Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1/08.0TNLSB.L1-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
CONHECIMENTO DE EMBARQUE
COMPRA E VENDA
PREÇO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - Os intervenientes nucleares neste contrato são o carregador, que é a pessoa que, inicialmente, celebra o contrato de transporte, o transportador, que é a pessoa que se obriga, inicialmente, perante o carregador, a deslocar determinadas mercadorias e a entregá-las, e o destinatário, que é a pessoa a quem devem ser entregues as mercadorias transportadas (arts.4º, 5º, 8º, 18º, 19º e 21º, do DL nº352/86, de 21/10).
II - Apesar de independentes, existe uma complementaridade funcional entre o contrato de transporte e a relação que lhe subjaz, normalmente um contrato de compra e venda.
III - No contrato de transporte de mercadorias por mar o conhecimento de embarque ou de carga adquire importância capital, já que, emitido e entregue pelo transportador ao carregador, de acordo com o que determinarem os tratados e convenções internacionais vigentes, constitui título representativo da mercadoria nele descrita e pode ser nominativo, à ordem ou ao portador, sendo transmissível de acordo com o regime geral dos títulos de crédito (cfr. os arts.8º e 11º, do citado DL nº352/86, de 21/10).
IV - O destinatário e a entrega das mercadorias são o sujeito e o momento decisivos de tal contrato, na medida em que é para eles que tende o programa contratual.
V - Sendo o contrato de transporte, inicialmente, um contrato bilateral entre carregador e transportador, será aquele o obrigado inicial a pagar o preço do transporte, mas se se verificar a adesão do destinatário, então o transportador poderá – a partir desse momento – exigir do destinatário o preço do transporte.
VI – A circunstância de o Governo da Região Autónoma dos Açores subsidiar os encargos com o transporte marítimo de adubos para aquele Região Autónoma e de, a partir de certa altura, ter deixado de conceder tais subsídios, não desresponsabiliza o destinatário de tais mercadorias pelo pagamento daqueles encargos ao transportador,
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.

No Tribunal Marítimo, T S.A., intentou acção declarativa de condenação contra C CRL, alegando que, em 12/7/02, a D contactou a autora para que esta efectuasse o transporte marítimo de sacos com adubo em contentores, a embarcar em Lisboa e a descarregar em Ponta Delgada, tendo indicado que aquele carregamento era destinado à ré.
Mais alega que o contrato de transporte marítimo daquela mercadoria foi titulado pelo conhecimento de carga emitido pela autora, com o nº130-255 CVH – 017, dele constando como carregadora a mencionada D e como recebedora a ré, tendo a autora efectuado o transporte entre 12 e 15 de Julho de 2002 e entregue a mercadoria à ré no porto de Ponta Delgada, sendo a cargo desta o frete devido pelo transporte, embora a autora tenha indicado no conhecimento de carga que o mesmo seria suportado pelo IAMA, por supor que o pagamento continuaria a ser subsidiado por aquele Instituto, como em casos anteriores.
Alega, ainda, que, porém, o IAMA esclareceu, em 23/7/02, que o subsídio havia sido concedido para o período de 1/1/02 a 30/6/02, conforme resulta da Resolução nº128/2002, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores, II Série, nº31, de 1/8/02, pelo que, o frete, no montante de € 10.661,85, tem de ser suportado pela recebedora da carga, a ora ré, que pediu a validação do conhecimento de carga pela agência da autora em Ponta Delgada em 16/7/02.
Conclui, assim, que deve a ré ser condenada a pagar à autora a quantia de € 10.661,85, acrescida de juros de mora vencidos, no valor de € 5.605, 51, o que perfaz o total de € 16.267,36, e dos vincendos.
A ré contestou, por excepção, invocando a sua ilegitimidade, a nulidade do contrato de transporte de mercadorias por mar e a prescrição, e, ainda, por impugnação, concluindo pela improcedência da acção.
A autora replicou, concluindo pela improcedência das excepções deduzidas pela ré.
Seguidamente, foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a invocada excepção de ilegitimidade passiva, continuando o processo para julgamento, com abstenção de fixação da base instrutória.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, após decisão de facto, proferida sentença, julgando a acção procedente e condenando a ré a pagar à autora a importância de € 10.661,85, a título de capital, acrescida de € 5.605,51, a título de juros vencidos contados até 9/1/08, e dos juros sobre o referido capital de € 10.661,85, a partir de 10/1/08 até efectivo e integral pagamento.
Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação daquela sentença.
Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Fundamentos.
2.1. Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
l) A Autora é uma empresa de navegação que exerce a actividade de transportadora marítima de mercadorias, operando com navios próprios e afretados.
2) A Ré é uma cooperativa agrícola.
3) No exercício da sua actividade de produtora de adubos, a D —contratou com a Autora vários transportes marítimos de adubos, entre os portos de Lisboa e os portos da Região Autónoma dos Açores.
4) Transportes esses que foram titulados por diversos conhecimentos de carga como o dos autos com o n° 130 - 255 CVH - 017, no qual se consigna: Carregador: D Recebedor: C Frete a pagar por: IAMA - Navio: 220 Porto de carga: Lisboa Porto de destino: Ponta Delgada Frete a cobrar em: Lisboa Sede.
5) O pagamento dos fretes era efectuado pelo IAMA - Ins, de Ponta Delgada, mediante resolução do Governo Regional que determinava subsidiar o transporte marítimo de adubos para a Região Autónoma, até ao montante correspondente às tabelas de frete convencional para as ilhas de São Miguel e Terceira e, para as restantes ilhas, até ao montante correspondentes às tabelas de fretes para o transporte de contentores.
6) A concessão de subsídios para pagamento dos fretes estava sujeita a períodos semestrais e foi objecto de diversas prorrogações, igualmente semestrais, pelo Governo da Região Autónoma dos Açores.
7) Em 12 Julho de 2002, a D voltou a contactar a Autora para que esta efectuasse o transporte marítimo de sacos com adubo em contentores, a embarcar em Lisboa e a descarregar em Ponta Delgada.
8) Tendo a D indicado à Autora que aquele carregamento era destinado à Ré C, de São Miguel.
9) A carga foi acondicionada em 15 contentores de 20' cada e estes foram entregues pela D - Adubos de Portugal à Autora, no porto de Lisboa, tendo sido carregados no navio, propriedade desta, em 12 de Julho de 2002.
10) A Autora efectuou o transporte daquela carga nas condições contratadas, entre 12 e 15 de Julho de 2002, tendo a mercadoria sido entregue à Ré no porto de Ponta Delgada.
11) Em anteriores transportes de adubos os fretes marítimos eram subsidiados pelo IAMA, em conformidade com as competentes portarias do Governo Regional da R. A. A.
12) A Autora voltou a indicar no conhecimento de carga emitido em 12.07.2002 que o frete seria suportado por aquele Instituto, por supor que o pagamento do frete continuaria a ser subsidiado, e facturou o IAMA por mais este transporte.
13) A carga discriminada naquele conhecimento de carga foi entregue à destinatária, a Ré C, no porto de destino (P. Delgada), que para tanto pediu a validação desse conhecimento de carga pela agência da Autora, em Ponta Delgada, em 16 de Julho de 2002.
14) O IAMA esclareceu que, como o transporte fora realizado após 30 de Junho de 2002, como o Governo da Região Autónoma dos Açores decidira não prorrogar a concessão de subsídios depois daquela data (30.06.2002), o frete não seria suportado pelo IAMA.
15) Por escrito datado de 2002-07-23, o IAMA informou a Autora da aprovação da Resolução que subsidia os encargos com o transporte marítimo de adubos para a Região Autónoma dos Açores, no período compreendido entre l de Janeiro e 30 de Junho de 2002, e que a Resolução não iria ser prorrogada para o período de l de Julho a 31 de Dezembro de 2002, uma vez que se procedia à avaliação da ajuda, prevendo-se a sua continuidade em 2003 (...).
16) O montante do frete marítimo relativo ao transporte efectuado pela Autora relativo ao carregamento dos 15 contentores com adubo no navio, em 12.07.2002, ascendeu a € 10.661,85 (dez mil seiscentos sessenta e um euros e oitenta e cinco cêntimos).
17) Recebida a informação do IAMA, a Autora remeteu à Ré, C, destinatária da carga, a nota de débito 2860703, em 17 de Novembro de 2002, relativa ao valor do frete, com pagamento a sessenta dias a contar da data do débito.
18) Apesar das diversas insistências da Autora, a Ré nunca pagou o frete referente transporte da carga nos autos.
2.2. A recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:
l. A sentença recorrida padece de nulidade, porquanto, não conheceu, apesar de ter sido invocado pela recorrente, das excepções de ilegitimidade, nulidade e prescrição.
2. A recorrente não contratou os serviços da recorrida, pelo que, nada lhe deve.
3. Quem contactou, solicitou os seus serviços, escolheu e contratou a recorrida para transportar os contentores em questão, foi o carregador D.
4. Foi a D que encarregou a recorrida para o transporte dos contentores constantes do conhecimento de carga.
5. O preço do transporte daqueles contentores foi combinado entre a recorrida, a D e o IAMA .
6. Tudo conforme decorre dos factos dados como assentes na douta sentença a quo.
7. De resto, os contentores foram entregues à recorrente sem que a recorrida lhe tivesse exigido, nesse momento, o pagamento do respectivo frete.
8. Na verdade, tal ocorreu porque a recorrida bem sabia que nenhum pagamento podia exigir à recorrente.
9. E isso porque, como já se disse, a recorrente não pediu à recorrida para transportar nenhum contentor; não negociou com a recorrida preços de transporte; e, como tal, não aceitou pagar-lhe o quer que fosse.
10. Logo, é forçoso concluir que entre a recorrente e a recorrida não se formou qualquer contrato de transporte marítimo por mar relativamente ao transporte dos contentores aqui em questão.
11. Com efeito, num contrato de transporte marítimo, acordado entre o expedidor da mercadoria e a empresa transportadora, sem qualquer intervenção do destinatário, cabe ao expedidor o pagamento do respectivo frete (veja-se neste sentido Acórdãos do STJ, 1994, tomo l, págs. 16, e segs, Ac. do STJ processos n.° 063783, 083670, 99A378 e 081667 in www. dgsi.pt. Acórdãos do STJ, in BMJ, n.° 213 e 297, pág. 263 e 376, Ac. da RL, de 31.10/1991, processos n.° 0030286, 0051292 e 0053612, in www. dgsi.pt e Ac. RP de 31.03.2005, processo n° 0531138 in www.dgsi.pt).
12. Pelo que, no presente caso, esse contrato formou-se, isso sim, entre a recorrida e a ADP - Adubos Portugal, a qual assumiu a posição de carregadora.
13. Assim, não se vislumbra como poderia a sentença recorrida ter condenado a recorrente no pagamento do frete, quando esta nada contratou com a recorrida.
14. Porém, a douta sentença, ao decidir como decidiu, violou, assim, os artigos 1.°, 2.° e 8.° do Decreto-Lei n.° 352/86 de 21/10, artigo 405.°, 406.°, n.° l e 482.° do Código Civil.
Termos em que, com o Douto suprimento de V. Exas., deverá ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-a por Douto Acórdão que julgue a acção improcedente, absolvendo, em consequência, a ré do pedido.
2.3. A recorrida contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:
1. A douta sentença não enferma de qualquer nulidade já que as pretensas excepções de ilegitimidade passiva, nulidade do contrato e prescrição do instituto de enriquecimento sem causa (que a autora nunca invocou) foram devidamente apreciadas;
2. O transporte marítimo da mercadoria, de Lisboa para Ponta Delgada, foi titulado por conhecimento de carga, o qual prova a existência do contrato de transporte, dele constando as identidades do carregador (D), da transportadora (Transinsular, autora da acção) e da recebedora da carga no porto de destino (recorrente C).
3. A recorrente recebeu a via original do conhecimento de carga e, após obter a sua validação junto da agência do navio no porto de destino, recebeu os 15 contentores com adubo, que lhe eram destinados.
4. Como resulta do contrato, da doutrina e da jurisprudência, a recorrente foi parte no contrato de transporte porquanto, ao tomar posse do conhecimento e ao reclamar a entrega e receber a carga nele descrita (trata-se ainda de título de crédito representativo da mercadoria) aderiu a tal contrato de transporte.
5. O referido contrato de transporte, que para mais era nominativo porquanto dele constava expressamente como recebedor da carga a recorrente, vincula todas as partes nele identificadas.
6. Contrato de transporte esse que não só não continha qualquer declaração de "frete pago" como indicava ainda que o frete era a pagar em Ponta Delgada, porto de destino da mercadoria, sendo o frete suportado pelo I.A.M.A., instituto público da Região A. dos Açores, que subsidiava os agricultores açorianos.
7. A concessão dos subsídios dependia de decisão do Governo Regional, tinha duração semestral e era publicada em portaria do Jornal da Região.
8. O transporte e entrega da carga à recorrente ocorreu em 16.7.2002, antes mesmo de ter havido nova resolução do Governo Regional, mas só em 23 de Julho de 2002 é que a autora foi informada pelo IAMA, que a concessão de subsidio aos destinatários açorianos não seria prorrogada no segundo semestre de 2002.
9. Tendo cessado a concessão de subsídios aos agricultores dos Açores a partir de 1.7.2002, por determinação do Governo Regional dos Açores, impende sobre a recorrente o dever de pagar a contraprestação pelo transporte feito pela recorrida.
10. De resto, as conclusões das alegações apresentadas pela recorrente são todas improcedentes porquanto não têm qualquer correspondência com a matéria dada como provada!
TERMOS EM QUE deve o recurso ser considerado totalmente improcedente e, em consequência, deve ser mantida a douta sentença.
2.4. São as seguintes as questões que importa apreciar no presente recurso:
– saber se a sentença recorrida é nula, nos termos do art.668º, nº1, al.d),1ª parte, do C.P.C.;
– saber se a recorrente, destinatária das mercadorias transportadas por mar pela recorrida, está ou não obrigada a efectuar o pagamento do frete.
2.4.1. Segundo a recorrente, a sentença recorrida padece de nulidade, por não ter conhecido, apesar de invocadas, das excepções de ilegitimidade, nulidade e prescrição.
Mas não tem razão, como resulta, manifestamente, dos autos. Assim, a excepção dilatória de ilegitimidade da ré, ora recorrente, foi decidida no despacho saneador, onde se concluiu pela sua improcedência (cfr. fls.71 a 73). Quanto à excepção peremptória da nulidade do contrato de transporte de mercadorias por mar, por inobservância da forma escrita, foi apreciada na sentença recorrida, onde se considerou que o conhecimento de carga ou de embarque constitui o instrumento documental que formaliza o contrato de transporte. No que respeita à prescrição do direito à restituição resultante de eventual enriquecimento sem causa, diz-se expressamente na sentença recorrida que a apreciação dessa excepção fica prejudicada, pois que se entendeu que nada obstava que a autora exigisse da ré o pagamento do transporte, por ter anuído ao respectivo contrato com a recepção da mercadoria. Sendo que, nos termos da 1ª parte, do nº2, do art.660º, do C.P.C., o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Haverá, assim, que concluir que, não tendo ocorrido qualquer omissão de pronúncia, a sentença recorrida não é nula, nos termos da 1ª parte, da al.d), do nº1, do art.668º, do C.P.C..
2.4.2. Na sentença recorrida considerou-se que se está perante um contrato de transporte de mercadorias por mar e que existe uma complementaridade funcional entre aquele e o contrato de compra e venda que lhe está subjacente. Mais se considerou que, no caso, não tendo o frete sido pago no início do transporte e tendo-se verificado a adesão do destinatário, o transportador poderá, a partir desse momento, exigir-lhe o preço do transporte. Considerou-se, ainda, que, constando do conhecimento de carga que o frete era a pagar pelo IAMA, que subsidiava o transporte de produtos agrícolas para a Região Autónoma dos Açores (R.A.A.), a beneficiária do respectivo subsídio era a ré (destinatária) e não a autora (transportadora), pelo que, o pagamento efectuado pelo IAMA ocorre por conta daquela. Para, depois, se concluir que, não procedendo aquele Instituto ao pagamento do transporte, em virtude de este ter ocorrido num período em que já não vigorava o respectivo subsídio, assiste à autora o direito de obter o pagamento junto da ré.
Segundo a recorrente, entre ela e a recorrida não se formou qualquer contrato de transporte marítimo por mar relativamente ao transporte dos contentores em questão, o qual foi estabelecido entre a recorrida e a ADP, tendo esta assumido a posição de carregadora, pelo que, lhe cabe o pagamento do respectivo frete.
Vejamos.
Não está em discussão a questão da qualificação jurídica do contrato. Há, pois, acordo no sentido de que se está perante um contrato de transporte de mercadorias por mar, como, aliás, resulta manifestamente da matéria de facto apurada.
Nos termos do art.1º, do DL nº352/86, de 21/10, contrato de transporte de mercadorias por mar é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria, de um porto para um porto diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada «frete».
Tal contrato é disciplinado pelos tratados e convenções internacionais vigentes em Portugal e, subsidiariamente, pelas disposições daquele diploma (art.2º).
Os intervenientes nucleares neste contrato são o carregador, que é a pessoa que, inicialmente, celebra o contrato de transporte, o transportador, que é a pessoa que se obriga, inicialmente, perante o carregador, a deslocar determinadas mercadorias e a entregá-las, e o destinatário, que é a pessoa a quem devem ser entregues as mercadorias transportadas (arts.4º, 5º, 8º, 18º, 19º e 21º).
Assim, dúvidas não restam que estamos perante uma estrutura triangular, pelo menos na medida em que existem três centros de interesses, diferenciados mas complementares (cfr. Costeira da Rocha, in O Contrato de Transporte de Mercadorias, Contributo para o Estudo da Posição Jurídica do Destinatário no Contrato de Transporte de Mercadorias, págs.66 e segs., que seguiremos muito de perto).
Como é evidente, o transporte não ocorre pelo simples gosto de mudar as coisas de sítio, mas sim porque, por exemplo, se vendeu algo ao destinatário. Na verdade, na hipótese mais frequente, o contrato de transporte segue-se a um contrato de compra e venda, onde as partes estabelecem os termos desse negócio, determinando, normalmente, a parte que fica obrigada a celebrar o contrato de transporte e a pagar o respectivo preço. E é aqui que se recorre, frequentemente, nos contratos internacionais, aos chamados INCOTERMS, que traduzem cláusulas contratuais de compra e venda, identificadas por uma sigla de conteúdo definido pela Câmara de Comércio Internacional, através das quais se determina quem deverá realizar e pagar o transporte. Cláusulas estas que, no entanto, estando inseridas num contrato celebrado entre o vendedor (carregador) e o comprador (destinatário) não poderão, sem mais, vincular o transportador.
Apesar de independentes, existe uma complementaridade funcional entre o contrato de transporte e a relação que lhe subjaz, normalmente um contrato de compra e venda. Poder-se-á dizer que o contrato de transporte é pensado em atenção a um momento, a entrega, em que assume relevo decisivo um sujeito que não interveio, inicialmente, na sua celebração, ou seja, o destinatário. De tal modo que a doutrina estrangeira vem referindo que o destinatário constitui a figura dominante do contrato de transporte, qualificando-o como parte nesse contrato, posição esta que goza de apoio jurisprudencial, podendo até falar-se de uma crise da concepção tradicional do contrato de transporte como um contrato a favor de terceiro (cfr. ob.cit., pág.152). Embora o contrato de transporte se apresente, inicialmente, como um contrato bilateral (celebrado entre carregador e transportador), está aberto à adesão do destinatário, ou seja, é celebrado na expectativa da adesão deste, cuja participação, nas palavras de Costeira da Rocha, ob.cit., pág.236, pode qualificar-se de assíncrona, por surgir num momento destacadamente posterior ao acordo entre carregador e transportador.
Seja como for, independentemente da posição que se tome quanto à natureza jurídica do contrato de transporte em questão, uma coisa parece certa: o destinatário e a entrega das mercadorias são o sujeito e o momento decisivos de tal contrato, na medida em que é para eles que tende o programa contratual. Sendo que, o destinatário não é apenas aquele interveniente a quem se destinam as mercadorias transportadas, pois além da recepção material daquelas mercadorias, ingressam na sua esfera jurídica direitos e obrigações emergentes do contrato de transporte.
No contrato de transporte de mercadorias por mar o conhecimento de embarque ou de carga adquire importância capital, já que, emitido e entregue pelo transportador ao carregador, de acordo com o que determinarem os tratados e convenções internacionais vigentes, constitui título representativo da mercadoria nele descrita e pode ser nominativo, à ordem ou ao portador, sendo transmissível de acordo com o regime geral dos títulos de crédito (cfr. os arts.8º e 11º, do citado DL nº352/86, de 21/10).
Conforme refere Calvão da Silva, in Parecer publicado na C.J., Ano II, tomo I, pág.16, é unanimemente reconhecida pela doutrina e jurisprudência a função tridimensional do conhecimento de embarque ou de carga. Assim, serve de recibo da entrega ao transportador de uma certa e determinada mercadoria nele descrita, prova o contrato de transporte firmado entre carregador e transportador, e representa a mercadoria nele descrita, sendo negociável e transmissível, de acordo com o regime geral dos títulos de crédito.
No conhecimento nominativo é indicado o nome do destinatário e beneficiário dos direitos conferidos pelo conhecimento, pelo que, em princípio, só ele está legitimado a exercer os direitos emergentes do título e só a ele deverá ser entregue a mercadoria. O transportador deverá entregar a mercadoria ao legítimo portador do título, verificando os elementos formais deste e a identidade do seu portador.
Voltando ao caso dos autos, verifica-se que foi dado como provado que a D contratou com a autora vários transportes marítimos de adubos, entre os portos de Lisboa e os portos da Região Autónoma dos Açores, sendo o pagamento dos fretes efectuado pelo IAMA, mediante Resolução do Governo Regional, que determinava subsidiar o transporte marítimo de adubos para aquela Região.
Em 12 Julho de 2002, a ADP voltou a contactar a Autora para que esta efectuasse o transporte marítimo de sacos com adubo em contentores, a embarcar em Lisboa e a descarregar em Ponta Delgada, tendo a ADP indicado à Autora que aquele carregamento era destinado à Ré C, de São Miguel.
A carga foi acondicionada em 15 contentores e estes foram entregues pela ADP à Autora, no porto de Lisboa, tendo sido carregados no navio, propriedade desta, em 12 de Julho de 2002 e tendo a autora emitido o conhecimento de carga n° 130 - 255 CVH - 017, onde consta, além do mais, como Carregador: D, Recebedor: C, e Frete a pagar por: IAMA.
Como em anteriores transportes de adubos os fretes marítimos eram subsidiados pelo IAMA, em conformidade com as competentes portarias do Governo Regional da R. A. A., a Autora voltou a indicar no conhecimento de carga emitido em 12.07.2002 que o frete seria suportado por aquele Instituto, por supor que o pagamento do frete continuaria a ser subsidiado, tendo facturado o IAMA por mais este transporte.
A Autora efectuou o transporte daquela carga nas condições contratadas, entre 12 e 15 de Julho de 2002, tendo a mesma sido entregue à destinatária (ré) no porto de destino (Ponta Delgada), que, para tanto, pediu a validação do conhecimento de carga pela agência da Autora, em Ponta Delgada, em 16 de Julho de 2002.
Por escrito datado de 2002-07-23, o IAMA informou a Autora da aprovação da Resolução que subsidia os encargos com o transporte marítimo de adubos para a Região Autónoma dos Açores, no período compreendido entre l de Janeiro e 30 de Junho de 2002, e que a Resolução não iria ser prorrogada para o período de l de Julho a 31 de Dezembro de 2002. Tal Resolução, com o nº128/2002, foi publicada no Jornal Oficial da R.A.A. de 1/8/02 (cfr. fls.18).
Tendo o IAMA esclarecido a autora que, como o transporte fora realizado após 30 de Junho de 2002, o frete não seria suportado por si, aquela remeteu à ré, destinatária da carga, a nota de débito 2860703, em 17 de Novembro de 2002, relativa ao valor do frete - € 10.661,85 -, com pagamento a sessenta dias a contar da data do débito.
Apesar das diversas insistências da autora, a ré nunca pagou o frete referente transporte da carga nos autos.
Perante estes factos, a única defesa da ré, ora recorrente, consiste em alegar que nada contratou com a recorrida, pelo que, nada lhe deve. E ainda alegou que os contentores lhe foram entregues sem que a recorrida lhe tivesse exigido, nesse momento, o pagamento do respectivo frete, por saber que nenhum pagamento podia exigir à recorrente.
Quer dizer, a recorrente esqueceu-se, pura e simplesmente, do «pormenor» dos subsídios que eram concedidos pelo Governo da R.A.A. aos encargos com o transporte marítimo de adubos para aquela Região Autónoma. Na verdade, no fundo, toda a questão suscitada nos presentes autos tem a ver com a questão do subsídio. É evidente que se a autora não exigiu o pagamento do frete à ré, no momento em que lhe entregou os contentores, foi certamente por constar do conhecimento de carga que o frete seria pago pelo IAMA. Sendo que, este pagamento podia ser feito mediante apresentação dos necessários documentos pela própria empresa transportadora junto do IAMA (cfr. o ponto 2. da Resolução nº128/2002, de 1/8).
Por outro lado, se o subsídio tivesse sido concedido para o período em que se efectuou o transporte ora em causa, a autora certamente teria recebido o respectivo preço e não existiria o presente processo. Ora, o subsídio era concedido tendo em vista a aquisição de adubos e os encargos com o seu transporte marítimo para a Região. Logo, tratava-se de subsidiar os adquirentes desse produto, no caso, a ré. Esta é que era a beneficiária desses subsídios. O que vale por dizer que o preço do transporte estava a cargo da ré, embora esse preço fosse subsidiado pelo Governo Regional. Assim, a circunstância de este Governo ter deixado, em determinado momento, de conceder tais subsídios, não implica, como parece pretender a recorrente, que a responsabilidade pelo pagamento daquele preço mude de sujeito, isto é, passe do destinatário para o carregador. Como se a este competisse subsidiar a recorrente, uma vez que o Governo Regional deixou de o fazer, pelo menos naquele período. E não se diga que o preço do transporte dos contentores foi combinado entre a recorrida, a ADP e o IAMA, pois que nada nos autos o revela.
Note-se que nunca a recorrente (destinatária) alegou ter ficado estabelecido, no contrato que celebrou com a D (carregadora), que o preço do transporte era por conta desta. No fundo, todos estavam de acordo que quem pagava era o Governo Regional. Só que, rigorosamente, não se tratava de pagar, mas sim de subsidiar os encargos com o transporte marítimo de adubos para a R.A.A.. Encargos esses pertencentes aos respectivos adquirentes de tais produtos, como nos parece evidente. Consequentemente, cessando os subsídios, permaneciam os encargos na esfera jurídica daqueles adquirentes.
Assim, segundo cremos, torna-se manifesto que, em casos como o dos presentes autos, não há que invocar a qualidade de terceiro do destinatário para justificar a sua não responsabilização pelo pagamento do preço do transporte. É provável que a recorrente tenha adquirido os adubos em causa, no pressuposto de que o Governo Regional subsidiaria o encargo do seu transporte por mar, até porque, quando levantou a mercadoria, em 16/7/02, ainda não tinha sido publicada a Resolução que concedia o subsídio só para o período compreendido entre 1/1/02 e 30/6/02. Isto é, a recorrente recebeu a mercadoria, não por entender que o preço do transporte seria da responsabilidade da ADP, mas sim por estar convencida que tinha direito ao aludido subsídio. Todavia, a autora é alheia a essa questão, devendo ser a ré a suscitá-la, eventualmente, junto do IAMA.
Dir-se-á, ainda, que, segundo Costeira da Rocha, ob.cit., págs.174 e segs., «Sendo o contrato de transporte, inicialmente, um contrato bilateral entre carregador e transportador, será aquele o obrigado inicial a pagar o preço do transporte. Se o contrato seguir o seu iter, e verificando-se a adesão do destinatário, então o transportador poderá – a partir desse momento – exigir do destinatário o preço do transporte. Mas, tal não obsta a que o transportador possa também exigir aquele preço do carregador, pois quer este quer o destinatário são solidariamente responsáveis pelo pagamento do preço».
Critica aí, aquele autor, a orientação inversa dominante na jurisprudência do STJ, que argumenta com o fundamento de que tal obrigação não emerge de convenção das partes nem da lei, invocando, em defesa da sua tese, o disposto no art.390º, do Código Comercial e no art.21º, do DL nº352/86, de 21/10, bem como, alguma doutrina que escreveu sobre o assunto e que acolhe a opinião que também defende (cfr. ob.cit., pág.177, nota 562).
Consideramos, de todo o modo, que, da matéria de facto apurada nos autos resulta, pelos motivos atrás referidos, que a recorrente, destinatária das mercadorias transportadas por mar pela recorrida, está obrigada a efectuar o pagamento do frete.
Não merece, assim, censura a sentença recorrida, ao condenar a ré no pagamento à autora da importância de € 10.661,85 e respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, com os fundamentos aí expendidos (cfr. os arts.406º, nº1, 799º, nº1, 804º, 805º, nº2, al.a) e 806º, nº1, todos do C.Civil).
Improcedem, pois, as conclusões da alegação da recorrente.

3 – Decisão.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pela apelante.

Lisboa, 22 de Junho de 2010

Roque Nogueira
Abrantes Geraldes
Tomé Gomes