de elementos para uma decisão contrária à ora recorrida;

F) O Tribunal a quo, ao dar como assente que se encontra registado um prédio a favor das AA., mas a que falta uma das confrontações, porque impugnada pela R., e ao dar como provado que a R. levantou uma construção que eliminou uma abertura que dava acesso à Quelha …, por sinal a confrontação que consta do registo e de outros documentos, e foi alegado pelas AA., incorre em contradição;

G) As AA. alegaram e provaram a propriedade, a posse e a existência de registo, com as confrontações respectivas, pelo que as presunções daí decorrentes a seu favor, deviam ter levado à improcedência da Apelação e à confirmação da sentença que condenou a R.;

H) Ao proprietário inscrito não tem que ser exigida a prova da aquisição originária, e no caso dos autos as AA. provaram essa aquisição;

I) A não se entender assim, estará a violar-se, como acontece com o Acórdão recorrido, o disposto nos artigos 7º, 9º e 34° do Código do Registo Predial, 342°, 344°, 1268° e 1311° do Código Civil e 607°, n° 5 do CPC;

J) Julgando em contrário o, aliás douto Acórdão recorrido, viola as disposições legais invocadas nas precedentes conclusões».

Finalizaram, pedindo a revogação do acórdão recorrido, mantendo-se a sentença da 1ª instância por ele revogada.


Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

Na sentença da 1ª instância consignaram-se como provados os seguintes factos:

1. As autoras são comproprietárias do prédio urbano sito na rua M… de C…, em …, freguesia da Sé, composto de casa destinada a habitação de 3 pavimentos e quintal, confrontando a nascente com a Rua M… de C…, a norte com DD, e a sul com M… de C…, de cuja descrição consta que tem a área total de 252,8 m2, sendo a área coberta de 128,8 m2 e a área descoberta de 124 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 5…6/19…8.

2. A ré é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. 195º, da freguesia da Sé, concelho de ….

3. O prédio das autoras confronta a poente com a Quelha ….

4. Em finais de 2008/início de 2009, a ré retirou a rede divisória do jardim, que estava apodrecida, e levantou uma construção com cerca de 40 m2, com o aspecto de uma pequena casa, parcialmente implantada na estrema do prédio das autoras, eliminando a abertura (portão) que dava acesso à Quelha …, e retirando ao quintal do prédio das autoras parte da sua área.

5. A eliminação, pela ré, de um acesso directo à via pública do prédio das autoras desvaloriza este prédio.


O Tribunal da Relação, após expurgar aquela matéria de conclusões e conceitos de direito, julgou apenas provados os factos seguintes:

1. Encontra-se registada a aquisição a favor das autoras (e de outros), pela Ap. 2 de 10.12.1972, por sucessão hereditária, e pela Ap. 18 de 18.18.1992, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária, e Ap. 8 de 09.08.19999, por sucessão, em comum e sem determinação de parte ou direito, do prédio urbano sito na rua M… de C…, em …, freguesia da Sé, aí descrito como sendo composto de casa destinada a habitação de 3 pavimentos e quintal, confrontando a nascente com a Rua M… de C…, a norte com DD, e a sul com M… de C…, de cuja descrição consta ter a área total de 252,8 m2, e de área coberta de 128,8 m2 e de área descoberta 124 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 5…6/19…8.

2. A ré é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. 195º, da freguesia da Sé, concelho de ….

3. (eliminado).

4. Em finais de 2008/início de 2009, a ré retirou a rede divisória do jardim, que estava apodrecida, e levantou uma construção com cerca de 40 m2, com o aspeto de uma pequena casa, eliminando uma abertura (portão) que dava acesso à Quelha ….


De direito:

O Tribunal da Relação, considerando tratar-se de uma típica acção de reivindicação em que a ré impugna o direito de propriedade das autoras sobre uma parcela do logradouro do prédio urbano inscrito no registo predial a favor das segundas e que a primeira ocupa, entendeu não conhecer da impugnação da decisão sobre a matéria de facto relativa aos questionados pontos contidos nos nºs. 1, 3 e 4 e decidiu, no que ora releva, que nunca a 1ª instância poderia, em sede de julgamento da matéria de facto, ter julgado provado que:

- as autoras eram comproprietárias de tal prédio;

- o prédio das autoras confrontava com a Quelha …;

- a construção levantada pela ré ocupava parcialmente o quintal do prédio das autoras.


Uma breve nota inicial para salientar apenas que a restrição legal aos poderes de cognição Supremo Tribunal de Justiça circunscritos, por princípio, à aplicação definitiva do direito aos factos materiais da causa já fixados, impede que o Supremo Tribunal conheça do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa (artigos 674º nº 3 e 682º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).

Está-lhe vedado determinar se ocorreu ou não um concreto facto, ou seja, sindicar a convicção formada pelo tribunal recorrido com base nas provas produzidas sujeitas à sua livre apreciação, salvo nos casos em que a lei exige prova vinculada ou tarifada.

Porém, a questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que de que cumpre ao Supremo Tribunal conhecer, como vem sendo pacificamente decidido neste mesmo Tribunal, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse mesmo facto enquanto realidade da vida, sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado.

Avaliar se matéria considerada como um facto provado reflecte, indevidamente, uma apreciação de direito ou consubstancia um juízo conclusivo, por envolver uma “qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 312) insere-se no âmbito das suas competências.


Entrando na apreciação do mérito do recurso, concretamente da primeira questão enunciada, começaremos por referir que, relativamente à alegada compropriedade do prédio das autoras, se observou no acórdão recorrido que «estas não alegam qual o facto constitutivo da sua propriedade, nem uma forma de aquisição derivada, nem qualquer presunção derivada do registo e, muito menos, uma forma de aquisição originária. Com efeito, neste aspecto, limitam-se a alegar que são “comproprietárias” do prédio que identificam, remetendo para os documentos 1 e 2, sendo o 1º, uma certidão da Conservatória do Registo Predial de …, da qual consta o registo da aquisição, em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor das autoras e outros, por sucessão hereditária».

Com esta argumentação concluiu que do ponto nº 1 dos factos provados apenas se poderia fazer constar que “se encontra registada a aquisição a favor das autoras (e de outros), pela Ap. 2 de 10.12.1972, por sucessão hereditária, e pela Ap. 18 de 18.18.1992, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária, e Ap. 8 de 09.08.19999, por sucessão, em comum e sem determinação de parte ou direito”.

Não suscita qualquer reparo esta decisão por se mostrar conforme ao que resulta da certidão do registo predial junta aos autos, documento dotado de força probatória plena (artigo 371º nº 1 do Código Civil). Também não merece censura a conclusão a que o acórdão recorrido chegou, com base em tal documento, no sentido de o mesmo constituir prova bastante da aquisição pelas autoras do direito que se arrogam sobre o prédio urbano em causa, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 5…6/19…8, freguesia da Sé, por força da presunção legal contida no artigo 7º do Código do Registo Predial, prova esta não foi ilidida, já que não pode ser afastada por simples impugnação fundada no desconhecimento de tal facto por parte da ré.

No que tange aos ponto nºs 3 e 4 da matéria de facto, julgou a sentença da 1ª instância provado que:

«3. O prédio das autoras confronta a poente com a Quelha ….

4. Em finais de 2008/início de 2009, a ré retirou a rede divisória do jardim, que estava apodrecida, e levantou uma construção com cerca de 40 m2, com o aspecto de uma pequena casa, parcialmente implantada na estrema do prédio das autoras, eliminando a abertura (portão) que dava acesso à Quelha …, e retirando ao quintal do prédio das autoras parte da sua área».

Louvou-se para tanto na seguinte fundamentação:

«A prova pessoal produzida em julgamento foi muito exígua: Por um lado, em declarações de parte a autora BB confirmou que a casa de autoras e das rés, que são geminadas, foram separadas nos anos 60, e entre o logradouro de ambas colocada uma vedação, fazendo uma espécie de corredor junto à casa das rés; que a sua casa sempre confrontou com a Quelha …, até que verificou, em finais de 2008 ou 2009, que havia sido erigida a construção em causa nos autos.

Em depoimento de parte, a ré CC declarou ter comprado a casa há 30 anos, e ter erigido uns arrumos no local onde anteriormente existia um galinheiro; negou que o quintal das autoras tivesse portão para a Quelha …, e ter alterado a rede divisória - afirmando encontrar-se o quintal no estado em que estava antes.

Finalmente, foi inquirido como testemunha EE, que foi casado com a autora BB até 2011, declarado ter-se deslocado à casa duas vezes, a primeira das quais em 2007/2008, altura em que verificou não existir qualquer construção no quintal - sendo este constituído por um rectângulo alongado, que descreveu como semelhante a um campo de futebol.

Nada se podendo extrair da prova referida quanto à questão em discussão nos autos, deslocou-se o tribunal ao local, na presença da autora BB e da ré CC. O resultado da inspecção ao local está consignado na acta, e inclui fotografias do que se visionou. Desde logo, verificou-se que a construção em causa nos autos não tem qualquer semelhança com a área de um galinheiro sendo do conhecimento comum que um qualquer galinheiro, sito em zona urbana, nunca ocuparia o espaço que a construção ocupa. Por outro lado, a construção tem aspecto recente, aceitando-se que tenha sido erigida já após a morte da arrendatária do prédio das autoras (ocorrida em Agosto de 2008, segundo o autora). Por outro lado, a partir da Quelha … é visível, no muro que separa as propriedades privadas e a rua pública, que existiram duas portas que foram tapadas, uma das quais se encontra precisamente à frente da casa das autoras, hoje confinando com a construção erigida pela ré.

Sendo visíveis as habitações e quintais vizinhos, resultou evidente que todas as casas situadas no enfiamento das habitações de autoras e rés têm quintais que se prolongam até à Quelha …, e apenas o logradouro à frente da casa das autoras não tem continuidade até à quelha, por se encontrar interrompido por uma vedação colocada já muito perto da porta das traseiras da casa das autoras, sendo visível que parte do muro que existiria entre os logradouros das duas habitações foi recentemente demolido, diminuindo a extensão do logradouro da autora (conforme se verifica nas fotografias inseridas na acta).

Estes elementos objectivos verificados no local foram ainda confrontados com a descrição do prédio das autoras constante dos documentos do prédio, onde consta a confrontação poente com a Quelha … (fls. 8-13 e 14-15), bem como com a planta de fls. 16, e documento de fls. 18-19; Da carta de fls. 24, datada de Agosto de 2010, a sobrinha da falecida inquilina das autoras refere que "estes móveis (quando foram comprados por minha tia) entraram por uma porta de serviço, existente ao fundo do seu quintal, porta essa que desapareceu, devido à construção de um anexo pertencente à proprietária da casa vizinha", razão pela qual teve de contratar uma grua para retirar os móveis da casa das autoras.

Naturalmente que o prédio das rés, conforme resulta do referido e do documento predial de fls. 142-143, confronta igualmente com a Quelha …, mas apenas na largura correspondente à respectiva casa, e não ainda na largura situada à frente da casa das autoras, conforme actualmente sucede face à colocação da rede e à construção dos arrumos.

Da conjugação destes meios de prova se concluiu que a maior parte do quintal das autoras foi ocupado pela ré CC - não fazendo parte integrante do prédio das rés, do modo alegado na contestação, factualidade que, em consonância, se deu como não provada».

O Tribunal da Relação socorreu-se do mecanismo previsto no artigo 646º nº 4 do Código de Processo Civil revisto, que se mantém na ordem jurídica apesar de não figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no artigo 607º nº 4 do Código de Processo Civil vigente, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, e expurgar-se a mesma de matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.

E considerou que:

«Quanto à matéria incluída sob os pontos 3 e 4 da matéria de facto dada como provada, respeitante à confrontação do prédio da Autora com a Quelha …, e à ocupação do prédio da autora, com a construção levada a cabo pela Ré, pressupondo o conhecimento do objecto da presente acção, não pode ela própria conter a resposta do tribunal ao litígio.

Ou seja, se o verdadeiro e único objecto do litígio é a determinação da propriedade da parcela controvertida, que se encontra na posse da ré, não pode o tribunal, em sede de apreciação da matéria de facto, afirmar que tal parcela “pertence” ou “faz parte integrante” do prédio do autor, ou que, com determinada construção “se ocupou parcialmente” o quintal do prédio do autor, porquanto tal afirmação pressupõe que implicitamente se reconheceu que a parcela onde tal obra foi implantada faz parte do prédio do autor, quando esse constitui o cerne e a questão de direito a decidir na presente acção.

 (…)

Já quanto à questão de a parcela em litígio (sobre a qual foi implantada uma construção por parte da Ré) fazer, ou não, parte integrante do prédio registado a favor das autores, e uma vez que a presunção derivada do registo não abrange as respectivas confrontações ou outros elementos constantes do registo respeitantes à descrição do prédio, área, etc., não beneficiando as autoras de qualquer presunção a seu favor (ao contrário da Ré, que beneficia da presunção derivada da posse), teriam de, relativamente a tal parcela, alegar e demonstrar uma das formas de aquisição originária (usucapião ou acessão – artigo 1316º CC).

Ou seja, os pontos 3 e 4, expurgados dos conceitos de direito neles contidos, ficariam reduzidos a parte da matéria inserida no ponto 4, apenas se podendo dar como provado que, “Em finais de 2008/início de 2009, a ré retirou a rede divisória do jardim, que estava apodrecida e levantou uma construção com cerca de 40 m2, com o aspecto de uma pequena casa, eliminando um portão que dava acesso à Quelha …”».

Em consequência, considerou prejudicado o conhecimento quanto ao ponto de facto nº 5 «respeitante à desvalorização que importaria para o prédio da autora, a eliminação de um acesso directo à via pública (…) face à impossibilidade de dar directamente como provado que a parcela em litígio pertencia “parcialmente” ao prédio das autoras».

Com esta motivação a Relação eliminou o ponto de facto nº 3 e alterou a redacção do ponto nº 4, julgados provados na 1ª instância, por conterem ambos matéria de direito, de que resultou considerar prejudicada a apreciação do teor do ponto de facto nº 5, que não foi, aliás, objecto de impugnação.

E, em consequência julgou procedente a apelação e improcedente a acção, revogando a decisão da 1ª instância, em virtude de as autoras não terem logrado demonstrar que a parcela de terreno em litígio pertencia ao seu terreno, como era seu ónus por se tratar de facto constitutivo do invocado direito de propriedade (artigo 342º nº 1 do Código Civil).

Concordamos com o acórdão recorrido quando considera que não podem manter-se no ponto de facto nº 4 as expressões «parcialmente implantada na estrema do prédio das autoras» e «retirando ao quintal do prédio das autoras parte da sua área». Estes segmentos encerram matéria de índole conclusiva; contêm afirmação susceptível de conduzir, só por si, ao desfecho da acção. Saber se a construção realizada pela ré ocupa uma parte do terreno pertencente às autoras será conclusão a extrair dos factos materiais alegados e provados.

Na verdade, aquelas expressões extravasam o juízo de facto. Contêm um juízo valorativo que há-de resultar da subsunção jurídica da globalidade dos factos apurados. Como salienta o acórdão sob recurso, o cerne do litígio radica, precisamente, na questão de saber se a construção erigida pela ré ocupa parcialmente o terreno das autoras, violando o seu direito de propriedade. Saber se as autoras são proprietárias de parte do terreno onde está implantada a construção, constitui a questão essencial ou nuclear a dirimir na presente acção.

Logo, agiu correctamente o Tribunal da Relação ao suprimir os referidos segmentos do aludido ponto 4 e, aproveitando a facticidade que nele figurava, manter como provado que: “Em finais de 2008/início de 2009, a ré retirou a rede divisória do jardim, que estava apodrecida e levantou uma construção com cerca de 40 m2, com o aspecto de uma pequena casa, eliminando um portão que dava acesso à Quelha …”».

Já não se aceita que o conteúdo ponto do nº 3 da matéria de facto provada contivesse matéria de direito.

Averiguar se o prédio das autoras confronta a poente com a Quelha … constitui indagação de facto. O que está em causa é determinar os limites materiais do terreno das autoras a poente e tal constitui matéria de facto passível de ser demonstrada com recurso aos meios de prova admissíveis, nomeadamente documentais e testemunhais. Trata-se de facto integrador do conteúdo do direito de propriedade das autoras.

A não ser assim, ficariam as autoras impedidas de demonstrar o limite material do seu terreno a poente – facto indispensável para o êxito da sua pretensão – posto que, como bem entendeu a Relação, as presunções registrais emergentes do artigo 7º do Código do Registo Predial não abrangem factores descritivos, como as áreas, limites ou confrontações, cingindo-se apenas à existência do direito e que o mesmo pertence às pessoas em cujo nome se encontra inscrito, exorbitando do seu âmbito tudo o que se relacione com os elementos identificadores do prédio (neste sentido cfr. Isabel Pereira Mendes, Código de Registo Predial Anotado e Comentado, Almedina, 12ª ed., p. 101, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.09.2017, proferido na revista nº Revista 120/14.4T8EPS.G1.S1).

Deve, assim, permanecer tal facto no elenco dos que estão provados, a não ser que, ao arrepio do decidido na 1ª instância com base, essencialmente, na prova documental e na inspecção judicial, venha a ser julgado não provado no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica deduzida pela ré no seu recurso de apelação.

Neste contexto não pode o Tribunal da Relação eximir-se da apreciação daquela impugnação no tocante ao ponto de facto nº 3, tanto mais que, ao contrário do que sustenta, não era imperativo no caso dos autos as autoras alegarem e provarem factos demonstrativos da aquisição originária (usucapião) da parcela de terreno em causa.

Na verdade, se resultar dos factos provados que a construção efectuada pela ré está parcialmente implantada em terreno das autoras, a presunção de que beneficiam e que o acórdão recorrido reconhece existir, decorrente do registo da aquisição do mesmo a seu favor (citado artigo 7º do Código do Registo Predial), estender-se-á, necessariamente, àquela parcela.

Na sequência do se se deixou dito, impõe-se anular o acórdão recorrido, com vista a ser tomado conhecimento da impugnação da matéria de facto deduzida no recurso de apelação, relativamente ao ponto 3 dos factos julgados provados pela 1ª instância, e decidir, ulteriormente, da questão de direito, tendo-se presente o afirmado supra quanto à desnecessidade, no caso presente, de alegação e prova da aquisição originária da parcela em questão para a procedência da acção (artigo 683º nº 1 do Código de Processo Civil).


III. Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em anular o acórdão recorrido e determinar a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Coimbra, a fim de ali se proceder à apreciação da impugnação da decisão fáctica relativamente ao ponto nº 3 dos factos provados e proferir ulterior decisão.

Custas pelo vencido a final.

Lisboa, 28 de Setembro de 2017


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado