Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2069/14.1T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
CONHECIMENTO OFICIOSO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADES DE SENTENÇA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DUPLA CONFORME
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: BAIXA DOS AUTOS À RELAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
-Pereira de Almeida, Direito Comercial, 3.º Volume, p. 143.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 573.º, 665.º E 679.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 09-03-1998, IN BMJ, N.º 375, P. 385;
-DE 27-05-2010, PROCESSO N.º 148/06.
Sumário :
I – Constando do acórdão recorrido a análise de uma questão que só em sede de recurso foi apreciada, não pode dizer-se que, quanto a ela, hajam sido proferidas duas decisões conformes, pelo que se não verifica a dupla conformidade impeditiva de recurso de revista.

II – A questão do abuso do direito, que é de conhecimento oficioso, não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no art. 573º do CPC, visto caber nas exceções previstas no seu nº 2.

III – Cometida na 1ª instância omissão de pronúncia quanto à questão referida em II, sem que a Relação a haja suprido, não pode o STJ suprir a correspondente nulidade por omissão de pronúncia, por força das disposições conjugadas dos arts. 679º e 665º do CPC.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2º SECÇÃO CÍVEL




     I - AA intentou contra Banco BB, S.A., a presente ação declarativa pedindo que:

 - se declare a extensão do caso julgado da decisão proferida no apenso à execução ordinária nº 665/1994-A do Tribunal de …, oponível ao réu, em benefício da autora, nos termos do art. 522º do CC, com efeitos “ex tunc”;

- se considere que o título aí dado à execução não pode valer como livrança, sendo esta inválida, consequentemente não existindo título executivo, pelo que não poderá haver execução conforme art. 45º, nº 1 do CPC, sendo nulo nos termos do nº 1 do art. 289º do CC e com os efeitos retroativos previstos no seu art. 289º;

- se condene o réu a restituir à autora todas as quantias indevidamente penhoradas e por ele recebidas até à presente data, no montante de € 241.416,71, com juros legais vencidos e vincendos à taxa legal e até integral pagamento;

- se condene o réu a abster-se de no futuro promover contra a autora novas penhoras ou diligências similares para liquidação da quantia mencionada na PI;

A não se entender assim, subsidiariamente, pede que se condene o réu, a título de enriquecimento sem causa, a pagar-lhe € 241.416,71, referente ao total de salários indevidamente penhorados à autora e recebidos pelo réu, acrescidos de juros legais vencidos e vincendos, à taxa legal e até integral pagamento.

         Alegou, em síntese nossa, o seguinte:

 - O ora réu, usando como título uma livrança subscrita por CC - Prestação de Serviços, Lda., e cinco avalistas – um dos quais a ora autora –, moveu contra todos uma execução ordinária para pagamento de quantia certa, à qual foram opostos embargos de executado que, por decisão de 24.3.2000, foram julgados procedentes por divergência entre a denominação da entidade mencionada como subscritora e a de quem de facto a subscreveu, declarando-se a execução extinta quanto aos executados embargantes;

- ao tomar conhecimento, em 1.11.2012, do conteúdo desses embargos, a ora autora requereu que o aproveitamento da nulidade do título executivo lhe fosse estendido, o que foi indeferido por despacho de 7.2.2013, onde se entendeu que, não tendo a ora autora sido embargante na execução, só pelos meios declarativos comuns poderia obter o resultado pretendido;

- na referida execução foram penhorados à ora autora € 241.416,71 – respeitando € 154.963,91 a capital e € 86.452,80 a juros de mora –, através de descontos de 1/3 no seu vencimento, nenhum outro pagamento tendo sido conseguido de qualquer dos outros executados;

- por força do art. 522º do CC, o caso julgado entre o credor e um dos devedores solidários pode ser invocado por outro devedor se se não basear em fundamento que respeite pessoalmente àquele;

- a nulidade pode ser invocada a todo o tempo e determina a restituição de tudo o que foi prestado.

        

O réu contestou pedindo a absolvição do pedido e, para a hipótese de assim se não entender, pediu, em sede de reconvenção, a condenação da ora autora a pagar-lhe € 154.956,18 acrescidos de juros de mora no montante de € 162.225,47 já vencidos e dos já vincendos até efetivo pagamento.

Defendeu, em resumo, que:

- não tendo a ora autora deduzido embargos na execução, e tendo tido conhecimento dos desenvolvimentos processuais ocorridos – nomeadamente a procedência dos embargos e a penhora efetuada –, ocorreu a preclusão da sua defesa;

- a decisão proferida nos embargos de executado vale apenas em relação a quem embargou, não fazendo caso julgado quanto aos demais executados;

- não há enriquecimento sem causa por ter havido uma causa (a penhora) para os recebimentos havidos;

- a DD, S.A., – depois integrada no ora réu – em 23.12.1992 financiou em 25.000.000$00 a CC, Lda., tendo os avalistas entregue àquela uma livrança em branco com autorização para o seu preenchimento pelo valor do saldo em dívida, enquanto garantes pessoais da devedora;

- este negócio subjacente à livrança permanece válido, sendo de 31.065.924$00 o crédito dele resultante, pelo qual respondem a CC, Lda., e os garantes pessoais.

        

Após réplica, foi proferido despacho saneador em que:

- se rejeitou, por inadmissibilidade legal, a reconvenção;

- conhecendo-se do mérito da causa, julgou-se a ação procedente, condenando-se o réu no pedido.

     A fundamentação usada nesta decisão foi, essencialmente, a seguinte:

 - a reconvenção não é admissível porque assenta em relação jurídica que não tem conexão com o facto jurídico que serve de fundamento à ação nem à defesa;

- havendo vários executados litisconsortes, e sendo a oposição por embargos de executado deduzida apenas por um ou alguns deles, a sentença que nesses embargos vier a ser proferida apenas é vinculativa entre quem embargou e quem é embargado – o exequente –, não sendo os demais executados abrangidos pelo caso julgado;

- porém, sendo demandado como devedor solidário um executado não embargante, ele pode fazer estender em seu favor a eficácia desse caso julgado nos termos do art. 522º do CC;

- esta extensão da eficácia do caso julgado sobrepõe-se aos efeitos da preclusão resultante da não dedução de oposição mediante embargos de executado por parte do executado não embargante;

- sendo nulo o título executivo, a respetiva declaração impõe, nos termos do art. 289º do CC, a restituição de tudo o que foi prestado, pelo que a ação procede.

        

Contra o assim decidido apelou o réu, tendo a Relação do … proferido acórdão que julgou improcedente o recurso, usando fundamentação cujas linhas essenciais são as seguintes:

- quanto à sua eficácia, o caso julgado material tem duas vertentes: a) – uma função negativa, reconduzida à exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura; b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução neste compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a serem decididos no mesmo ou em outros tribunais;

- sendo absolutório o caso julgado formado entre o credor e um devedor solidário, os restantes condevedores podem aproveitar-se dele em relação ao credor, ficando a dívida extinta em relação a todos;

- a reação do Banco réu contra este julgado, assente na não apreciação da exceção do abuso do direito que diz ter deduzido, improcede, uma vez que tal exceção não foi, efetivamente, deduzida;

- a reconvenção formulada pelo réu não pode ser admitida porque, visando valer-se da compensação de créditos, o respetivo pedido reconvencional não pode ser formulado subsidiariamente, como foi o caso.

        

Ainda inconformado, o réu interpôs a presente revista, pedindo:

- a revogação do acórdão recorrido na parte em que este não dá conta da nulidade cometida na 1ª instância quando se não pronunciou sobre o invocado abuso do direito, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d) do CPC[1].

- ou, a não se entender assim, a revogação do mesmo acórdão, reconhecendo-se que a instauração da presente ação correspondeu a abuso do direito por parte da autora, assim se julgando a ação improcedente.

       Formulou, para tanto, as conclusões que passamos a transcrever:

1 – O Acórdão de que se recorre refere que, na Sentença da 1ª Instância, não foi cometida a nulidade prevista no art. 615º.1.d) do CPC (omissão de pronúncia), a propósito da questão do “abuso de direito”, questão essa sobre a qual, de facto, a 1ª Instância não teceu uma única palavra, apesar de a mesma ter sido expressamente invocada.

2 – Por sete vezes, no Acórdão ora posto em crise, o Tribunal da Relação do … pronunciou-se (apenas e sempre) para referir que o agora Recorrente não invocara, na 1ª instância, o instituto do abuso de direito.

3 – A realidade processual é bem diferente, porquanto os factos integradores do abuso de direito foram efectiva e expressamente alegados e o próprio instituto em si mesmo foi também, efectiva e expressamente, invocado.

4 – Por isso mesmo é que a nulidade cometida pela 1ª Instância subsiste (aqui se reinvocando expressamente tal nulidade, nos termos do art. 615º.1.d) do CPC).

5 – Por isso, o Supremo Tribunal de Justiça deve revogar o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, reconhecendo a nulidade cometida pela 1ª Instância, com as consequências processuais daí emergentes.

6 – O Recorrente alegou que a Recorrida não podia deduzir, quase duas décadas depois, aquilo que podia ter deduzido (e não deduziu) no âmbito da tramitação do processo executivo em que fora demandada.

7 – Igualmente alegou que a ora Recorrida foi citada para a acção executiva em 28.02.1994, designadamente, para deduzir a oposição que entendesse.

8 – A então Executada nada fez, aceitando a pendência da execução contra si e conformando-se com toda a situação jurídica e jurídico-processual com que se defrontava, designadamente, com as penhoras no seu salário durante uma década e meia, contra as quais jamais reagiu.

9 – As desculpas alegadas para tal inércia (que se desenvolveram nas Alegações) não colhem, são pífias e não puderam ter aceitação, mas foram apresentadas para disfarçar o manifesto exercício abusivo do direito que, supostamente, assistia à ora recorrida.

10 – Ainda alegou o Recorrente que a segurança e a certeza jurídicas, bem como a solidez das decisões emanadas do exercício da função jurisdicional não se compadecem com alterações supervenientes, ao sabor das partes que, inertes foram em determinado momento, activistas pretendam ser em momentos históricos posteriores.

11 – No fundo o que a Recorrida pretendeu, com a instauração da presente acção foi recuar cerca de 20 anos no tempo e exercer um direito que, durante duas décadas, não exerceu.

12 – Em articulado subsequente, o Recorrente voltou a alegar que a Recorrida, notificada que foi (na qualidade de, então, executada) da penhora incidente sobre o seu vencimento, sempre podia ter-se oposto a essa diligência (mês a mês), na medida em que tal diligência (a apreensão mensal de parte do seu vencimento) foi do seu permanente conhecimento.

13 – Mais se referiu que a presente acção constituía um manifesto retrocesso, um antagonismo total com a noção de processo, colocando-se em causa a estabilidade, a credibilidade e as seguranças jurídica e judicial.

14 – Foi, assim, suscitada, de forma clara, a questão do abuso de direito, questão esta que é, aliás, de conhecimento oficioso e, de resto, invocável em qualquer momento processual.

15 – E, para que não restassem dúvidas, invocou-se expressamente a figura do abuso de direito, previsto no art. 334º do CC e que ele era patente nos casos de venire contra factum proprium.

16 – Por isso, ainda se disse que seria sempre ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular excedesse os limites impostos pela boa fé, como fossem os casos em que há contradição, real e não aparente, entre a conduta de alguém que se vincula a uma dada situação futura, criando confiança na contraparte, e a conduta posterior a frustrar a confiança criada, tal como sucedeu exactamente no caso presente.

17 – Ao não reagir, durante quase duas décadas, contra a penhora que, permanentemente, atingia o seu vencimento mensal, a agora Recorrida criou no Recorrente a confiança de que ela se conformara com tal situação e que jamais demandaria o Recorrente.

18 – Portanto, de entre as vias defensionais que desenvolveu, o recorrente suscitou implicitamente, explicitamente, facticamente, expressamente, formalmente, objectivamente (e, se fosse preciso, supletivamente) o Abuso de Direito por parte da Autora.

19 – É por isso que não se compreende que o Venerando Tribunal da Relação do … tenha iniciado o seu raciocínio, dizendo que o Apelante entende que suscitou apenas implicitamente a figura do abuso de direito, e tenha terminado o seu raciocínio dizendo que “… manifestamente esta questão não foi suscitada quer expressa, quer implicitamente …”.

20 – A questão foi suscitada nos autos, quer fáctica, quer jurídica, quer expressamente, não interessando em que peça ou momento foi suscitada.

21 – O que interessa é que a questão foi suscitada, podendo até sê-lo num simples requerimento ad hoc, nas alegações finais de discussão da matéria de facto e de direito, ou em outro qualquer momento processual, face ao art. 573º.2 do CPC.

22 – Por isso é que se disse que a 1ª Instância tinha que se pronunciar sobre a questão e ao não o ter feito, cometeu a nulidade prevista no art. 615º.1.d do CPC, a qual perdura por sanar.

23 – Mas, ainda que, por mera hipótese, o agora Recorrente não tivesse alegado (como alegou), a figura do abuso de direito, o certo é que tal questão é de conhecimento oficioso.

24 – O abuso do direito constitui uma excepção peremptória de conhecimento oficioso, mesmo em sede de recurso de revista e o STJ, pelo facto de funcionar, em regra, como tribunal de revista, não fica inibido do seu poder/dever de conhecer, em primeira e única Instância, de todas as questões de conhecimento oficioso, tais como a da litigância de má fé…e a do abuso de direito, até nos casos em que tais questões não tenham sido invocadas pela parte que delas se podia prevalecer.

25 – De acordo com os factos provados, a inércia de actuação por parte da agora Recorrida por um tão longo tempo (quase vinte anos) e a sua conformação com as penhoras que, permanentemente, iam sendo feitas no seu vencimento (durante uma década e meia), criaram no Banco Recorrente a expectativa legítima de que qualquer direito jamais iria ser exercido.

26 – Daí aquilo que a doutrina apelida de “neutralização de um direito” ou de “suppressio”.

27 – Uma das funções essenciais do Direito é assegurar expectativas e a tutela das expectativas é essencial a uma ordenação que pretenda ter como efeito a estabilidade e a previsibilidade das acções, na medida em que a confiança é um poderoso meio de “redução da complexidade social”.

28 – Por isso, bem pode concluir-se que a recorrida, ao longo de muitos e muitos anos, criou no Banco réu expectativas e tem de permanecer fiel às mesmas, compreendendo-se, por isso, que seja reprovada e, sequencialmente, vedada, a possibilidade de destruir as expectativas que a pessoa criou.

29 – A penhora mensal sobre a Recorrida decorreu pacificamente durante quase 15 anos, mais concretamente, durante longos 177 meses…, sem o mais pequeno remoque, oposição ou reacção da Recorrida.

30 – Esse comportamento, tacitamente conformativo e aceitador da penhora é completamente contraditório com o comportamento que a Recorrida agora assumiu, instaurando a presente acção.

31 – Como se referiu nas alegações, a pessoa é só uma. Os comportamentos é que são dois. Mas antagónicos e contraditórios entre si.

32 – Como em anterior conclusão, ao não se ter defendido na acção executiva, ao não se ter oposto a 177 penhoras, e ao nada ter feito durante quase 20 anos, a Recorrida criou, com toda a lógica e razoabilidade, no Banco Recorrente, a justificadíssima expectativa de que ela jamais actuaria como, agora, actuou, ao instaurar a presente acção.

33 – Por isso, é patente que a Recorrida abusou de um direito, e tal abuso é manifestamente ilegítimo, nos termos do art. 334º do CC.

34 – No caso em apreço, a confiança despertada no Banco recorrente não deve ser frustrada, sendo assim injusto, imoral, atentatório da boa fé, dos bons costumes e do fim social e económico do direito, um comportamento contraditório tão manifesto como aquele que, nesta acção, a Recorrida adoptou.

35 – É a ética jurídica que recomenda que preservar a confiança que se criou em alguém é como manter a palavra.

36 – Bem se sabe que o tempo não é tudo, ou seja, que não há uma medida temporal exacta que seja exigível ocorrer entre um e outro comportamento contraditório. Mas, há limites para o razoável e para o desrazoável.

37 – E deixar passar quase 20 anos sem nada fazer e deixar-se penhorar quase 15 anos sem nada fazer, ultrapassa os limites mais recônditos da razoabilidade.

38 – O abuso do direito equivale à falta de direito, gerando as mesmas consequências jurídicas que se produzem quando uma pessoa pratica um acto que não tem o direito de realizar.

39 – Este Supremo Tribunal já se pronunciou em caso mais do que idêntico (cfr. o AC. do STJ, de 27.5.2010 (148/06) – Custódio Montes: Celebrado um contrato de empréstimo sem forma legal e tendo o devedor pago, durante oito anos, os juros convencionados, revela abuso de direito, por parte deste, pedir a sua devolução, em consequência da nulidade do contrato.

40 – E isto sucede porque será sempre ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda os limites impostos pela boa-fé, como seja nos casos (como o dos presentes autos) em que há contradição, real e não aparente, entre a conduta de uma das partes que se vincula a dada situação futura, criando confiança na contraparte, e a conduta posterior a frustrar a confiança criada.

41 – E é justamente esta contradição (entre a confiança criada e a actuação posterior) que é reveladora da ausência de boa-fé e dos bons costumes, porque a Recorrida abusou do direito, violando os mais basilares princípios da boa-fé e negando de forma chocante todo o passado.

42 – Para além de tudo o que já se referiu, é inequívoco que, com o seu comportamento, a Recorrida inviabilizou a cobrança do crédito junto da devedora (a CC, Lda.), pois, mesmo sendo nulo o título dado à execução, o crédito existe(ia) e sempre o Banco credor poderia recorrer a outro tipo de processo judicial para efectivar a sua cobrança coerciva, o que ainda mais demonstra o Abuso do Direito cometido.

43 – Foram violados o art. 334º do CC e os arts. 573º.2 in fine, 615º.1.d) 1ª parte e 608º.2 do CPC.

        

Em contra-alegação que apresentou, a recorrida suscitou a questão da inadmissibilidade da revista, dada a dupla conformidade que entende verificar-se entre as decisões das instâncias, impeditiva, segundo o nº 3 do art. 671º, de acesso ao terceiro grau de jurisdição, por não haver fundamentação essencialmente diversa nas duas decisões de sentido idêntico proferidas nas instâncias, sendo que a questão do abuso do direito, tal como foi abordada no acórdão recorrido, não traduz fundamentação essencialmente diferente; e, quanto ao mérito do recurso, sustentou a sua improcedência.


Colhidos os vistos, cumpre decidir


II – Da admissibilidade do recurso:

Importa abordar, desde já, a objeção da recorrida quanto à admissibilidade do recurso.

   O resumo, acima feito, das decisões das instâncias é suficiente para evidenciar que, quanto à questão de saber se a autora tem o direito de pedir ao réu a restituição daquilo que lhe pagou na ação executiva, tanto o despacho saneador como o acórdão recorrido lhe deram respostas afirmativas assentes em fundamentações que não são essencialmente diferentes.

Quanto a esta questão não seria, de facto, admissível recurso de revista por força do disposto no nº 3 do art. 671º, caso o recorrente pretendesse, agora, a inversão desse sentido decisório; todavia é questão que o recorrente não suscita ao alegar.

     Porém, o exame do conteúdo dessas duas decisões mostra que, enquanto na 1ª instância nada se disse a propósito da exceção do abuso do direito, no acórdão recorrido foi abordada a questão de saber se a decisão recorrida incorrera em nulidade por omissão de pronúncia, por indevidamente ter deixado de apreciar a valia dessa exceção, que o recorrente, réu na ação, defendia ter suscitado oportunamente.

Havendo, deste modo, uma questão que só em sede de recurso foi apreciada, não pode dizer-se que, quanto a ela, hajam sido proferidas duas decisões conformes. Na verdade, apenas uma decisão – a que se encontra no acórdão recorrido – foi proferida a este propósito.

Não se verifica, pois, a invocada dupla conformidade, pelo que o recurso é de admitir.


1. O Réu, na altura denominado “Banco …, S.A”, intentou uma ação executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma do então processo ordinário, peticionando a quantia inicial de 154.963,91€ contra os seguintes executados;

• CC - prestação de serviços Lda.

• EE

• FF.

• AA (aqui Autora)

• GG

• HH

2. Tal ação correu os seus termos no 2.º juízo civil do Tribunal Judicial de …, com o n.º 665/1994.

3. Os ali executados EE e mulher II, deduziram embargos de executados, por apenso à referida execução ordinária, aos quais foi atribuído o n.º 665-A/1994.

4. Aqueles ao deduzir os referidos embargos pediram a extinção da execução, com as consequências daí decorrentes, nomeadamente, o levantamento de quaisquer penhoras entretanto efetuadas.

5. Os ali embargantes, entre outras razões, fundaram a sua oposição no facto de a livrança dada à execução estar subscrita por “CC – Empresa de Serviços, Lda.”, nome que não corresponde ao do subscritor, que é de “CC – Prestação de Serviços, Lda.”

6. Consequentemente, o Tribunal recorrido julgou por decisão proferida em 24/03/2000, já transitada em julgado, os referidos embargos inteiramente provados e procedentes e em consequência julgou extinta a execução na parte respeitantes aos referidos embargados.

7. Com interesse para presente ação foi decidido pelo Tribunal o seguinte:

“Na acção executiva a que estes autos se encontram apensos, a DD, S.A. (agora Réu) deu à execução a livrança junta a fls. 7, cujo teor se dá por reproduzido.

Nela consta como valor o de 31.065.924$00, como data de emissão a de 23/12/92 e como data de vencimento a de 12/11/93.

No verso dessa livrança, no local destinado à assinatura do subscritor, encontra-se aposto um carimbo com os dizeres “CC – Empresa de Serviços, Lda.”, bem como uma assinatura sobre eles.

Ainda nesse verso, no local reservado à identificação do subscritor, consta “CC – Prestação de Serviços, Lda.”.

No verso da referida livrança, sob as expressões “Dou o meu aval à firma subscritora” ou “Dou o meu aval à sociedade subscritora”, constam as assinaturas dos restantes executados” (incluindo a aqui Autora)

………..

“As letras e livranças não carecem de ser subsequentes a uma emissão válida, mas tão só de serem produto de uma emissão aparentemente válida. Essa aparência de validade traduz uma exigência de regularidade formal extrínseca (cfr. a este propósito Pereira de Almeida, D. Comercial, 3º vol. Pg.143), o que torna exigível, segundo critérios de literalidade, que os títulos postos em circulação não se apresentem vícios detectáveis por qualquer pessoa. Esta aparência de validade extrínseca é exigível e tem particular relevância no caso em apreço, dado que o embargante é avalista da obrigação da subscritora, como resulta da inscrição da respectiva assinatura no verso do título executivo. Ora, como se referiu, a existência de qualquer vício que atinja a emissão da livrança não prejudica a responsabilidade de outros obrigados ao respectivo pagamento, como por exemplo dos avalistas. Mas isso não será assim se a livrança contiver vicio de forma que a atinja, isto é, que atinja a obrigação do subscritor. Dispõe o art. 32º da L.U.L.L (aplicável por remissão do art. 77º, § 3º): “O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém‐se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja vício de forma.”

………………….

“A contrário, sendo a obrigação garantida nula por vício de forma, não se manterá a obrigação do avalista.…………..…..

“O conteúdo do que seja um tal vício de forma encontra-se concretizado pela doutrina e pela jurisprudência. Esse vício de forma traduz-se num vício que, respeitando aos requisitos externos da obrigação cambiária, se torna perceptível pela simples inspecção do título (B.M.J. 284º - 250). Mas no caso em apreço, se a não coincidência entre a pessoa identificada no lugar do subscritor - “CC - Prestação de Serviços, Lda.” e aquela que se encontra representada no local reservado à assinatura do subscritor –“CC – Empresa de Serviços Lda.” salta à vista, bastando a mera leitura dos dizeres inscritos na livrança para verificar, isso consubstancia um vicio de forma com consequências ainda mais profundas que a da nulidade da emissão da livrança. (negrito nosso)”

……..

“Com efeito, da análise dos dizeres inscritos no título executivo em causa, o que se conclui é que a empresa identificada no lugar próprio como subscritora da livrança “CC – Prestação de Serviços Lda.” não a veio a subscrever. Ela foi subscrita por uma outra entidade designada por “CC – Empresa de Serviços Lda.” a qual, existindo ou não jamais se poderá confundir com a primeira”.

…………

“Neste caso, o que acontece não é apenas ocorrer um vício formal que afecta a validade extrínseca da livrança, mas uma verdadeira ausência de uma livrança que possa considerar-se emitida com aparência de validade. Em tal caso não se pode falar de uma livrança afectada por um vício formal mas verdadeiramente da existência de um documento que não pode valer enquanto livrança. A isso conduz a subsunção do caso ao regime constante dos arts.75º e 76º da L.U.L.L.

Daqui decorre necessariamente que não valendo o título dado à execução como livrança, não pode valer a declaração aposta pelo embargante no respectivo verso como aval (neste sentido, Ac. do S.T.J. de 09/03/98 – B.M.J. 375º - 385) ……………………

“ Por todo o exposto, por aplicação do disposto no art. 75º e no art. 76º da L.U.L.L., conclui-se que o titulo dado à execução, na medida em que nele é identificada como subscritora a sociedade -“ CC – Prestação de Serviços, Lda.”, e nele não consta a firma desta sociedade no local reservado à assinatura do subscritor, não pode valer como livrança”

“Daqui decorre que do facto de no respectivo verso constar, para efeitos de aval, a assinatura do embargante EE, nenhuma obrigação de garantia resulta para ele, porquanto a própria livrança não origina qualquer obrigação de pagamento para a sociedade ali identificada como subscritora, e a favor da qual teria sido dado aquele aval. “

“Em conclusão, com fundamento nas normas legais citadas, julgo os presentes embargos inteiramente provados e procedentes, em consequência do que se extinguirá a execução na parte respeitante aos embargantes EE e mulher II.

8. A Autora não embargou oportunamente a execução.

9. Em 01/11/2012 a Autora requereu nos citados autos que a nulidade decorrente do título executivo que levou à extinção da execução em relação aos citados embargantes, também deveria aproveitar à ali executada, conforme requerimento apresentado em 01/11/2012.

10. Em resposta o Tribunal de … decidiu em 7 de Fevereiro de 2013 que a sentença proferida nos embargos de executado só é vinculativa entre o embargante (ou embargantes) e o exequente, não sendo os restantes executados abrangidos pela eficácia do caso julgado.

11. No citado processo de … (processo n.º 665/1994) já foi penhorada à aqui Autora (e ali executada avalista) a quantia total de 241.416,71€ (duzentos e quarenta e um mil quatrocentos e dezasseis euros setenta e um cêntimos), não constando dos autos quaisquer outros pagamentos por parte dos restantes executados.


    IV – Abordemos agora a questão suscitada:


Da nulidade da sentença negada pelo Tribunal da Relação:

Nas conclusões 1ª a 22ª o recorrente aborda a questão da nulidade que imputa à sentença proferida na 1ª instância, por não ter conhecido da exceção do abuso do direito em que a recorrida teria incorrido ao propor a presente ação, nulidade que, invocada nas alegações da apelação, foi tida como não verificada, como vimos, pelo acórdão recorrido que afirmou tratar-se de questão que não fora suscitada nem resultava dos factos apurados.

      Vejamos se assim é.

     Ao contestar a ação o ora recorrente alegou que:

- a recorrida foi citada para a ação executiva em 28.02.1994, mas nada fez, aceitando a pendência da execução contra si e conformando-se com toda a situação jurídica e jurídico-processual com que se defrontava, designadamente, com as penhoras no seu salário durante uma década e meia, contra as quais jamais reagiu – cfr. os arts. 16º, 18º 19º e 24º;

- a segurança e a certeza jurídicas, bem como a solidez das decisões emanadas do exercício da função jurisdicional não se compadecem com alterações supervenientes, ao sabor das partes que, inertes foram em determinado momento, ativistas pretendam ser em momentos históricos posteriores – cfr. os arts. 27º e 28º.

      Estas alegações foram feitas no segmento da contestação em que o recorrente arguia a exceção perentória da preclusão do direito da executada, aqui autora e recorrida, a impugnar o direito constante do título executivo e que contra ela era exercido.

     Pode, por isso, pensar-se que então não era ainda evidente que estivesse a ser invocado o exercício abusivo, por parte da autora, do direito que invocava, sendo, aliás, certo que a invocação da preclusão – causa extintiva desse direito – era incompatível com a invocação do exercício abusivo deste, o qual pressupõe, logicamente, a existência do mesmo direito (a ser abusivamente exercido).

    Porém, após a réplica da autora, foi proferido a fls. 156 despacho convidando o réu Banco BB a responder ao abrigo do princípio do contraditório, o que este fez através do articulado junto a fls. 158 e segs.; e nele o réu retomou os factos sobreditos, agora reconduzindo-os, já de forma expressa, ao exercício abusivo do direito invocado pela autora, enquanto “venire contra factum proprium” – cfr. os arts. 19º, 20º a 22º e 32º deste articulado de resposta.

    A questão do abuso do direito, que é de conhecimento oficioso, não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no art. 573º, visto caber nas exceções previstas no seu nº 2. Por isso, ainda que se possa entender que o réu a não invocara ao contestar, a partir daqueloutro articulado, é matéria que ficou flagrantemente incluída no leque de questões submetidas pelas partes à apreciação do tribunal – constituídas pelos pedidos formulados, causas de pedir invocadas e exceções deduzidas – e cujo conhecimento era imposto pelo nº 2 do art. 608º.

    Todavia, o saneador sentença não fez qualquer referência à questão do exercício abusivo do direito por parte da autora, assim incorrendo na nulidade por omissão de pronúncia prevista na primeira parte da al. d) do nº 1 do art. 615º.

      Não podemos, por isso, acompanhar o acórdão recorrido quando desatendeu a arguição desta nulidade feita pelo apelante, uma vez que a sua afirmação segundo a qual “(…) manifestamente esta questão não foi suscitada quer expressa, quer implicitamente (…)” é desmentida, como vimos, pela realidade processual que os autos evidenciam, por isso se impondo a sua revogação.

       Uma vez reconhecido pelas instâncias que a autora é titular do direito que pretende fazer valer na ação, impunha-se que apreciassem se havia, ou não, abuso desse direito.

         Porém, isso não foi feito.

     A omissão de pronúncia cometida na 1ª instância, apesar de geradora de nulidade nos termos sobreditos, poderia ter sido suprida pela Relação, nos termos do nº 2 do art. 665º.

      Mas o mesmo não se passa em sede de julgamento pelo STJ, já que o art. 679º, ao mandar aplicar ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação, excetua aquele art. 665º; assim, uma vez que se impõe, pelas razões já expostas, a revogação do acórdão, deverão os autos baixar à 2ª instância para que aí se aprecie a questão do abuso do direito a que nos vimos referindo.

 

     IV - Pelo exposto, julgando-se a revista procedente, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se que os autos voltem à Relação do ... para que aí se retome o julgamento da apelação e se aprecie a existência de abuso do direito imputado à autora.

        Custas conforme o que a final vier a ser decidido.


 Lisboa, 12.07.2018


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

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[1] Diploma a que respeitam as normas doravante referidas sem menção de diferente proveniência.

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 III – Vem descrita como provada a seguinte matéria factual: