Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
80/22.8TNLSB-A.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL
REGULAMENTO (EU) Nº 1215/2012 DE 12/09
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
ADESÃO
PACTO DE JURISDIÇÃO
VIOLAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- A regras sobre competência internacional previstas no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12-12-2012, sobre o reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, vulgarmente designado Regulamento Bruxelas I (bis) prevalecem sobre as estipulações constantes do Código de Processo Civil que regem sobre a mesma matéria.
II- No contexto do transporte marítimo internacional de mercadorias é de considerar válida uma cláusula compromissória inserida no rosto de um conhecimento de embarque (“bill of lading”), desde que se conclua que o mesmo obteve a aceitação do expedidor, do transportador, e do destinatário.
III- A adesão a tal cláusula por parte de uma empresa transitária que indemnizou a empresa destinatária em consequência de danos na mercadoria e a quem esta transmitiu o conhecimento de embarque pode manifestar-se mediante acordo de sub-rogação celebrado entre esta e a empresa destinatária da mercadoria transportada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
Transitex – Transitos de Extremadura, S.A. intentou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra CMA CMG Societé Anonyme e Victoria Seguros, S.A., pedindo a condenação solidária das rés a pagar-lhe a quantia de € 53.628,28; e a condenação da ré Victoria a pagar-lhe também a quantia de € 8.802,45, ambas acrescidas de juros de mora.
Para tanto alega ter sofrido prejuízos em consequência do cumprimento defeituoso de contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias, sustentando para tal que a 1ª demandada, na qualidade de transportadora, não cuidou de zelar pela manutenção da temperatura convencionada durante o período em que os bens deslocados lhe estiveram confiados, facto que determinou a perda total dos mesmos, e que celebrou com a segunda demandada um contrato de seguro de transporte de mercadorias, tendo esta recusado ressarci-la dos mencionados danos.
Citadas as rés, ambas contestaram, tendo a ré CMA invocado a exceção dilatória de incompetência absoluta, por preterição de pacto de jurisdição, sustentando, em síntese, que no conhecimento de embarque a que a autora se refere na petição inicial, foi aposta uma cláusula epigrafada de “JURISDICTION” (cláusula 31), a qual estabelece que “Todas as reclamações ou ações que resultem entre o Transportador e o comerciante relacionadas com o Contrato de transporte titulado por este conhecimento de Embarque deverão ser intentadas em exclusivo no Tribunal de Commerce de Marseille e nenhum outro Tribunal terá competência no que respeita a tais reclamações ou ações”. 
Sustentou esta ré que tal cláusula fixa um pacto atributivo de jurisdição que é válido e é exclusivo na jurisdição portuguesa e na francesa por força dos termos do Regulamento (CE) nº 1215/2012 do Parlamento e do Conselho de 12/12/2012 relativo á competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial que está em vigor entre estados membros da união Europeia; e que estando a Autora sub-rogada nos direitos do portador do Conhecimento de Embarque ajuizado, tal cláusula lhe é oponível, pelo que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da presente ação.
Conclui pugnando pela sua absolvição da instância.  
Depois de ter sido convidada para se pronunciar sobre tal exceção, a autora respondeu pugnando pela improcedência de tal exceção.
Seguidamente, foi proferido despacho saneador, julgando procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal, por preterição de pacto de jurisdição, e consequentemente, declarando o Tribunal Marítimo de Lisboa incompetente para a presente causa, relativamente à ré CMA, e absolvendo a mesma da instância, determinando o prosseguimento da causa no tocante à ré Victoria, S.A..
Inconformada com o decidido no despacho saneador, veio a autora interpor o presente recurso de apelação, formulando alegações, que sintetizou nas seguintes conclusões:
A. A decisão objeto de recurso é nula, porquanto o Tribunal de Primeira Instância tomou conhecimento sobre matérias impugnadas e controvertidas nos autos, perante as quais não deveria pronunciar-se antes da produção de prova de ambas as partes (cf. art. 615, nº 1, alínea d)).
B. O Tribunal não podia dar como assente o disposto nas alíneas a) b) c) e f), as quais são contrárias aos documentos juntos aos autos, por se basear em documentos impugnados pelas partes.
C. Devendo ser alterada a matéria assente nos seguintes termos: 

a) Com a data de 23/08/2021 foi emitido o draft bill of lading junto a fls. 12, no qual foram apostas no seu anverso, designadamente as seguintes menções: (…).
b) Ainda no anverso do draft do bill of lading em apreço, encontra-se aposta, uma cláusula com o seguinte teor: 
«Todas as reclamações ou ações que resultem entre o Transportador e o Comerciante relacionadas com o contrato de Transporte titulado por este Conhecimento de Embarque deverão ser intentadas em exclusivo no Tribunal de Commerce de Marseille e nenhum outro Tribunal terá competência no que respeita a tais reclamações ou ações». 
c) O referido draft bill of lading não está assinado pela Autora, carregador e transportador. 
f) O contentor foi embarcado a bordo do navio WEC de HOOGH, no porto de Setúbal, a 23/08/2021 e seguiu viagem a 24/08/2021.”
D. O Tribunal de primeira instância não poderia ter dado como assente que o documento de folhas 12 continha no seu verso diverso clausulado, tendo sido impugnado o documento de folhas 146.
E. O documento de folhas 12 não se encontra assinado, não podendo o Tribunal aferir o contrário.
F. A Recorrente não é a portadora do Bill of Lading (BL), por este não ter sido emitido, nem lhe ter sido endossado.
G. É matéria controvertida, a data a partir da qual a Recorrida veio assumir a responsabilidade pela guarda e conservação da mercadoria, só podendo dar-se como assente a data em que o contentor foi carregado a bordo, i.é a 23.08.2021.
H. Tais factos, que não foram tidos em conta, são essências para uma correta aplicação do direito, o que enfermou em erro na apreciação do presente caso concreto e, em consequência, na presente decisão proferida que ora se recorre.
I. Conforme resulta dos presentes autos, foi celebrado um contrato de transporte marítimo entre a AGPMEAT, SA e a CMA CGM, aquela por intermédio da Recorrente e esta, por intermédio do seu agente de navegação em Portugal.
J. A Recorrida, deveria efetuar o transporte marítimo destas mercadorias desde o Porto de Setúbal (Portugal) até ao Porto de Tianjin Xingang (China) e entregá-las ao consignatário identificado no draft do BL.
K. As referidas mercadorias foram acondicionadas no contentor, fornecido pela Recorrida, com o nº TTNU8835318, o qual depois de consolidado, foi entregue no Porto de Setúbal, a 17.08.2021.
L. O referido contentor foi carregado a bordo do navio WEC DE HOOGH, no dia 23.08.2021, tendo iniciado viagem a 24.08.2021.
M. A 25.08.2021, a Autora foi avisada pela Ré CMA, que o contentor objeto dos presentes autos, se encontrava com uma avaria que não podia ser reparada a bordo, pelo que a unidade iria descarregar no Porto de Leixões, impedindo assim a sua viagem até ao Porto de destino contratado.
N. A Recorrida, em face do ocorrido, não veio a emitir o conhecimento de embarque, existindo apenas um draft do mesmo.
O. Os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para decidir da presente ação, conforme o disposto no art.º 30, nº 1, alíneas a), b) e d), do DL 352/86 de 21 de outubro, art.º 62º do CPC.
P. Os pactos de jurisdição, são em regra aceites no nosso ordenamento jurídico, desde que cumpridos alguns requisitos de validade, conforme o disposto no art.º 59º, 94º do CPC.
Q. Em matéria de direito marítimo, o art.º 7º, nº 1 da Lei 35/86 de 04 de Setembro, estipula uma regra especial segunda a qual, não é válido, o pacto destinado a privar de jurisdição os tribunais portugueses, quando a estes for de atribuir tal jurisdição por força do disposto no artigo 65.º do Código de Processo Civil.” (atual art. 62º do CPC).
R. Sendo Portugal um Estado-membro da UE, está necessariamente vinculado aos regulamentos comunitários em matéria de competência internacional e pactos de jurisdição. Nesta matéria, encontra-se atualmente em vigor o Regulamento 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, conhecido como Regulamento Bruxelas I-bis.
S. O art.º 25º, nº 1 do Regulamento 1215/2012 ou Bruxelas i-bis (tal como os artigos que se lhe antecederam nos diplomas legais precedentes), obriga a um acordo de vontade entre as partes contratantes (carregador e transportador), para que o referido pacto seja considerado válido e eficaz. É este acordo de vontades entre as partes que justifica o primado concedido, em nome do princípio da autonomia da vontade, à escolha de uma jurisdição diferente daquela que teria sido eventualmente competente por força do regulamento.
T. O Tribunal de Justiça subordina a validade de uma cláusula atributiva de jurisdição à existência de uma «convenção» entre as partes, competindo ao órgão jurisdicional nacional, a obrigação de averiguar, em primeiro lugar, se a cláusula que lhe atribui competência foi efetivamente objeto de consenso entre as partes. Este consenso entre as partes, deva manifestar de forma clara e precisa, por forma a assegurar que o consentimento seja efetivamente provado. Por essa razão, a cláusula atributiva de jurisdição, em regra, apenas produz efeitos em relação às partes.
U. No caso dos autos não se encontram preenchidos os requisitos impostos pelo art.º 25º, nº 1, alíneas a) e c), não tendo sido invocado o requisito da alínea b) do Regulamento 1215/2012, para que o pacto de jurisdição invocado não podia ser considerado válido e eficaz entre as partes. 
V. Não existiu acordo prévio de vontades entre o carregador e o transportador, o draft do BL não está assinado pelas partes, pelo que não pode ser considerado como celebrado por escrito, não tendo igualmente existido um acordo verbal prévio, reduzido a escrito.
W. Também não se pode aferir um a existência de um uso que as partes conheçam e observem nos contratos do mesmo tipo e do mesmo ramo, limitando-se a Recorrida a invocar a atividade das partes e colocação de clausulas idênticas nos conhecimentos de embarque, sem as discriminar e sobretudo sem as relacionar com a carregadora. Desde logo, tais alegações são meras opiniões, que carecem de suporte fático, que permita chegar a conclusão da existência de um acordo de vontades entre as partes na celebração do pacto de jurisdição pelos usos.
X. Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato, devem ser tratados como um acordo independente dos outros termos do contrato, sendo igualmente certo, que tal cláusula é assessória ao contrato de transporte.
Y. As Convenções Internacionais referentes às matérias marítimas, são de interesse para o caso concreto dos presentes autos, pois que as convenções mais recentes se têm debruçado sobre esta questão, e coincidem no sentido de apenas serem aceites estes pactos atributivos de jurisdição, celebrados após o início do Litígio (cfr. Art.º 21º da Convenção Hamburgo e art.º 30º e 66º da Convenção de Roterdão), o que não é o caso dos autos.
Z. Uma cláusula atributiva de jurisdição inserta num conhecimento de carga, para que seja oponível a um terceiro nesse contrato, terá que previamente reconhecida como válida entre o carregador e o transportador devendo após ser aferido se nos termos do direito nacional aplicável, o terceiro portador, ao adquirir o conhecimento da carga, suceda nos direitos e obrigações do carregador, o que não é o caso dos autos.
AA. A presente ação foi intentada contra a Recorrida CMA, mas também contra a Ré Vitória, com base na mesma causa de pedir e pedido. Deveria o Tribunal de Primeira Instância ter aplicado o disposto nº 1 do art.º 8º do Regulamento 1215/2012, e ter aplicado a regra da competência do tribunal de qualquer um deles, ou seja, a competência dos tribunais português, uma vez que a outra Ré tem sede em Portugal por forma a evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se as causas forem julgadas separadamente.
BB. A competência do Tribunal constitui um pressuposto processual e afere-se perante a relação material controvertida e o pedido formulado pelo autor na petição inicial. Tal como alegado em sede de PI, a Autora vem exercer o seu direito de regresso sobre a Ré CMA.
CC. Não sendo a Autora parte no contrato de transporte celebrado, é mesmo assim responsável, em virtude do art.º 15º, nº 1 do DL 255/99 de 07 de Julho, que regula o regime jurídico da atividade transitária.
DD. Os Institutos do Direito de Regresso e Sub-rogação têm origens diferentes, embora ambos previstos no Código Civil. A sub-rogação constitui uma forma de transmissão de um crédito, em que o “novo” credor (credor “sub-rogado”), até então, era alheio à relação contratual (era um terceiro), já no direito de regresso o que temos é um credor e dois (ou mais) devedores.
EE. No direito de regresso, o direito do primitivo credor extingue-se e surge ex novo na esfera jurídica do devedor solidário cumpridor um direito contra o devedor não pagador. Este novo direito não beneficia das garantias, nem enferma das vicissitudes do direito do credor originário. 
FF. Estando em causa um direito de regresso entre a Recorrente e Recorrida, não é oponível o pacto de jurisdição invocado por esta última, mesmo que seja considerado válido entre as partes do contrato de transporte, também não lhe sendo aplicável o regime de transmissão dos títulos de crédito - que se aplica aos adquirentes subsequentes no BL, sempre que este seja igualmente um título de propriedade da mercadoria.
GG. Em face do exposto a decisão de primeira instancia ao decidir pela procedência da exceção da incompetência internacional dos Tribunais Portuguese, mais concretamente do Tribunal Marítimo de Lisboa, violou o disposto nos art.ºs 8, nº 1 e 25º do Regulamento 1215/2012, art.ºs 59º, 62º do CPC, o art.º 7º, nº 1 da Lei 85/86 de 04.09, art.º 30º do DL 352/86 de 21.10, art.º 15º do DL 255/99 de 07.07.
Rematou as suas conclusões nos seguintes termos:
“(…) deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, substituída a douta sentença recorrida (…).”
A ré CMA apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da presente apelação e consequente manutenção da decisão recorrida.
Recebido o recurso nesta Relação, e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[1]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, está vedado a este Tribunal o conhecimento de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
No caso em análise, as questões a decidir são as seguintes:
- A nulidade do despacho saneador apelado – Conclusão A;
- A impugnação da decisão sobre matéria de facto – Conclusões B a H;
- A incompetência absoluta do Tribunal relativamente à ré CMA, por preterição de pacto de jurisdição – Conclusões I a GG.

3. Fundamentação
3.1. Os factos
Na decisão apelada o Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
a) Com a data de 23/08/2021 foi emitido o bill of lading junto a fls. 12 e 146v. e ss., no qual foram apostas no seu anverso, designadamente as seguintes menções:
"VOYAGE NUMBER 04OB8S
BILL OF LADING NUMBER LSO0175847
SHIPPER: AGPMEAT, S.A. (…) REGUENGOS DE MONSARAZ, PORTUGAL
CONSIGNEE: SHENGCHANGHONG INTERNATIONAL TRADING PTY, LTD. (…) GUANGZHOU, CHINA
NOTIFY PARTY: SHENGCHANGHONG INTERNATIONAL TRADING PTY, LTD. (…) GUANGZHOU, CHINA.
CARRIER: CMA CGM Societé Anonyme (…)
PORT OF LOADING: SETÚBAL
PORT OF DISCHARGE:  TIANJIN XINGANG
PLACE AND DATE OF ISSUE: LISBOA 23 AUG 2021”
b) Ainda no anverso do bill of lading em apreço, encontra-se aposta uma cláusula com o seguinte teor:
«Todas as reclamações ou ações que resultem entre o Transportador e o Comerciante relacionadas com o contrato de Transporte titulado por este Conhecimento de Embarque deverão ser intentadas em exclusivo no Tribunal de Commerce de Marseille e nenhum outro Tribunal terá competência no que respeita a tais reclamações ou ações».
c) O referido bill of lading não está assinado pela Autora.
d) A Autora tem sede em Portugal.
e) A Autora é uma sociedade transitária.
f) O contentor entregue para transporte em 23/08/2021 foi embarcado a bordo do navio WEC de HOOGH, no porto de Setúbal e seguiu viagem a 24/08/2021.
g) O contentor sofreu uma avaria e teve de ser descarregado no Porto de Leixões.
h) A Ré CMA CGM tem sede em França.
i) Autora pagou à sua cliente “Agpmeat SA” o montante de € 62.430,73, referente à avaria da mercadoria.
j) A Autora é uma empresa transitária, constituída em 17/04/2008 e que tem por   objecto a «Organização do transporte, por terra, mar ou ar, seja o mesmo feito a nível nacional ou internacional, por conta do expeditor ou do destinatário, envolvendo, desde logo, actividades no âmbito da planificação, controlo, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos para a expedição, recepção e circulação de mercadorias. Encontra-se igualmente incluído no objecto a grupagem de cargas e, bem assim, a embalagem e desembalagem desde que tal vise proteger os bens em trânsito.»
Não consta do despacho saneador recorrido qualquer elenco de factos não provados.

3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da nulidade da decisão apelada por excesso de pronúncia
Nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
A citada disposição legal aplica-se aos despachos, com as necessárias adaptações ex vi do art.º 613º, nº 3 do CPC.
Trata-se de uma nulidade que resulta da violação do disposto no artigo 608º, nº 2, do mesmo Código, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Neste contexto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Conforme já ensinava ALBERTO DOS REIS[3], “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões/pretensões formuladas que o tribunal tenha o dever de apreciar e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.
Dito de outro modo: esta nulidade só ocorre quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, e não quando apenas se verifica a mera omissão da ponderação das “razões” ou dos “argumentos” invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas. Com efeito, as questões a decidir não são os argumentos utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir.
Do supra exposto flui que não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam para sustentar a procedência ou improcedência da ação. Nas palavras precisas de MANUEL TOMÉ SOARES GOMES[4] “(…) já não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito.”
Pode, pois, concluir-se que não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes. O juiz não tem que analisar todos os argumentos invocados pelas partes, embora se ache vinculado a apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente.
Assim, incumbe ao juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente deve conhecer, mas não tem que se pronunciar sobre os pedidos e questões cujo conhecimento esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outros/as (art.º 608º, nº 2, do CPC).
O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui. Por isso, não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra. 
No que tange ao excesso de pronúncia (segunda parte da alínea d) do nº 1 do art.º 615º), o mesmo ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado. Também neste domínio valem as considerações acima expendidas a propósito da delimitação do conceito de questões.
 Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2012  (João Bernardo), p. 469/11.8TJPRT.P1.S1[5] à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões suscitadas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integrar nulidade.
A discordância da parte relativamente à subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou à decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença.
Como se afere das considerações supra expostas, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que a omissão ou excesso de pronúncia enquanto causas de nulidade da sentença têm por objeto questões a decidir na sentença, e não propriamente factos ou argumentos jurídicos.
Neste sentido, sublinhou o ac. RL 23-04-2015 (Ondina Alves), p. 185/14.9TBRGR.L1-2, que «questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem.
Apreciar e rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência ou a improcedência da ação, bem como a circunstância de lhes fazer, ou não, referência, não determina a nulidade da sentença por excesso ou omissão de pronúncia. (…)
Situação diversa da nulidade da sentença é a de saber se houve erro de julgamento, pois como se refere no Ac. do STJ de 21.05.2009 (Pº 692-A/2001.S1), (…) se a questão é abordada, mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, não “error in procedendo”». 
Em sentido semelhante, decidiu, entre outros, e por mais recente, o ac. RC 23-02-2016 (Carvalho Martins), p. 2316/12.4TBPBL.L1, no qual, invocando o ac. STJ 14-06-2010 (Sebastião Póvoas), p. 461/2001.L1.S1, aquele Tribunal sublinhou que “só há omissão de pronúncia com vício de limite previsto na al. d) do nº1 do art. 668º do CPC (615º NCPC), quando o Tribunal incumpre quanto aos seus poderes e deveres de cognição o disposto no nº2 do art. 660º do mesmo diploma (608º NCPC)”.
Também o ac. RG 16-11-2017 (José Flores), p. 833/15.3T8BGC.G1, apontou em sentido idêntico, referindo que “não constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia a circunstância de não se apreciar e fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocam tendo em vista obter a (im)procedência da ação.“
Não obstante, mais recentemente, esta mesma questão foi apreciada de modo algo diverso no ac. RL 29-05-2018 (Luís Filipe Pires de Sousa), p. 19516/17.3YIPRT.L1-7. Neste aresto, apreciava-se uma situação em que na sentença se considerou provado determinado facto não alegado pelas partes, e que o Tribunal recorrido qualificou como complementar ou acessório (art. 5º, nº 2, al. b) do CPC), sem que no decurso da audiência tenha informado as partes da possibilidade de considerar tal facto na sentença, e sem que tenha concedido aos litigantes a possibilidade de produzir prova.
Com efeito, no mencionado acórdão expôs–se o seguinte:
 “(…) da ata da audiência de julgamento não resulta que o Mmo. Juiz a quo tenha anunciado às partes a pretensão de ampliar a matéria de facto e, muito menos, que lhes tenha facultado a produção de prova, sendo certo que este Tribunal da Relação não tem acesso à gravação da audiência porque não ocorreu.
Nesta medida, não tendo sido observado o formalismo garantístico da alínea b) do nº 2 do artigo 5º, a subsequente decisão do tribunal a quo de considerar tais factos na sentença consubstancia uma nulidade por excesso de pronúncia porquanto o tribunal conheceu de questões de que não podia, nessas circunstâncias, tomar conhecimento (Artigo 615º, nº1, alínea d), do Código de Processo Civil)”. Em sentido semelhante se havia igualmente pronunciado o ac. RP 30-04-2015 (Aristides Rodrigues de Almeida), p. 5800/13.9TBMTS.P1.
Quanto a nós, cremos que a nulidade decorrente de omissão ou excesso de pronúncia não tem por objeto factos, mas apenas as questões de direito a dirimir à luz da causa de pedir da ação ou da reconvenção, bem como as questões de direito que integram a defesa por exceção.
No caso dos autos sustentou a apelante que o despacho saneador apelado é nulo, por excesso de pronúncia, “porquanto o Tribunal de Primeira Instância tomou conhecimento sobre matérias impugnadas e controvertidas nos autos, perante as quais não deveria pronunciar-se antes da produção de prova de ambas as partes”.[6]
No despacho de admissão liminar do recurso, a Mmº Juiz a quo sustentou que o despacho apelado não padece de qualquer nulidade, por não ter apreciado nenhuma questão que não tivesse sido suscitada pelas partes.
Como se afere da transcrição que antecede, a apelante considera que o despacho saneador apelado é nulo porque considerou provados factos que em seu entender se encontravam controvertidos, razão pela qual em seu entender o Tribunal a quo só poderia pronunciar-se sobre os mesmos depois de produzidos os meios de prova indicados pelas partes.
Ora, como referimos, a nulidade por excesso de pronúncia não se reporta a factos, mas sim a questões de Direito.
A argumentação expendida pela apelante releva e pode ser objeto de apreciação, seja no plano da apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto, seja no âmbito da verificação dos pressupostos para o conhecimento da exceção de incompetência absoluta, mas não configura nulidade por excesso de pronúncia.
Termos em que, sem prejuízo dessa análise, sem conclui que a decisão apelada não padece de tal nulidade.

3.2.2. Da impugnação da decisão sobre matéria de facto
3.2.1.1. Apreciação liminar
Dispõe o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou documento/s superveniente/s, impuserem decisão diversa.
Nos termos do art.º 640º n.º 1 do mesmo código, quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida.
Sumariando todos os ónus impostos pelo citado preceito, ensina ABRANTES GERALDES[7]:
“(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso, e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
f) (…).”
No caso em apreço a apelante observou, de modo suficiente, todos os apontados ónus, razão pela qual inexistem motivos para rejeitar a impugnação da decisão sobre matéria de facto.

3.2.1.2. Do mérito da impugnação da decisão sobre matéria de facto
3.2.1.2.1. Considerações gerais
A decisão sobre matéria de facto impugnada faz parte integrante de um despacho saneador no qual foi decidida a exceção de incompetência absoluta do Tribunal por violação de um pacto de jurisdição.
O alcance e utilidade daquela decisão de facto deve, pois, ser entendido em função do âmbito da decisão que suporta, ou seja, a sua utilidade e alcance esgota-se na decisão sobre a competência material.

3.2.1.2.2. Als. a) e b)
As als. a) e b) dos factos provados têm o seguinte teor:
a) Com a data de 23/08/2021 foi emitido o bill of lading junto a fls. 12 e 146v.   e ss., no qual foram apostas no seu anverso, designadamente as seguintes menções:
"VOYAGE NUMBER 04OB8S
BILL OF LADING NUMBER LSO0175847
SHIPPER: AGPMEAT, S.A. (…) REGUENGOS DE MONSARAZ, PORTUGAL
CONSIGNEE: SHENGCHANGHONG INTERNATIONAL TRADING PTY, LTD. (…) GUANGZHOU, CHINA
NOTIFY PARTY: SHENGCHANGHONG INTERNATIONAL TRADING PTY, LTD. (…) GUANGZHOU, CHINA.
CARRIER: CMA CGM Societé Anonyme (…)
PORT OF LOADING: SETÚBAL
PORT OF DISCHARGE:  TIANJIN XINGANG
PLACE AND DATE OF ISSUE: LISBOA 23 AUG 2021”
b) Ainda no anverso do bill of lading em apreço, encontra-se aposta uma cláusula com o seguinte teor:
«Todas as reclamações ou ações que resultem entre o Transportador e o Comerciante relacionadas com o contrato de Transporte titulado por este Conhecimento de Embarque deverão ser intentadas em exclusivo no Tribunal de Commerce de Marseille e nenhum outro Tribunal terá competência no que respeita a tais reclamações ou ações».
O Tribunal a quo justificou a sua convicção relativamente a estes factos nos seguintes termos:
“Os factos provados nas als. a) a f) avultam da análise do ‘Bill of Landing’ junto a fls. 12 e 146v., o qual não foi impugnado.”
A apelante discorda da decisão proferida quanto a estes pontos de facto, pugnando pela alteração da sua redação, de modo a que:
- Nas als. a) e b), onde consta “bill of lading” passe a constar “draft bill of lading”;
- Na al. a), onde consta “fls. 12 e 146v.” passe a constar “fls. 12”.
No que toca à primeira alteração referida, sustenta que “quer o documento junto a folhas 12 que constitui o doc. 3 da PI, quer o documento junto a folhas 146, que constitui o doc. 1 junto com a Conestação, materializam um draft do BL” e que “o BL não chegou a ser emitido”.[8]
Sucede, contudo, que a própria apelante, na petição inicial, seja no articulado de resposta às exceções se referiu repetidas vezes a este documento qualificando-o como conhecimento de embarque (bill of lading), nunca o tendo qualificado como minuta ou proposta de conhecimento de embarque (draft of bill of lading) – vd. arts.  9, 17, 53 da petição inicial, 35, 36, e 38 do articulado de resposta às exceções.
Acresce que no art. 13 da petição, reportando-se aos termos em que foi acordado o transporte da mercadoria, nomeadamente os descritos no “conhecimento de embarque com o nº LSO0175847”, referido no art. 9 do mesmo articulado, e que ela mesma reconheceu ser o documento 3 junto com a petição inicial (art. 12), afirmou expressamente que a ré CMA aceitou o transporte nos termos ora expostos.
Donde, de acordo com o sustentado pela própria apelante na petição inicial, não se tratava de uma minuta, mas de um conhecimento de embarque em sentido próprio.
Acresce que nem na petição inicial, nem no articulado de resposta a apelante sustentou que o bill of lading nunca chegou a ser emitido.
Tanto basta para concluir pela improcedência da impugnação, quanto à pretendida substituição da expressão “bill of lading” pela expressão “draft bill of lading”.
Quanto à referência ao documento de fls. 146v., sustentou a apelante que “impugnou o documento de folhas 146, o qual é idêntico ao documento de folhas 12, tendo-lhe sido acrescentado um clausulado no verso, razão pela qual, se encontra o mesmo impugnado pela Recorrente (cf. requerimento com a refª 44484592 de 23.01.2023)”.
O documento de fls. 12 foi junto pela própria apelante como doc. nº 3 junto com a petição inicial, e o documento de fls. 146 foi junto pela ré como documento nº 1 junto com a contestação.
A análise do suporte informático do processo revela que em 23-01-2023 a apelante apresentou o requerimento com a refª 159194/44484592, no qual, reportando-se aos documentos juntos pela ré CGM com a sua contestação, afirma que “No que diz respeito ao doc. 1 junto, a Autora apenas aceita o doc. 3 junto com a PI, pelo que vai este expressamente impugnado.”
Daqui resulta, de forma clara, que a apelante impugnou expressamente o documento de fls. 146.
Tratando-se de um documento que a apelante não assinou, constituindo o mesmo um documento particular sem autenticação, não tem força probatória plena, pelo que tendo sido impugnado, não podia o Tribunal a quo fazer constar da al a) dos factos provados a mencionada referência a fls. 146.
Termos em que se, nesta parte, procede a impugnação, determinando-se a supressão do inciso “e 146v.” que consta da al. a) dos factos provados.

3.2.1.2.3. Al. c)
A al. c) dos factos provados tem o seguinte teor:
c) O referido bill of lading não está assinado pela Autora.
O Tribunal a quo justificou a sua convicção relativamente a estes factos nos termos já expostos.
A apelante sustenta que a referência apenas à autora resulta certamente de um equívoco, e pugna pela alteração da redação deste ponto de facto, de modo a que, onde consta “bill of lading” passe a constar “draft bill of lading”, e que onde conste “pela Autora”, passe a constar “pela Autora, carregador, e transportador”.
Quanto à primeira alteração pretendida, a mesma não procede, pelas mesmas razões referidas no ponto que antecede.
No tocante à segunda, inexiste qualquer lapso do Tribunal a quo, e não há que inserir na al. b) qualquer referência ao carregador e ao transportador, pela singela razão de que a utilidade da decisão sobre matéria de facto se cinge à apreciação da exceção de incompetência absoluta, sendo por isso inócuo aferir se o carregador e transportador assinaram ou não o mencionado documento.
Termos em que se conclui que nenhuma alteração deve ser feita na redação da al. c) dos factos provados.

3.2.1.2.4. Al. f)
A al. f) dos factos provados tem o seguinte teor:
f) O contentor entregue para transporte em 23/08/2021 foi embarcado a bordo do navio WEC de HOOGH, no porto de Setúbal e seguiu viagem a 24/08/2021.
O Tribunal a quo justificou a sua convicção relativamente a estes factos nos termos já expostos.
A apelante discorda do entendimento do tribunal a quo, sustentando que deve considerar-se provado que “o contentor foi embarcado a bordo do navio WEC de HOOGH, no porto de Setúbal a 23/08/2021 e seguiu viagem a 24/08/2021”, suprimindo-se o inciso “o contentor entregue para transporte em 23/08/2021”.
Para tanto alega que “apesar da recorrente ter alegado que o contentor foi entregue no Porto de Setúbal a 17.08.2021 à guarda da Recorrida, tendo sido carregado a bordo a 23.08.2021”, “a recorrida veio em sede de contestação alegar que o acordo havia sido celebrado CAIS/CAIS”.
Porém, a doutrina e a jurisprudência dominantes vêm sustentando, de forma pacífica que sempre que se verifique que a alteração da decisão sobre matéria de facto pretendida pelo apelante é manifestamente insuscetível de ter como efeito a alteração da decisão quanto ao fundo da causa, deve concluir-se que a impugnação da decisão sobre matéria de facto contraria os princípios da celeridade e celeridade e economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do CPC), e constitui um ato inútil, e como tal proibido (art. 130º), razão pelo qual deve o Tribunal da Relação rejeitá-la.
Conforme refere Carlota Spínola[9] «(...) o TR[10] está eximido do exercício do dever de modificabilidade da decisão de facto nas situações de irrelevância processual que ficam, por conseguinte, excluídas do campo de aplicação do art.º 662.º. Esta constatação lapalissiana baseia-se no princípio da limitação dos atos expressamente previsto no art.º 130.º, enquanto manifestação do princípio da celeridade e da economia processual, acolhidos nos art.ºs 2.º/1 e 6.º/1.
Como é aludido nos acs. do TR de Guimarães (TRG) de 20/102016 (proc. n.º 2967/2012, ID 369508) e de 26/11/2018 (proc. n.º 272/2017, ID 400002), a Relação não deve reapreciar a matéria factual quando os concretos factos objecto da impugnação forem insuscetíveis, “face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito”, de ter “relevância jurídica”, sob pena de executar uma atividade processual que já previamente sabia ser “inútil” ou “inconsequente”. Por outras palavras, o exercício dos poderes-deveres de investigação pela Relação só é admissível se recair sobre factos com interesse para o recurso, i. e., factos que a serem demonstrados, modificados ou dados como provados alteram a solução ou o enquadramento jurídico do objeto recursório.».
No mesmo sentido afirma Henrique Antunes[11] que «de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância, seja qual for a modalidade considerada, só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (art.º 130 do nCPC).
Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância, a anulação da decisão ou o reenvio do processo para essa instância para que seja fundamentada, a renovação ou a produção de novas provas. Isso sucederá sempre que, por exemplo, mesmo com a substituição da decisão da matéria de facto impugnada, a solução ou enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, v.g., mesmo com a modificação, os factos adquiridos são insuficientes ou inidóneos para modificar a decisão de procedência ou de improcedência, da acção ou da excepção, contida no despacho ou na sentença recorrida.
Portanto, a actuação dos apontados poderes de controlo só deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção.».
 Neste sentido cfr. tb. acs. das Relações:
- RP 19-05-2014 (Carlos Gil), p.         2344/12.0TBVNG-A.P1;
- RC 16-02-2017 (Moreira do Carmo), p. 52/12.0TBMBR.C1;
- RG 11-07-2017 (Maria João Matos), p. 5527/16.0T8GMR.G1;
- RG 02-11-2017 (Maria João Matos), p. 501/12.8TBCBC.G1;
- RG 08-02-2018 (Maria Amália Santos), p. 96/14.8TBAMR.G1;
- RL 17-04-2018 (Torres Vouga), p. 3830/15.5T8LRA.L1-1;
- RC 16-10-2018 (Moreira do Carmo), p. 1467/15.8T8CBR-A.C1;
- RL 26-09-2019 (Carlos Castelo Branco), p. 144/15.4T8MTJ.L1-2;
- RL 24-09-2020 (Inês Moura), p. 35708/19.8YIPRT.L1-2;
- RG 02-03-2023 (Jorge Teixeira), p. 189/20.2T8ALJ.G1;
- RL 14-03-2023 (Alexandra Castro Rocha), proc. 176/17.8TNLSB.L1;
- RP 22-05-2023 (Miguel Baldaia Morais), p. 3602/14.4TBMAI-B.P1.
… bem como os seguintes ac. do STJ:
- STJ 17-05-2017 (Fernanda Isabel Pereira), p. 4111/13.4TBBRG.G1.S1;
- STJ 13-07-2017 (Fonseca Ramos), p. 442/15.7T8PVZ.P1.S1.;
- STJ 30-06-2020 (Graça Amaral), p. 4420/18.6T8GMR-B.G2.S1;
- STJ 09-02-2021 (Mª João Vaz Tomé), p. 26069/18.3T8PRT.P1.S1.
No caso em apreço a alteração que a apelante pretende ver inserida na al. f) dos factos provados é absolutamente inócua, porque a decisão sobre matéria de facto impugnada esgota a sua utilidade no âmbito da apreciação da exceção de incompetência absoluta e, para apreciação desta, os factos em discussão não têm qualquer relevância.
Nada há, por isso, a alterar na redação da al. f) dos factos provados.

3.2.1.2.5. Síntese conclusiva
Face ao supra exposto, conclui-se pela alteração da redação da al. a) dos factos provados, nos termos expostos em 3.2.1.2.1., mantendo-se inalterados os demais pontos de facto impugnados.

3.2.3. Do contrato de transporte internacional de mercadorias por via marítima
Conforme resulta da factualidade provada, a ré CGM, na qualidade de transportadora, foi incumbida de proceder ao transporte marítimo de mercadorias entre os portos de Setúbal e Tianjin Xingang (na China), tendo sido emitido um conhecimento de transporte, no qual figuravam como “carregadora” ou “expedidora” a AGP Meat, SA, e como “consignatária” e “parte a notificar” uma sociedade de Direito Chinês, a Shengchanghong International Trading PTY, Ld.
Para tanto foi emitido um conhecimento de embarque, ou bill of lading, documentando o correspondente contrato de transporte marítimo de mercadorias. [12]
Como refere FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA[13], “(…) o contrato de transporte é um contrato triangular. (…) O contrato celebrado entre carregador e transportador não pode atingir o seu escopo sem a intervenção do destinatário, sem que o destinatário adira ao contrato. Por esta razão se afirma que o contrato de transporte nasce bilateral, mas potencialmente trilateral. (…)
O destinatário não é parte desde o início, porém desde o início existe a expectativa de que intervirá como parte. O contrato de transporte apresenta-se como um contrato inicialmente bilateral (celebrado entre carregador e transportador), aberto à adesão do destinatário; é celebrado na expectativa da adesão in itinere do destinatário. (…)”.
Mais refere o mesmo autor[14]: “(…) a adesão do destinatário reveste-se de importância fulcral. Esse é o elemento que introduz o destinatário no contrato de transporte; nesse momento, o destinatário aceita a proposta contratual formulada pelo carregador ou pelo transportador, tornando-se parte no contrato. O destinatário, inicialmente um terceiro, com a adesão ao contrato deixa de o ser, assumindo direitos e obrigações. (…)
Não há, pois, que estranhar ou questionar se, por força do contrato de transporte, podem ser impostas obrigações ao destinatário. Não faz sentido olhar com precaução ou suspeita o instituto, pois dele não resulta qualquer limitação ao princípio da relatividade dos contratos.”
Finalmente, diz o autor citado[15] que “Em França, onde tal conceção se consolidou, a Cour de Cassation vem entendendo que a adesão do destinatário se verifica no momento e com a receção das mercadorias pelo destinatário: o destinatário com a receção da mercadoria tornar-se-ia parte no contrato, podendo invocar a responsabilidade contratual do transportador; (…)
A receção da mercadoria pelo destinatário foi já considerada uma presunção da adesão do destinatário e, também, entendida como uma declaração tácita da sua adesão ao contrato de transporte. Aquele comportamento concludente do destinatário revelava indiretamente a sua vontade. (…)
Por outro lado, atendendo a qualquer uma daquelas caracterizações da receção da mercadoria a adesão do destinatário pode externar-se por via de outros comportamentos para além da receção.
Seja, por exemplo, a detenção do documento do transporte. seja a interposição de uma ação fundada no incumprimento contratual contra o transportador inadimplente. A relevância destas três situações como forma de externar (ao lado da receção da mercadoria) a adesão está patente nos art.ºs 15º, § 4 e 54º, § 3, alínea b) das RU-CIM.”
A tese exposta pelo autor citado, denominada da trilateralidade assíncrona, tem sido sustentada na jurisprudência nacional (em detrimento de outra tese que qualifica este contrato como um contrato bilateral a favor de terceiro) – cfr., entre outros, os acs. RL 22-06-2010 (Roque Nogueira), p. 1/08.0TNLSB.L1-7; RL 23-11-2011 (Teresa Albuquerque), p. 5849/04.2YXLSB.L1-2; RL 03-05-2012 (Aguiar Pereira), p. 43/09.9TNLSB.L1-6RC 16-12-2015 (Manuel Capelo), p. 2308/13.6TJCBR.C1, RL 19-10-2017 (Ondina Carmo Alves), p. 79/12.2TNLSB.L1-2; RL 05-02-2019 (Diogo Ravara), p. 64/17.8TNLSB.L1-7; e RL 15-12-2020 (Diogo Ravara), p. 175/17.0TNLSB.L1-7.
De qualquer modo, a doutrina vem salientando que a prestação típica do contrato de transporte de mercadorias se reconduz a uma obrigação de resultado, a saber, a deslocação dos bens do ponto de origem para o ponto de destino, com a inerente obrigação que impende sobre o transportador de entregar esse bens, íntegros, ao seu destinatário[16].
Tal entendimento foi igualmente manifestado no ac. RL 17-02-2005 (Granja da  Fonseca), p. 837/2005-6.
Numa perspetiva mais abrangente, o conjunto das posições jurídicas dos três intervenientes neste tipo de contrato foi lapidarmente enunciada no já identificado ac. RL 19-10-2017 (Ondina Carmo Alves), p. 79/12.2TNLSB.L1-2  nos seguintes termos[17]:
“São direitos do expedidor:
a)- A operação de deslocação da mercadoria de um local para outro, se proceda no tempo convencionado,
b)- Ter a disposição das mercadorias (artigo 380º, do Código Comercial), já que, em qualquer momento da execução do contrato, o expedidor pode dar novas ordens para o transportador, alterando o que, inicialmente, foi convencionado.
c)- A entrega das mercadorias seja feita ao destinatário no mesmo estado em que foram recebidas pelo transportador.
d)- Poder demandar contra o transportador em caso de incumprimento obrigacional, decorrente de perda ou avaria das mercadorias ou por atraso no cumprimento da prestação.
(…) deveres do carregador/expedidor:
a)- Entregar a mercadoria para o transportador no local convencionado.
b)- Efectuar o pagamento pela contraprestação do serviço (remuneração do transportador).
c)- Responsabilidade do transportador, mediante a descrição e individualização das mercadorias objecto do transporte, pelos danos resultantes de omissões ou incorreções sobre os elementos necessários à descrição das mercadorias e seus defeitos não declarados na embalagem e acondicionamento adequado das coisas a transportar, nos termos do artigo 4º do Decreto Lei 352/86 e também do artigo 3º, nº 5, da Convenção de Bruxelas.
(…) direitos do transportador:
a)- Recebimento da remuneração pela prestação do serviço de transporte (artigo 1º do Decreto Lei 352/86).
b)- Recebimento da mercadoria, objecto do contrato de transporte (artigo 3º, nº 3, da Convenção de Bruxelas).
c)- Apresentação de reserva no conhecimento de carga sobre o estado da mercadoria recebida (artigo 376º do Código Comercial e artigo 3º, nº 6, da Convenção de Bruxelas).
d)- Retenção da mercadoria enquanto não efetuado o pagamento do frete (artigo 390º do Código Comercial).
e)- Poder escolher o trajecto de deslocamento que melhor lhe seja conveniente, salvo estipulação em contrário.
(…) obrigações do transportador:
a)- Providenciar o deslocamento das mercadorias objecto do contrato de transporte de um lugar para outro, de forma incólume, no local e no tempo convencionado (artigos 383º a 385º do Código Comercial e artigo 4º, nº 1, da Convenção de Bruxelas), visto que é obrigação do transportador receber a mercadoria e entregá-la ao destinatário. Essa entrega pode ser: i) a bordo (compete ao destinatário as operações de descarga); ii) no cais (compete ao transportador descarregar a mercadoria); iii) no domicílio do destinatário (o transportador deve fazer as operações terrestres necessárias – descarga para o cais e subsequente transporte até o domicílio do destinatário).
b)- Emitir o conhecimento de transporte nos termos legais ou convencionados (artigo 369º do Código Comercial). Além de emitir o conhecimento, o transportador também tem a obrigação de verificar a exactidão das indicações que nele são apostas relativamente às mercadorias, em relação àquelas que, em razão da natureza e do acondicionamento das mercadorias e diante da modalidade técnica das operações de carga, seja possível o controle prévio pelo transportador (cfr. MÁRIO RAPOSO, Sobre o contrato de transporte de mercadorias por mar, Boletim do Ministério da Justiça (BMJ) 376, 1988, 36).
c)- Dever de informação que, em geral, resulta da boa fé na execução dos contratos (artigo 762º, nº. 2 do Código Civil). Na hipótese do transporte não se poder realizar ou estiver extraordinariamente em atraso, por caso fortuito ou força maior, deve o transportador avisar imediatamente o expedidor, podendo este rescindir unilateralmente o contrato, reembolsando o transportador pelo frete proporcional (artigo 379º, do Código Comercial) e restituindo a guia de transporte. O ónus da prova de que houve força maior é do transportador (artigo 383º do Código Comercial).
d)- Responsabilização pelas perdas e avarias das mercadorias e atrasos no cumprimento do contrato de transporte (artigos 377º, 383º e 384º do Código Comercial e artigos 3º e 5º da Convenção de Bruxelas).
(…) direitos do destinatário:
a)- Receber a entrega da mercadoria transportada, quando dispõe do título necessário, cabendo ao transportador fazer a prova dessa entrega (artigos 387º e 388º do Código Comercial). A entrega da mercadoria, para efeitos jurídicos, ocorre no momento em que o destinatário aceita a mercadoria transportada e entrega a declaração de recepção ao transportador, liberando-o, a partir daí, de qualquer risco sobre o objeto transportado.
b)- Verificar o estado da mercadoria transportada antes de seu recebimento (artigo 385º do Código Comercial).
c)- Disposição da mercadoria, como o expedidor, de forma alternativa (artigo 380º, § 2º do Código Comercial).
d)- Exigir a entrega da mercadoria transportada ou ressarcimento dos danos ocasionados por inadimplemento contratual (artigo 389º do Código Comercial).
(…) deveres do destinatário:
a)- Recebimento da mercadoria.
b)- Pagamento do preço, sendo o contrato de transporte um contrato bilateral entre o expedidor e o transportador, a questão que surge é a da possibilidade de ser cobrado o valor do frete ao destinatário e, se possível, em que condições.”

3.2.4. Do pacto (atributivo) de jurisdição e da validade do mesmo
No caso em apreço o conhecimento de embarque subscrito pela ré CGM na qualidade de transportadora continha uma cláusula atribuindo ao Tribunal de Comércio de Marselha a competência exclusiva para apreciar as causas relacionadas com o contrato de transporte titulado pelo conhecimento de embarque acima referido.[18]
Considerando que a presente ação foi intentada no Juízo Marítimo de Lisboa, coloca-se a questão de saber se este é o Tribunal internacionalmente competente para apreciar a presente causa ou se, como sustentou a ré CMA CGM, ocorre a exceção de incompetência internacional.
Assim sendo, cumpre verificar se a cláusula que consubstancia o pacto de jurisdição é ou não válida e oponível à autora.
Com efeito, como já tivemos oportunidade de referir, a única questão a equacionar e decidir reside em apreciar se os Tribunais portugueses, e mais concretamente o Tribunal Marítimo de Lisboa têm/tem competência internacional para apreciar a presente causa, tendo em consideração a invocação, pela ré, da exceção de incompetência internacional por violação de pacto de jurisdição.
O caráter internacional do litígio dos presentes autos resulta dos seus inúmeros elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras: desde logo porque a ré CMA CGM é uma sociedade de Direito Francês[19], mas também porque se convoca para a discussão dos autos um contrato de transporte marítimo internacional no qual intervieram, como transportadora, a ré, e ,como consignatária e destinatária da mercadoria, uma sociedade comercial de Direito Chinês[20].
Como elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa relevam as circunstâncias de a expedidora ser uma sociedade comercial de Direito Português, de a mercadora ter sido carregada no porto de Setúbal e posteriormente desembarcada no porto de Leixões[21], e a circunstância de a autora alegar terem sido detetados danos na carga, os quais, de acordo com o que o sustentou, foram verificados por perícia realizada no nosso país.
Como é sabido, a matéria da competência internacional dos Tribunais portugueses é regulada nos art.ºs 59º, 62º, 63º, e 94ºdo CPC.
Contudo, haverá igualmente que ter em conta que a primeira das referidas disposições legais estabelece que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”.
Do inciso inicial constante da citada disposição legal que assinalámos com um sublinhado decorre que sendo aplicável um qualquer instrumento de direito europeu ou internacional que regule a matéria da competência internacional dos Tribunais portugueses, ele aplicar-se-á em detrimento das regras do CPC.
Trata-se, no fundo, de uma decorrência do princípio do primado do Direito da União Europeia, enunciado no célebre acórdão Costa v. Enel, (p. C-6/64), e posteriormente consolidado através dos acórdãos Simmental (p. C-106/77); Solange I (p. C-11/70), e Solange II (p. C-345/82).
Muito embora este princípio não encontre consagração expressa no Tratado da União Europeia, e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o certo é que o mesmo resultou de elaboração jurisprudencial, tendo merecido referência expressa na declaração 17 anexa ao Tratado de Lisboa, que tem o seguinte teor:
 “A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adoptado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência.
Além disso, a Conferência decidiu anexar à presente Acta Final o parecer do Serviço Jurídico do Conselho sobre o primado do direito comunitário constante do documento 11197/07 (JUR 260):
«Parecer do Serviço Jurídico do Conselho de 22 de Junho de 2007
Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o primado do direito comunitário é um princípio fundamental desse mesmo direito. Segundo o Tribunal, este princípio é inerente à natureza específica da Comunidade Europeia. Quando foi proferido o primeiro acórdão desta jurisprudência constante (acórdão de 15 de Julho de 1964 no processo 6/64, Costa contra ENEL (1), o Tratado não fazia referência ao primado. Assim continua a ser actualmente. O facto de o princípio do primado não ser inscrito no futuro Tratado em nada prejudica a existência do princípio nem a actual jurisprudência do Tribunal de Justiça.
(1) “Resulta (…) que ao direito emergente do Tratado, emanado de uma fonte autónoma, em virtude da sua natureza originária específica, não pode ser oposto em juízo um texto interno, qualquer que seja, sem que perca a sua natureza comunitária e sem que sejam postos em causa os fundamentos jurídicos da própria Comunidade.”»”.
Na ordem jurídica nacional tal princípio mostra-se igualmente acolhido no art.º 8º, nº 4 da Constituição da República, que estabelece que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Sobre esta matéria da competência internacional em conflitos transnacionais regem atualmente o Regulamento (EU) nº 1512/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12-12-2012[22], mais conhecido como Regulamento Bruxelas I (Reformulado); e a Convenção relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinada em Lugano em 30-10-2007 (vulgarmente designada “Convenção de Lugano”).
Grosso modo, poderemos dizer que o Regulamento Bruxelas I se aplica aos litígios que oponham partes com domicílio em países da União Europeia, enquanto que a Convenção de Lugano se aplica aos litígios que envolvam sujeitos com domicílio em Estados-Membros da EFTA (European Free Trade Association).
Finalmente, haverá que considerar que a competência do Tribunal deve ser aferida em função da relação material controvertida que o autor a configura.
No sentido exposto cfr., entre muitos outros, os seguintes arestos, que sintetizam jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, que as Relações vêm igualmente seguindo:
- STJ 18-03-2002 (Mário Torres), p. 02S3074;
- STJ de 11-02-2015 (Gregório Silva Jesus), p. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1;
- STJ 06-09-2016 (Alexandre Reis), p. 1386/15.8T8PRT-B.P1.S1;
- STJ 04-12-2016 (Lopes do Rego), proc. 536/14.6TVLSB.L1.S1;
- STJ 07-10-2020 (Rosa Tching), p. 4435/19.7T8BRG.G1.S1;
- STJ 02-06-2021 (Mª do Rosário Morgado), p. 449/18.2T8FAR.E1.S1;
- STJ 27-10-2022(Oliveira Abreu), p. 533/21.5T8PNF.P1.S1;
- STJ 15-02-2023 (Ana Resende), p. 4239/20.4T8STB.E1.S1;
- STJ 09-05-2023 (Isaías Pádua), p. 2038/20.2T8LRA.C1.S1.
No caso dos presentes autos, como já referimos quer a autora, quer as rés têm sede em Estados-Membros da EU, pelo que a determinação da competência internacional deverá fazer-se através do Regulamento Bruxelas I (bis).
Como ensina MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[23], “A competência convencional internacional pode ser determinada através de um pacto de jurisdição (…). Esse pacto pode ser, quando considerado pela perspectiva da ordem jurídica portuguesa, atributivo ou privativo.
O pacto é atributivo quando concede competência a um tribunal ou a vários tribunais portugueses; a competência atribuída pode ser concorrente ou exclusiva. (…).
O pacto é privativo quando retira competência a um ou a vários tribunais portugueses e a atribui em exclusivo a um ou a vários tribunais estrangeiros (…).
É claro que, como o carácter atributivo ou privativo do pacto de jurisdição é definido em relação à ordem jurídica portuguesa, a validade de um desses pactos não é vinculativa para os tribunais de ordens jurídicas estrangeiras. Assim, a validade do pacto que atribui competência aos tribunais portugueses não é vinculativa para os tribunais de ordens jurídicas estrangeiras. Assim a validade do pacto que atribui competência aos tribunais portugueses não significa que os tribunais estrangeiros afectados deixem, ipso facto, de se considerar competentes., tal como a privação da competência internacional dos tribunais portugueses não a atribui necessariamente aos tribunais estrangeiros. São possíveis, por isso, situações em que o pacto atributivo origina um conflito positivo entre a competência internacional dos tribunais portugueses e dos estrangeiros e outras em que um pacto privativo cria um semelhante conflito negativo.”
No caso vertente foi invocado um pacto de jurisdição inserto numa cláusula aposta no conhecimento de embarque invocado nos presentes autos.
O teor de tal cláusula é o seguinte:
“Todas as reclamações ou ações que resultem entre o Transportador e o Comerciante relacionadas com o contrato de Transporte titulado por este Conhecimento de Embarque deverão ser intentadas em exclusivo no Tribunal de Commerce de Marseille e nenhum outro Tribunal terá competência no que respeita a tais reclamações ou ações.”
Importa então apreciar se tal pacto de jurisdição é válido e eficaz.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia há muito vem assinalando que o conceito de pacto de jurisdição presente na Convenção de Bruxelas de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em matéria civil e comercial, e que “transitou” para o Regulamento Bruxelas I (44/2001), mais tarde reformulado e republicado como Regulamento 1512/2012 é um conceito autónomo daquele que se acha consagrado no Direito interno de cada Estado-Membro, e que a análise da validade e eficácia dos pactos de jurisdição com efeitos sobre litígios aos quais sejam aplicáveis os referidos instrumentos jurídicos se deve fazer exclusivamente com referência aos mesmos – vd. entre outros os acórdãos  Powell Duffryn, de 10-03-1992 (p. C-214/89), Castellettii, de 16-03-1999 (p. C-159/97), e Refcomp, de 07-02-2013 (p. C-543/10).
Contudo, tal entendimento poderá ter sido ultrapassado pelo menos em parte, no que toca aos litígios aos quais seja aplicável o Regulamento Bruxelas I (Revisto), na medida em que o art.º 25º deste Regulamento ressalva a possibilidade de o pacto de jurisdição ser nulo nos termos da lei doméstica aplicável.
Assim sendo, na determinação da competência internacional dos Tribunais portugueses relativamente ao caso dos autos não aplicaremos o CPC, nem o disposto no DL 352/86, de 21-10[24].
Vejamos então o que dispõe o Regulamento Bruxelas I (bis) em matéria de pactos de jurisdição.
Estabelece o art.º 25º do referido Regulamento:
“1. Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:
a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;
b) De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si; ou
c) No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão.
2. Qualquer comunicação por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à «forma escrita».
3. O tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro a que o ato constitutivo de um trust atribuir competência têm competência exclusiva para conhecer da ação contra um fundador, um trustee ou um beneficiário do trust, se se tratar de relações entre essas pessoas ou dos seus direitos ou obrigações no âmbito do trust.
4. Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de atos constitutivos de trusts não produzem efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 15.º, 19.º ou 23.º, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 24.º.
5. Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato.
A validade dos pactos atributivos de jurisdição não pode ser contestada apenas com o fundamento de que o contrato não é válido.”.
Cumpre, pois, aferir, se no caso vertente se verificam os requisitos de validade e eficácia do pacto de jurisdição invocado pela ré e ora apelada CMA.
A citada disposição consagra requisitos positivos e negativos, dos quais dependem a validade e eficácia de um pacto de jurisdição.
Os requisitos positivos resultarão da verificação da sua redução a escrito ou estipulação verbal com confirmação por escrito [nº 1, al. a)], e no contexto do comércio internacional, de acordo com os usos habitualmente observados no ramo comercial concreto em questão.
Os requisitos negativos consubstanciam-se nas exceções de nulidade substantiva do pacto (nº 1) e contrariedade com o disposto nos art.ºs 15º, 19º, 23º, ou 24º.
Como bem aponta o Tribunal a quo, a exegese destes requisitos impõe a ponderação da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, tendo sumariado tal jurisprudência nos seguintes termos:[25]
“Para o Tribunal de Justiça, as formalidades exigidas pelo art.º 25º, anterior 23.º do Regulamento destinam-se a garantir que o consentimento entre as partes foi efectivamente realizado, impondo-se nessa medida ao juiz a quem a questão é colocada a obrigação de analisar, desde logo, se a cláusula que lhe atribui competência foi, efectivamente, objecto de acordo entre as partes, acordo que deve manifestar-se de forma clara e precisa. Cf. Acórdão de 14 de Dezembro de 1976, Galeries Segoura SPRL contra Rahim Bonakdarian, Processo 25/76, Colectânea de Jurisprudência 1976, p. 01851, Edição especial portuguesa, p. 00731.
 O Tribunal de Justiça nota que, de acordo com o Relatório sobre a Convenção, apresentado aos governos dos Estados Contratantes em simultâneo com o projecto da Convenção, estas exigências de forma visam responder à preocupação de não colocar entraves aos usos comerciais, mas também neutralizar ao mesmo tempo os efeitos das cláusulas que podem passar despercebidas nos contratos, como as estipulações que figuram nos impressos que servem para a correspondência ou emissão de facturas e que não foram aceites pela parte a quem são opostas. O art.º 25.º do Regulamento (anterior art.º 23º), ao prever expressamente a forma que deve adoptar o pacto atributivo de competência, pretendem, pois, garantir a segurança jurídica e assegurar que o consentimento das partes foi prestado. Cf. Acórdão do Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 1981, Elefanten Schuh GmbH contra Pierre Jacqmain, Processo 150/80, Colectânea de Jurisprudência 1981 p. 01671 (doravante designado por Acórdão Elefanten).
 Convém observar a esse respeito que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as disposições do art.º 25.ºdo Regulamento, em virtude de excluírem quer a competência determinada pelo princípio geral do foro do demandado, consagrado no art.º 4º (anterior artigo 2.º) do Regulamento, quer as competências especiais dos art.ºs 7º a 9º (anteriores art.ºs 5.º a 7.º) do Regulamento, são de interpretação restrita quanto às condições
nela estabelecidas. Cf. Acórdão do Tribunal de 14 de Dezembro de 1976, Estasis Salotti di Colzani Aimo e Gianmario Colzani s.n.c. contra Rüwa Polstereimaschinen GmbH, Processo 24-76, Colectânea de Jurisprudência 1976, p. 01831, Edição especial portuguesa, p. 00717 (doravante designado por Acórdão Colzani).
Ademais, os Estados Contratantes não podem impor outras exigências de forma que não as previstas no Regulamento/Convenção, como, designadamente, a redacção da cláusula de jurisdição numa determinada língua. Cf. Acórdão Elefanten, acima citado.
Tendo em conta estes princípios, cumpre agora analisar com algum detalhe as quatro formas possíveis de celebração do pacto de jurisdição nos termos do art.º 25.º do Regulamento no cenário em que se desenvolve o caso vertente, ou seja, no panorama do transporte marítimo internacional de mercadorias, para depois, decidir como se impõe.  A primeira forma possível de celebração é a convenção escrita, o acordo escrito e assinado por ambas as partes, podendo a cláusula de jurisdição estar inserida num instrumento próprio, exclusivamente destinado à atribuição de competência, ou fazer parte de um contrato cujo objecto principal é diverso.
 No caso específico do transporte marítimo internacional de mercadorias, o Tribunal de Justiça considera que o pacto de competência que integra as condições impressas de um conhecimento de embarque, assinado pelo transportador, apenas satisfaz o requisito da "forma escrita" do art.º 25.º do Regulamento se o carregador tiver exprimido por escrito a sua aceitação das condições contidas na dita cláusula, seja no próprio conhecimento, seja num documento distinto. Para o Tribunal de Justiça, o mero facto de estarem impressas no verso do formulário do conhecimento de embarque uma cláusula atributiva de competência não preenche o requisito em apreço, dado que tal procedimento não oferece garantia alguma de que a outra parte tenha prestado efectivamente o seu consentimento a uma disposição que se afasta do regime comum de competência da Convenção. Cf. Acórdão do Tribunal de 19 de Junho de 1984, Partenreederei ms. Tilly Russ e Ernest Russ contra NV Haven- & Vervoerbedrijf Nova e NV Goeminne Hout, Processo 71/83, Colectânea de Jurisprudência 1984, p. 02417 (doravante designado por Acórdão Tilly Russ).
No entanto, se o rosto do conhecimento assinado pelas partes remeter expressamente para a condições impressas no verso desse documento e nas quais figura o pacto de jurisdição, o mesmo Tribunal de Justiça considera que é satisfeita a exigência da forma escrita. Cf. Acórdão Colzani, acima citado.
Note-se que se a remissão expressa se referir a outro instrumento que não o próprio conhecimento de embarque, o requisito em apreço apenas se terá por preenchido se se demonstrar que as duas partes tiveram conhecimento desse documento ou poderiam ter tido dele conhecimento caso actuassem com uma diligência normal. Cf. Acórdão Colzani, acima citado. 
A segunda forma possível de celebração é a convenção verbal confirmada por escrito: as partes acordam prévia e verbalmente sobre a atribuição de competência e depois uma delas confirma-a por escrito à contraparte sem que esta levante objecções. Cf. Acórdão do Tribunal (Quinta Secção) de 11 de Julho de 1985, FA. Berghoefer GmbH und Co. KG contra ASA SA, Processo 221/84, Colectânea de Jurisprudência 1985, p. 02699 (doravante designado por Acórdão Berghoefer).
Se não houver acordo verbal prévio, a dita confirmação escrita valerá apenas como proposta de celebração de um pacto de jurisdição e, nessa medida, apenas produzirá efeitos se for aceite por escrito. Esta convenção escrita pode provir de qualquer uma das partes, e não necessariamente de quem a mesma é oposta. No caso do transporte marítimo internacional de mercadorias, é possível conceber validamente que carregador e transportador acordem verbalmente numa cláusula atributiva de competência, a qual é posteriormente vertida no conhecimento de embarque, unicamente assinado pelo segundo, valendo este documento como confirmação escrita do referido acordo. Cf. Acórdão Tilly Russ, acima citado.
A terceira forma possível de celebração é a que decorre dos usos que as partes estabeleceram entre si, ou seja, o pacto de jurisdição pode ser ajustado em conformidade com a prática que envolve o relacionamento comercial corrente entre as partes. No domínio do transporte marítimo internacional de mercadorias é de admitir que uma cláusula de jurisdição não assinada pelo carregador ainda assim cumpre as exigências fixadas pelo art.º 25.º do Regulamento, mesmo que não tenha sido precedida de acordo verbal, sempre que a emissão do conhecimento de embarque faça parte das relações comerciais habituais entre carregador e transportador (directamente ou através dos seus agentes) e na medida em que se demonstre que deste modo as ditas relações regem-se na sua totalidade por umas condições gerais que contêm a sobredita cláusula de jurisdição do autor da confirmação por escrito (no caso, o transportador) e que todos os conhecimentos de embarque são estabelecidos em formulários previamente impressos que contêm, sistematicamente, a dita cláusula. Cf. Acórdão Tilly Russ, acima citado.
Neste contexto, seria contrário à boa fé negar a existência de uma prorrogação da competência.
Finalmente, a quarta forma de celebração dos pactos de jurisdição, no comércio internacional, é a que resulta dos usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado. A consagração desta possibilidade, ocorrida na revisão de 1978 e afinada em 1989, foi o resultado de uma atenção e de uma sensibilidade maiores às exigências do comércio internacional e, mais genericamente, ao funcionamento concreto do mundo dos negócios, dado que se constatou que a aplicação demasiado rigorosa dos princípios contidos no art.º 25.º do Regulamento tornaria praticamente impossível a validade de cláusulas de jurisdição inseridas em documentos contratuais que, em virtude das suas características específicas, não são assinadas por um dos contraentes Cf. Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 20 de Fevereiro de 1997, Mainschiffahrts-Genossenschaft eG (MSG) contra Les Gravières Rhénanes SARL, Processo C-106/95, Colectânea da Jurisprudência 1997, p. I-00911 (doravante designado por Acórdão MSG).
 Tendo em conta a relativa abstracção do art.º 25.º do Regulamento quanto a esta modalidade de celebração de pactos de jurisdição, cabe perguntar quais são os elementos objectivos e/ou comportamentos concludentes que possibilitam a dedução da existência de um uso comercial apto a ser utilizado para efeitos da válida celebração de uma convenção atributiva de competência. Nesta perspectiva, e atendendo à importância de que se reveste o consentimento das partes em causa, o conceito de uso comercial, na acepção do art.º 25º do Regulamento, apenas se pode fundar na existência de um uso de facto seguido, de forma geral e contínua, e regularmente observado pelos meios interessados, nas operações comerciais que corresponde, simultaneamente do ponto de vista comercial e da localização, à operação comercial controvertida. Em suma, deve tratar-se de uma prática susceptível de levar à convicção de que o comportamento das partes é concludente, ou seja, que implica a existência de um acordo de vontades e, em consequência, de um efectivo consentimento, no que se refere à derrogação de competência. Deste ponto de vista, a existência de um uso comercial específico em determinado sector deve, em qualquer caso, ser provada: só nessas condições, um uso adquire relevância jurídica na lógica do art.º 25º do Regulamento. Cf. Conclusões do advogado-geral Tesauro apresentadas em 26 de Setembro de 1996 no processo Mainschiffahrts-Genossenschaft eG (MSG) contra Les Gravières Rhénanes SARL, Processo C-106/95, Colectânea da Jurisprudência 1997, p.I-00911.
Ou seja, os usos comerciais em causa devem ser amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado. Não basta, portanto, que uma convenção atributiva de jurisdição seja celebrada sob forma conforme aos usos em vigor no ramo comercial considerado, que as partes conheçam ou devam conhecer; é também necessário que tais usos sejam, por um lado, amplamente conhecidos no comércio internacional e, por outro, regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado. Cf. Acórdão do Tribunal de 16 de Março de 1999, Trasporti Castelletti Spedizioni Internazionali SpA contra Hugo Trumpy SpA, Processo C-159/97, Colectânea da Jurisprudência 1999 p. I-01597 (doravante designado por Acórdão Castelletti).
Só assim será possível presumir que existe o consenso das partes quanto à cláusula atributiva de jurisdição. 
Sendo válida a cláusula atributiva de jurisdição acordada entre transportador e carregador, independentemente da modalidade da sua celebração, ela produz os seus efeitos no que toca ao terceiro portador do conhecimento de carga desde que este, ao adquiri-lo, suceda nos direitos e obrigações do carregador por força do direito nacional aplicável. Se tal não for o caso, há que apurar o seu consentimento à luz das exigências do art.º 25º do Regulamento. Cf. Acórdãos Tilly Russ e Castelletti, acima citados.”
Tendo presente a síntese jurisprudencial transcrita, regressemos ao caso dos autos.
No caso em apreço, o conhecimento de embarque não foi subscrito pela autora, mas antes pela ré CMA CMG e pela expedidora, a AGPMEAT. E neste particular pouco importa aferir se tal documento foi por estas sociedades assinado, visto que na petição inicial a autora fundou os direitos que veio invocar na outorga deste conhecimento de embarque e na circunstância de ter satisfeito uma pretensão indemnizatória emergente do contrato de transporte de mercadorias nele consubstanciado.
De acordo com o alegado pela autora, aquele conhecimento de embarque foi emitido na sequência da atividade que desenvolveu, enquanto transitária, no sentido de organizar o transporte das mercadorias ali descritas, nos termos que vieram a ser consignados nesse conhecimento de transporte (art.ºs 4 a 8 da petição inicial).
Assim, conclui-se que o pacto de jurisdição foi celebrado por escrito, e teve o assentimento da autora, visto que a outorga do conhecimento de embarque resultou da sua atividade enquanto transitária, e esta não demonstrou ter manifestado qualquer reserva ao pacto de jurisdição.
Nos termos do disposto no art.º 15º, nº 1 do DL nº 255/99, de 07-07[26], “As empresas transitárias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso”.
A este propósito, discutiu-se no contexto da presente causa, se esta disposição configura um verdadeiro direito de regresso ou uma sub-rogação legal.
Assim, a apelante sustenta que estando em causa um direito de regresso, citando ALMEIDA COSTA e o ac. STJ 31-01-2017 (Gabriel Catarino), p. 850/09.2TVLSB.L1.S1.
Na verdade, refere o citado Mestre[27] que “Pela sub-rogação, transmite-se um direito de crédito existente, ao passo que o direito de regresso significa o nascimento de um direito novo na titularidade da pessoa que, no todo ou em parte, extinguiu uma anterior relação creditória (art.º 524º) ou à custa de quem esta foi extinta (art.º 533º). O direito de regresso, «maxime» na solidariedade passiva, traduz-se num direito de reintegração do devedor que, sendo obrigado com outros, cumpre para além do que lhe cabe na perspectiva das relações internas. A diversa configuração dos dois institutos justifica uma diferença de regimes. Assim, salvo convenção em contrário, não se transmitem, no caso do direito de regresso, as garantias e demais acessórios da dívida extinta. Sabemos que a solução diverge em matéria de sub-rogação (art.º 582º, «ex vi» do art.º 594).”
E, por seu turno, esclareceu o Supremo, no invocado aresto que “Tratando-se de sub-rogação legal, o direito transmitido confere ao solvens (novo credor) o mesmo amplexo de poderes e deveres jurídicos que se encontrava na esfera do credor originário. No caso do direito de regresso, por se tratar de um direito que nasce de uma situação extintiva do direito (de crédito) inicial, o accipiens da nova relação creditícia estabelece com o obrigado à nova prestação creditória um novo vínculo e uma obrigação de prestar nos termos em que o direito surgido se configura”.
Contudo, como adverte JANUÁRIO GOMES[28], a expressão “direito de regresso” inserta no art.º 15º, nº 1 do DL 255/99 deve ser interpretada em sentido amplo, não excluindo a aplicação do regime da sub-rogação legal, nos termos do disposto no art.º 592º, nº 1 do CC, com os inerentes efeitos, consagrados nos art.ºs 593º e 594º do CC, remetendo este último para os art.ºs 582º a 584º do mesmo código, com as necessárias adaptações.
No mesmo sentido se manifestou JOÃO VALBOM BAPTISTA[29].
Acresce que no caso vertente, resulta do alegado pela autora e ora apelante, na petição inicial, que tendo pago à destinatária das mercadorias determinada quantia, a título de indemnização pela perda das mesmas, ficou sub-rogada nos direitos desta. E em abono de tal afirmação remeteu para os documentos nºs 23 a 25 juntos com o mesmo articulado.
Ora, entre tais documentos encontra-se, em primeiro lugar, o doc 23, intitulado “RECIBO E SUBROGAÇÃO”, emitido pela AGPMEAT, e que tem o seguinte teor:
“AGPEMEAT S.A., NICP nº ..., com sede em ESTRADA DAS PEROLIVAS, APARTADO .., REGUENGOS DE MONSARAZ, declara para os devidos efeitos ter recebido da TRANSITEX - TRÂNSITOS DE EXTREMADURA, S.A, NICP nº ... a quantia de EUR 62.430,73 (sessenta e dois mil, quatrocentos e trinta euros e setenta e três cêntimos), como total e final pagamento e indemnização por todos os custos, danos e perdas referentes à carga transportada no contentor nº TTNU8835318, selo nº H2927596 ao abrigo do conhecimento de embarque n LSO0175847, emitido em 23 agosto 2021, com origem no Porto de Setúbal e destino ao Porto de TIANJIN XINGANG referente à fatura comercial nº 30372, emitida em 17 de agosto de 2021 pelo valor de USD 52.763,97.
Mais declaramos exonerar a TRANSITEX - TRÂNSITOS DE EXTREMADURA, S.A de toda e qualquer responsabilidade relacionada com a reclamação acima identificada, a qual se deverá considerar como final e incondicional.
Em virtude do pagamento efetuado, declaramos que, transferimos e sub-rogamos todos os nossos direitos e reclamações, títulos e juros, contra todas e quaisquer entidades as quais a TRANSITEX - TRÂNSITOS DE EXTREMADURA, S.A possa exercer os seus direitos, extensíveis ao segurador de carga contratada.
Declaramos autorizar a TRANSITEX - TRÀNSITOS DE EXTREMADURA, S.A a usar o nosso nome para exercer todos e quaisquer direitos ou reclamações e facultar-vos-emos toda a assistência que possam razoavelmente exigir de nos para exercer tais direitos e reclamações.
Todas as garantias anteriormente mencionadas, são concedidas no pressuposto de que a TRANSITEX - TRÂNSITOS DE EXTREMADURA, S.A, assumiu e aceitou todas as despesas relacionadas com o assunto aqui em questão, nada mais tendo a reclamar a título de pagamento à AGPMEAT S.A.
Reguengos de Monsaraz, 18 de agosto de 2022”
Entre tais documentos encontra-se igualmente o doc. 23-A que consiste numa declaração escrita emitida pela destinatária da mercadoria, com o seguinte teor:
“Claim nº: CAS-05722-T6CoH
BL nº: LSO0175847
Shipper: AGPMEAT SA
Consignee: SHENGCHANGHONG (GUANGZHOU) INTERNATIONAL TRADING PTY, LTD
Carrier: CMA CGM Société Anonyme
Container: TTNU8835318
Seal : H2927596
Basis for the claim: non-delivered loss or damage goods
In consideration of the above we subrogate AGPMEAT SA (shipper) all the rights and remedies concerning the above non-delivery loss or damaged goods and authorize the AGPMEAT SA (Shipper) to take any action in its or our name in pursuance of all rights and remedies against all other parties involved and responsible for non-delivered loss or damage the goods sustained, as well to take action in its or our name in pursuance of all rights and remedies against cargo insurers, provided that any award of costs against us will be fully covered by AGPMEAT SA (Shipper).
We further agree and undertake not to address ourselves in a claim to any of the parties responsible for loss as well as cargo insurance.
Date: 17/08/2022”.
Destes documentos, que foram juntos aos autos pela própria apelante, resulta, de forma clara, que a AGPMEAT e a destinatária declararam transferir para a apelante os direitos que para as mesmas emergiam no contrato de transporte titulado pelo conhecimento de embarque dos autos, e que a apelante aceitou tal transmissão, o que configura um verdadeiro acordo de sub-rogação.
Não tem, por isso, razão a apelante em invocar o regime do direito de regresso para sustentar a inaplicabilidade do pacto de jurisdição inserto no conhecimento de embarque.
Acresce que um outro argumento nos conduz igualmente à conclusão da oponibilidade de tal cláusula à apelante.
Com efeito, como salientou o TJUE nos já referidos acórdãos Tilly Russ e Casteletti, mas também no ac. Coreck (C-387/98), sendo a cláusula que contém o pacto de jurisdição válida, a mesma é oponível ao portador do conhecimento de embarque se este suceder nos direitos e obrigações do carregador, nos termos previstos no Direito Nacional aplicável. No mesmo sentido cfr. ac. STJ 12-09-2019 (Rosa Tching), p. 64/17.8TNLSB.L1.S1.
Ora, no caso em apreço, tal sucessão decorre quer do acordo de sub-rogação acima descrito, quer do disposto no art.º 11º, nº 2 do DL nº 352/86, de 21-10, que estatui que “A transmissão do conhecimento de carga está sujeita ao regime geral dos títulos de crédito”, o que significa que pode ser transmitido.
Ao sê-lo, como sucedeu nos presentes autos, importa ter presente que a transmissão dos direitos dele emergentes, nomeadamente o invocado nos presentes autos, vem acompanhada do pacto de jurisdição, que se acha incorporado no título.
Ainda que assim não fosse, sempre se deverá salientar que, como observa LUÍS DE LIMA PINHEIRO[30], “A doutrina dominante também admite que no caso de o terceiro titular do conhecimento não suceder nos direitos e obrigações do carregador a sua vinculação à cláusula de jurisdição pode resultar de um uso do comércio internacional. Nesta linha, alguns autores, bem como o Supremo Tribunal Federal alemão, entendem que sendo a cláusula de jurisdição usual nos conhecimentos de carga, se presume a vinculação à cláusula do terceiro titular que atue uma pretensão com base no conhecimento.”
Ora, como já referimos, a inclusão de pactos de jurisdição em conhecimentos de embarque constitui um uso bem estabelecido no transporte internacional de mercadorias por via marítima. E, como igualmente observámos, não se apurou, nem a apelante demonstrou que antes da propositura da presente ação tenha, alguma vez, manifestado oposição ao pacto de jurisdição invocado pela ré CMA CMG.
Finalmente cumpre considerar que neste domínio o STJ tem entendido, de modo uniforme, que a validade dos pactos de jurisdição inseridos no clausulado de conhecimentos de embarque não está sujeita às regras consagradas no Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais[31], porquanto o regime do Regulamento Bruxelas I (bis) apela a um conceito autónomo de pacto de jurisdição – vd. acs. STJ 14-07-2020 (Rosa Tching), p. 161/18.2T8FAR.E1.S1 e STJ 02-06-2021 (Maria do Rosário Morgado), p. 449/18.2T8FAR.E1.S1.
À luz destas considerações, temos por preenchidos todos os requisitos de que dependem quer a validade do pacto de jurisdição, quer a sua oponibilidade à autora e ora apelante.
Objetou, contudo, a apelante que na presente causa demandou duas rés, e que verificando-se entre elas uma situação de responsabilidade solidária, deveriam ser ambas demandadas no mesmo foro, nos termos previstos no art.º 8º, nº 1 do Regulamento Bruxelas I (bis).
Estabelece este preceito que “Uma pessoa com domicílio no território de um Estado Membro pode também ser demandada (…) se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio e qualquer um deles, desde que os pedidos estejam ligados entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente”.
Contudo, como bem observou o já citado ac. STJ 02-06-2021 (Maria do Rosário Morgado), p. 449/18.2T8FAR.E1.S1, reiterando posição anteriormente manifestada no igualmente invocado ac. STJ 14-07-2021 (Rosa Tching), p. 161/18.2T8FAR.E1.S1,  “Eventual litisconsórcio necessário natural do lado passivo não afasta a aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição que cumpra os requisitos formais e substanciais estabelecidos no art. 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, não se permitindo, por isso, que a parte que deveria ser demandada no tribunal de um outro Estado-Membro da União Europeia, de acordo com o que foi convencionado, possa ser demandada em Portugal em virtude de a autora poder ter configurado a ação em termos que exigem a demanda de um terceiro estranho ao pacto de jurisdição”.
3.2.5. Das consequências da violação do pacto de jurisdição
A demanda da apelada no juízo Marítimo de Lisboa, em desrespeito pelo pacto de jurisdição inserto no conhecimento de embarque, que atribuiu, com caráter de exclusividade a competência a um Tribunal Francês para apreciar litígios emergentes do contrato de transporte titulado por tal documento gera a incompetência internacional dos Tribunais portugueses – art.ºs 94º, nºs 1 e 2, e 96º, al. a), 2ª parte, do CPC.
Esta forma de incompetência internacional configura uma incompetência absoluta, que constitui exceção dilatória, depende de arguição pela parte interessada e, quando apreciada no despacho saneador, conduz à absolvição do réu da instância – art.ºs 97º, 98º, e 99º, todos do CPC.
Tendo sido essa a decisão do Tribunal a quo, conclui-se pela total improcedência da presente apelação.
3.2.6. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. art.ºs 529º, nº 1, do CPC e 3º, nº 1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. art.ºs 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
No caso vertente, entendemos que, não obstante se tenha determinado a alteração da decisão sobre matéria de facto, tal alteração não tem qualquer influência na decisão da presente apelação, que deve ser julgada totalmente improcedente.
Nesta medida, consideramos que a apelante decaiu totalmente, devendo por isso suportar a totalidade das custas.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Alterar a decisão sobre matéria de facto nos termos expostos no ponto 3.2.2.;
b) Julgar a presente apelação totalmente improcedente, assim confirmando o despacho saneador apelado.
Custas pela apelante.

Lisboa, 12 de setembro de 2023
Diogo Ravara
Cristina Coelho
Edgar Taborda Lopes
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[1] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116.
[2] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116.
[3] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, Coimbra 3ª Ed., p. 143.
[4] “Da Sentença Cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 370, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/CadernoV_NCPC_Textos_Jurisprudencia.pdf
[5] Todos os arestos invocados no presente acórdão se encontram publicados em http://www.dgsi.pt e/ou e https://jurisprudencia.csm.org.pt/. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados que se mostrem publicados em páginas internet de livre acesso.
[6] Art.º 24 das alegações.
[7] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pp. 165-166.
[8] Art.ºs 7 e 8 das alegações.
[9] “O segundo grau de jurisdição em matéria de facto no processo civil português”, AAFDL Editora, 2022, pp. 44-45.
[10] Tribunal da Relação.
[11] “Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto”, pp. 44-45, in http://www.stj.pt (Consultado em 17.01.2023).
[12] Al. a) dos factos provados.
[13] “O contrato de transporte de mercadorias – Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte marítimo”, Almedina, 2000, p. 236.
[14] Ob. cit, p. 237.
[15] Ob. cit., pp. 240-242.
[16] Cfr. MENEZES CORDEIRO, ob. cit., p. 24
[17] Os acentuados são da nossa responsabilidade.
[18] Al. a) dos factos provados.
[19] Al. h) dos factos provados.
[20] Al. a) dos factos provados.
[21] Als. f) e g) dos factos provados.
[22] Disponível em https://eur-lex.europa.eu/. Para facilidade de consulta inserimos na versão eletrónica do presente acórdão hiperligação para a referida fonte.
[23] “Estudos sobre o novo processo civil”, 2ª Ed., LEX, 1997, p. 125.
[24] Improcedem por isso as conclusões nº 1-, 3-, 4-, 5-, e 16-, na parte em que pugnam pela aplicação destes diplomas, bem como quando sustentam a aplicabilidade ao caso dos autos do Regulamento Bruxelas I (Reformulado).
[25] Inserimos na versão eletrónica do presente acórdão hiperligações para o texto dos acórdãos do TJUE referidos no trecho citado.
[26] Diploma alterado pela Lei nº 5/2013, de 22-01, que contudo não modificou o preceito citado.
[27] “Direito das Obrigações”, 12ª ed. (reimpressão), Almedina, 2022, p. 826.
[28] “Sobre a vinculação del credere”, in “Estudos de Direito das Garantias”, II, Almedina, 2010, p. 230, nota 144.
[29] “O contrato de Expedição”, in “Temas de Direito dos Transportes”, Coord. Manuel Januário da Costa Gomes, II, Almedina, 2013, p. 283, nota 447.
[30] “Pactos de jurisdição e convenções de arbitragem em matéria de transporte marítimo de mercadorias” in Temas de Direito Marítimo III¸ p. 582, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7B67540703-e86b-4bd8-8e74-81c02f60f0f6%7D.pdf.
[31] Aprovado pelo DL 446/85, de 25-10, e alterado pelos seguintes diplomas: DL 220/95, de 31-08 (retificado pela Decl. Retif. 114-B/95, de 31-08), DL 249/99, de 07-07; DL 323/2001, de 17-12; L 32/2021, de 27-05; e DL 108/2021, de 074-12.