Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
442/15.7T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS INSTRUMENTAIS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PODERES DO JUIZ
JULGAMENTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ACTO INÚTIL
ATO INÚTIL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO.
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO ( AÇÃO ) / CAUSA DE PEDIR / ÓNUS DE ALEGAÇÃO DAS PARTES / FACTOS NÃO ARTICULADOS PELAS PARTES.
Doutrina:
- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil” Anotado, vol. I, 3.ª edição,15 e 16.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 837.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 5.º, N.ºS 1 E 2, ALS. A) E B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 18.5.2004, PROCESSO N.º 1570/04.
-DE 14.5.2009, PROCESSO N.º 162/09.1YFLSB.
Sumário :
I. Nos termos do art. 5º, nº1, Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.

II. Factos não alegados pelas partes podem, no entanto, ser considerados pelo juiz. Esses factos, são os factos instrumentais que resultarem da instrução da causa (nº2 al. a) do art.5º), e os que sejam complementares ou concretizadores dos que as partes alegaram, quando resultarem da instrução causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar - al. b)

III. Os factos que resultam da discussão da causa, como decorre da formulação do nº2 do art. 5º do Código de Processo Civil - “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz” - são factos, passe a expressão, que só foram descobertos, que só chegaram ao conhecimento do Tribunal na fase instrutória da causa.

IV. Os factos instrumentais, mesmo que não constem da alegação das partes, podem ser tidos em consideração pelo julgador se resultarem da instrução da causa. Não se nos afigura rigorosa a afirmação de que os factos sindicados pelos Recorrentes – que foram por eles alegados na petição inicial e foram levados a debate em sede de instrução e julgamento – não devem ser objecto de julgamento em 2ª Instância, em sede de impugnação da matéria de facto, por serem instrumentais e o julgamento na 2ª Instância constituir um acto inútil.

V. A consideração da inutilidade da reapreciação do julgamento da matéria de facto, quando a parte que recorre cumpriu o ónus de que depende a apreciação da sua pretensão, só pode/deve ser recusada em casos de patente desnecessidade.

Decisão Texto Integral:

Proc.442/15.7T8PVZ.P1.S1

R-613[1]

Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA e BB, em 26.3.2017, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca do … – … – Instância Central – acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra:

 BANCO CC, SA.,

 Pediram a condenação deste a pagar aos autores a quantia de € 81.298, 64 acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, e em síntese, alegam que:

 - a Ré celebrou com os autores, em 09.06.2004, a pedido destes, dois contratos de mútuo com hipoteca e que, por via dos aludidos contratos mutuou a ré aos autores as quantias de € 75.000,00 para aquisição de residência secundária e mais 75.000,00 euros para fazer face a compromissos diversos;

- o reembolso das quantias mutuadas ficou garantido mediante a constituição de duas hipotecas, mas os autores deixaram de pagar à ré e encetaram negociações com ela no sentido de chegarem a um acordo, cuja proposta foi reduzida a escrito e que se traduzia na aceitação, pelo banco, da dação em cumprimento do imóvel, avaliado em 132.500,00 euros, acrescida da quantia de € 5.000,00, o que foi aceite;

- em 31.08.2012, o Dr. DD contactou o autor para lhe solicitar a desocupação do prédio, mas, para a marcação da escritura, faltava a licença de utilização, segundo a informação prestada pela ré, e porque a ré persistia na sua obtenção o autor requereu a emissão e entregou-a no Balcão de ...;

- para espanto dos autores, quando já nada obstaria à sua celebração, foram informados pela ré de que os valores a considerar em termos de acordo já não seriam aqueles, antes passariam a englobar a dação do imóvel, agora avaliado para o efeito em € 112.24.97 acrescidos do pagamento de 24.968,17 em dinheiro;

- o autor manifestou o seu desagrado à ré e em 15.05.2013 a ré instaurou contra os autores execução hipotecária reclamando a quantia de 154.251,24 euros onde foi ordenada a venda do imóvel por proposta em carta fechada, mas, na ausência de propostas, foi adjudicado à ré pelo montante de 100.939,86 euros.

 Regularmente citada, a ré apresentou-se a contestar, impugnando os factos alegados pelos autores e especificando que a proposta inicial tinha um prazo de validade até 05.08.2012, sendo que a escritura de doação não foi realizada por facto imputável aos autores, referindo, ainda, que, em relação ao alegado, competia aos autores deduzirem embargos de executado invocando o pretenso direito que agora se arrogam.

Concluiu pela improcedência da acção.

 Fixou-se o valor da causa o indicado no montante de 81.298,64 euros.

Proferido despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e os temas da prova.

***

Foi proferida sentença com a indicação dos factos provados e não provados, tendo concluído:

Pelo exposto, julga-se a presente acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolve-se a instituição financeira Ré “BANCO CC, SA” do pedido contra si formulado pelos autores (...) ”

***

Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do …, que, por Acórdão de 7.2.2017 – fls. 234 a 245 – (com um voto de vencido), tendo considerado, “mero acto inútil proibido pelo artigo 130º do Código de Processo Civil, e, como tal, não se procede à reapreciação da matéria de facto impugnada pelos apelantes”, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

***

           

Inconformados, recorreram os Autores para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1. O presente recurso tem por fundamento a violação da lei processual, nos termos do artigo 674º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil.

2. Reagindo à sentença da primeira instância, os AA. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do …, pedindo que fossem reapreciadas as respostas aos pontos A e C dos factos naquela dados como não provados.

 3. Consideraram os AA. que, alterando a resposta a esses factos instrumentais, seria presumir judicialmente que quem incumpriu a dação acordada foi a Ré.

4. Dando os referidos factos como provados, e não tendo ficado provado os pontos B) e F), à luz das regras da experiência comum, ficamos com a certeza necessária de que o contrato de dação não se celebrou por facto imputável à Réu, motivo pelo qual a acção deveria proceder.

5. O mesmo pensamento terá, provavelmente, tido o Exmo. Desembargador José Igreja Matos.

 

6. Com efeito, se o Tribunal “a quo” considerou que alterar a resposta aos referidos pontos da matéria de facto seria um acto inútil, motivo pelo qual rejeitou o recurso, já o voto de vencido considera que a alteração aos referidos pontos de facto não configura, de todo, a prática de um acto inútil, motivo pelo qual considerou que “Entendo estar suficientemente cumprido o ónus imposto pelo artigo 640º do Código de Processo Civil pelo que teria admitido a impugnação da matéria de facto.”

7. Com efeito, se os pontos A e C da matéria de facto não provada passarem a integrar os pontos da matéria de facto provada, a prova destes autos deixa de se resumir a uma situação de palavra vs palavra, e transforma-se em prova composta por depoimentos corroborados por factos instrumentais que, à luz das regras da experiência comum, os confirmam. Em contraposição, surge da parte da Réu um depoimento que se apresenta despido de qualquer enquadramento que torne a versão dos factos nele relatada minimamente plausível.

8. Considerar acto inútil a prática de um acto (reapreciação dos referidos pontos de facto) que pode determinar a alteração da decisão, de absolvição para condenação da Réu no pedido, viola o artigo 130º do Código de Processo Civil.

Termos em que se requer a revogação da decisão recorrida.

Não houve contra-alegações.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1) A Ré é uma sociedade comercial que tem por objecto o exercício da actividade bancária.

2) No exercício de tal actividade, em 09/06/2004, a Ré celebrou com os Autores, a pedido destes, dois contratos, com os teores de, respectivamente, 17 e ss. e 29 e ss., que aqui se dão por reproduzidos.

3) Estes contratos foram, então, outorgados pela “EE, S.A.” (também conhecida por “FF, S.A.”), que viria, depois, a ser incorporado por fusão na ora Ré.

4) Por força da celebração dos aludidos contratos, a Ré mutuou aos Autores as quantias de € 75.000,00, para a aquisição de habitação secundária, e mais € 75.000,00 para fazer face a compromissos financeiros diversos.

5) Consta dos contratos de fls. 17 e ss. e 29 e ss. - entre o mais – que “O capital mutuado vencerá juros calculados tendo por base a média aritmética das cotações diárias da taxa Euribor a 6 meses (...) ” (Cláusula Quarta), que “Sempre que se verifique a alteração da taxa de juro, a “IC”, com base no capital em dívida no final do mês em que se verificou a alteração, fará novo cálculo das prestações a pagar, cujo montante comunicará oportunamente ao “Mutuário” (...) ” (Cláusula Quinta), que “O capital mutuado será amortizado e os respectivos juros serão pagos em 456 prestações mensais, constantes e sucessivas, de capital e juros (...) ” (Cláusula Sexta) e que “ (...) Dois – Sem prejuízo do estabelecido no Parágrafo anterior, relativamente ao cálculo de juros moratórios, o não pagamento de uma prestação do empréstimo na data do seu vencimento confere desde logo à “IC” o direito de considerar vencidas todas as outras, independentemente de qualquer prazo contratualmente fixado, pôr termos ao contrato e exigir o integral reembolso daquilo que lhe for devido por força do mesmo, promovendo a sua imediata execução judicial. (...) " (respectivamente Cláusula Décima Sexta e Cláusula Décima Sétima).

6) O reembolso à Ré das quantias por esta mutuadas aos Autores ficou garantido mediante a constituição de duas hipotecas (uma para cada um dos contratos) sobre o prédio urbano sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 385, e então inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo 225 (cfr. Certidão Permanente de fls. 34 e ss. e Caderneta Predial Urbana de fls. 35 e ss.).

7) Os Autores deixaram de pagar à Ré as prestações devidas a partir de 02/02/2012, inclusive.

8) Não mais tendo logrado recuperar condições financeiras que lhes permitissem retomar os pagamentos.

9) Logo em 2012, os Autores contactaram a Ré, no sentido de procurar chegar a um acordo que lhes fosse possível cumprir.

10) Os Autores contactaram a sua agência da Ré, sita em ..., no sentido de propor a esta a dação em cumprimento do imóvel supra identificado.

11) Tal proposta foi reduzida a escrito em 28/03/2012, em modelo facultado pelo próprio Banco Réu, que o Autor AA assinou, com o teor de fls. 36, que aqui se dá por reproduzido e em que – entre o mais – se lê:

 “Mais declaram que autorizam o débito na sua conta D.O. nº 00000000001 das quantias relativas aos custos dos documentos necessários ou convenientes para apreciação do pedido supra, bem assim para a outorga do Contrato de Dação, nomeadamente, relatório de avaliação, plantas certificadas, licença de habitação, certidão predial, certidão matricial, certificado energético, bem como das decorrentes da eventual regularização de dívidas fiscais, designadamente de IMI referentes ao último ano.”

12) Após terem sido levadas a efeito diversas negociações e uma reavaliação do imóvel, os Autores e a Ré, na circunstância na pessoa do gerente do seu balcão de ..., o Dr. DD, acordaram na aceitação, pelo Banco Réu, da dação em cumprimento do imóvel, avaliado em € 132.500,00, acrescida do pagamento pelos Autores da quantia de € 5.000,00.

13) Em 31/08/2012, o acima referido Dr. DD contactou o Autor para lhe solicitar a desocupação do prédio, deixando-o livre e desimpedido de pessoas e coisas...

14)...justificando que era intenção do Banco Réu celebrar a escritura pública de dação em Setembro seguinte.

15) Os Autores removeram do local todos os móveis a si pertencentes.

16) Em data concretamente não apurada, a instituição bancária Ré informou os Autores de que seria necessário obterem uma certidão emitida pela Câmara Municipal de ... destinada a comprovar que a licença de utilização não era legalmente exigida para o prédio em questão.

17) Em 30/07/2013, os Autores requererem a emissão de tal certidão.

18) A referida certidão foi passada em 07/11/2013, com o teor de fls. 37, que aqui se dá por reproduzido.

19) Tal certidão foi levantada pelo Autor junto dos competentes serviços do Município de ... e, posteriormente, entregue no balcão de ... da Ré.

20) Nessa ocasião, foram informados pela instituição bancária Ré de que os valores a considerar em termos de acordo já não seriam os acima referidos, e que passariam a englobar a dação do imóvel, agora avaliado para o efeito em € 112.824,97, acrescidos do pagamento de € 24.968,17 em dinheiro, e no próprio acto da escritura.

21) O Autor manifestou à Ré o seu desagrado verbalmente e através de carta registada que a esta enviou em 02/09/2014, com o teor de fls. 38 e 39, que aqui se dá por reproduzido.

22) Em resposta, a instituição bancária Ré enviou ao Autor, em 29/09/2014, carta com o teor de fls. 39-verso, que aqui se dá por reproduzido.

23) Em 15/05/2013, a Ré instaurou contra os Autores execução hipotecária, reclamando deles a quantia de € 154.251,24, acrescida dos juros vincendos contados sobre o capital em dívida, a qual corre termos sob o nº845/13.1TBAF – J1 da 1ª Secção de Execução da Instância Central de Guimarães da Comarca de ….

24) No âmbito deste processo executivo, foi ordenada a venda do imóvel dos autos, por propostas em carta fechada.

25) Essa venda veio a ter lugar no dia 04/03/2015, sendo que, na ausência de outras propostas, foi aceite o requerimento de adjudicação do imóvel à ora Ré, ali Exequente, pelo montante de € 100.939,86.

26) No âmbito deste Processo Executivo, os aqui Autores (e aí Executados) não deduziram embargos de executado nem oposição à penhora do imóvel.

27) Num momento inicial, a Ré comunicou aos Autores que estava disponível para aceitar a extinção das dívidas decorrentes dos mútuos, mediante a entrega do imóvel dos autos, pelo valor de € 132 500,00, mais a importância de € 4 015,00...

28)... valor esse que correspondia ao valor de avaliação para uma venda rápida do imóvel e que tinha um prazo de validade até 05/08/2012.

29) Em finais de 2013, a Ré decidiu submeter o imóvel dos autos a nova avaliação. 

30) O prédio, por se ter desvalorizado, veio a ser avaliado, para um valor de venda rápida, por € 112.824,97.

31) Nessa data, o capital em divida ascendia a € 134.617,63 e os juros e encargos ascendiam a € 23.860,30.

32) Foi então comunicado aos Autores que o banco aceitaria receber o prédio em dação pelo valor de €.112.824,97, acrescida de uma entrega em dinheiro de € 24.968,17.

Factos não provados:

Por contraponto, não se provou a demais factualidade relevante alegada nos autos, e designadamente:

a) Que, em Agosto de 2012, os Autores se tenham deslocado à agência da Ré a fim de ali procederem à entrega das chaves do imóvel;

b) Que, nessa ocasião, os Autores tivessem sido informados na agência da Ré de que a escritura ainda não se encontrava marcada, por alegadamente ser necessário um documento adicional que se encontraria em falta, a licença de utilização do próprio imóvel;

c) Que, depois, o Banco tivesse permanecido por vários meses sem nada transmitir aos Autores a esse respeito;

d) Que tivesse sido apenas em Julho de 2013 que a instituição bancária Ré informou os Autores de que seria necessário obterem uma certidão emitida pela Câmara Municipal de ... destinada a comprovar que tal licença não era legalmente exigida para o prédio em questão;

e) Que a certidão de fls. 37 tivesse sido levantada pelo Autor no próprio dia junto dos competentes serviços do Município de ... e, no mesmo dia, entregue no balcão de ... da Ré;

f) Que a escritura de dação dos autos não tenha sido realizada por os Autores não terem entregado o documento da Câmara Municipal de ... que atestasse a inexistência de licença de habitabilidade;

g) Que, no final do ano de 2013, os Autores tivessem formulado novo pedido de dação em cumprimento do imóvel;

h) Que tivesse sido em face deste novo pedido que a Ré aceitou submeter o imóvel a nova avaliação.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso –, importa saber se a Relação deveria ter apreciado o recurso de apelação no que respeita à matéria de facto.

 

No recurso de apelação que interpuseram, os Autores pretendiam que fosse reapreciada matéria de facto considerada não provada, constante dos pontos a) e c) que, respectivamente, enuncia como não provado:

“a) Que, em Agosto de 2012, os Autores se tenham deslocado à agência da Ré a fim de ali procederem à entrega das chaves do imóvel.”

“c) Que, depois, o Banco tivesse permanecido por vários meses sem nada transmitir aos Autores a esse respeito”.

Tendo em conta a causa de pedir e o pedido da acção, os AA. pretendem a condenação do Banco Réu por não ter cumprido um contrato de dação em pagamento – art. 837º do Código Civil – celebrado com os AA., ora Recorrentes.

Os Autores são mutuários de dois empréstimos concedidos pela então EE, S.A. (também conhecida por “FF, S.A.”), que viria, depois, a ser incorporada, por fusão, na ora Ré.

Esses mútuos, celebrados em 9.6.2004, no valor de € 75 000,00 cada um, destinavam-se: um a aquisição de habitação secundária e, o outro a satisfazer compromissos financeiros dos Autores.

 Enfrentando dificuldades económicas, os mutuários estavam em situação de mora, quanto à amortização pontual dos seus compromissos, deixando de pagar as prestações convencionadas, a partir de 2.2.2012, pelo que tomaram a iniciativa de negociar com o Banco o modo de resolver a dívida, tendo o Banco entrado num processo negocial visando um acordo de dação do imóvel hipotecado em pagamento, exigindo ainda a entrega de certo montante em dinheiro.

Como, claramente, resulta dos factos provados, o negócio não se concretizou, tendo o banco instaurado execução hipotecária, em 15.5.2013, e na fase da venda, adquirido, por adjudicação, o imóvel em 4.3.2015, pelo valor de € 100 939,86.

Na tese dos AA., era sobre o banco que impendia, nos termos do acordo esboçado, o encargo de obter um documento que veio a considerar imprescindível para o encerramento das negociações.

Esse documento exigido pelo Banco – facto provado 16) – era “uma certidão emitida pela Câmara Municipal de ... destinada a comprovar que a licença de utilização não era legalmente exigida para o prédio em questão”.

Provou-se, com relevo (no que a esta questão concerne), a propósito do processo negocial:

“17) – “Em 30/07/2013, os Autores requererem a emissão de tal certidão.

18) A referida certidão foi passada em 07.11.2013, com o teor de fls. 37, que aqui se dá por reproduzido.

19) Tal certidão foi levantada pelo Autor junto dos competentes serviços do Município de ... e, posteriormente, entregue no balcão de ... da Ré.

20) Nessa ocasião, foram informados pela instituição bancária Ré de que os valores a considerar em termos de acordo já não seriam os acima referidos, e que passariam a englobar a dação do imóvel, agora avaliado para o efeito em € 112.824,97, acrescidos do pagamento de € 24.968,17 em dinheiro, e no próprio acto da escritura”.

Os AA. entendem que os factos referidos em a) e c), considerados não provados, devem ser considerados provados, atenta a prova testemunhal que indicaram a esses pontos, cumprindo o ónus imposto pelo art. 640º do Código de Processo Civil.

Como se vê do corpo das alegações do recurso de apelação, cumpriram os requisitos constantes daqueles normativos.

Do voto de vencido consta: “Entendo estar suficientemente cumprido o ónus imposto pelo artigo 640º do Código de Processo Civil pelo que teria admitido a impugnação da matéria de facto”.

Mas, na tese maioritária, a reapreciação daqueles pontos da matéria de facto foi recusada, não pelo facto de os Recorrentes não terem cumprido tal ónus imposto, mas porque se considerou um acto inútil a reapreciação da matéria de facto, no que respeita àqueles pontos a) e c), que os recorrentes entendem que, se forem considerados provados, a solução jurídica será outra.

Vejamos como o Acórdão (tese vencedora) argumentou:

4-1. Se é de alterar a matéria de facto como pretendido.

 Entendem os apelantes que houve errada apreciação da matéria de facto dada como não provada sob as alíneas A e C pugnando por resposta de provado com base nas declarações do autor e de sua esposa, GG.

Ao invés, pugna a apelada pela manutenção da matéria invocada com base no depoimento da testemunha DD.

Conforme decorre do relatório desta decisão, a causa de pedir invocada pelos autores na douta petição inicial, ou seja, os fundamentos que consubstanciam o alegado direito a uma indemnização, assenta na violação do acordo atinente à extinção dos empréstimos concedidos aos autores pela ré, mediante a dação em cumprimento do imóvel avaliado para o efeito em 132.000,00 euros acrescida do pagamento da quantia de 5.000,00 euros em numerário o que passa pela questão de saber: a qual das partes é de imputar a demora na outorga da escritura pública.

 Por conseguinte, os factos essenciais circunscrevem-se à exigência da documentação necessária à outorga da escritura pública e qual das partes ficou onerada com a sua obtenção.

Se assim é os factos ínsitos sob as alíneas A e C, cuja alteração os autores/apelantes pedem, redundam em meros factos instrumentais.

Atentando no conjunto dos factos dados como provados não vemos, com todo o respeito, que daqueles factos (a serem provados) se possa inferir factos essenciais, como, por exemplo, quem ficou incumbido de tratar da documentação necessária à outorga da escritura no prazo da validade da proposta invocada pelos autores/apelantes, cuja proposta era válida até 05-08-2012 conforme consta do documento junto a fls. 58 cujo conteúdo não foi impugnado pelos autores/apelantes – (dos autos não consta nenhuma impugnação), o qual não passou despercebido ao Tribunal recorrido que, em sede de fundamentação de facto, refere, precisamente, que “a proposta inicial do Banco ré de regularização da dívida dos autos por dação em cumprimento era válida até 05-08-2012”.

 Do que fica dito podemos concluir com segurança que a pretendia alteração redunda, assim, num mero acto inútil proibido pelo artigo 130º do Código de Processo Civil, e, como tal, não se procede à reapreciação da matéria de facto impugnada pelos apelantes.”

 Considerou-se, destarte, que os factos constantes das alíneas a) e c) eram meramente instrumentais e, que, caso se viessem a ser considerados provados, tal era irrelevante para que “se possam inferir factos essenciais, como, por exemplo, quem ficou incumbido de tratar da documentação necessária à outorga da escritura no prazo da validade da proposta invocada pelos autores/apelantes, cuja proposta era válida até 05-08-2012.”

Salvo o devido respeito, e sem necessidade de tecer aprofundadas considerações (ademais não invocadas na decisão) sobre se aqueles factos eram ou não instrumentais, não deixa de ser referir que, no facto 11), se alude a uma proposta dos AA., aceite pelo Banco, onde se diz - “Tal proposta foi reduzida a escrito em 28/03/2012, em modelo facultado pelo próprio Banco Réu, que o Autor AA assinou, com o teor de fls. 36, que aqui se dá por reproduzido e em que – entre o mais – se lê que “Mais declaram que autorizam o débito na sua conta D.O. n°00000000001 das quantias relativas aos custos dos documentos necessários ou convenientes para apreciação do pedido supra, bem assim para a outorga do Contrato de Dação, nomeadamente, relatório de avaliação, plantas certificadas, licença de habitação, certidão predial, certidão matricial, certificado energético, bem como das decorrentes da eventual regularização de dívidas fiscais, designadamente de IMI referentes ao último ano.”

Relevante é atentar que o Acórdão afirma que a proposta em discussão tinha um prazo de validade, a data-limite de 5.8.2012, mas, como decorre do facto provado 29), depois desse prazo, em finais de 2013, a Ré decidiu submeter o imóvel dos autos a nova avaliação, sinal que o prazo era indicativo e não foi entendido como fatal, peremptório: claramente, a Ré entendeu, por seu alvedrio, ser necessária nova avaliação, apesar de não ter decorrido um expressivo lapso de tempo entre o acordo inicial, quanto ao valor do imóvel, que seria dado em pagamento.

Ademais, consta que a razão dessa nova avaliação foi o facto de o Banco ter considerado que o prédio se tinha desvalorizado.

Ainda relacionado com o facto não provado a), importa ponderar os factos provados 13 a 15):

“13) Em 31/08/2012, o acima referido Dr. DD [gerente do Banco] contactou o Autor para lhe solicitar a desocupação do prédio, deixando-o livre e desimpedido de pessoas e coisas.

 14) … justificando que era intenção do Banco Réu celebrar a escritura pública de dação em Setembro seguinte.

 15) Os Autores removeram do local todos os móveis a si pertencentes”.

No contexto negocial que referimos, o saber se, em Agosto de 2012, os Autores se deslocaram à agência da Ré, a fim de ali procederem à entrega das chaves do imóvel, é um facto relevante, porquanto poderiam, como se provou, ter removido do local (a casa) todos os imóveis a si pertencentes, mas não terem entregado as chaves.

A intenção de entregar as chaves da casa, que seria o objecto da dação em pagamento, culminava o processo negocial e teria acontecido meses antes da Ré, vencido o prazo que findava em 5.8.2012, ter mandado avaliar o imóvel, em finais de 2013, sendo elemento crucial, no que respeita ao juízo a emitir sobre quem cumpriu, ou não, o acordado, atento que os AA. obtiveram a certidão exigida pelo banco, respeitante à comprovação de que uma licença de utilização não era legalmente exigida para o prédio dos Autores.

Também, o facto referido em c) – considerado não provado – a provar-se, é relevante para ajuizar da boa fé no processo negocial que envolveu as partes, na perspectiva do alegado incumprimento do contrato de dação em pagamento ou da ruptura das negociações.

Nos termos o art. 5º, nº1, do vigente Código de Processo Civil, a que corresponde o art. 264º do diploma de 1961, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.

Factos não alegados pelas partes podem, no entanto, ser considerados pelo juiz. Esses factos, são os factos instrumentais que resultarem da instrução da causa (nº2 a) do art.5º); e os que sejam complementares ou concretizadores dos que as partes alegaram, quando resultarem da instrução causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar - (al. b) do citado normativo).

Em bom rigor, os factos a que se referem as alíneas a) e b), objecto de impugnação pelos apelantes, foram alegados e, nessa medida, não resultam da instrução da causa.

Os factos que resultam da discussão da causa, como decorre da formulação do nº2 do art. 5º do Código de Processo Civil - “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz” - a), b) e c), são factos, passe a expressão, que só foram “descobertos”, que chegaram ao conhecimento do Tribunal na fase instrutória da causa.

Acerca dos factos de que o juiz se pode servir; sem dúvida os factos principais, que foram alegados pelas partes, e, para lá destes, os notórios, o que dir-se-ia constitui a regra. Já assim não sucede quanto aos factos acessórios.

“Estes factos (probatórios e acessórios) são factos instrumentais, que como tais não têm de ser alegados pelas partes nem de ser incluídos na base instrutória, podendo surgir no decorrer da instrução da causa. O juiz tem, portanto, de os considerar, independentemente da alegação das partes” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3ª edição, pág.15 e 16.

Mantém-se actual a consideração de que são “São factos instrumentais aqueles que, sem fazerem directamente a prova dos factos principais, servem indirectamente para prová-los, pela convicção que criam da sua ocorrência” – Acórdão este Supremo Tribunal de Justiça, de 18.5.2004 – Proc. 1570/04.

“O conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula, cumprindo às partes a alegação desses factos, apenas nos quais o juiz funda a sua decisão, embora possa atender, ainda que ex officio, aos instrumentais, que resultem da instrução e da discussão e aos que sejam complemento ou concretização de outros.

 O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, mas a substanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.5.2009 – Revista n.º 162/09.1YFLSB.

Os factos instrumentais, mesmo que não constem da alegação das partes podem ser tidos em consideração pelo julgador se resultarem da instrução da causa. Não se nos afigura rigorosa a afirmação de que os factos sindicados pelos Recorrentes – que foram por eles alegados na petição inicial e foram levados a debate em sede de instrução e julgamento – não devem ser objecto de julgamento em 2ª Instância, em sede de impugnação da matéria de facto, por serem instrumentais e o julgamento na 2ª Instância constituir um acto inútil.

A consideração da inutilidade da reapreciação do julgamento da matéria de facto, quando a parte que recorre cumpriu o ónus de que depende a apreciação da sua pretensão, só pode/deve ser recusada em casos patente desnecessidade, o que no caso se não evidencia, desde logo porque os factos em questão foram alegados e não resultaram da instrução da causa.

Nesta perspectiva, o recurso procede.

Sumário – art. 663º, nº7, do Código de Processo Civil

Nesta perspectiva, o recurso procede.

Decisão:

Nestes termos, concede-se a revista, anulando-se o Acórdão recorrido e determinando-se que os autos sejam remetidos ao Tribunal da Relação, a fim de ser apreciado o recurso no que respeita à matéria de facto, para, a final, se proferir a decisão que ao caso couber.

Custas pelo Recorrido.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Julho de 2017

Fonseca Ramos – Relator

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

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[1] Relator – Fonseca Ramos
Ex.mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot
Conselheiro Pinto de Almeida