Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4111/13.4TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIMITAÇÃO DOS ACTOS
PRINCÍPIO DA LIMITAÇÃO DOS ATOS
PRINCÍPIO DA ECONOMIA E CELERIDADE PROCESSUAIS
ARRENDAMENTO URBANO
SUBARRENDAMENTO
DIREITO DE PROPRIEDADE
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ILICITUDE
OMISSÃO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA E DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ALETRAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Almedina, 545, 551.
- Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed.,1985,11.
- Castro Mendes, Manual de Processo Civil, 1963, 7.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 483.º, N.º 1, 486.º, 1305.º,
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 130.º, 662.º, N.º 4, 671.º, N.º 3, 674.º, N.OS 1 E 3, E 682.º, N.OS 1 E 2.
LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGO 46.º.
Sumário :
I - A limitação recursória resultante da dupla conformidade de decisões, consagrada no art. 671.º, n.º 3, do CPC, não abarca o segmento do acórdão recorrido respeitante à impugnação da matéria de facto já que sobre tal matéria existe uma única decisão, a proferida pela Relação.

II - A questão de saber se a Relação actuou dentro do quadro legal aplicável ao decidir não tomar conhecimento do recurso de apelação na parte atinente à impugnação da decisão fáctica é uma questão de direito que cabe no âmbito dos poderes do STJ – o que lhe está vedado é sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto (arts. 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, e 662.º, n.º 4, 674.º, n.os 1 e 3, e 682.º, n.os 1 e 2, do CPC).

III - O princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo.

IV - Nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.

V - O poder de dar de arrendamento, que pode compreender a possibilidade de subarrendar, está contido no âmbito do direito de propriedade, dele não derivando a responsabilização directa, sem mais, do proprietário pelos actos eventualmente lesivos dos direitos dos demais condóminos praticados pelo arrendatário ou pelo subarrendatário (arts. 1305.º e 486.º do CC).

VI - Alicerçando os autores a responsabilidade dos réus, exclusivamente, no facto de os mesmos, enquanto proprietários de uma fracção autónoma, não terem intentado uma acção com vista à resolução de um contrato de arrendamento e subsequente despejo da subarrendatária (sem que tal omissão seja, por si só, susceptível de ser qualificada como ilícita à luz da acepção que dimana do art. 483.º, n.º 1, do CC), a apreciação da matéria de facto, impugnada pelos autores, em sede de apelação – toda ela relacionada com factos ilícitos que apenas àquela subarrendatária poderiam ser imputados, sem que esta tenha sido demandada na acção – consubstanciaria a prática de um acto inútil.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:


AA, residente na Av. Dr. …, n° …, 2° direito, B…; BB, residente no lugar de …, …, Terras do Bouro; CC, residente em 9… S… R… London Fulham, SW… Londres, Inglaterra e habitualmente em Portugal, na Rua …, …, …, Póvoa de Lanhoso, HERANÇA ILIQUIDA E INDIVISA aberta por óbito de DD, representada pela cabeça de casal, EE, viúva, e seus filhos, FF e GG, casado, residentes na Av. …, 27, 4705 - …, Braga, intentaram a presente acção declarativa contra HH e mulher, II, residentes na Rua …, n° …, …, 5470 - …, Montalegre, formulando os seguintes pedidos:

1.- que se declare e reconheça, que cada um dos demandantes é dono e legítimo possuidor das fracções autónomas identificadas nos artigos nos artigos 1° a 4° da petição inicial;

2.- que se declare e reconheça que os demandados são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma identificada no artigo no artigo 11 ° do mesmo articulado;

3.- que se declare e reconheça que os comportamentos levados a cabo pela subarrendatária da fracção autónoma dos demandados, JJ e pelos respectivos ocupantes são fundamento de despejo e de resolução dos contratos de subarrendamento e de arrendamento;

4.- que se declare e reconheça que, quer os demandados, quer a KK-Empresa Municipal de Habitação de B…, E.M., não utilizaram, podendo e devendo fazê-lo, os meios legais que têm ao seu dispor para pôr fim imediato aos aludidos comportamentos levados a cabo pela subarrendatária da fracção autónoma dos primeiros, JJ, bem como dos respectivos ocupantes;

5.- a condenação dos demandados a recorrerem aos meios legais que entendam convenientes, de molde a pôr termo imediato à violação dos direitos de propriedade e dos direitos de personalidade dos demandantes, por via dos comportamentos levados a cabo pelos ocupantes da sua fracção autónoma;

6.- que se declare e reconheça, que a inércia e o não uso pelos demandados dos meios legais para pôr termo a esses comportamentos causou, causa e continuará a causar, aos demandantes, danos de natureza patrimonial e não patrimonial;

7.- a condenação dos demandados a executarem, a expensas suas, as obras que se imponha levar a cabo nas partes comuns do prédio, incluindo as garagens, por causa dos danos causados e que ainda venham a ser causados, até que os demandados façam cessar a violação do seu direito de propriedade, de molde a repor o prédio no estado em que se encontrava em final de julho de 2011, as quais, em virtude de ainda não se conhecerem em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

8.- a condenação dos demandados a pagarem à co-demandante AA uma indemnização, por causa da desvalorização comercial infligida à suas fracções autónomas, a qual, em virtude de ainda não se conhecer em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

9.- a condenação dos demandados a pagarem à mesma co-demandante, a título de dano patrimonial que esta vem sofrendo desde início de Agosto de 2011 e até ao momento em que cessar definitivamente a violação dos seus direitos, uma renda mensal como contrapartida do arrendamento das respectivas fracções autónomas, uma quantia mensal correspondente a uma renda, ao valor de mercado, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento, a qual, em virtude de ainda não se conhecer tais danos em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

10.- a condenação dos demandados a pagarem à mesma co-demandante, a título de dano não patrimonial, que esta vem sofrendo desde início de Agosto de 2011 e até ao momento em que cessar definitivamente a violação dos seus direitos de personalidade, uma indemnização, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento, a qual, em virtude de ainda não se conhecer tais danos em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

11.- a condenação dos demandados a pagarem à co-demandante BB, uma indemnização, por causa da desvalorização comercial infligida à fracção autónoma de cada um destes, a qual, em virtude de ainda não se conhecer em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

12.- a condenação dos demandados a pagarem à mesma co-demandante, a título de dano patrimonial que esta vem sofrendo desde início de Agosto de 2011 e até ao momento em que cessar definitivamente a violação dos seus direitos, uma renda mensal como contrapartida do arrendamento das respectivas fracções autónomas, uma quantia mensal correspondente a uma renda, ao valor de mercado, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento, a qual, em virtude de ainda não se conhecer tais danos em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

13.- a condenação dos demandados a pagarem à mesma co-demandante, a título de dano não patrimonial, que esta vem sofrendo desde início de Agosto de 2011 e até ao momento em que cessar definitivamente a violação dos seus direitos de personalidade, uma indemnização, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento, a qual, em virtude de ainda não se conhecer tais danos em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

14.- a condenação dos demandados a pagarem à co-demandante CC, uma indemnização, por causa da desvalorização comercial infligida às suas fracções autónomas, a qual, em virtude de ainda não se conhecer em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

15.- a condenação dos demandados a pagarem à mesma co-demandante a título de dano patrimonial que esta vem sofrendo desde início de Agosto de 2011 e até ao momento em que cessar definitivamente a violação dos seus direitos ao recebimento de uma renda mensal como contrapartida do arrendamento das respectivas fracções autónomas, uma quantia mensal correspondente a uma renda, ao valor de mercado, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento, a qual, em virtude de ainda não se conhecer tais danos em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

16.- a condenação dos demandados a pagarem à mesma co-demandante, a título de dano não patrimonial, que esta vem sofrendo desde início de Agosto de 2011 e até ao momento em que cessar definitivamente a violação dos seus direitos de personalidade, uma indemnização, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento, a qual, em virtude de ainda não se conhecer tais danos em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

17.- a condenação dos demandados a pagarem à co-demandante herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, uma indemnização, por causa da desvalorização comercial infligida à sua fracção autónoma, a qual, em virtude de ainda não se conhecer em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

18.- a condenação dos demandados a pagarem à mesma co-demandante, a título de dano patrimonial que esta vem sofrendo desde início de Agosto de 2011 e até ao momento em que cessar definitivamente a violação dos seus direitos ao recebimento de uma renda mensal como contrapartida do arrendamento das respectivas fracções autónomas, uma quantia mensal correspondente a uma renda, ao valor de mercado, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento, a qual, em virtude de ainda não se conhecer tais danos em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença;

19.- a condenação dos demandados a pagarem à mesma co-demandante, a título de dano não patrimonial, que esta vem sofrendo desde início de Agosto de 2011 e até ao momento em que cessar definitivamente a violação dos seus direitos de personalidade, uma indemnização, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento, a qual, em virtude de ainda não se conhecer tais danos em toda a sua extensão, a sua liquidação se relega para execução de sentença.


Os réus contestaram, arguindo a ilegitimidade dos autores quanto ao pedido de execução de obras nas partes comuns, por caber apenas ao condomínio deduzi-lo, bem como a ilegitimidade da co-autora AA, BB e CC. No mais, impugnam a factualidade alegada e, consequentemente, a obrigação de indemnizar.

Replicaram os autores, concluindo como na petição inicial.


Foi admitida a intervenção provocada de LL e MM, na qualidade de herdeiros do falecido NN, para conjuntamente com a autora BB, representarem a herança ilíquida e indivisa aberta por falecimento daquele.


No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade da autora AA, fixando-se o objecto do litígio e os temas de prova.


Após a audiência final, foi proferida a seguinte decisão:

Por todo o exposto, julgo parcialmente procedente por provada a presente ação e, em consequência:

A) Declara-se que,

1. A autora, AA, casada com OO, sob o regime de comunhão geral de bens, é dona e legítima possuidora das fracções autónomas designadas pelas letras "A", "B" e "H", correspondentes ao rés-do-chão direito, rés-do-chão esquerdo e 3° andar esquerdo, destinadas a habitação, com as garagens designadas pelos números 1,2 e 8, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Alameda …, n° 7…, freguesia de B… (S. J… de S, L…), B…, inscrito na matriz sob o artigo 22… e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n° 4….

2. A herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de NN, é dona e legítima possuidora das fracções autónomas designadas pelas letras "C" e "D", correspondentes ao 1 ° andar direito e ao 1 ° andar esquerdo, também destinadas a habitação, com as garagens designadas pelos números 3 e 4, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Alameda do …, n° 7…, freguesia de B… (S. J… de S, L…), B…, inscrito na matriz sob o artigo 22…e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n° 4….

3. A autora CC, casada com PP, sob o regime de comunhão de adquiridos, é dona e legítima possuidora da fracção autónoma designada pela letra "G", correspondente ao 3° andar direito, também destinada a habitação, com a garagem designada pelo n° 7, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Alameda do …, n° 7…, freguesia de B… (S. J.. de S, L…), B…, inscrito na matriz sob o artigo 22… e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n° 4….

4. A herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, é dona e legítima possuidora da fracção autónoma designada pela letra "F", correspondente ao 2° andar esquerdo, também destinada a habitação, com a garagem designada pelo n° 6, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Alameda do …, n° 7…, freguesia de B… (S. J… de S, L…), B…, inscrito na matriz sob o artigo 22… e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n° 4….

B) No mais absolve-se os réus dos pedidos.

Custas a cargo dos autores”.


Inconformados, apelaram os autores.

O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 12.07.2016, julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença proferida na 1ª instância.


De novo irresignados, recorreram os autores de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.

Na alegação apresentada formularam as seguintes conclusões (sic):

«1.- Nos presentes autos o Tribunal da Relação não conheceu do mérito da impugnação da matéria de facto apresentada pelos demandantes, e sem decidir a questão crucial, manteve a douta sentença que julgou a acção não provada e improcedente, em virtude de tal acto se revelar inútil e irrelevante e por isso ao abrigo do disposto no artigo 130° do Código de Processo Civil, não podia ser realizado;

2.- esta decisão, quanto a esta matéria processual, de direito adjectivo, é a primeira tomada, pelo que não tomou uma segunda decisão sobre a matéria de Direito colocada nos autos e decidida pelo Tribunal de 1a instância, limitando-se a confirmá-la;

3.- tal decisão não teve qualquer voto de vencido e não assentou em fundamentação essencialmente ou substancialmente idêntica à aludida sentença, pelo que não se verifica uma situação de dupla conforme prevista no artigo 671°, n° 3 do Código de Processo Civil;

4.- a questão da utilidade/inutilidade ou relevância/irrelevância da impugnação da matéria de facto é uma questão processual que se prende com a forma como o Tribunal da Relação, erradamente, não exerceu os poderes que a lei lhe confere em sede de modificabilidade da decisão da matéria de facto, violando os seus deveres;

5.- os demandantes entendem, séria e fundadamente, que a apreciação daquela impugnação é um acto útil e relevante, como no momento processual adequado se irá concluir, pelo que ao abrigo do disposto nos artigos 671» n° 3 e 674, n° 1, alínea b) daquele Código, e por isso tem direito a que este Alto Tribunal determine se tal acto é útil e relevante e pode ser realizado, como estão convencidos, ou não, pois a procedência da matéria de facto impugnada tem a virtualidade de poder conduzir, com todas as consequências legais, à descoberta da verdade material e à procedência da acção;

6.- sendo útil e relevante, como se espera venha a ser decidido, o Tribunal pode impor ao Tribunal da Relação que proceda a tal apreciação, decidindo do seu mérito, bem como o mérito da causa, aplicando o Direito à matéria de facto que venha a ser considerada definitivamente assente e provada.

7.- O douto acórdão recorrido decidindo no sentido em que o fez, não conhecendo do mérito da impugnação da matéria de facto apresentada pelos demandantes, mantendo a douta sentença que julgou a acção não provada e improcedente, violou, pelo menos, o disposto nos artigos 103°, 640° e 641° do mesmo Código, pelo que se impõe a sua revogação e a substituição por outro e se ordene a reapreciação da aludida impugnação da matéria de facto e a final se julgue o mérito da causa em conformidade com os factos provados e definitivamente assentes e o pertinente Direito aplicável».

Finalizaram, pedindo a revogação do acórdão recorrido e que se ordene a reapreciação da impugnação da matéria de facto.


Contra-alegaram os réus, pugnando pela confirmação do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

As instâncias julgaram provados os seguintes factos:

1. A autora, AA, casada com OO, sob o regime de comunhão geral de bens, é dona e legítima possuidora das fracções autónomas designadas pelas letras "A", "B" e "H", correspondentes ao rés-do-chão direito, rés-do-chão esquerdo e 3° andar esquerdo, destinadas a habitação, com as garagens designadas pelos números 1,2 e 8, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Alameda do …, n° 7…, freguesia de B… (S. J… de S, L…), B…, inscrito na matriz sob o artigo 22… e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n° 4…, em virtude de as ter adquirido por escritura de compra e venda, a QQ e mulher, RR, lavrada no dia 4 de Outubro de 1990, no 1 ° Cartório Notarial de Braga.

2. A herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de NN, é dona e legítima possuidora das fracções autónomas designadas pelas letras "C" e "D", correspondentes ao 1° andar direito e ao 1° andar esquerdo, também destinadas a habitação, com as garagens designadas pelos números 3 e 4, do mesmo prédio, em virtude de as ter adquirido por escritura de compra e venda, a QQ e mulher, RR, lavrada no dia 7 de Janeiro de 1991, no Cartório Notarial de Vila Verde.

3. A autora CC, casada com PP, sob o regime de comunhão de adquiridos, é dona e legítima possuidora da fracção autónoma designada pela letra "G", correspondente ao 3° andar direito, também destinada a habitação, com a garagem designada pelo n° 7, do mesmo prédio, em virtude de a ter adquirido por escritura de compra e venda, a QQ e mulher, RR, lavrada no dia 7 de Janeiro de 1991, no 1 ° Cartório Notarial de Braga.

4. A herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, é dona e legítima possuidora da fracção autónoma designada pela letra "F", correspondente ao 2° andar esquerdo, também destinada a habitação, com a garagem designada pelo n° 6, do mesmo prédio, em virtude de este e sua mulher, FF, a terem adquirido por escritura de compra e venda, a QQ e mulher, RR, lavrada no dia 21 de Fevereiro de 1991, no 1 ° Cartório Notarial de Braga.

5. Cada um dos autores, por si e antepossuidores, há mais de 20 anos que se encontra na posse de cada uma das fracções que se identificaram, usufruindo-a, nomeadamente habitando-a, deixando aí habitar familiares e amigos ou dando-a de arrendamento a terceiros, cuidando-a, zelando-a, e levando a cabo as obras de reparação e conservação, tanto nas partes privativas, como nas partes comuns, pagando os respectivos impostos, taxas e contribuições.

6. Sempre à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.

7. Com a convicção de que eram donos e legítimos possuidores das respectivas fracções.

8. Os réus são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma designada pela letra "E", correspondente ao 2° andar direito, também destinada a habitação, com a garagem designada pelo n° 5, do mesmo prédio, em virtude de estes a terem adquirido por escritura de compra e venda, a QQ e mulher, RR, lavrada no dia 6 de julho de 1990, no 1 ° Cartório Notarial de Braga.

9 Estas (oito) fracções autónomas designadas pelas letras "A" "B" "H" "C" "D" "F", "G" e "E", todas da tipologia T3, à excepção da designada pela letra "A", que é um apartamento tipo T2, são as únicas que compõem o prédio urbano em causa.

10. Todos os autores, tal como os réus, adquiriram as suas fracções autónomas tendo em vista colocá-las no mercado de arrendamento e auferir o rendimento proporcionado pelas rendas.

11. AA, BB e CC, à data das aquisições encontravam-se emigradas respectivamente no Canadá - as duas primeiras, sendo que a primeira anos mais tarde regressou definitivamente a Portugal - e em Inglaterra, onde continuam.

12. Desde a sua aquisição, até ao início de agosto de 2011, os autores lograram ter as suas fracções autónomas arrendadas, auferindo as rendas que eram pagas pelos arrendatários.

13. Por contrato escrito de arrendamento, outorgado no dia 25 de Fevereiro de 2000, os réus deram de arrendamento, à KK-Empresa Municipal de Habitação de B…, E.M., pelo prazo de 5 anos, mediante a renda mensal, à época, de 50.000$00 escudos - correspondente à quantia de 249,39 €.

14. Consta da cláusula 9ª do contrato que o mesmo se destina a subarrendar, exclusivamente, a JJ e seu agregado familiar.

15. O agregado familiar desta, à época e hoje, era constituído por ela própria, seu marido e três filhos.

16. A subarrendatária e seu agregado familiar são de etnia cigana, sendo o prédio frequentado por várias pessoas desta etnia, que entram e saem com frequência, fazendo ruídos e barulhos, quer no interior quer no exterior do prédio.

17. Nas partes comuns do prédio encontram-se arrumados carrinhos de bebé e outros bem móveis.

18. As pessoas que frequentam o prédio deitam lixo para o chão quer nas partes comuns do prédio quer no exterior do prédio.

18. A porta de entrada do prédio, não fecha e tem partido o vidro da parte superior.

19. A porta de entrada do prédio e a porta de entrada para as garagens já se encontram danificadas há mais de 10 anos.

20. As campainhas estão danificadas e não funcionam.

21. Não é feita limpeza nas partes comuns do prédio.

22. O prédio em questão está construído desde 19 de Dezembro de 1989.

23. Os proprietários das fracções que compõem o prédio nunca constituíram condomínio.

24. Nunca foram realizadas obras no prédio, pelo que as partes comuns do mesmo têm-se vindo a degradar, fruto da sua utilização no decurso do tempo.

25. A fracção autónoma designada pela letra "B", correspondente ao rés-do-chão esquerdo, pertença da 1ª co-autora, AA, está arrendada à KK que a subarrendou.

26. As fracções autónomas designadas pelas letras "A" e "D" estão arrendadas.

27. Os autores em 18 de Julho de 2012, através do seu advogado, comunicaram, por via postal registada, com aviso de recepção e ainda fax, a situação aos demandados, proprietários da fracção autónoma em causa, bem como à KK e à empresa imobiliária procuradora destes, SS - Soc. de Mediação Imobiliária, Lda., para que de imediato fosse posto termo à situação, sob pena de a partir de 10 de agosto seguinte, as pessoas recorrerem a Tribunal.

28. No dia 19 de Julho, o Presidente do Conselho de Administração da KK, TT, remeteu ao aludido advogado dos autores um fax onde dizia o seguinte: "Registo a entrada do v. fax com data de 18-07-2012. Relativamente aos assuntos que expõe, começo por lamentar a atitude dos inquilinos cujo comportamento, fazendo fé ao que nos relata não e compatível com os regulamentos do apoio habitacional da KK. Desta forma, irei averiguar a situação e intervir no sentido de serem cumpridas as regras livremente aceites pelos inquilinos. Reconheço que esta situação é para além de complexa de muito difícil trato e poderá provocar a todos incómodos de vária ordem. Fica no entanto V Exa. livre para complementarmente fazer aquilo que a lei prevê e a boa conduta permite".

29. Por carta de 30 de Julho de 2012 os réus, através da sua advogada, comunicam ao advogado dos autores, que desconheciam a situação, que iam solicitar à KK para ao abrigo da cláusula 6ª do contrato, a tomada de providências tidas por convenientes, nomeadamente recorrer a Tribunal, para nomeadamente intentar uma acção de despejo, demonstrando ainda a disponibilidade de fazer tudo o que estivesse ao alcance dos réus para averiguar e resolver a situação, por forma a acautelar os interesses de todos.

30. No dia 9 de Outubro de 2012 a KK comunica ao aludido advogado, por via postal registada e por fax, que a situação é para dirimir em Tribunal, mais informando que naquela data tinham notificado a advogada dos réus, reafirmando-lhe que havia "mecanismos legais para a resolução deste problema na óptica dos vizinhos/moradores e proprietário e que passa pela denúncia do contrato para com a KK".

31. No mesmo dia o aludido advogado, por via postal registada e por fax, comunica à KK e à advogada dos réus, que, não obstante a notificação da subarrendatária através da notificação judicial avulsa, processo n° GENOOl1…, de 10 de Setembro de 2012, a situação se mantinha e apenas com uma acção de despejo se resolveria, instando de novo para a instauração de uma ação de despejo.

32. Por via postal registada e e-mail de 3 de Janeiro de 2013 o advogado dos autores solicitou à advogada dos réus e à KK a resolução definitiva da situação, mais comunicando que a partir de fim de Janeiro de 2013 recorrerão a Tribunal.

33. Os demandantes sentem medo, receio, intranquilidade, insegurança e desassossego pelo prédio ser frequentado por pessoas de etnia cigana.

34. A renda mensal média de um T3 no prédio ronda os 260,00 € e de um T2 ronda os 200,00 €.


E foram dados como não provados os seguintes:

1. Até início de agosto de 2011, o prédio, nomeadamente as suas partes comuns, incluindo a parte onde se localizam as garagens, encontrava-se em bom estado de conservação e funcionamento.

2. Até ao início de 2011, a fracção dos réus foi ocupada apenas pelo agregado familiar de JJ, cujos membros levavam uma vida normal, sem contenderem ou conflituarem com a vida dos restantes moradores do prédio e com a propriedade dos autores e o seu direito a usufruírem em termos normais as suas fracções autónomas.

3. No início de agosto de 2011 a subarrendatária, JJ, passou a permitir que aí vivessem, diariamente e com carácter permanente, situação que se mantém no dia 17 de Junho de 2013 - data da propositura da presente acção -, vários familiares e amigos, com vários filhos menores, cujo número global rondava e ronda as 20 (vinte) pessoas, todos da mesma etnia daquela.

4. Numa noite de final de maio de 2013, foram deixadas durante a noite na fracção da JJ, sozinhas, mais de uma dúzia de crianças, que, como tinham medo e choravam, foram acolhidas pela única pessoa que vive na fracção autónoma designada pela letra "B".

5. Os familiares e amigos da subarrendatária discutiam e discutem, sem qualquer motivo para tal, com as pessoas que aí moravam.

6. Batiam e batem com as portas com violência.

7. Batem às portas das outras fracções autónomas, sem qualquer motivo justificativo, pois não querem ninguém a morar no prédio.

8. Ameaçaram e lançaram os cães contra quem entendiam.

9. Deitam os lixos mais variados das janelas da fracção, localizada no 2° andar, para as varandas dos andares inferiores e também para a via pública.

10. Durante longos períodos, por falta de energia eléctrica na fracção ocupada pela JJ, foi alterado o funcionamento das luzes das partes comuns do prédio que se mantinham ininterruptamente ligadas, em virtude de objectos que eram introduzidos no comando automático, sem pagarem a correspondente energia eléctrica.

11. O gerador utilizado para fornecer energia eléctrica, faz também muito barulho.

12. Foi trazida, de uma forma irregular e proibida, energia eléctrica, desde o telhado, para o interior da fracção autónoma.

13. Por falta de fornecimento de água pela AGERE, empresa municipal, foram efectuadas ligações com mangueiras entre uma torneira situada na cave, por baixo das escadas e a fracção autónoma em causa, causando inundações nas garagens e nas escadas, nomeadamente na segunda semana de Novembro de 2012.

14. O piso onde se encontram as garagens foi inundado, vários centímetros, com água.

15. Os residentes do 2° andar direito não permitem que se faça limpeza no prédio, pois não querem as escadas molhadas e recusam-se a pagar qualquer quantia para as despesas de condomínio.

16. Logo no início desta ocupação, começaram a surgir ameaças, uma vez mesmo de morte e chegaram mesmo a ocorrer agressões, a duas arrendatárias que aí viviam, respectivamente uma de nome UU, que aí vivia já havia 18 anos e a outra, de nome VV, que aí vivia já havia 5 meses.

17. Sendo que pelo menos uma vez houve agressões entre eles próprios, tendo ficado manchas de sangue bem visíveis, por via dos conflitos que também por vezes surgem entre eles.

18. Por medo e insegurança, há muitos profissionais como picheleiros, ou mesmo pessoas ligadas a imobiliárias, que quando aí são chamados, se recusam.

19. Por via do clima que no prédio se vive, a Polícia de Segurança Pública já por variadas vezes aí foi chamada.

20. Por causa dos comportamentos dessas pessoas, os arrendatários que em agosto de 2011 habitavam no prédio, em diversos momentos, abandonaram, definitivamente, os arrendados.

21. Nesta data e desde início de 2013, só se encontram de novo arrendadas as fracções autónomas designadas pelas letras "A" e "D", em virtude de lhes ter sido dito a tais arrendatários que a situação iria cessar a curto prazo.

22. Como a situação se mantém, tais pessoas já comunicaram que vão abandonar as casas, o que pode acontecer a qualquer momento.

23. A fracção autónoma designada pela letra "C", mantém-na a autora BB, habitualmente vazia para gozo de férias, no mês de agosto, do qual não tem podido usufruir, atenta a situação em que se encontra o prédio.

24. A partir de início de agosto de 2011 os arrendatários das 5 fracções autónomas designadas pelas letras "A", "D", "F", "G" e "H", foram progressivamente abandonando as mesmas, em virtude de não poderem sujeitar-se ao clima de grande confusão, instabilidade e degradação que se vivia e vive no prédio.

25. A primeira arrendatária que abandonou o prédio, em finais de Agosto de 2011, foi uma senhora indiana, que ocupava a fracção autónoma designada pela letra "G", há já alguns meses.

26. A segunda, na mesma altura, foi uma arrendatária de nome UU, que ocupava a fracção autónoma designada pela letra "H", que aí vivia há já 18 anos.

27. A terceira, que saiu na mesma altura, foi uma arrendatária filha da aludida UU, que ocupava a fracção autónoma designada pela letra "F", que aí vivia há já um ano.

28. A quarta, que saiu no final de Dezembro de 2011, foi uma arrendatária de nome XX, que ocupava a fracção autónoma designada pela letra "D", que aí vivia há já alguns anos.

29. A quinta, que saiu na mesma data, foi uma arrendatária de nome ZZ, que ocupava a fracção autónoma designada pela letra "A", que aí vivia também há já vários anos.

30. A autora AA, entre início de agosto de 2011 e início de Janeiro de 2013, perdeu, a título de renda mensal, a quantia global de 5.100,00 €, por causa do não arrendamento da fracção autónoma designada pela letra "A" - dada de arrendamento no início de Janeiro de 2013, pela renda mensal de 225,00 € - e a quantia global de 11.150,00 €, por causa do não arrendamento da fracção autónoma designada pela letra "H", entre Agosto de 2011 e final de Junho de 2013;

31. A autora BB, entre início de Janeiro de 2012 e início de Janeiro de 2013 - data em que foi de novo arrendada a fracção autónoma designada pela letra "D" -, perdeu, a título de renda mensal, a quantia global de 3.600 euros, por causa do não arrendamento;

32. A autora herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, entre início de agosto de 2011 e final de Junho de 2013 perdeu, a título de renda mensal, a quantia global de 6.900,00 €, por causa do não arrendamento da fracção autónoma designada pela letra "F".

33. A autora CC, entre início de agosto de 2011 e final de Junho de 2013, perdeu, a título de renda mensal, a quantia global de 6.900,00 €, por causa do não arrendamento da fracção autónoma designada pela letra "G";

34. Os autores, herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD, CC e AA, relativamente às fracções autónomas, designadas pelas letras "F", "G" e "H", continuarão a perder as rendas que não receberão enquanto a situação se mantiver, atenta a impossibilidade de encontrar interessados para o seu arrendamento.

35. Os autores deixaram de se deslocar ao prédio, como o faziam antes, por receio de que a sua vida e a sua integridade física sejam atingidas e postas em risco ou perigo.

De direito:

Balizado o objecto do recurso pela síntese conclusiva da alegação dos autores, recorrentes (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil), salvo questão de conhecimento oficioso, importa, essencialmente, apurar se o Tribunal da Relação estava, no caso vertente, vinculado à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto suscitada no recurso de apelação interposto pelos autores.

Emerge dos autos que o segmento decisório da sentença proferida na 1ª instância, sobre o qual recaiu a discordância dos autores, ora recorrentes, foi integralmente confirmado pela Relação, tendo este Tribunal de recurso proferido acórdão, sem voto de vencido, com base em fundamentação totalmente convergente.

Não obstante, cumpre salientar que o recurso de revista é admissível, uma vez que a limitação recursória resultante da dupla conformidade de decisões, consagrada no artigo 671º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não abarca o segmento decisório do acórdão recorrido respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Na verdade, não se verifica, nem pode verificar-se, neste particular, a chamada «dupla conforme», por sobre tal matéria existir uma única decisão, a proferida pelo Tribunal da Relação.

Feita esta breve nota e concluindo-se pela admissibilidade da revista, cumpre apreciar se a Relação actuou dentro do quadro legal aplicável ao decidir não tomar conhecimento do recurso de apelação na parte atinente à impugnação da decisão fáctica, questão de direito que cabe no âmbito dos poderes de cognoscibilidade deste Supremo Tribunal, à luz do disposto no artigo 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) e nos artigos 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Com efeito, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, mas já lhe é consentido verificar se a Relação agiu dentro dos limites traçados pela lei processual no exercício desses poderes.

No caso em apreço, os autores insurgiram-se no recurso de apelação contra a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª instância, concretamente, contra os pontos 19, 21 e 24 da facticidade provada, que pretendiam que fossem julgados não provados, e contra todos os pontos da matéria de facto não provada (pontos 1 a 35) os quais, em seu entender, deveriam ter sido julgados provados em face da prova testemunhal produzida por si indicada.

O Tribunal da Relação não apreciou esta questão, considerando revelar-se de todo inútil a reapreciação da matéria de facto, dado que, ainda que demonstrada, não permitira alcançar o desiderato dos recorrentes, ou seja, a procedência total da acção com a condenação dos réus nos pedidos contra si formulados.

Para fundamentar este entendimento, consignou-se, além do mais, no acórdão recorrido o seguinte:

«A ilicitude dos factos e dos comportamentos descritos pelos AA é imputável apenas, directa e exclusivamente, à subarrendatária JJ, que viola, com a sua alegada conduta, os direitos de propriedade e de personalidade dos AA, causando-lhes danos, que descrevem e quantificam.

Por isso, deveria ser contra a subarrendatária – não enquanto tal – mas como autora dos factos descritos e causadora dos prejuízos alegadamente por eles sofridos, que os AA deveriam reagir directamente, já que, à luz do que vem por eles alegado, é ela a autora do facto ilícito, culposo e causador de danos, sendo sobre ela que recai o dever de indemnizar.

Aos RR, enquanto proprietários da fracção e arrendatários da mesma, nenhuma conduta ilícita lhes é assacada pelos AA., a não ser o alegado dever de procederem contra a subarrendatária, movendo-lhe a respectiva acção de despejo.

(…)

Ora, à luz do que se preconiza, fácil é concluir que a matéria de facto impugnada pelos recorrentes – toda ela relacionada com aqueles factos ilícitos – se mostra irrelevante para a decisão da causa, por se mostrar de todo incapaz de alcançar a pretensão jurídica por eles almejada.

Assim sendo, a apreciação daquela matéria de facto por este tribunal redundaria numa actividade judicial despicienda e de todo irrelevante.

Ora, em obediência ao princípio da limitação dos actos, e porque não é lícito realizarem-se no processo actos inúteis (artº 130º do CPC), também em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, hão-de os concretos pontos de facto impugnados poderem - segundo as diversas soluções plausíveis das várias questões de direito suscitadas - contribuir para a boa decisão da causa, maxime a solicitada modificação há-de minimamente relevar para a pretendida alteração do julgado.

Não se antevendo tal alteração, não haverá necessidade de proceder a uma actividade desnecessária, e, consequentemente, apreciar a matéria de facto impugnada - mesmo que ao tribunal de recurso incumba também apreciar todas as questões que lhe sejam colocadas pelos recorrentes (artº 608º,nº2 e 663º,nº2, ambos do CPC).

Em suma, as questões fáticas suscitadas devem estar numa relação directa com aquilo que se pretende obter com o provimento do recurso; tudo o que seja espúrio e desnecessário ao efeito pretendido não pode, nem deve, ser apreciado».

Vejamos.

Definido o processo jurisdicional, do ponto de vista estrutural, como uma sequência de actos jurídicos logicamente encadeados entre si, ordenados em fases sucessivas com vista à obtenção da providência judiciária requerida pelo autor (Castro Mendes, Manual de Processo Civil, 1963, pág. 7, e A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, pág.11), cabe ao juiz, no âmbito da sua função de direcção e controlo do processo, obviar a que nele sejam produzidos ou produzir actos inúteis.

O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.

Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.

Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questão que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.

Para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito.

Convergiram as instâncias no entendimento de que, para além do reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre as fracções autónomas do prédio de que faz parte a fracção pertencente aos réus, dada de arrendamento à KK-Empresa Municipal de Habitação de B…, E.M., e por esta subarrendada a JJ, nenhum dos demais pedidos formulados poderia proceder por falta de verificação de ilicitude na conduta imputada aos réus, requisito indispensável no domínio da responsabilidade aquiliana (artigo 483º do Código Civil).

Escreveu-se, concretamente, no acórdão recorrido que «A ilicitude dos factos e dos comportamentos descritos pelos AA é imputável apenas, directa e exclusivamente, à subarrendatária JJ, que viola, com a sua alegada conduta, os direitos de propriedade e de personalidade dos AA, causando-lhes danos, que descrevem e quantificam», sendo que, relativamente «Aos RR, enquanto proprietários da fracção e arrendatários da mesma, nenhuma conduta ilícita lhes é assacada pelos AA., a não ser o alegado dever de procederem contra a subarrendatária, movendo-lhe a respectiva acção de despejo».

Este entendimento não suscita qualquer reparo.

Efectivamente, os autores alicerçaram a responsabilidade dos réus, exclusivamente, no facto de os mesmos não terem intentado uma acção com vista à resolução do contrato e subsequente despejo da subarrendatária, o que faria cessar a conduta desta subarrendatária e dos demais ocupantes do locado lesiva dos seus direitos quer patrimoniais, quer de personalidade.

Não lhes imputam qualquer outro comportamento coadjuvante, sendo que, no contexto factual desenhado pelos autores, aquela omissão, só por si, não é susceptível de qualificar-se como acto ilícito, entendido este na acepção que dimana do nº 1 do artigo 483º do Código Civil, porquanto não configura violação de comando legal destinado a proteger interesses alheios, nem consubstancia violação de direito de outrem.

O poder de dar de arrendamento, que pode compreender a possibilidade de subarrendar, está contido no âmbito do direito de propriedade (artigo 1305º do Código Civil), e dele não deriva a responsabilização directa, sem mais, do proprietário pelos actos eventualmente lesivos dos direitos dos demais condóminos praticados pelo arrendatário ou pelo subarrendatário.

A não propositura da acção destinada a resolver o contrato de arrendamento/subarrendamento não traduz omissão geradora do dever de indemnizar prevista no artigo 486º do Código Civil, posto que a lei se refere «às omissões, que constituem formas de comportamento antijurídico apenas quando haja o dever (imposto – directa ou indirectamente – por lei ou decorrente de negócio jurídico) de praticar o acto omitido e este pudesse normalmente ter evitado a verificação do dano» (vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, pág.551).

E da facticidade alegada pelos autores, considerada também a que resultou não provada, não deriva qualquer forma de comportamento antijurídico dos réus susceptível de determinar a obrigação de indemnizar com fundamento em abuso de direito (artigo 334º do Código Civil).

Escreve Antunes Varela (ob. cit., pág. 545) «Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. É preciso, como acentuava M. Andrade, que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça».

Em suma, com base na causa de pedir apresentada pelos autores, integrada pelos factos julgados provados e não provados, a pretensão dos autores não pode triunfar, pelo que bem decidiu a Relação ao entender que a apreciação da impugnação da decisão fáctica consubstanciaria, no caso vertente, a prática de um acto inútil.


III. Decisão:

Termos em que se acorda no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.


Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 17 de Maio de 2017


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Nunes Ribeiro