Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5849/04.2YXLSB.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: TRANSPORTE
CONTRATO DE TRANSPORTE
TRANSPORTE MARÍTIMO
INCOTERMS
CÂMARA DE COMÉRCIO INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
MORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O contrato de transporte gera uma prestação de serviço tipo empreitada, em regra a favor de terceiro, sendo dotado de um regime mercantil especializado.
II - Os “incoterms” correspondem a cláusulas experimentadas e equilibradas, configurando-se como cláusulas típicas, constituindo verdadeiras cláusulas contratuais gerais sendo expressas pelas siglas respectivas em inglês. A sua utilização foi-se tornando habitual no comércio internacional, particularmente no sector dos transportes, e, para evitar as inevitáveis flutuações desse uso corrente, a Câmara de Comércio Internacional de Paris veio-as consolidar, surgindo assim a referida expressão “incoterms”, que significa “international commercial terms”. Fê-lo em 1936, seguindo-se versões de 1953, 1980, 1990 e 2000.
III - A Câmara de Comércio Internacional (CCI) não tem força vinculativa, pelo que a positividade dos incoterms advém sempre da autonomia privada, assumindo o alcance que lhes daria o destinatário normal, que corresponderá em principio ao da CCI, admitindo-se, todavia, que outra possa ser a solução concreta.
IV -Se, “Free on Board”, implica que o comprador tem de suportar, não apenas os custos do transporte, mas «os riscos de perdas ou de danos» da mercadoria a partir da amurada do navio de embarque, daí não se segue que sobre o transportador, enquanto devedor do transporte, não impenda, como na demais responsabilidade contratual, uma presunção de culpa (art 799º CC), referindo-se à mesma o art 376º C Com.
V- Coadjuvando essa norma, precisa a do art 383º do C. Com que, «o transportador, desde que recebe até que entrega os objectos, responde pela sua perda ou deterioração, salvo quando proveniente de caso fortuito, de força maior, de vício do objecto, de culpa do expedidor, ou de culpa do destinatário», pelo que se ele não lograr fazer a prova de algum destes factores será responsabilizado.
VI -Do & primeiro do art 382º C Com resulta que, excedendo o transportador o prazo estabelecido pelos usos comerciais para efectuar a entrega se constitui em mora, parecendo implicar o & 2º da mesma que, para que o transportador seja também responsável, não apenas pelos danos que o atraso na entrega cause ao destinatário, mas ainda pela impossibilidade casual da prestação - que corresponderá, na terminologia desse preceito, às «perdas e danos resultantes da demora» - será necessário que tenha excedido o dobro do tempo.
VII - A A. entrou em mora no tocante à falta de cumprimento de uma outra obrigação integrante ainda do contrato de transporte, na acepção larga deste e que o faz abranger todas as operações necessárias para que o seu sentido útil possa ser atingido, pois que recusou à R o direito a verificar o estado dos objectos transportados que lhe assiste nos termos do art 385º CCom.
VIII - Estando em mora quanto ao cumprimento desta obrigação, se as palmeiras de deterioraram ou morreram entretanto, será ela a responsável pelo custo da sua destruição, visto que a mora produz a inversão do risco.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I – “A” –…Portugal, Lda”, antes designada de “B” Portugal Transportes Internacionais Lda”, intentou a presente acção declarativa de condenação com processo sumário, contra “C” SL”, pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 9.948,38, sendo € 9.495,38 de capital em dívida, € 364 de juros de mora desde 1/8/2003 até à entrada da acção, e € 89 de taxa de justiça.
Alega ter contratado com a empresa “D”, em 8/7/2003, o transporte de palmeiras vivas da Argentina para Lisboa, orçando o preço em € 5.056,22, a ser suportado pela R.. Porém, esta recusou-se a fazê-lo, alegando que a mercadoria deveria ter chegado em Agosto de 2003 e apenas chegou em Setembro desse ano. Refere ainda que, tendo-se a R. recusado a levantar a mercadoria, a mesma teve de ser destruída, o que implicou o inerente custo – € 45.439,16 - que a A. suportou.
A R. contestou,  alegando que nunca recebeu as facturas por pagar, não sabe a que respeitam, nada contratou com a requerente, e quanto ao transporte de plantas, não lhe pode ser imputada a responsabilidade no pagamento, pois que essa cabe a quem celebrou o contrato, e não a ela. Por outro lado, refere, a transportadora confirmou com o expeditor que a entrega ocorreria em 8 de Agosto de 2003, o que não veio a suceder, mas apenas em Setembro desse ano. Atento o atraso, pediu para inspeccionar a carga, para saber se as plantas ainda estavam vivas, mas essa inspecção foi recusada pela A., motivo por que decidiu não receber a carga.

Procedeu-se a julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido.
 
            II – Do assim decidido, apelou a A. que concluiu as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
            1. O Tribunal deve elaborar a sentença, tendo em consideração todos os factos constantes da matéria de facto provada, sendo que as conclusões da sentença devem estar em coerência com a matéria de facto provada.
2. No dia 8 de Junho de 2003 a “D” S.A., com sede na Argentina, solicitou à “B” Argentina, no interesse, por conta e em representação da R., ora Recorrida, o transporte de 68 palmeiras vivas do porto de Zarate, na Argentina, até ao porto de Lisboa, não tendo sido convencionado qualquer data limite para que tal transporte fosse realizado.
3. O frete, que ascendia a Euros 5.056,22, seria pago pela recorrida à recorrente, quando a mercadoria se encontrasse pronta para ser levantada em Lisboa, o que aconteceu em 7 de Setembro de 2003 (ut. II supra, ponto 2, 3 e 4).
4. A Recorrente cumpriu com a obrigação a que estava obrigada de efectuar o transporte das 68 palmeiras vivas do porto de Zarate, na Argentina, até ao porto de Lisboa.
5. Não se tendo constituindo em mora, porquanto não foi fixada qualquer prazo para o cumprimento da obrigação a que estava vinculada (ut. II supra, ponto 6).
6. Não tendo sido fixado qualquer prazo para o cumprimento da obrigação, a recorrente só fica constituída em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelada para cumprir.
7. Dado que a recorrente não foi, de alguma forma, interpelada pela recorrida para cumprir com a obrigação a que estava vinculada, não se constituiu em mora.
8. Por não ter sido fixado qualquer prazo para o cumprimento da obrigação, a recorrente pode exonerar-se a qualquer tempo da obrigação a que estava obrigada.
9. A recorrente ao efectuar a sua obrigação de transporte não causou qualquer dano à recorrida.
10. Sendo que, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, não poderá retirar outro sentido do ponto 9 da matéria de facto provada que não o de que, se entretanto (depois de chegarem ao porto de Lisboa) as palmeiras morreram,é porque à data da conclusão do transporte não se encontravam mortas.
11. Efectivamente, as mercadorias transportadas pela rcorrente apenas pereceram, porquanto não foram levantadas pela Recorrida após o transporte efectuado pela recorrida.
12. A recorrente não incumpriu qualquer dever acessório ao recusar a prestação de autorização para a recorrida inspeccionar a mercadoria transportada.
13. Mas, mesmo que a recorrente tivesse incumprido tal pretenso dever acessório, a recorrida não poderia sem mais resolver o contrato de transporte celebrado.
14. A recorrida não logrou provar qualquer facto que objectivamente justificasse qualquer pretensa perda de interesse no transporte.
15. A recorrida mantinha interesse no transporte e na mercadoria transportada.
16. A resolução do contrato realizada pela recorrida é ilícita, porquanto esta objectivamente mantinha o interesse no transporte e na mercadoria transportada.
17. A recorrida não logrou provar, nem sequer alegou, ter interpelado a recorrente para que esta cumprisse com o pretenso dever acessório de autorizar a inspecção de mercadoria por si transportada, pelo que, também, por aqui se conclui que resolução do contrato operada pela recorrida não foi válida e eficazmente realizada.
18. A recorrida não pagou à recorrente o valor do frete de Euros 5.056,22, tendo entrado, pois em mora, nos termos do art. 805º, n.º 2, al. a) do Cód. Civil.
19. Acresce que, apesar de ter sido informada pela recorrente que a mercadoria seria considerada abandonada e consequentemente destruída, a recorrida recusou o levantamento da mercadoria transportada pela recorrida (ut. II supra, ponto 8).
20. A Recorrida é responsável pelas despesas que a recorrente suportou com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda e conservação da mercadoria.
21. O risco da impossibilidade superveniente da prestação – o perecimento superveniente das palmeiras –, com a mora da recorrida, começou a correr por conta desta.
22. A recorrente despendeu Euros 4.439,16, com a destruição das palmeiras, por entretanto as mesmas terem morrido e não terem sido levantadas (ut. II supra, ponto 10), sendo a recorrida responsável pelo pagamento deste montante.
23. A recorrida é responsável pelo pagamento do preço do frete (Euros 5.056,22), bem como pelo pagamento das despesas que a recorrente suportou com a destruição das palmeiras, por entretanto as mesmas terem morrido e não terem sido levantadas pela recorrida, como era sua obrigação (€ 4.439,16), bem como pelos respectivos juros de mora vencidos e vincendos.
24. Ao assim não entender violou a douta sentença recorrida, por erro de interpretação, os artigos 515º e 659º do Cód. Proc. Civil, bem como os art.s 762º, 777º, n.º 1, 798º, 799º, 804º, 805º, 806º, 807º, 808º, 813º, 814º, 815º, 816º do Cód. Civil e o art. 1º do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro.

A R. ofereceu contra-alegações, nas quais defende a manutenção da sentença recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – O tribunal de 1ª instância julgou como provados os seguintes factos:
a) No dia 8/7/2003 a “D” SA, com sede na Argentina, solicitou à “B” Argentina, no interesse, por conta e em representação da R., o transporte de 6 palmeiras vivas do porto de Zarate, na Argentina, até ao porto de Lisboa;
b) O preço do referido transporte, incluindo o frete marítimo, as despesas de terminal em Lisboa, as despesas de documentação e as taxas locais em Lisboa à importação, foi de € 5.056,22, valor titulado pelas facturas de fls. 88 e 89, com data de vencimento em 26/3/2004;
c) Foi acordado entre a “D” SA e a R. que o valor referido seria pago pela R. à A. quando a mercadoria se encontrasse pronta para ser levantada em Lisboa;
d) A mercadoria chegou no dia 7 de Setembro de 2003;
e) A A. contactou a R. para levantar a mercadoria, a qual pediu para previamente inspeccionar a mercadoria, nomeadamente para saber o estado em que se encontravam as palmeiras, pois a data de previsão da sua chegada era a 8 de Agosto desse ano;
f) As partes não acordaram qualquer data limite para efectuar o transporte, sendo este feito, usualmente, em cinco semanas, e sendo a data prevista inicial de 8/8/2003;
g) Na sequência da A. não ter autorizado a abertura dos contentores para inspeccionar a mercadoria, a R. informou-a de não ter qualquer interesse na mesma;
h) Tendo a R. recusado o levantamento da mercadoria, foi informada pela A. que a mercadoria seria considerada abandonada e consequentemente destruída;
i) A A. procedeu junto das autoridades portuguesas à destruição das palmeiras, por entretanto as mesmas terem morrido e não terem sido levantadas, tendo despendido a quantia de € 4.439,16, em 6/8/2003;
j) A A. emitiu a factura relativa ao pagamento efectuado com a destruição, referido no número anterior, em termos de fls. 90, factura essa cuja data de vencimento é de 26/3/2004;
k) A R. não celebrou, directamente, com a A. um contrato de transporte, tendo-o porém feito através da “D”, ao contratar a expedição internacional das mercadorias adquiridas FOB, Free on Board, ou seja, sendo a responsabilidade do pagamento do transporte, impostos, e demais vicissitudes da adquirente, ora R., e não da vendedora, “D”.

IV – Das conclusões das alegações resulta para apreciação a questão de saber se quem incumpriu o contrato de transporte não foi a A., ao contrário do que foi perspectivado na sentença recorrida para julgar improcedente a acção, mas antes a R. que, tendo-se recusado a pagar o frete e as despesas inerentes ao mesmo, se colocou em mora, tornando-se responsável, em função da mora pela despesa correspondente à destruição das palmeiras.
 
A situação de facto subjacente à questão a conhecer é simples:
 No dia 8/7/2003, a “D”, no interesse, por conta e em representação da R., solicitou à A. o transporte de seis palmeiras vivas do porto de Zarate, na Argentina, até ao porto de Lisboa. Sendo usual que o transporte em causa demorasse cinco semanas, a data prevista para a chegada da mercadoria era a de 8/8/2003. Porém, a mesma apenas chegou a 7/9/2003. A A. contactou a R. para proceder ao seu levantamento. O preço do transporte – € 5.056,22 - deveria ser pago pela R. à A. quando a mercadoria se encontrasse pronta para ser levantada em Lisboa. No entanto, a R., em vez de proceder ao (imediato) levantamento das palmeiras, pediu à A. para previamente as inspeccionar, com vista a saber em que estado se encontravam. A A. recusou à R. esta inspecção, e esta informou-a que, assim sendo, não tinha mais interesse na mercadoria. A A. teve que proceder à destruição das palmeiras, o que importou em € 4.439,16.

Neste contexto, quem deverá ser responsável pelas despesas do transporte e pelas da destruição das palmeiras?
 Será que se deve entender, como o pretende a A., que a R. se deverá ter ainda como vinculada à obrigação de preço, havendo, além disso, que suportar o prejuízo decorrente do custo da destruição das palmeiras?
Ou se deverá entender, em função da morte destas, que a obrigação se extinguiu com a consequente exoneração da R., não obstante a A. ter realizado o respectivo transporte?

Para a resposta, há que analisar o concreto contrato para que se determine quem é que se colocou, em primeiro lugar, em mora.

Para esse efeito, ter-se-á em consideração estar em causa um contrato de transporte – «aquele em que uma pessoa – o transportador – se obriga perante outra – o interessado ou expedidor -  a providenciar a deslocação de  pessoas ou de bens  de um local para outro [1]» -  que se configura, na situação dos autos, como um óbvio contrato de transporte de mercadorias por mar. A regulamentação jurídica do mesmo há-de encontrar-se, no que toca à disciplina genérica referente ao contrato de transporte, no C. Com, e, no que respeita especificamente ao transporte por mar, consoante art 2º do DL 352/86 de 21/10, na Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas em 25/8/24, a que Portugal aderiu por Carta de 5/1/31, publicada no DG, I Série, de 2/6/32, e que foi tornada direito interno pelo DL 37.748 de 1/2/50 e, subsidiariamente, pelas disposições desse DL 352/86 de 21/10 [2] [3].

No contrato de transporte, em regra, «o transportador só conclui a execução do seu contrato com a entrega do bem ao destinatário» [4], pelo que, pela presença deste, dá tal contrato lugar a uma relação triangular.
É discutida a natureza jurídica do contrato de transporte - que é, aí indiscutivelmente, um contrato oneroso, tendo o transportador direito a receber uma remuneração denominada “frete” - dizendo a esse respeito Menezes Cordeiro [5]  que, «nos moldes civilísticos o contrato de transporte é uma prestação de serviço, mas porque não é em si o serviço que interessa ao contratante, mas apenas o resultado, que é a colocação da pessoa ou do bem, íntegros, no local do destino, o transporte funciona como uma modalidade de empreitada». E, na medida em que, «relevando apenas o resultado final, o transporte acaba por assumir um conteúdo mais lato», dever-se-á dele dizer, que «abrange todas as operações necessárias para que o seu sentido útil possa ser atingido». Por assim ser, já se acentuaram as características, não apenas de prestação de serviço, mas de locação – porque há uso temporário do meio de transporte –, depósito – porque há entrega e guarda de bens –, e até de mandato.
Mais polémica, porém, se mostra a sua qualificação jurídica quando se trata de justificar o acima referido carácter triangular deste contrato.
 A dificuldade está – e a R., na presente acção, bem tentou servir-se dela para se defender - em justificar a vinculação do destinatário, quando o contrato é celebrado entre o expedidor e o transportador.
Menezes Cordeiro [6]  refere neste ponto a existência de duas orientações básicas,  por um lado, a teoria do contrato trilateral, por outro, a teoria do contrato a favor de terceiro. E diz: «A primeira, defendida entre nós por Costeira da Rocha [7] apresenta o contrato de transporte como um negócio a três: o expedidor, o transportador e o destinatário. Este daria o seu acordo num momento ulterior. A segunda, partilhada pela generalidade da doutrina alemã, descobre no transporte um contrato a favor do destinatário, ao qual este pode aderir nos termos gerais do CC». A circunstância de no contrato de transporte se encontrarem diversos pontos que o afastam do regime traçado nos arts 443º e ss CC para o contrato a favor de terceiro, e que Menezes Cordeiro explica, porque «ao tempo de Veiga Beirão a categoria dos contratos a favor de terceiro ainda não havia sido dogmatizada entre nós», não afasta o entendimento deste autor no sentido de que a estrutura básica a “favor de terceiro” se mantém neste contrato, concluindo o mesmo que o transporte «é uma prestação de serviço tipo empreitada, em regra a favor de terceiro, e dotado de um regime mercantil especializado».

Na situação dos autos, é na própria matéria de facto que se tenta solucionar a questão da vinculação da R. enquanto destinatária, dizendo-se – e, porventura, excedendo os contornos da matéria de facto - por um lado, que a “D”  agiu nas relações com a A., transportadora, «no interesse, por conta e em representação da R.», e por outro, que  «a R. não celebrou, directamente, com a A. um contrato de transporte, tendo-o porém feito através da “D”, ao contratar a expedição internacional das mercadorias adquiridas FOB, Free on Board, ou seja, sendo a responsabilidade do pagamento do transporte, impostos, e demais vicissitudes, da adquirente, ora R., e não da vendedora, “D”».

Convém explicitar a utilização na matéria de facto da expressão, “FOB, Free on Board”, lembrando que se trata de um dos designados “incoterms”.
 A respeito destes, diz Menezes Cordeiro, ainda no estudo que se vem a utilizar, que se «tratam de cláusulas típicas», verdadeiras «cláusulas contratuais gerais, correspondentes a cláusulas experimentadas e equilibradas», expressas pelas siglas respectivas em inglês, cuja utilização se foi tornando habitual no comércio internacional, particularmente no sector dos transportes, e em relação às quais, para evitar as inevitáveis flutuações desse uso corrente, a Câmara de Comércio Internacional de Paris [8] veio consolidar, surgindo assim a referida expressão “incoterms”, que significa, justamente, “international commercial terms”. Fê-lo em 1936, seguindo-se versões de 1953, 1980, 1990 e 2000, acusando as mesmas, a tendência de uma revisão de dez em dez anos.
 Adverte Menezes Cordeiro, que se trata de matéria a ser utilizada com cuidado, até porque, e não obstante o esforço de uniformização já referido, há “incoterms” de sentido não coincidente usados nos Estados Unidos, e há “incoterms” arcaicos, e figuras atípicas, «que podem não corresponder ao sentido preciso de nenhum dos 13 incoterms “oficiais”», e que, por isso, quando usados contratualmente, haverá que especificar no contrato a versão de que o mesmo advém, dizendo-se, por exemplo, “incoterms 2000”, ou mais especificamente, “incoterms CCI 2000”. Acrescentando que  não pode perder-se de vista  que «a força vinculativa dos mesmos provem sempre da sua inclusão em contratos», porque, na verdade, a CCI não tem força vinculativa, pelo que, «a positividade dos incoterms advém sempre da autonomia privada, assumindo o alcance que lhes daria o destinatário normal. Esse alcance será, em principio o da CCI, admitindo-se, todavia, que outra possa ser a solução concreta».

Feitas estas considerações, explicita-se o que para a referida CCI corresponde à sigla FOB: “Franco a Bordo (…porto de embarque designado): franco a bordo significa que o vendedor faz a entrega da mercadoria quando esta tiver transposto a amurada no navio de embarque designado. Isto significa que o comprador tem de suportar todos os custos e os riscos de perdas ou de danos à mercadoria a partir desse ponto. O termo FOB requer que seja o vendedor a desalfandegar a mercadoria na exportação. Este termo só pode ser utilizado para o transporte marítimo ou vias navegáveis interiores”

Donde se segue que na matéria de facto, ao dizer-se que «a R. não celebrou, directamente, com a A. um contrato de transporte, tendo-o, porém, feito através da “D”, ao contratar a expedição internacional das mercadorias adquiridas FOB, Free on Board, ou seja, sendo a responsabilidade do pagamento do transporte, impostos, e demais vicissitudes da adquirente, ora R., e não da vendedora, “D”», se terá pretendido dar ao termo FOB, o conteúdo da referida CCI.

 Se, como se acabou de referir, “Free on Board”, implica que o comprador tem de suportar, não apenas os custos do transporte, mas «os riscos de perdas ou de danos» da  mercadoria a partir da amurada do navio de embarque , daí não se segue  que sobre o transportador, enquanto devedor do transporte, não impenda, como na demais responsabilidade contratual, uma presunção de culpa.

À mesma se refere, enquanto manifestação daquela outra (a constante do art 799º CC), o art 376º C Com, nestes termos: «Se o transportador aceita sem reservas os objectos a transportar, presumir-se-á não terem vícios aparentes», o que significa que, «se os objectos chegarem com vícios e não houver reserva na guia, presume-se que houve má execução do transportador» [9].
Coadjuvando essa norma, precisa a do art 383º do C. Com que, «o transportador, desde que recebe até que entrega os objectos, responde pela sua perda ou deterioração, salvo quando proveniente de caso fortuito, de força maior, de vício do objecto, de culpa do expedidor, ou de culpa do destinatário». Deste modo, «se ele não lograr fazer a prova de algum destes factores, ele será responsabilizado»[10] .

Assim, e referentemente à situação dos autos, caso as palmeiras transportadas pela A., atento o atraso que se verificou - visto que a data prevista para a sua chegada era a de 8/8/2003, mas chegaram apenas a 7/9/2003 - estivessem, nesta data de 7/9, já mortas ou seriamente deterioradas, porque a A. nada invoca que em termos de caso fortuito ou de força maior justificasse esse estado, seria ela quem haveria de suportar a responsabilidade pelos danos resultantes para a R. desta perda ou deterioração, por não ter elidido a presunção de culpa que sobre ela impendia.

Mas, na verdade, não resulta da matéria de facto nem que as palmeiras já se achavam mortas à chegada ao porto de Lisboa, nem tão pouco, ao contrário do que o pretende a apelante, que só morreram depois dessa chegada.

Com efeito, diz a este respeito A., apelante – conclusão 10ª - que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, não poderá retirar outro sentido do ponto 9 da matéria de facto provada que não, o de que, se entretanto (depois de chegarem ao porto de Lisboa) as palmeiras morreram, é porque, à data da conclusão do transporte, não se encontravam mortas.
Foi dado como provado referentemente ao art 9º da petição inicial, que «a A. procedeu junto das autoridades portuguesas à destruição das palmeiras, por entretanto as mesmas terem morrido e não terem sido levantadas, tendo despendido a quantia de € 4.439,16, em 6/8/2003».
Ora, o que se dá como provado -«entretanto as mesmas terem morrido e não terem sido levantadas»- não significa, salvo melhor opinião, que as palmeiras tenham efectivamente apenas morrido depois de terem chegado ao porto de Lisboa, pois que se fosse esse o sentido pretendido para a resposta, ter-se-ia nela dito, «por entretanto as mesmas terem morrido, por não  terem sido levantadas», e não, como se disse, «por entretanto as mesmas terem morrido e não terem sido levantadas».
Quer dizer, não resultou provado, ao contrário do que a apelante o quer fazer crer, que as palmeiras não estivessem já mortas ou seriamente danificadas quando chegaram ao porto de Lisboa, um mês depois da data prevista.

Diz a apelante que não pode considerar-se que este atraso configure mora, na medida em que não foi fixado qualquer prazo para a entrega das palmeiras, e que, pese embora o referido atraso, nem por isso a R. a interpelou nesse entretanto para cumprir.

Ora, ficou provado que «as partes não acordaram qualquer data limite para efectuar o transporte, sendo este feito usualmente, em cinco semanas, sendo a data prevista inicial de 8/8/2003».
 
A respeito do prazo de entrega da mercadoria estabelece o art 382º C Com. que, «o transportador é obrigado a fazer a entrega dos objectos no prazo fixado por convenção ou pelos regulamentos especiais do transportador e, na sua falta, pelos usos comerciais, sob pena de pagar a competente indemnização», acrescentando o & 1º que, «excedendo a demora o dobro do tempo marcado neste artigo, pagará o transportador, além da indemnização, as perdas e danos resultantes da demora», e o & 2º, que, «o transportador não responderá pela demora no transporte, resultante de caso fortuito, força maior, culpa do expedidor ou destinatário», referindo, ainda, o 3º, que, «a falta de suficientes meios de transporte não releva o transportador da responsabilidade pela demora».
 
Deste preceito só pode resultar que, excedendo o transportador o prazo  estabelecido pelos usos comerciais para efectuar a entrega – sendo que esses usos comerciais «se baseiam, naturalmente, no tempo que normalmente gasta um  barco ou veiculo, conforme a respectiva velocidade, para chegar ao lugar do destino» [11] - se constitui em  mora.

Com efeito, «se o devedor não realiza a prestação no tempo devido, mas esta se conserva possível e o credor continua a ter interesse nela, o devedor constitui-se em mora, desde que o atraso lhe seja imputável, isto é, desde que provenha de culpa sua, não derivando de facto do credor (de mora deste) nem de caso fortuito ou de força maior» [12].
 
O que parece suceder por via do transcrito & 2º da referida norma do art 382º C. Com, é que, para que o transportador seja também responsável – não apenas pelos danos que o atraso na entrega cause ao destinatário – mas ainda pela impossibilidade casual da prestação - que corresponderá, na terminologia desse preceito, às «perdas e danos resultantes da demora» -  (sendo que como o refere Galvão Telles, «as hipóteses em que a prestação se impossibilita, são de equiparar mutatis mutandis àquelas em que ainda pode ser cumprida, mas só defeituosamente») - é necessário que a demora tenha excedido o dobro do tempo.

Assim, e por reporte à concreta situação dos autos, a A. constituiu-se em mora após o decurso da 5ª semana subsequente à data do embarque das palmeiras, tornando-se responsável pelos prejuízos que a entrega atrasada destas tivesse ocasionado ao destinatário (ou/e ao expedidor) - que não estão em causa nos autos.

 Mas, porque o atraso na entrega dessa mercadoria não chegou a exceder o dobro das cinco semanas – correspondendo estas cinco semanas, como resulta da matéria de facto provada, ao prazo estabelecido pelos usos comerciais -  não se tornou a A. – só por causa dessa mora – como responsável pela morte ou grave deterioração das palmeiras que eventualmente tivesse ocorrido acidentalmente antes de 7/9/2003.

Sucede que a A. entrou em mora no tocante à falta de cumprimento de uma outra obrigação, integrante ainda do contrato de transporte, na acepção larga deste e acima referida, e que o faz abranger «todas as operações necessárias para que o seu sentido útil possa ser atingido» [13].
 È que, «o destinatário tem o direito a, a expensas suas, fazer verificar o estado dos objectos transportados, ainda quando não apresentem sinais exteriores de deterioração»,  nos termos do art 385º CCom.
Por isso, não podia a A. recusar à R. a verificação do estado da mercadoria, sem entrar em mora, como entrou.
Com efeito, recusando-se a permitir essa verificação, a A. está ainda a deixar de efectuar pontualmente – ponto por ponto - a sua prestação de transporte, constituindo-se, por assim ser, na prática de acto ilícito e culposo.
Como é evidente, sendo o fim do cumprimento da obrigação a satisfação do interesse do credor, «além da conduta que directamente constitui aquilo que em sentido estrito chamamos a prestação, o devedor está obrigado a outros comportamentos que esse dever de prestar implica»[14]
E no contrato de transporte, a prestação do transportador não pode entender-se cumprida, se o mesmo recusa ao destinatário o exercício da faculdade deste verificar o estado da mercadoria transportada, pois só com esse exame pode o destinatário aferir da diligência do transportador no cumprimento do seu dever.

Nem diga a apelante que a R. se constituiu primeiro em mora por não ter pago o  preço do transporte, pois que o preço só seria devido depois que a mercadoria se encontrasse pronta para ser levantada, e não pode considerar-se pronta para esse efeito a mercadoria cuja inspecção pelo destinatário não foi previamente aceite pelo transportador.

Como é sabido, a mora do devedor produz a inversão do risco.
«Diz-se que suporta o risco aquela das partes que sofre o prejuízo proveniente da prestação se impossibilitar por caso fortuito ou de força maior» [15].
Diz o art 807º CC no seu nº 1: «Pelo facto de estar em mora, o devedor torna-se responsável pelo prejuízo que o credor tiver em consequência da perda ou deterioração daquilo que deveria entregar, mesmo que esses factos lhe não sejam imputáveis».

Por isso, mesmo que as palmeiras tivessem chegado em condições ao porto de Lisboa, ainda que um mês depois da data prevista – o que se desconhece, bem podendo ter acontecido que as mesmas já tivessem morrido antes … -  a circunstância de terem morrido depois dessa data, com a subsequente necessidade, decorrente da higiene pública, de  terem de ser destruídas, é risco que tem de ser suportado pela A. por se encontrar em mora.

Note-se que à A., ainda que tendo recusado ilicitamente a inspecção pela R. do estado das palmeiras, teria sido possível, desde o momento em que após essa recusa a R. a informou de que não teria mais interesse nas mesmas, requerer o depósito judicial dessa mercadoria, colocando-a à disposição do expedidor ou de quem o representa, nos termos do art 388º C. Com., o que teria evitado a sua responsabilização pelos custos da subsequente destruição da mesma. 
Se o não fez, terá sido, decerto, porque as palmeiras já não estariam em condições.

Note-se ainda, que a perspectivação da situação em causa nos autos que se vem desenvolvendo – decorrente da mora da A. e consequente inversão do risco - só faz sentido, se, aquando da destruição das palmeiras, o vínculo contratual ainda se mostrasse subsistente.

È que, na verdade, à declaração da R. de que, perante a recusa da A. em facultar-lhe a inspecção da mercadoria, não mais teria interesse nela, seria possível atribuir-se o conteúdo de resolução do contrato, e, assim sendo, o que estaria em causa, seria saber se tal resolução era admissível à luz do disposto no art 808º do CC.

Ora, nessa perspectiva, ainda que se entendesse que, porque, por um lado, a R. não chegou a interpelar a A. conferindo-lhe um prazo para o cumprimento daquela obrigação (de facultar a inspecção da mercadoria), e, por outro, porque, das circunstâncias do caso, não seria (ainda) possível dizer-se ter havido perda objectiva de interesse da R. na prestação – o que é duvidoso -  e que, por isso, não era admissível à R ter procedido à resolução do contrato, então, mantendo-se este, e mantendo-se a mora da A. relativamente ao cumprimento daquela obrigação, sobrevindo a morte das palmeiras, seria ainda a A. a responsável pelo custo da necessária destruição das mesmas, como acima se concluiu. 

 Deste modo, haverá que concluir pela improcedência da acção, confirmando-se a sentença recorrida.

V – Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.
                                                                      
Lisboa, 23 de Novembro de 2011
                             
Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto
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[1]- Menezes Cordeiro, «Introdução ao Direito dos Transportes», Centro de Direito Marítimo e dos Transportes da FDUL, I Jornadas de Lisboa do Direito Marítimo, p 23
[2] - Neste sentido,  Ac STJ de 20/4/2006 (Oliveira Barros), acessível em www dgsi.pt
[3] - Esse DL define o transporte de mercadorias por mar como «aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria de um ponto para outro diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada frete»
[4] -Menezes Cordeiro, estudo citado, p 25
[5]- Menezes Cordeiro, estudo citado, p 24 e 35
[6]- Menezes Cordeiro, estudo citado, p 35/36
[7]  -«O contrato de transporte», 227 e ss
[8] - ICC Publication Nº 560 ( E )  - ISNB 92.842.1199.9 -  www.iccwbo.org/
[9]-   Menezes Cordeiro, estudo citado, p 29
[10]-  Ainda, Menezes Cordeiro, estudo citado
[11]- Cunha Gonçalves, «Comentário ao Código Comercial Português», 2 ed, p 436
[12]- Galvão Telles, «Direito das Obrigações». Ed da FDL, 2ª ed, 272
[13] - Estudo citado de Menezes Cordeiro, p 35
[14]- Pessoa Jorge, «Direito das Obrigações», ed AAFDL, 1975/1976 p 264
[15]- Galvão Telles, obra referida, p 275