Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
79/12.2TNLSB.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
CLÁUSULA PENAL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Os contratos de transporte de mercadorias por mar são disciplinados pela Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas em 25/8/24, a que Portugal aderiu por Carta de 5/12/31, publicada no DG, I Série, de 2/6/32, e que foi tornada direito interno pelo DL 37.748, de 01/02/50, e, subsidiariamente, pelas disposições do Decreto-Lei nº 352/86, de 21/10.
2.Conforme decorre do artigo 1º Decreto-Lei nº 352/86, de 21/10, o contrato de transporte de mercadorias por mar é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria de um ponto para outro diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada frete.
3.O contrato de transporte de mercadorias por mar, de acordo com o artigo 3º do DL 352/86, de 21/10, é um contrato formal ou solene, sujeito a escrito particular, denominado conhecimento de embarque ou conhecimento de carga ( bill of lading).
4.Desde a introdução de contentorização nos transportes, nomeadamente marítimos, os contentores podem pertencer tanto ao próprio armador, o qual constitui parte ou acessório do veículo transportador, ou mesmo pode ser arrendado ou adquirido pelos próprios interessados, para que possam ser utilizados no transporte de suas cargas.
5.Pertencendo ou não ao armador, o contentor deve ser retirado após a conclusão do transporte, devendo ser devolvido no prazo estipulado, sob pena de incorrer no pagamento de sobrestadia (demurrage), devida justamente pelo atraso na devolução do equipamento.
6.A expressão “demurrage” vem a ser consagrada no ramo de comércio internacional para designar a remuneração devida ao transportador marítimo pela continuação da utilização de contentores e a não devolução desse equipamento no prazo de utilização estipulado, e ao qual se aplicam as regras do contrato de aluguer.
7.A cláusula penal resulta de um acordo das partes, no âmbito do princípio da liberdade contratual, e tem como finalidade a fixação antecipada de uma indemnização que o devedor deverá satisfazer ao credor em situações de inadimplemento, cumprimento a destempo ou cumprimento defeituoso da obrigação, com intuito de se evitarem futuras dúvidas e litígios entre as partes, quanto à determinação do montante da indemnização.
8.Na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva. Na primeira, a cláusula penal prevê antecipadamente o ressarcimento do dano resultante de eventual não cumprimento ou cumprimento inexacto; por sua vez, a segunda função (a coercitiva) constitui um poderoso meio de pressão de que o credor se serve para determinar o seu devedor a cumprir a obrigação a que se vinculou.
9.No exercício do seu equitativo e excepcional poder moderador, o juiz só goza da faculdade de reduzir, a cláusula penal que se revele extraordinária ou, manifestamente excessiva, e não já a cláusula excessiva, sendo que ela corresponde a um acordo firmado pelas partes, que, presumivelmente, não deixaram de ponderar as suas vantagens e os seus inconvenientes.
10.Nos recursos ordinários está em causa a reponderação da decisão recorrida, encontrando-se a demanda no tribunal superior circunscrita às questões que já tenham sido submetidas ao tribunal de categoria inferior;
11.Só excepcionalmente pode o tribunal superior conhecer de questões que não tenham sido suscitadas e apreciadas no tribunal inferior, designadamente se se tratar de questões que o tribunal possa conhecer “ex officio”.
12.A redução de uma cláusula penal não pode ser efectuada oficiosamente, pois depende de pedido formulado pelo devedor, com alegação e prova de factos pertinentes, traduzindo-se a sua invocação pela primeira vez, em sede de recurso, numa questão nova que não pode ser conhecida pelo tribunal de recurso.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.RELATÓRIO:


SHIPPING COMPANY S.A., com sede no ……, Lisboa, intentou, em 31.12.2012, contra J. LDA.., com sede na Rua ….., acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, através da qual pede a condenação da ré no pagamento da quantia de € 128 611,47, acrescida dos juros que à taxa supletiva aplicável se vierem a vencer sobre o capital de € 114 252 desde esta data até efectivo e integral pagamento.

Fundamentou, a autora, no essencial, esta sua pretensão da forma seguinte:
1.A autora exerce a actividade de agente de navegação, sendo agente em Portugal do armador suíço Shipping Company Holding, S.A., o qual se dedica ao transporte internacional de mercadorias por via marítima.
2.Nos termos do contrato de agência correspondente, compete à Autora proceder, designadamente, à cobrança dos fretes e de contas relacionadas e remeter à sua Representada todos esses valores bem como cobrar todas as taxas de manuseamento no terminal e transferir esses valores para a sua  representada, sendo ainda responsável por todos os contentores da SHIPPING COMPANY HOLDING, S.A que dêem entrada em Portugal, o que abrange as reparações, operações de manutenção e limpezas necessárias, e o acompanhamento da devolução dos contentores vazios e cobrança dos respectivos custos de paralisação e outros.
3.Por procuração outorgada em Genebra, no dia 26 de Fevereiro de 2002, a SHIPPING COMPANY HOLDING, S.A nomeou como sua procuradora a Autora, conferindo-lhe poderes legais para, isoladamente e em nome da sociedade, cobrar judicialmente, na Justiça Portuguesa, todos e quaisquer créditos sobre terceiros, relacionados, directa ou indirectamente, com o exercício da sua actividade de transportador marítimo, designadamente indemnizações resultantes de responsabilidade contratual ou extracontratual, fretes marítimos, imobilizações de contentores, custos e despesas, propondo, para esse fim, os competentes procedimentos judiciais, nomeadamente acções declarativas, execuções, providências cautelares, notificações judiciais avulsas, processos de falência e recuperação de empresa, bem como quaisquer outros requerimentos, representando-a em todas as diligências processuais e praticando quaisquer outros actos necessários ao fim pretendido.
4.No exercício da sua actividade comercial e a solicitação da Ré, a qual se dedica à importação, exportação, comércio, e representação de electrodomésticos e outros, a representada da Autora prestou-lhe serviços, tendo efectuado transportes marítimos de múltiplas remessas por conta da Ré desde vários portos marítimos da República Popular da China até aos portos de Leixões e Vigo, tendo sido efectuado o pagamento do respectivo frete.
5.Após a chegada e descarga dos contentores, destinados à Ré, do navio para a doca, a Ré requereu tempo extra de permanência das mercadorias nos contentores que as tinham transportado e pertenciam à representada da Autora, tendo incorrido em despesas relacionadas com a imobilização desses contentores (demurrage). Ademais, a Ré incorreu nas despesas referentes à armazenagem desses contentores (e da mercadoria neles contida) em local adequado (storage), uma vez que não procedeu ao levantamento, dentro do prazo concedido para o efeito, das mercadorias que aí se encontravam armazenadas para poder devolver os contentores à Autora dentro do prazo concedido para o efeito.
6.A existência de tais despesas foi comunicada à Ré aquando da contratação dos serviços prestados pela representada da Autora. Ademais, esta mantém no seu sítio da internet toda a informação relativa a tais encargos, tendo o link respectivo sido revelado à Ré nas negociações travadas com vista à prestação dos transportes que vieram a ser solicitados à representada da Autora.

Citada, a ré apresentou contestação, em 08.03.2012, invocando, em síntese:
1.Aquando da contratação dos serviços, e ao invés do alegado na petição inicial, não foram acordadas quaisquer condições para a imobilização e a armazenagem dos contentores após a respectiva descarga no porto de destino.
2.Até ao envio do email junto à petição inicial como documento n.º 33, datado de 16-09-2009, nunca a Autora manifestou a sua intenção de cobrar qualquer custo pela imobilização de contentores no porto de descarga.
3.Apenas em Setembro de 2009 – e na sequência de uma reunião com os representantes das partes, na qual a Ré manifestou o seu desagrado quanto à cobrança de encargos provenientes de imobilização e armazenagem e condicionou a manutenção da contratação de fretes à revisão de tais despesas reclamadas –, a Autora remeteu à Ré o sobredito email e apresentou-lhe as suas «Condições especiais J..., Lda., relativamente aos custos de imobilização e armazenagem.
4.A armazenagem é um custo cobrado pelo porto de desembarque e que o transportador não pode exigir ao seu cliente mais do que pagou à administração portuária.
5.Consequentemente, as facturas cuja cobrança a Autora pretende obter na presente acção, juntas com a petição inicial como documentos n.ºs 3 a 30, estão erradas quanto aos valores da armazenagem e imobilização, na parte em que excedem os valores constantes dos preçários portuários e das «Condições especiais J…Lda.» anunciadas pela Autora, respectivamente.
6.Significa isto que dos € 114 479 facturados pela Autora, a Ré deve apenas € 53 169,18, havendo assim uma sobrefacturação do montante de € 61 309,82.

Na contestação a ré apresentou reconvenção, pedindo:
a)-A procedência parcial da acção, reconhecendo-se à Autora a detenção de um crédito sobre a Ré no montante de € 53 169,18;
b)-A procedência da reconvenção, reconhecendo-se à Ré a detenção de um crédito sobre a Autora no montante de € 161 271,73;
c)-A compensação do crédito da Ré no débito que mantém para com a Autora, condenando-se esta no pagamento da quantia remanescente de € 108 102,55, acrescida de juros moratórios desde citação até efectivo e integral pagamento, à taxa de juro aplicável aos créditos de que sejam titulares sociedades comerciais (e resultem de transacção comercial).

Alegou, a ré, para tanto, que:
1.As «Condições gerais J…, Lda. », constantes do documento junto à petição inicial com o n.º 33, referem-se a contentores de 40 pés e consistem no único preçário que as partes acordaram relativamente a despesas de imobilização e armazenagem, com a restrição do custo da armazenagem ao efectivamente cobrado pelo porto de desembarque, conforme sustentado na contestação.
2.Sucede que entre 29-06-2009 e 30-03-2010 a Autora emitiu facturas à Ré por imobilização e armazenagem que, no seu valor, excedem em mais do dobro os montantes convencionados, sendo que aquelas apenas foram pagas porquanto a sua não liquidação acarretaria a interrupção dos transportes já contratados e a não autorização por parte da Autora de levantamento da mercadoria contida em contendores já descarregados no porto de desembarque.
3.A circunstância de ter pago muitas das facturas emitidas pela Autora não significa que a Ré se tenha conformado com o seu conteúdo, mas apenas que, naquele momento em concreto, não pretendeu colocar em risco os transportes em curso, por tal lhe causar prejuízo de valor substancialmente superior ao do custo de imobilização e armazenagem que lhe estava a ser debitado.
4.Há que apurar o acerto dos débitos que lhe foram efectuados pela Autora a título de imobilização e armazenagem, arrogando-se da qualidade de credora pelos montantes indevidamente pagos.
5.Do cômputo das facturas lançadas pela Autora a título de armazenagem e paralisação e já pagas pela Ré, foram cobrados a mais € 161 271,73, uma vez que, tendo sido facturados € 292 855,60, apenas são devidos € 131 583,87.
6.Assim, estes € 161 271,73 facturados a mais constituem crédito da Ré, que esta pretende compensar até ao limite do seu débito de € 53 169,18, reconvindo nos remanescentes € 108 102,55.

Notificada, a autora apresentou articulado de réplica, em 27.04.2012, no qual respondeu às excepções invocadas pela ré, propugnando pela sua improcedência, alegando, em suma, que:
1.Nos termos do seu email de Fevereiro de 2009, deu prévio conhecimento dos preços por si praticados à Ré e que esta os aceitou, sendo incredível a sua ignorância.
2.Aliás, a Ré por diversas vezes contactou a Autora tentando que lhe fossem concedidos descontos nos valores referentes às paralisações/imobilizações dos contentores ou extensões do período livre (ou seja, isenções de pagamento dos valores devidos por imobilizações nos primeiros dias da sua ocorrência), o que significa que os conhecia.
3.A Ré, depois de ter recebido as facturas de serviços de imobilização e armazenagem emitidas com os valores que agora questiona, encomendou à Autora novos serviços de transporte, mas voltou a não pagar os montantes referentes a demoras de vários contentores deslocados.
4.A autora presta um serviço de armazenagem no porto aos seus clientes, os quais são livres de a contratar e totalmente alheios aos termos da relação que a Autora ajusta com o terminal com vista à atribuição de um espaço para o depósito de contentores.
5.As tarifas citadas pela Ré para os serviços de armazenagem avançados por outras entidades referem-se a contentores de 20 pés/TEU, quando é certo que os dos autos são de 40 pés e, por isso, ocupam mais do dobro do espaço e têm preços diferentes.
6.Situação idêntica se passa quanto à imobilização, pois a capacidade de carga de um contentor de 40 pés é igualmente mais do dobro da capacidade de um contentor de 20 pés/TEU, pelo que o interesse económico da companhia de navegação é muito superior no caso do contentor de 40 pés, originando um preço mais alto (o dobro, correspondente à perda de capacidade activa) para a imobilização deste.
7.Ainda que estas razões subjacentes à fixação dos preços pela representada da Autora em valores correspondentes ao dobro, para o caso dos contentores de 40 pés, em comparação com os de 20 pés/TEU, não fossem conhecidas da Ré, o que admite por necessidade processual, o certo é que o preçário que resultou destas razões foi transmitido à Ré, que o aceitou previamente ao início das operações de importação da China para Leixões.
8.E se caso – por hipótese académica – vigorassem os «preços oficiais do porto de Leixões» tal como indicados na defesa, o valor diário nunca seria o avançado por esta de € 2,91, que se refere a contentores de 20 pés/TEU, mas sim o dobro, de € 5,82.
9.No que concerne ao valor facturado pela Autora quanto a imobilizações, a Ré confunde-se e pretende confundir quando trata os contentores de 40 pés como se estes tivessem apenas 20 pés, querendo assim que o preço seja o praticado para contentores de 20 pés/TEU.
10.Estando assente o número de dias que duraram as imobilizações/paralisações e as armazenagens em causa nas facturas discriminadas pela Ré, o facto é que esta labora em erro absoluto quanto ao valor diário das imobilizações, por um lado, uma vez que considera valores para contentores de 20 pés quando os contentores em causa são de 40 pés, com o dobro da capacidade e objecto de preço diferente.
11.A Ré falseou a realidade quando alegou que há um «preço oficial» para a armazenagem, já que tal preço não existe, tendo sido aplicado o preço contratado constante das tabelas da Autora – dadas a conhecer à Ré – para contentores de 40 pés (os quais ocupam o dobro do espaço ocupado pelos contentores de 20 pés - TEU).
12.A Ré também alterou conscientemente a verdade dos factos que conhece quando afirma que a Autora pretende cobrar dela a quantia de € 4375 por um dia de armazenagem e um dia de imobilização de quatro contentores no porto de Vigo, pois existe correspondência abundante entre as partes a respeito da factura n.º 3282, a qual foi objecto de perguntas e de pedidos de esclarecimento à Autora, tendo esta prestado, por correio electrónico, todas as informações solicitadas, indicando inclusivamente quais os conhecimentos de embarque (BL) e os contentores em causa, as respectivas datas de descarga e de levantamento, e as datas em que a Ré tinha procedido à sua devolução, vazios, à Autora, deixando de ser devida a imobilização pela sua utilização.
13.É, pois, rotundamente falso tudo o que a Ré alega a respeito dos contentores do porto de Vigo, pois não se debita armazenagem e imobilizações referentes a quatro contentores, mas sim a treze contentores que viajaram ao abrigo de quatro conhecimentos de embarque; não se cobra por um dia de armazenagem, mas sim por 405, sendo simultaneamente concedidos 98 dias de período livre; não se cobra por um dia de imobilização, mas sim por 241 dias.
14.Neste contexto, é manifesto que a Ré litigou de má fé, usando expedientes dilatórios reprováveis e falseando deliberadamente a realidade, fazendo uso reprovável do processo para atrasar o pagamento das suas dívidas.

Na contestação à reconvenção, a Autora invocou que:
1.Ao fornecer à Ré a cotação dos seus preços, indicou-os diferenciadamente conforme se tratasse de contentores de 20 pés e de 40 pés, no caso do frete marítimo e adicionais que constavam da tabela anexa à mensagem de correio electrónico.
2.Impugna os documentos juntos com a petição inicial (sob os n.ºs 31 e 32), que contêm os preços praticados pela Autora-Reconvinda na prestação dos serviços de armazenagem e imobilização/paralisação, além de se encontrarem afixados de forma visível nas instalações da Autora-Reconvinda, foram indicados à Ré-Reconvinte e objecto de múltiplas conversas entre funcionários das partes.
3.Se a Ré-Reconvinte, como alega, não tomou conhecimento desses preços, o que se admite apenas por necessidade processual e dever de patrocínio, sendo na prática impossível que tal corresponda à verdade, foi porque não quis.
4.Aliás, tal atitude não corresponde à de um minimamente diligente e normal homem de negócios, envolvido na importação há longos anos, e concretamente na importação via marítima de mercadorias do Extremo Oriente.
5.Assim, a Autora-Reconvinda informou antecipada e atempadamente a Ré-Reconvinte relativamente aos elementos relevantes da sua proposta contratual, tendo referido as taxas de frete e outros adicionais na sua mensagem de correio electrónico, o equipamento disponível, a validade da sua proposta, as taxas locais, etc…, e ainda quais os serviços cujo preço não estava incluído nessa proposta, informando ainda o endereço das ligações electrónicas disponíveis para reservar o transporte (booking), para verificar o percurso da mercadoria (tracking), contactos da Autora-Reconvinda em outros países, preços de imobilizações/paralisações (demurrage) e preços de armazenagem (storage).
6.Com base nesta proposta da Autora-Reconvinda, a Ré-Reconvinte, interessada, enviou-lhe a confirmação de aceitação acima referida.
7.A Autora-Reconvinda emitiu facturas à Ré-Reconvinte entre 29-06-2009 e 30-03-2010 por imobilizações e armazenagem, sendo o seu valor o convencionado.
8.A Ré-Reconvinte pagou as facturas que a Autora-Reconvinda lhe emitiu (discriminadas nos arts. 76.º e 77.º da contestação) pela simples razão de serem devidas.
9.Nunca a Ré-Reconvinte pôs em causa qualquer pagamento efectuado à Autora-Reconvinda até esta data, em que contesta e reconvém.
10.A Ré tinha liberdade total de solicitar ou não à Autora a prestação de mais serviços de transporte, e fê-lo em variadas ocasiões, conhecendo plenamente as condições contratuais e os preços praticados, não tendo, para além disso, aludido sequer a qualquer das razões que ora alega, e tendo, pelo contrário, dado uma explicação substancialmente diferente e oposta a essas razões.
11.Não podem, pois, proceder os argumentos invocados pela Ré-Reconvinte para a pretensa existência de um crédito sobre a Autora-Reconvinda, o qual evidentemente não existe, pelo que inexiste qualquer compensação do crédito que a Autora-Reconvinda detém sobre a Ré-Reconvinte.
Pediu ainda a autora, a condenação da ré como litigante de má-fé no pagamento de uma indemnização à autora, que não deverá ser inferior ao valor de € 600.
A Ré treplicou, em 03.05.2012, tendo mantido a versão dos factos por si apresentada na contestação e impugnando qualquer versão contrária à sua defesa.
Por despacho de 18.11.2014, e ao abrigo do disposto no artigo 1.º da Lei n.º 41/2013, de 26-06, foi ordenada a notificação das partes para apresentaram os seus requerimentos probatórios, o que estas fizeram.
Realizada a audiência prévia, em 09.03.2015, na qual foi admitida a reconvenção, proferido o despacho saneador, fixado o valor da acção, identificado o objecto do litígio e enunciados os Temas da Prova, admitidas as provas apresentadas pelas partes e agendou-se a audiência final.
A ré apresentou, em 26.06.2015, articulado superveniente, o qual foi liminarmente indeferido, por despacho de 02.07.2015.
Foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, em 03.07.2015, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, em 24.01.2017, constando do Dispositivo da Sentença, o seguinte:
Nestes termos, e com tais fundamentos, decido:
a)- Julgar totalmente procedente, por provada, a presente acção e, consequentemente, condeno a Ré J. LDA.. a pagar à Autora  SHIPPING COMPANY S.A. a quantia de € 114 252, acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal comercial, no montante de € 14 359,47, e dos vincendos à mesma taxa desde a citação até integral e efectivo pagamento;
b)- Julgar improcedente, por não provada, a reconvenção e, consequentemente, absolver a Autora-reconvinda  SHIPPING COMPANY S.A. do pedido reconvencional.
c)- Condenar a Ré J. LDA.. – a título de litigância de má fé – na multa de 10 (dez) UC’s e no pagamento à Autora  SHIPPING COMPANY S.A. da quantia indemnizatória de € 1000 (mil euros), sem prejuízo do disposto nos arts. 25.º e 26.º do RCP.
Custas a cargo da Ré J. LDA.. (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, CPC).
Registe e Notifique.

Inconformada com o assim decidido, a interpôs, em 28.02.2017, recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as extensas CONCLUSÕES da recorrente:
i.Assentam estes autos na natureza e regime jurídicos que “(…) as partes acordaram a respeito dos custos de imobilização e armazenagem dos contentores utilizados no transporte de mercadorias importadas pela Ré  (…);
ii.Custos esses decorrentes dos diversos contratos de transporte marítimo internacional de mercadorias celebrados entre a representada da aqui Recorrida e a ora Recorrente;
iii.Entende a Recorrente que deverá a caracterização jurídica de tais custos decorrer da natureza jurídica da cedência de tais contentores, ou seja, do contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias;
iv.Tal contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias exige a forma escrita;
v.Contudo, tem natureza de contrato de mera adesão, ou seja, encerra em si cláusulas previamente estabelecidas e sem possibilidade de negociação,
vi.Pelo que desde logo carece de uma análise cuidada e atenta, face às previsões constantes do Decreto-Lei Nº 446/85, de 25 de Outubro;
vii.Nos múltiplos contratos de transporte marítimo internacional de mercadorias celebrados entre a representada da Recorrida e a Recorrente, a única cláusula escrita que se reporta a contentores é a 14ª, e apenas e só nos seus pontos 8 e 9;
viii.Da leitura atenta de tais disposições contratuais unilaterais da representada da Recorrida - únicas, aliás, relativas à cedência de contentores -, resulta claro e evidente que aquela estabelece uma distinção entre o custo decorrente de “demurrage” e armazenagem, e que ambos resultam numa mera penalidade contratual moratória;
ix.Já da eventual deterioração, mau uso ou até dano no contentor, resultará ao invés, uma obrigação indemnizatória extra contratual;
x.Assim, temos que a natureza jurídica dos custos resultantes de “demurrage” e armazenagem apenas e só podem ser considerados, nas relações entre a representada da Recorrida, a Recorrida e a Recorrente, como mera cláusula penal acessória contratual;
xi.Mais, tal cláusula penal tem uma natureza meramente moratória e não indemnizatória;
xii.Na verdade, as cláusulas constantes dos contratos de transporte marítimo internacional de mercadorias celebrados entre as partes dos presentes autos visam apenas e só fixar uma compensação pela eventual mora no cumprimento e não pelo seu incumprimento;
xiii.Neste sentido, aliás, é claro o mui douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 18.10.2005 (Apelação Nº 1448/05), que afirma:
“O conceito amplo de cláusula penal como estipulação acessória, segundo a qual o devedor se obriga a uma prestação para o caso de incumprimento (lato sensu), compreende duas modalidades: as cláusulas penais indemnizatórias e as cláusulas penais compulsórias.
Nas cláusulas penais indemnizatórias o acordo das partes visa exclusivamente fixar a indemnização devida pelo incumprimento definitivo – clausula penal compensatória-, pela mora ou pelo cumprimento defeituoso – clausula penal moratória -, reconduzindo-se a uma fixação prévia do montante da indemnização no caso de incumprimento.
Nas cláusulas penais moratórias visa-se constituir uma forma de liquidação prévia do dano pela mora resultante da obrigação principal, o que significa que o devedor não fica obrigado ao ressarcimento do dano que efectivamente cause ao credor pelo não cumprimento pontual, mas ao pagamento do dano fixado antecipada e negocialmente através da pena convencional, sempre que não tenha sido acordada a ressarcibilidade do dano excedente.
Destinando-se a cláusula a fixar a indemnização pela mora da obrigação principal, segundo o critério da identidade de interesses, não pode cumular-se com juros de mora, tanto mais que sendo a obrigação principal de facere não tem natureza de obrigação pecuniária.”
xiv.A cláusula penal só tem lugar quando o devedor deixar de cumprir a prestação convencionada - in casu a entrega no prazo acordado dos contentores – tendo, assim, tal instituto carácter de obrigação subsidiária da principal (in casu, pagamento do frete do transporte marítimo internacional de mercadorias).
xv.É obrigação acessória pois por ela estipula-se eventual pena ou multa destinada a evitar o atraso no cumprimento da obrigação principal.
xvi.Nos contratos de transporte marítimo internacional de mercadorias é prática estipular um prazo de franquia ou “free time”, destinado ao carregamento e à descarga das mercadorias nos contentores;
xvii.Ultrapassado esse prazo dito de estadia, a “demurrage” pode ser cobrada na base dia ou pro rata (punição continuada ou sucessiva) e automaticamente, de acordo com as regras insertas em cada contrato particular.
xviii.Por outro lado, diferentemente do que ocorre com a cláusula penal compensatória,
xix. na multa por mora a prestação será sempre útil ao credor.
xx.Por tal multa actuar, nestes casos, com um efeito intimidativo, com o propósito de se evitar o atraso por parte do devedor, criando-se uma forma de compensação para o credor, devido ao eventual recebimento tardio da prestação (in casu a devolução do contentor) - contudo não é essa a natureza essencial da multa moratória;
xxi.Nas situações em que os termos dos contratos não sejam claros ou específicos - como se verifica nos contratos de transporte marítimo em apreço nestes autos – pode haver dificuldade na distinção de cláusula penal compensatória ou moratória;
xxii.Contudo, e por norma, nas obrigações de dar, entregar e restituir, a cláusula penal estipulada é moratória, já que caberá execução específica ou cominação de entregar, mesmo quando o devedor não queira cumprir o demais contratado.
xxiii.No entanto, a forma do incumprimento fará tal distinção: inexecução completa da obrigação, será compensatória, mera atraso no seu cumprimento, será moratória.
xxiv.Sendo, assim, tais despesas acessórias da obrigação principal de pagamento do frete – decorrente estas, ainda, da obrigação principal contratada, o transporte marítimo internacional de mercadorias - nunca podem estas ser superiores ao valor da prestação principal (cifra artº 811º do Código Civil);
xxv.Mais, a regra geral do nº 3 do artº 811º nº 3 do Código Civil estipula que “o credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal”.
xxvi. Em paralelo com tal princípio, dispõe a alínea c) do artº 19º do Decreto-Lei Nº 446/85 que são proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, “as cláusulas contratuais gerais que consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir”.
xxvii.Ora, como vimos, a obrigação acessória de pagamento de montantes pelo atraso no levantamento e devolução dos contentores, e conforme definida nas condições gerias constantes dos contratos de transporte marítimo internacional de mercadorias da representada da Recorrida tem a natureza de cláusula contratual geral.
xxviii.Mais, a aferição do carácter proporcionado ou desproporcionado da cláusula penal deverá ser feita em abstracto, nos próprios termos do contrato e independentemente das suas vicissitudes fácticas;
xxix. Ora, dada a função indemnizatória da cláusula penal, esta é nula quando exceder o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação, conforme flui da norma ínsita no n.º 3 do artigo 811º do Código Civil e artº 19º do c) Decreto-Lei Nº 446/85 – por existir desproporcionalidade entre ela e os danos a ressarcir.
xxx.Estipulando o artº 810º do Código Civil que a inserção de cláusula penal em contrato está sujeita às formalidades exigidas para a obrigação principal, deveria esta estar expressa em valores em tais contratos de transporte, o que não sucede;
xxxi.Aliás, é com esta razão de ciência que apresentou a Recorrente a sua contestação com reconvenção - não pode a Recorrida facturar despesas e custos, resultantes de uma clausula penal inserta em contratos de transporte marítimo internacional de mercadorias, em montantes superiores ao valor dos respectivos fretes - ou até mesmo do seu efectivo dano/custo suportado - ,
xxxii.Por violação das regras insertas nos artºs 809º a 812º do Código Civil e artº 19º do Decreto-Lei Nº 446/85,
xxxiii.Pelo que deduziu a sua reconvenção e defesas com a perspectiva de, pelo menos, o mui douto Tribunal a quo promover a redução equitativa de tais penalidades contratuais debitadas pela Recorrida à Recorrente – cifra artº 812º do Código Civil;
xxxiv.Na verdade, longa tem sido a prática e tradição, no comércio internacional do transporte marítimo de mercadorias, de penalizar os operadores que, por qualquer motivo, possam provocar atraso na operação comercial de um navio;
xxxv.Tais atrasos podem resultar em custos de sobrestadia e/ou demurrage que, no nosso entendimento e com o devido respeito, se reportam a conceitos diferentes:
xxxvi.Sobrestadia é o valor pago ao armador pelo carregador quando o navio extrapola o tempo de estadia pré-definido no momento da contratação do frete, salvo nos casos em que o próprio armador tenha dado causa ao fato.
xxxvii.No caso de atraso na devolução de contentores é o valor pago ao dono do equipamento pelo tempo além do contratado.
xxxviii. Diferentemente das palavras citadas, a locução inglesa “demurrage” (cujo correspondente em português é sobrestadia) não encerra em si a concepção de “estadia além do tempo”, mas antes sim a de demora,
xxxix.Por advir do verbo inglês demur (demorar, oferecer objectar), que tem origem no latim demoror (de + mora; demorar, retardar, reter), ou do termo Francês demeurer (permanecer).
xl.Ora, sobrestadia – e qualquer das palavras correspondentes citadas –traz consigo a concepção de tempo ou de demora.
xli.Com a prática comercial, passou a ter também o significado de remuneração - sobrestadia é tempo utilizado além da estadia permitida e, por ser demora, implica em pagamento de remuneração.
xlii.Desta forma, quando um navio ultrapassava a estadia, ou tempo permitido e incorria em sobrestadia, passava a ser devedor de uma soma.
xliii.Podemos especular que, ao fazer esse pagamento, por simplificação de linguagem no comércio internacional, não se afirmava que se estava a pagar por ter o navio incorrido em sobrestadia, nem que se estava a pagar a remuneração decorrente da sobrestadia - dizia-se, simplificadamente, que se pagava a sobrestadia.
xliv.Certamente por isso, o termo ganhou também a concepção de remuneração (ou multa, ou soma), prevista no contrato, paga ao armador, pelo carregador (ou consignatário), em consequência da utilização de tempo além daquele fixado no contrato (estadia) para as operações de carga e/ou descarga.
xlv.Na actualidade, o termo “demurrage”, dependendo do contexto, é utilizado tanto para significar demora quanto para se referir à remuneração paga em consequência da demora.
xlvi.No frete ou preço de transporte, subentende-se incluído os dias necessários para carga e descarga.
xlvii.Ao ver-se impossibilitado de realizar essas operações, no prazo préfixado, e permanecendo “imobilizado” o navio, ocorre um prejuízo para o armador, que tem direito a receber por parte dos carregadores ou consignatários, uma quantia fixada em função da tonelagem do navio, até o mesmo terminar a carga e/ou descarga.
xlviii.Contudo, face à proliferação de taxas e valores diversos de porto para porto, surgiu a necessidade de, genericamente, serem reguladas tais penalizações para tais situações,
xlix.Surgindo, assim, em tidos os contratos de transportes marítimo internacional de mercadorias cláusulas penais moratórias para situação de atraso na devolução dos contentores, tentando visar um reforço da obrigação constituída, punindo o incumprimento atempado e resolvendo - por fixação prévia -, de forma antecipada, as perdas e danos.
l.A obrigação assim resultante de tais cláusulas penais são obrigações de natureza acessória.
li.Também, considerando-se que o contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias tem característica de relação de consumo, a parte que adere ao mesmo não poderá sucumbir ao arbítrio do transportador marítimo, não sendo, assim, a "demurrage" de contentor devida da forma como se apresenta nestes autos.
lii.A demurrage é, assim, uma típica obrigação acessória - muitas vezes era classificada pela doutrina clássica como locação em razão do contrato de fretamento (transporte).
liii.Hoje a demurrage deriva do contrato de transporte, isto é, complementa o frete, pois a detenção do contentor em prazo maior que o previsto pode impedir a sua utilização em outras operações de transporte;
liv. O valor da demurrage, nos dias de hoje, é calculado à razão do seu prazo de atraso na prestação de facere;

lv.A partir da atracação do navio no porto de destino, destacam-se três obrigações relacionadas ao contrato de transporte marítimo:
a.-A obrigação de pagamento ao transportador do valor do frete contratado, observando-se o INCOTERM correspondente;
b.-o dever de, mediante o recebimento do valor do frete contratado, a transportadora entregar o conhecimento de transporte ao da carga para o fim de instruir o subsequente processo de despacho aduaneiro, visando o desembaraço das mercadorias;
c.-o dever do consignatário (que pode ser o importador ou seu representante) recolher, esvaziar e entregar os contentores utilizados no transporte em prazo adequado.

lvi.Ressalva-se que a obrigação de pagar, assumida pelo contratante do transporte internacional, depois da entrega da mercadoria, transmuta-se em obrigação de fazer, ou seja, entregar o contentor.
lvii.Contudo, a relação contratual originária deriva de uma relação jurídica básica: a prestação de serviços de transporte marítimo internacional de mercadorias.
lviiiA partir do momento do desembarque das mercadorias o transportador pode condicionar a entrega do conhecimento do embarque (B/L) à assinatura de um “termo de responsabilidade”, podendo as respectivas cláusulas ser aplicadas unilateralmente e determinam, entre outras obrigações, o valor em razão de eventual atraso na devolução dos contentores.
lix.Igualmente, tais termos de responsabilidade são, de facto, verdadeiros termos de adesão, com cláusulas pré-fixadas pelo transportador
lx.Resulta, assim, claro que a demurrage não nasce de forma autónoma ou somente em razão da eventual assinatura do termo de responsabilidade que fixe o seu custo.
lxi.Também não é nova obrigação, mas tão-somente consequência ou resultante do contrato de transporte - Assim, há que se considerar que “demurrage” não é obrigação ou instituto autónomo, ou seja, não se trata de novo contrato de locação ou comodato.
lxii.É, sim, obrigação subsidiária/acessória do contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias.
lxiii.Ora, dos autos resulta que a definição do valor e prazo da demurrage definido para todas as expedições internacionais de mercadorias solicitadas pela Recorrente à representada da Recorrida advêm não no conhecimento de embarque (o contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias) mas sim do seu sítio electrónico (o qual se apresenta não em português mas sim e apenas em inglês)
lxiv.Ora, ainda que previsto no conhecimento de embarque, as definições de custos e montantes da demurrage são regras internacionais não adoptadas pelo direito português e, portanto, sem aplicação.
lxv.Desta forma, a demurrage figura como verdadeira cláusula penal moratória, que pré estabelece quer os prazos quer os valores da sobrestadia.
lxvi.Assim, as normas referentes ao instituto da cláusula penal devem ser aplicadas às obrigações contratuais em análise nestes autos, sob pena de estas indemnizações deverem ser analisadas na perspectiva do dano emergente e do lucro cessante.
lxvii.A doutrina internacional tem definido a demurrage como uma “indemnização pré-fixada em favor do armador”;
lxviii.Sucede que tal instituto da indemnização pré-fixada é matéria presente apenas nos países da common law, berço moderno do instituto demurrage, que inadequadamente passou a ser aplicada pela grande maioria da jurisprudência internacional.
lxix.Porém, sob a óptica do sistema civil law (e do qual Portugal é um dos seus mais antigos intérpretes) a natureza da demurrage possui outro carácter, que é a da cláusula penal moratória.
lxx.Nestes termos, se a demurrage é obrigação acessória, já que não existe demurrage sem prévio contrato de transporte,
lxxi.está previamente fixada em termo, com prazo e valores pelo atraso,
lxxii.e ocorre pela simples mora, inevitavelmente a sua natureza é de mera cláusula penal moratória.
lxxiii.Assim, e com o devido respeito, temos que o mui douto Tribunal a  quo na sua mui douta sentença em apreço violou o disposto nos artºs 809 a 812º do Código Civil, ainda, o disposto no Decreto-Lei Nº 446/85, de 25 de Outubro, porquanto
lxxiv.para classificar a concessão do uso dos contentores como obrigação acessória (do contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias) de locação e/ou de depósito,
lxxv.tendo presente a obrigatoriedade da forma escrita de tal contrato de transporte,
lxxvi.tais clausulas de obrigações acessórias de locação e/ou depósito devem dele constar;
lxxvii.Ora, do clausulado nos contratos de transporte em apreço nestes autos, resultam apenas e só obrigações para a Recorrente (e derivadas de atrasos na e devolução dos contentores) indemnizatórias decorrentes da cláusula penal prevista no ponto 18.4 de tais contratos;
lxxviii.Mais, sendo tais contratos meros contratos de adesão – e assim sujeitos ao regime do Decreto-Lei Nº 446/85, de 25 de Outubro – devem tais cláusulas obedecer aos ditames impostos pelo seu artº 19º (e em concordância, aliás, com o vertido no artº 811º do Código Civil),
lxxix.Pelo que, estamos perante um verdadeiro enriquecimento sem causa por parte da Recorrida, por os valores por si reclamados terem uma quantificação em muito excessivas ao valor do efectivo dano/prejuízo resultante de tais atrasos, para mais tratando-se de quantias derivadas de cláusulas penais de cada contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias;
lxxx.Estando, assim, tais montantes indemnizatórios mais que sujeitos a uma redução por parte do mui douto Tribunal a quo,
lxxxi.Entende-se que ao não promover esta tal redução e não aplicando o versado no artº 812º do Código Civil incorreu em omissão grave tal douto Tribunal;
lxxxii.Mais, tendo a Recorrente promovido, em sede de sua reconvenção, à demonstração cabal e notória de quais os efectivos prejuízos que tais atrasos de recolha e devolução dos contentores terão trazido à Recorrida,
lxxxiii.Quer pela diferença existente entre custo de operação em cada um dos portos e o valor debitados pela Recorrida à Recorrente a esse mesmo título,
lxxxiv.Torna-se evidente que todos os montantes indemnizatórios penais estipulados unilateralmente pela representada da Recorrida nos seus contratos em apreço nestes autos excedem - e em muito - o real valor dos seus prejuízos;
lxxxv.Pelo que, com o devido respeito, entende-se que se encontrava o Tribunal a quo sempre munido de todos os factos e elementos possíveis para promover a sua redução,
lxxxvi.Quer pela figura da equidade - cifra artº 812º do Código Civil -  quer ainda pela sua excessiva contabilização - cifra nº 3 do artº 811º do Código Civil.
lxxxvii.Mas verifica-se que não foi este o entendimento acolhido e elevado pelo mui doto tribunal a quo, já que este afirma que tais “penalizações” contratuais revestem a natureza indemnizatórias pura e simples,
lxxxviii.Não obstante estarem previamente clausuladas nos contratos de transporte em apreço como penalizações moratórias;
lxxxix.Assim, e com o devido respeito, e no que à natureza e regime jurídicos a que “(…) as partes acordaram a respeito dos custos de imobilização e armazenagem dos contentores utilizados no transporte de mercadorias importadas pela Ré (…)” esteve mal o mui douto Tribunal a quo;
xc.Mais, ao sustentar a sua mui douta decisão nos artºs 798º a 804º do Código Civil, e com o devido respeito, entende a Recorrente que violou aquele o previsto no artº 810º do mesmo diploma legal,
xci.Já que para as situações de impossibilidade de retorno dos contentores nos prazos constantes nos contratos de transporte, havia já a representada da Recorrida fixado nesses mesmos contratos uma cláusula geral onde fixa o montante da sua eventual indemnização exigível, isto é, fixa uma obrigação acessória mas de natureza penal moratória,
xcii.Pelo que com o devido respeito, não tem aplicação aos factos em discussão nestes autos as presunções vertidas nos artºs 789º a 804º do Código Civil,
xciii.Até porque o clausulado acordado entre representada da Recorrida e a Recorrente estipula em si um montante indemnizatório para tais possíveis situações de atraso no cumprimento obrigacional de devolução dos contentores;
xciv.Mais, violando a Recorrida o estatuído no nº 3 do artº 811º do Código Civil, isto é, debitando a título de indemnização penal pelo atraso na devolução dos contentores valores per si em muito superiores ao efectivo e real prejuízo que tais atrasos lhe terão causado,
xcv.Deveria o Mui douto tribunal a quo promovido, para além da sua efectivo enquadramento legal de clausula penal, a sua redução aos limites legais de tal cálculo,
xcvi.Quer face aos valores manifestados em sede de reconvenção – e dados como provados nas alíneas rr) a vv) da mui douta sentença,
xcvii.Quer, ainda, se assim o entendesse mais justo, de acordo com as regras da equidade, pois
xcviii.Temos, assim, e com o devido respeito, uma aplicação por parte do Tribunal a quo do preceituado no artº 804 do Código Civil para fundamento da obrigação contratual da Recorrente em pagar à Recorrida os montantes que esta reclama nestes autos,
xcix.Quando a correcta aplicação do direito à matéria trazida, analisada e dada por provada nestes autos importa a aplicação do vertido não em tal artº do Código Civil, mas antes sim o versado no artºs 810º a 812º do mesmo diploma legal.
c.Mais, a contratualização de uma cláusula penal afasta, per si, a possibilidade de complementarmente ao seu pedido, serem deduzidos pedidos acessórios de pagamento de juros ou outras despesas,
ci.Face à própria natureza da clausula penal - fixação prévia pelas partes contratantes do montante indemnizatório -,
cii.Pelo que igualmente, com o devido respeito, esteve mal o tribunal a quo ao aplicar as disposições previstas no artº 806º do Código Civil, dando provimento à pretensão da Recorrida em receber juros;
ciii.Juros estes que, recorde-se, seriam sobre montantes em muito superiores aos previamente por si fixados, em sede de cláusula penal moratória,
civ.E montantes estes sempre em muito superiores ao custo/prejuízo que lhe foi debitado pelo porto marítimo,
cv.Tudo em clara violação do versado no artº 811º do Código Civil.
cvi.Nestes termos, entende a Recorrente que para além da procedência da sua reconvenção, devem sempre improceder os pedidos da Recorrida a título de juros.
cvii.Relativamente à condenação da Recorrente como litigante de má fé, esta desde já afirmar que não alterou nem a verdade dos factos nem omitiu factos relevantes para a boa decisão da causa;
cviii.Na verdade, e com o devido respeito, a mui douta sentença ora em análise apenas indefere a procedência da reconvenção por força da interpretação jurídica que o mui douto tribunal aplicou à natureza jurídica da obrigação de indemnização nos atrasos dos contentores no plano indemnizatório geral das obrigações,
cix.Quando, com o devido respeito, o deveria ter efectuado de acordo com a interpretação da Recorrente, ou seja, serem tais obrigações consequências de cláusulas penais constantes de contratos de transporte marítimo internacional de mercadorias celebrados entre a representada da Recorrida e a Recorrente.
cx.Na verdade, caso o mui douto Tribunal assim tivesse bem aplicado o direito - na perspectiva da Ré, naturalmente - e afirmado tais penalizações por atraso no cumprimento de obrigações assessórias dos contratos de transporte como penalidades contratadas entre a representada da Recorrida e a Recorrente,
cxi.Forçosamente lhe teria que aplicar não o regime geral do incumprimento das obrigações - aliás, veja-se que os contentores foram devolvidos pela Recorrente, apenas fora dos prazos constantes dos contratos de adesão de transporte – mas tão-somente o das cláusulas penais;
cxii.E o regime de tais cláusulas é claro ao dispor que estas não podem, no limite, ultrapassar os efectivos danos/prejuízos que o credor suportou com o seu incumprimento;
cxiii.Mais, em caso de se estar perante uma reclamação de montantes em muito superiores a tal dano/prejuízo efectivo, e ainda que não existissem dados concretos quanto a estes,
cxiv.deve tal clausulado ser reduzido pelos Tribunais, de acordo com a regra da equidade;
cxv.Ora, nestes autos o mui douto Tribunal a quio aceitou e deu como provado que o montante reclamado pela Recorrida nestes autos, a título de dados/prejuízos com o atraso no levantamento e devolução dos contentores pela Ré excede – e em muito – o valor real dos mesmos suportados pela Recorrida;
cxvi.Desta forma, ao invocar o crédito sobre a Recorrida, face a tal excesso de custo real - custo debitado pela Recorrida à Recorrente, não pode ser invocação entendida nem como uma alteração nem omissão de factos;
cxvii.Mais, tal alegação não foi efectuada com dolo ou negligência grave, pois bem sabe esta qual a verdade material – e não a verdade processual - dos factos em discussão;
cxviii.Nestes termos, deve a mui douta sentença ora recorrida ser alterada, e consequentemente, ser decretado apenas parcialmente procedente o pedido da Recorrida mas totalmente procedente a reconvenção da Recorrente, mais se absolvendo esta na condenação de litigância de má-fé.

A autora apresentou contra-alegações, em 28.03.2017, propugnando pela improcedência da apelação e confirmação da condenatória recorrida e formulou as seguintes CONCLUSÕES:
i.No que concerne aos valores de imobilização, é flagrante o contraste entre as razões por que a R. se opôs na contestação à pretensão da A., e que serviram, também, de base à dedução da reconvenção, e os fundamentos da apelação.
ii.Com efeito, revelando a decisão de facto inexistir qualquer desconformidade entre os valores facturados e as condições acordadas entre as partes, e tendo essa pretensa desconformidade sido a única razão aduzida pela R., na contestação-reconvenção, para recusar o pagamento das quantias peticionadas pela A. a título de imobilizações, bem como pedir o reembolso de quantias várias que pagara a esse mesmo título, e confrontada com a ausência de fundamentos para impugnar aquela decisão, a R. optou, na sua alegação de recurso, por defender a improcedência parcial do pedido da A. e a procedência da reconvenção com fundamento nos arts. 809º e ss., em particular os arts. 810º/2, 811º/3 e 812º/1, aplicáveis à cláusula penal, e, ainda, no art. 19º c) do DL nº 446/85, de 25.10, que estabelece o regime das cláusulas contratuais gerais (Cfr. alínea uuu) dos factos provados)
iii.Após pugnar que a fixação contratual pelas partes de valores de imobilização e de armazenagem de contentores reveste a natureza de cláusula penal, a R. invoca a sua nulidade, nos termos do art. 811º/3 do CC e do art. 19º c) do DL nº 446/85, por, alegadamente, os referidos valores excederem os prejuízos resultantes para a A. da não devolução pela R. dos contentores dentro do período livre acordado e, segundo se julga perceber, nos termos do art. 810º/2 do CC, por, não obstante a cláusula penal estar sujeita às formalidades exigidas para a obrigação principal, os referidos valores não se encontrarem expressos nos contrato de transporte marítimo.
iv.Essas são questões novas, que não foram suscitadas na contestação, sede própria para o réu expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor (e, também, as que servem de fundamento à reconvenção), nem foram, consequentemente, objecto de apreciação pela 1ª instância.
v.Isso é especialmente notório quanto aos valores de imobilização, pois, na contestação, as objecções da R. a esses valores (quer os facturados pelos docs. 3 a 30 e 36 da p.i., quer os facturados pelos docs. 5 a 144 da contestação) prenderam-se, como acima se referiu, com a sua pretensa desconformidade com os valores que haviam sido acordados, e não com o facto, agora alegado, de esses valores excederem os prejuízos resultantes para a A. da não restituição dos contentores pela R. dentro do período livre definido.
vi.Salvo melhor opinião, por se tratar de questões novas, o tribunal ad quem, por ser uma instância de recurso, delas não pode conhecer.
vii.A qualificação jurídica dos valores de imobilização e de armazenagem a pagar pelo interessado na carga ao transportador após o término dos respectivos períodos livres não pode deixar de ser feita à luz da concreta relação contratual estabelecida entre a A. e a R., rigorosamente retratada na decisão de facto, da qual a R. se alheou em absoluto, quando concluiu que a fixação contratual desses valores tem a natureza de cláusula penal.
viii.A decisão de facto revela que a relação contratual entre as partes, considerada no seu conjunto, tinha por objecto, a título principal, o transporte marítimo das mercadorias destinadas à R. e, acessoriamente, a cedência temporária dos contentores necessários ao acondicionamento das transportadas, por período que extravasava o do transporte (isto é, desde o seu levantamento na origem para consolidação das mercadorias a transportar até à sua devolução vazios no destino), bem como a armazenagem daqueles contentores no período compreendido entre o desembarque e o seu levantamento do porto pela R.. Por seu turno, a obrigação da R. consistia no pagamento à A. das respectivas contrapartidas pecuniárias, isto é, os fretes marítimos e os valores de imobilização e de armazenagem.
ix.A referida cedência de contentores enquadra-se na definição de locação, mais concretamente aluguer, nos termos dos arts. 1022º e 1023º do CC.
x.A armazenagem dos contentores entre o seu desembarque no porto de destino e a reclamação da sua entrega pela R. subsume-se na definição de depósito contida no art. 1185º do CC.
xi.A decisão de facto patenteia, por um lado, a pluralidade de contratos, isto é, o transporte, o aluguer e o depósito, e, por outro, a acessoriedade dos dois últimos tipos contratuais em relação ao primeiro. A pluralidade contratual é revelada, nomeadamente, pelos seguintes aspectos: a) as condições do aluguer e do depósito foram negociadas e acordadas autonomamente; b) as retribuições do aluguer e do depósito não se confundem com a do transporte; c) o aluguer e o transporte extravasam temporalmente o transporte. A acessoriedade, quanto ao aluguer, decorre de a cedência dos contentores se destinar à consolidação das mercadorias necessária à sua deslocação marítima em navios porta-contentores e, quanto ao depósito, de a guarda dos contentores após o desembarque, até a sua entrega ser reclamada pela R., pressupor a prévia execução dos transportes contratados por esta.
xii.À locação, nos períodos que transcendem o transporte marítimo, isto é, que o precedem (entre a disponibilização do contentor na origem e o seu embarque) e lhe sobrevêm (entre o desembarque e a devolução do contentor vazio no destino), aplica-se o respectivo regime jurídico, previsto nos arts. 1022º e ss. do CC.
xiii.Ao depósito aplica-se os arts. 1185º e ss. do CC e os arts. 403º e ss. do CCom.
xiv.Tendo as mercadorias destinadas à R. permanecido acondicionadas nos contentores da representada da A. após o desembarque e esses contentores continuado à guarda desta até à reclamação da sua entrega pela R., em ambos os casos para além dos respectivos períodos livres, e tendo as partes previsto ab initio essas prestações contratuais, a referida representada é credora das respectivas retribuições, as quais não podem deixar de ser as que foram previamente acordadas entre a A. e a R.
xv.Assim, a recusa de pagamento dos valores facturados pelos docs. 3 a 30 e 36 da p.i., isto é, das retribuições dos alugueres e dos depósitos a que se reportam essas facturas, traduz um incumprimento pela R. das condições contratuais acordadas. Pelo contrário, o pagamento pela R. dos valores facturados pelos docs. 5 a 144 da contestação-reconvenção visou o cumprimento dessas condições, pelo que a sua pretensão, no sentido de ser parcialmente reembolsada daqueles valores, carece de suporte legal.
xvi.A cláusula penal tem natureza indemnizatória, aplicando-se em caso de incumprimento ou na prestação principal; ora, a decisão de facto revela, por um lado, que a armazenagem dos contentores no porto e a sua restituição pela R. para além dos respectivos períodos livres convencionados integrava o programa contratual das partes, não podendo, por isso, ser considerada uma patologia contratual, e, por outro, que os valores de imobilização e de armazenagem negociados e acordados entre as partes não revestem carácter indemnizatório, mas sim retributivo, destinando-se a remunerar o aluguer e depósito dos contentores após o decurso dos respectivos períodos de carência.
xvii.Assim, ao incumprimento pela R. da sua contraprestação, traduzido no não pagamento das referidas remunerações, aplica-se os arts. 798º e ss. do CC, e não os arts. 809º e ss. do mesmo código, que regulam a cláusula penal.
xviii.Ainda que se entendesse atribuir a qualificação de cláusula penal à definição contratual dos valores a pagar em caso de levantamento dos contentores do porto e sua devolução à A. para além dos respectivos períodos livres, o que apenas se admite por mera hipótese académica, a apelação não procederia.
xix.Mesmo que resultasse do contrato de transporte a obrigação principal cujo cumprimento, na lógica da argumentação da R., a pretensa cláusula penal se destinaria a encorajar, isto é, a obrigação de levantamento dos contentores do porto e sua devolução vazios à A. dentro dos respectivos períodos livres, do art. 810º/2 do CC não decorreria para as partes a obrigação de fixarem os valores de imobilização e de armazenagem nesse contrato, mas tão só o de o fazerem pela forma a que o mesmo está sujeito, ou seja, pela forma escrita, o que, no caso sub judice, se verificou, pois, como transparece dos factos provados, aqueles valores foram acordados por meio da correspondência trocada entre as partes, sendo que, nos termos do art. 3º/2 do DL nº 352/86, de 21.10, essa correspondência inclui-se no âmbito da forma escrita.
xx.Considerando que os valores de imobilização e de armazenagem foram convencionados por essa forma, isto é, por correspondência entre as partes, não se aplica o art. 19º c) do regime das cláusulas contratuais gerais, invocado pela R..
xxi.Já quanto à reclamada redução da pretensa cláusula penal, por via dos arts. 811º/3 e 812º/1 do CC, sempre a mesma dependeria da prova do excesso da indemnização convencionada, por referência ao valor do prejuízo resultante da mora no cumprimento da obrigação principal, a qual, pelo menos, no que concerne à imobilização dos contentores para além do período livre, não foi feita, pois a R. não demonstrou, nem tão pouco alegou, que o prejuízo daí resultante para a representada da A. fora inferior aos valores de imobilização convencionados, pelo que a decisão de facto é omissa nessa matéria (sendo que o referido ónus pertência à R., nos termos do art. 342º/2 do CC). Na ausência dessa prova, nada obstaria à condenação da R. no pagamento dos valores de imobilização convencionados entre as partes e peticionados pela A..
xxii.Por último, acresce que, ainda que a fixação contratual dos valores de imobilização e de armazenagem revestisse a natureza de cláusula penal, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, a R., ao procurar tirar proveito do regime dos arts. 809º e ss. do CC., exerceria em termos inadmissíveis, porque contrários à boa fé, a sua posição jurídica, considerando que, ao longo da relação contratual, aqueles valores foram, por diversas vezes, objecto de conversações, negociações, acordos, alterações ad doc e revisões, que geraram no espírito da A. a convicção de que a R. cumpriria o que livremente convencionara e que jamais questionaria os valores facturados nos termos em que o faz agora, tendo a sua representada aceitado prestar-lhe serviços nesse pressuposto. Ao pugnar a redução dos valores facturados depois do referido labor negocial, cujo fruto mais visível consistiu nas “condições especiais J…Lda.”, a R. incorre em abuso de direito, nas modalidades de exceptio doli e venire contra factum proprium, nos termos do art. 334º do CC.
xxiii.Na sentença recorrida, o tribunal a quo aplicou irrepreensivelmente o direito aos factos provados, não tendo violado quaisquer disposições legais, nomeadamente as invocadas pela R..

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II.ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO.

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a ponderação das seguintes questões:
i)DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS.

O que implica a análise:    
 
a)-A CARACTERIZAÇÃO E REGIME LEGAL DO CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO;
b)-DA NATUREZA DO CUSTO DECORRENTE DE “DEMURRAGE” E DE “STORAGE” (Sobrestadia e Armazenagem)
Autonomia dos custos de imobilização (contrato de locação) ou,
simples obrigação subsidiária acessória (cláusula penal de natureza moratória ou indemnizatória)
c)-DA REDUÇÃO DA CLÁUSULA PENAL;
d)-DA CUMULAÇÃO DE UMA CLÁUSULA PENAL COM PAGAMENTO DE JUROS E DESPESAS.

ii)DA CONDUTA PROCESSUAL DAS PARTES -  LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ

III.FUNDAMENTAÇÃO.

A–
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foi dado como provado na sentença recorrida,
o seguinte:
1.A Autora exerce a actividade de agente de navegação. [a)]
2.A Autora é o agente de navegação, em Portugal, do armador suíço Shipping Company Holding, S.A., adiante designado apenas por SHIPPING COMPANY HOLDING, S.A, tendo ambos celebrado o acordo constante do documento junto com a petição inicial como documento n.º 1 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. [b)]
3.A SHIPPING COMPANY HOLDING, S.A é accionista maioritária da Autora. [c)]
4.A SHIPPING COMPANY HOLDING, S.A dedica-se ao transporte internacional de mercadorias por via marítima. [d)]
5.Nos termos do acordo referido em B), a Autora é responsável por, entre outras obrigações, proceder à cobrança dos fretes e de contas relacionadas e remeter à sua representada todos esses valores bem como cobrar todas as taxas de manuseamento no terminal e transferir esses valores para a sua Representada, sendo ainda responsável por todos os contentores da SHIPPING COMPANY HOLDING, S.A que dêem entrada em Portugal, o que abrange as reparações, operações de manutenção e limpezas necessárias, e o acompanhamento da devolução dos contentores vazios e cobrança dos respectivos custos de paralisação e outros. [e)]
6.Por procuração outorgada em Genebra em 26 de Fevereiro de 2002, cuja cópia foi junta com a petição como documento n.º 2 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a SHIPPING COMPANY HOLDING, S.A nomeou como sua procuradora a Autora, conferindo-lhe poderes legais para, isoladamente e em nome da sociedade, cobrar judicialmente, na Justiça Portuguesa, todos e quaisquer créditos sobre terceiros, relacionados, directa ou indirectamente, com o exercício da sua actividade de transportador marítimo, designadamente indemnizações resultantes de responsabilidade contratual ou extracontratual, fretes marítimos, imobilizações de contentores, custos e despesas, propondo, para esse fim, os competentes procedimentos judiciais, nomeadamente acções declarativas, execuções, providências cautelares, notificações judiciais avulsas, processos de falência e recuperação de empresa, bem como quaisquer outros requerimentos, representando-a em todas as diligências processuais e praticando quaisquer outros actos necessários ao fim pretendido. [f)]
7.No exercício da sua actividade comercial e a solicitação da Ré, que se dedica à importação, exportação, comércio, e representação de electrodomésticos e outros, a representada da Autora prestou-lhe serviços, efectuando transportes marítimos de múltiplas remessas da conta da Ré desde vários portos marítimos da República Popular da China até aos portos de Leixões, Sines e Vigo, tendo o pagamento do valor do respectivo frete sido efectuado. [g)]
8.Após a chegada e descarga dos contentores – destinados à Ré – do navio para a doca, a Ré requereu tempo suplementar de permanência das mercadorias nos módulos de transporte pertencentes à representada da Autora, tendo os mesmos sido levantados e restituídos para além da dilação sem custos acordada entre as partes. [h)]
9.A Ré também não procedeu ao levantamento dos contentores desembarcados, tendo os mesmos estado armazenados no terminal portuário para além do período de tempo sem custos acordado entre as partes. [i)]
10.A Autora informa os seus Clientes sobre o custo do tempo suplementar de permanência das mercadorias nos módulos de transporte (imobilização) e da armazenagem destes em terminal, valor esse que incide por cada contentor e por dia, sendo que o valor relativo aos contentores de 40 pés é o dobro do valor referente aos contentores de 20 pés (uma unidade TEU, acrónimo de “Twenty-foot Equivalent Unit”, em português, de “Unidade Equivalente a 20 Pés”). [j)]
11.Para além do contacto com os Clientes nesse sentido, a Autora mantém no seu sítio da internet toda esta informação e remete-os para a sua consulta. [k)]
12.A tabela da Autora refere um período livre (isto é, sem despesas para os destinatários) de 7 dias, período dentro do qual esses destinatários deverão proceder ao levantamento, na doca, dos contentores que lhes são destinados e posteriormente devolvê-los, depois de vazios, à Autora, no mesmo local onde foram levantados. [l)]
13.Autora e Ré mantiveram negociações em Setembro de 2009 para que a primeira continuasse a prestar os seus serviços à segunda e chegaram a um acordo: a Autora concedeu à Ré um período livre superior ao da sua tabela para as imobilizações que foi de 21 dias, a vigorar a partir de 21 de Setembro de 2009 e para todos os embarques do Extremo Oriente para Portugal. [m)]
14.No caso da armazenagem, esse período livre permaneceu em 7 dias, de acordo com a sobredita tabela da Autora. [n)]
15.Entre o 22.º e o 28.º dia após a descarga do contentor sem que este fosse levantado e posteriormente restituído pelo destinatário ao parque, era cobrado, por virtude do acordo a que Autora e Ré chegaram, um valor referente a imobilização do contentor ainda inferior ao da tabela publicada pela Autora e conhecida da Ré, o qual era de € 12 por “TEU” e por dia, ou seja, no caso dos contentores de 40 pés, € 24 por dia. [o)]
16.A partir do 29.º dia, o valor referente à imobilização do contentor de 40 pés passava a ser de o da tabela, € 48 por dia (€ 24 por TEU e por dia). [p)]
17.Em relação à armazenagem em Leixões, a partir do 8.º dia contado desde a descarga do contentor era debitado à Ré o valor diário de € 8 por contentor de 40 pés (€ 4 por TEU e por dia), nos termos da tabela de preços da Autora e do referido acordo entre as partes, sendo certo que, caso fosse excedido o período inicial de 7 dias, seria devido o valor pelo período integral, contado desde o primeiro dia, tal como aparece referido na tabela e no acordo.[q)]
18.Em relação à armazenagem em Sines, a partir do 8.º dia contado desde a descarga do contentor e até ao 17.º dia era debitado à Ré o valor diário de € 8 por contentor de 40 pés e o de € 12 para o mesmo módulo de transporte a partir do 18.º dia em diante, nos termos da tabela de preços da Autora e do referido acordo entre as partes. [r)]
19.As datas de descarga dos contentores destinados à Ré, bem como as datas em que saíram do parque de contentores (deixando assim de ser debitada armazenagem) e as datas em que os contentores foram devolvidos pela Ré à Autora, tal como aquela estava obrigada, foram as seguintes:
(…)
[s)]
20.Os valores acordados foram sendo debitados pela Autora à Ré à medida que o tempo passava, através de 28 facturas cujas cópias estão juntas aos autos como documentos n.ºs 3 a 30 da petição inicial e aqui se dão por integralmente reproduzidas e integradas para todos os efeitos legais, assim discriminadas pelo seu n.º de factura, data de emissão, valor e data de vencimento:
[t)]
21.Pelo menos em 8 de Março e em 21 de Abril de 2010 a Autora remeteu à Ré informação detalhada sobre o número de contentores que ainda se encontravam por levantar na doca e estavam fora do período livre de despesas para esse levantamento e posterior devolução, sendo que essa informação, para além de identificar os contentores, referia igualmente, para cada um deles, o número de dias de imobilização e de armazenagem em causa e mencionada uma vez mais o endereço electrónico onde poderia ser consultada a tabela de preços referente à armazenagem e imobilização.
[u)]
22.Igualmente a solicitação da Ré J…Lda., a Autora prestou-lhe os seus serviços tratando do transporte desde Nansha, na República da China, até ao porto de Vigo, em Espanha, de 17 contentores de 40 pés contendo mercadorias, tendo procedido ao seu armazenamento no porto de Vigo enquanto os referidos contentores não foram levantados pela Ré. [v)]
23.Treze desses contentores foram posteriormente levantados pela Ré e vieram a ser por esta devolvidos à Autora, mas já depois de decorrido o período livre durante o qual nada lhe seria debitado a título de imobilizações e de armazenagem, tudo nos seguintes termos:
(…)
[w)]
24.A Autora emitiu então, em conformidade com o acordado com a Ré, em 10 de Fevereiro de 2010, a sua factura n.º L 3282, com o valor de € 4375 (quatro mil trezentos e setenta e cinco euros), referente à armazenagem e imobilização dos contentores que haviam sido transportados até ao porto de Vigo, em Espanha, e remeteu-a à Ré para pagamento, ocorrendo o vencimento dessa factura a 12 de Março de 2010, tal como acordado e como expresso no rosto dessa factura, junta com a petição inicial como documento n.º 36 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. [x)]
25.As facturas acima discriminadas deveriam ter sido pagas na data que consta de cada uma delas, conforme acordado entre Autora e Ré.  [y)]
26.A Autora emitiu uma nota de crédito (n.º 689), no montante de € 227, a favor da Ré.  [z)]
27.Apesar da inexistência de qualquer reclamação junto da Autora sobre o montante ou o cálculo das facturas emitidas e acima discriminadas em T), a Ré não pagou até agora os valores nelas indicados, não obstante os múltiplos esforços de cobrança desenvolvidos pela Autora.  [aa)]
28.A Ré solicitou apenas esclarecimentos quanto à factura n.º L 3282, junta com a petição inicial como documento n.º 36, que lhe foram remetidos por correio electrónico em mensagens trocadas entre o funcionário da Autora João …e a funcionária da Ré Senhora D. Catarina … entre Março e Julho de 2010, as quais indicavam, para além do mais, quais os conhecimentos de embarque e os contentores em causa, as respectivas datas de descarga e de levantamento e as datas em que a Ré tinha procedido à sua devolução, vazios, à Autora.  [bb)]
29.A Ré também não procedeu à liquidação dessa factura n.º L 3282 até ao presente, apesar de instada nesse sentido.  [cc)]
30.A Autora intentou, em Junho de 2010, acção declarativa de condenação com processo ordinário contra a Ré, para apreciar o presente litígio, junto do Tribunal Judicial da comarca de Matosinhos, tendo os autos corrido termos pelo 1.º Juízo Cível da referida comarca de Matosinhos sob o n.º 3990/10.1TBMTS.[dd)]
31.O Tribunal de Matosinhos considerou-se absolutamente incompetente para julgar essa acção, considerando que essa competência está atribuída ao Tribunal Marítimo de Lisboa, pelo que a Ré foi absolvida da instância.  [ee)]
32.Entre Março de 2009 e Maio de 2010 a Ré solicitou à Autora o transporte de mais de 500 (quinhentos) contentores provenientes do Extremo Oriente com destino a Portugal (fundamentalmente Porto de Leixões).  [ff)]
33.No referido período e por força dos serviços de transporte efectuados, a Ré pagou à Autora uma verba que ultrapassou os € 2 000 000.  [gg)]
34.A Ré recorreu à contratação da Autora porquanto entendeu que o preçário do frete era atractivo.  [hh)]
35.A Ré contrata transportes marítimos internacionais com frequência quase diária há mais de 25 anos   [ii)]
36.O valor da imobilização e do armazenamento dos contentores não constituiu uma preocupação premente da Ré aquando da solicitação da prestação de serviços de transporte, porquanto a mesma se convenceu de que conseguiria levantar e devolver os módulos de transporte dentro do prazo de dias livres concedidos pela Autora.  [jj)]
37.Com centenas de transportes contratados e em curso, a Autora começou a remeter à Ré facturas exclusivamente destinadas à cobrança de despesas de imobilização e armazenagem.  [kk)]
38.Tendo a Ré questionado a Autora quanto à origem de tais facturas, por esta foi dito que decorriam do preçário afixado na internet, o que tinha sido comunicado e objecto de acordo pela Ré aquando da contratação dos serviços, em Fevereiro de 2009.  [ll)]
39.Em Setembro de 2009 teve lugar nas instalações da Ré uma reunião com os representantes das duas sociedades, tendo a Ré condicionado a manutenção da contratação de fretes à revisão dos custos de imobilização e armazenagem   [mm)]
40.Dessa reunião resultou o envio, por parte da Autora à Ré, do email vertido no documento junto à petição inicial com o n.º 33, pelo qual a primeira apresentou suas “condições especiais” para a Ré.  [nn)]
41. Nos termos dessas “condições especiais”, as quais referem-se apenas às despesas de imobilização e relativamente aos embarques do Extremo Oriente para Portugal contratados após 21-09-2009, Ré dispunha do prazo de 21 dias livres para devolver os contentores vazios em parque, sendo cobrados € 12 diários por TEU pela imobilização do 22.º ao 28.º dia e € 24 diários por TEU do 29.º dia em diante.  [oo)]
42.As referidas “condições gerais” não modificaram os valores correspondentes às despesas de armazenagem, referidos em Q) e R).[rr)]
43.Findo um determinado período de tempo considerado como razoável pela entidade gestora do porto de desembarque sem que o contentor descarregado seja levantado, o porto cobra uma taxa (quantia pecuniária) diária pela utilização do espaço ocupado pelo contentor (armazenagem).  [qq)]
44.Essa taxa diária é cobrada ao transportador que, por seu turno, a repercute para o seu cliente quando a razão de ser da armazenagem do contentor é da sua responsabilidade (mormente por não ter procedido ao levantamento da mercadoria transportada).  [rr)]
45.O porto não debita IVA ao transportador nos custos da armazenagem. [ss)]
46.O preçário oficial do Porto de Leixões fixa o custo da armazenagem em € 1,62/dia/TEU nos 10 primeiros dias (se excedido o período livre concedido) e em € 2,91/dia/TEU nos dias remanescentes. [tt)]
47.No Porto de Sines, o preçário oficial fixa o custo da armazenagem em € 2,5161/dia do 9.º ao 15.º dia e em € 4,4002 do 16.º dia em diante, isto para contentores de porte superior a 20 pés. [uu)]
48.A Autora nunca facturou a armazenagem cobrada à Ré em conformidade com os preçários oficiais acima referidos.  [vv)]
49.No porto de Vigo, a Ré usufruía de um período livre de 21 dias de imobilização para contentores de 40 pés, sendo os 22.º ao 28.º dias seguintes cobrados à razão diária de € 10 (dez euros), e daí para a frente à razão diária de € 20 (vinte euros).  [ww)]
50. No mesmo porto, a Ré usufruía de um período livre de 7 dias de armazenagem para contentores de 40 pés, estando sujeita, daí para a frente, a uma taxa diária de € 1 (um euro) por contentor.  [xx)]
51.Os contentores transportados pela Autora a pedido da Ré foram todos de 40 pés.  [yy)]
52.Os preços acordados para os fretes foram sempre relativos a contentores de 40 pés.  [zz)]
53.A Autora jamais remeteu à Ré cópia dos documentos juntos com a petição inicial como documentos n.ºs 31 e 32, os quais referem designadamente, que:
«armazenagem
Sines
Custo em Euro por dias de calendário/contentor
EURO                                      20’                     40’
Livre                                        7 dias                 7 dias
De 8 a 17 dias                         4                          8
Mais de 18 dias                      8                         12

Leixões
Custo em Euro por dias de calendário/contentor
EURO                                     20’                       40’
Livre                                        7 dias                 7 dias
Mais de 7 dias                        4                         8
No porto de Leixões quando o período livre é excedido será debitado desde o 1.º dia.

Imobilização
Sines & Leixões
Os dias livres são consecutivos e contanto com o dia de descarga – Custo em Euro por dia / contentor

Standard Equipment
EURO                                      20’DV                    40’DV                         40’HC
Livre                                         7 dias                     7 dias                          7 dias
De 8 a 14 dias                          12                           24                                 24
Mais de 15 dias                       24                           48                                 48
 
Open top / flats
EURO                                         20’OT/FR           40’OT/FR
Livre                                            7 dias                   7 dias
De 8 a 14 dias                             24                          48
Mais de 15 dias                          48                           96

Reefers   
EURO               20’RF                     40’RF                   40’HCRF
Livre                2 dias úteis            2 dias úteis       2 dias úteis
De 3 a 5 dias         70                            100                     150
Mais de 6 dias       100                          150                      200
A imobilização é cobrada até à entrega do contentor vazio no local designado».  [aaa)]

54.Estes documentos, juntos com a petição inicial com os n.ºs 31 e 32, encontram-se afixados de forma visível nas instalações da Autora e o seu teor foi comunicado à Ré.  [bbb)]

55.Entre 29-06-2009 e 30-03-2010, a Autora emitiu as seguintes facturas à Ré por imobilização e armazenagem:
Factura n.º 21279, no valor de € 2720: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 24/dia e € 48/dia;
Factura n.º 4602, no valor de € 256: a armazenagem foi debitada à razão de € 8 e € 12/dia, por se tratar do Porto de Sines e dizer respeito a armazenagem em período subsequente ao 16.º dia, e a imobilização foi debitada a € 24/dia;
Factura n.º 4615, no valor de € 1000: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 4690, no valor de € 1144: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 4904, no valor de € 1264: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 4905, no valor de valor de € 2888: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 5258, no valor de € 856: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 5268, no valor de € 672: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 5269, no valor de € 1800,00: a armazenagem foi a ser debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 5409, no valor de € 1176: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 5410, no valor de € 984: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 24 e € 48/dia;
Factura n.º 5588, no valor de € 1328: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 5780, no valor de € 1384: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 5781, no valor de € 1336: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 6006, no valor de € 1440: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 6007, no valor de € 1440: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 6018, no valor de € 1272: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 6019, no valor de € 912: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 6287, no valor de € 3264: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;
Factura n.º 6291, no valor de € 1648: a armazenagem foi debitada à razão de € 8/dia e a imobilização à de € 48/dia;   [ccc)]

56.Para além destas facturas, também as n.ºs 11425, 11630, 11890, 12757, 13565, 13800, 14597, 14771, 14775, 14907, 15276, 15350, 15352, 15594, 15819, 16231, 16390, 16685, 16971, 16974, 16979, 16980, 16982, 16983, 17000, 17005, 17301, 17302, 17321, 17324, 17451, 17470, 17709, 17693, 17829, 18057, 18058, 9826, 19114, 20278, 20387, 20871, 21447, 21263, 22202, 22574, 23213, 23215, 23331, 23336, 23344, 23786, 23809, 23810, 23811, 23816, 24373, 24380, 24467, 24622, 24881, 1192, 1656, 1759, 1760, 2753, 2755, 2769, 3027, 3028, 3029, 3030, 3049, 3258, 3699, 3971, 4096, 4248, 4249, 4251, 4252, 4253, 4258, 4263, 4280, 4281, 4282, 4287, 4313, 4314, 4333, 4582, 4612, 5272, 5389, 5549, 5589, 6289, 15410, 15595, 15666, 20309, 20380, 20429, 19777, 22200, 24849, 2869, 2886, 3202, 4283, 4284, 4285, 4355, 4364, 4613, 4614, no valor global de € 264 071,60 – e nas quais foram lançadas a título de cobrança por armazenagem e imobilização (e pagas pela Ré) relativas a desembarques no Porto de Leixões –contemplaram o débito da armazenagem à razão de € 8/dia e o débito da imobilização à razão de € 24/dia nos primeiros 7 dias após o período livre e de € 48/dia no período remanescente.  [ddd)]

57.Em 13-02-2009, por email enviado pelo funcionário da Autora Américo … à funcionária da Ré Catarina …, foram remetidas as cotações solicitadas para determinados tipos de contentores e transportes pretendidos pela Ré, conforme documento n.º 1 junto com a réplica e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.  [eee)]
58.Nessa comunicação, a Autora excluiu expressamente do valor proposto alguns itens, como sejam, as terminal handling charges (THC), despacho e restantes despesas na origem, verificação física, inspecções alfandegárias, paralisações, armazenagem, lavagem do contentor ou remoção de carga (se necessário), seguro, despacho e outras despesas em nome do recebedor.  [fff)]
59.No mesmo email, a Autora mencionou o sítio da internet onde a Ré podia consultar as tabelas de preços referentes aos serviços de imobilizações / paralisações e de armazenagem (expressamente excluídos dos valores da cotação), bem como das ligações para se fazer a reserva de espaço na origem e para localizar o paradeiro dos contentores durante a viagem.  [ggg)]
60.Esta informação foi remetida pela Autora à Ré antes da adjudicação de qualquer um dos transportes dos autos.  [hhh)]
61.A Ré, que recebeu a informação e proposta constante do sobredito email, respondeu igualmente por mensagem de correio electrónico datada de 04-03-2009, tendo solicitado a melhor cotação para o transporte de 40 contentores de 40 pés a embarcar no porto de Nansha-China até 31-03-2009 e com destino final em Leixões-Portugal e escala em qualquer porto europeu para desalfandegamento, conforme email datado de 04-03-2009 e  junto com a réplica como documento n.º 1 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.  [iii)]
62.Sequentemente, a Ré, por email de 05-03-2009, junto com a réplica como documento n.º 2 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, comunicou à Autora que ia utilizar os seus «(…) serviços para a importação Nansha – China para Leixões – Portugal, via Antuérpia, para dois contentores de 40 pés, com previsão de embarque até ao dia 15-03-2009.»  [jjj)]
63.A Ré por diversas vezes contactou a Autora tentando que lhe fossem concedidos descontos nos valores referentes às paralisações / imobilizações dos contentores, ou extensões do período livre, ou seja, isenções de pagamento dos valores devidos por imobilizações nos primeiros dias da sua ocorrência.  [kkk)]
64.Designadamente, pelo fax remetido pela Ré à Autora em 08-07-2009, junto com a réplica como documento n.º 3 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a primeira solicitou a concessão de mais tempo livre de imobilização para os contentores dos B/L que discriminou, referentes ao navio FADO.  [lll)]
65.Em resposta, a Autora enviou o email datado de 24-07-2009, junto com a réplica como documento n.º 3 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, acordando num período livre de 21 dias apenas para os contentores respeitantes aos B/L referidos pela Ré na sua mensagem e somente para imobilização.  [mmm)]
66.A Autora, na mesma resposta de 24-07-2009, explicitou que a armazenagem não estava incluída em tal acordo e que a mesma seria cobrada conforme a sua tabela de preços para consulta no seu sítio da internet.   [nnn)]
67.A Ré sabia que a armazenagem das suas mercadorias, ultrapassando os tempos concedidos de permanência dos contentores na doca, era um serviço pago.  [ooo)]
68.A Autora presta um serviço de armazenagem no porto aos seus clientes, cuidando e responsabilizando-se pelos contentores que aí estão, gerindo o período de permanência por forma a manter o cliente informado do tempo decorrido desde a descarga em cais, emitindo documentação relacionada e necessária, recorrendo para esse efeito aos fornecedores que bem entende.  [ppp)]
69.Um contentor de 40 pés ocupa mais do dobro do espaço ocupado por um contentor de 20 pés: o de 20 pés mede cerca de 5,90 metros de comprimento, enquanto o de 40 pés mede cerca de 12,03 metros.  [qqq)]
70.A unidade representada por um contentor de 20 pés é designada nacional e internacionalmente, nos meios que utilizam contentores tais como o transporte marítimo ou terrestre e no comércio internacional, por TEU.  [rrr)]
71.Os preços fornecidos para o serviço de armazenagem e para as imobilizações são no em TEU, tanto pelas companhias de transporte marítimo como pelos prestadores de serviços de armazenagem, e a Ré sabe bem disso.  [sss)]
72.A capacidade de carga de um contentor de 40 pés (entre 67,7 m³ e 76,3  m³) é mais do dobro da capacidade de um contentor de 20 pés, TEU, (que varia entre cerca de 32 e 33 m³).  [ttt)]
73.A Ré bem sabia que o montante facturado pela Autora e respeitante às imobilizações e armazenagem estava de acordo com os preços acordados entre as partes.  [uuu)]
74.No seu email de 9 de Setembro de 2009 – junto com a réplica como documento n.º 5 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido –, a Autora remeteu uma listagem de facturas à Ré e perguntou por que razão esta apenas estava a pagar o custo liquidado da armazenagem.  [www)]
75.No seu email de 22 de Setembro de 2009 – junto com a réplica como documento n.º 5 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido –, a Ré respondeu à Autora que o seu pagamento parcial prendia-se com o facto de que não lhe ser possível libertar o número elevado de contentores nos prazos “apertados” de que dispunha para levantá-los.  [www)]
76.Em 17 de Novembro de 2009, quando tinha recebido por esta altura dezenas de facturas de serviços de imobilização e armazenagem emitidas pela Autora, a Ré encomenda novos serviços de transporte, para embarque até 31 de Dezembro de 2009, tendo enviado para o efeito o email junto com a réplica como documento n.º 6 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.  [xxx)]
77.Na sequência dessa mensagem de 17 de Novembro de 2009 da Ré foram embarcados pelo menos os contentores referenciados como CLHU8698055, FSCU6226545, INKU6527238, MEDU8081070, MEDU8125060, MEDU8477456, MSCU7195678, MSCU7217904, MSCU7928369, MSCU8226731, MSCU8293637, MSCU8728196, MSCU9315366, MSCU9466315, TRLU7093419, TRLU8252618, TTNU9703131, MEDU8307927, MEDU8333320, MSCU7138451,  MSCU7698749, MSCU8248875, MSCU8376032, MSCU8547259, MSCU8715711, MSCU9284497, MSCU9413022, MSCU9740684, MSCU9945690, TGHU7842482, TRLU7226450, TRLU7626591, GLDU7512885, INKU6546346, MSCU8211412, MSCU9569210, MSCU9672086, MSCU9685463, MSCU9814792, TGHU7187098 e TRLU7153312, cujos serviços referentes a armazenagem e imobilização não foram pagos até hoje à Autora pela Ré.  [yyy)]
78.Nunca a Ré pôs em causa o pagamento por ela efectuado à Autora até à data que contestou a presente acção.  [zzz)]

BFUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

a)-DA CARACTERIZAÇÃO E REGIME LEGAL DO CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO

O Código Civil não disciplina o contrato de transporte. A matéria é tratada no Código Comercial, consoante o disposto nos artigos 366º a 393º.

Define ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Comercial, I Volume, Almedina, 2001, 527, o contrato de transporte, em sentido técnico jurídico, como a deslocação voluntária e promovida por terceiros, em termos organizados, de pessoas ou de bens, de um local para outro.

Assim, o contrato de transporte é caracterizado como aquele pelo qual uma pessoa – o transportador – se obriga perante outra – o interessado ou expedidor – a providenciar o deslocamento de pessoas ou de bens de um local para outro.

O contrato de transporte é uma prestação de serviço que tem como finalidade a colocação da pessoa ou do bem, de forma íntegra, no local de destino.

O contrato de transporte é, portanto, um negócio jurídico representativo de uma prestação de serviços, por meio do qual o transportador compromete-se a deslocar, de forma organizada e mediante o controle da atividade, pessoas ou mercadorias de um lugar para outro, em favor de outrem (passageiro ou expedidor) ou de terceiros (destinatário), mediante uma vantagem económica.

Consideram-se, como elementos essenciais do contrato de transporte:
a)-a deslocação do passageiro ou da mercadoria;
b)-o exercício de uma actividade organizacional;
c)-a autonomia e controle da actividade operativa de deslocação do passageiro ou da mercadoria por parte do transportador [apesar da existência de uma complementaridade funcional entre o contrato de transporte e a relação que lhe subjaz, normalmente um contrato de compra e venda – v. Ac. TRL 22.06.2010 (Pº 1/08.0TNLSB.L1-7)];
d)-a incolumidade (necessidade de que a deslocação de passageiros ou mercadorias cheguem incólumes ao local de destino, o que compreende a obrigação por parte do transportador, do dever de segurança e vigilância em relação ao passageiro e de custódia em relação à mercadoria transportada – cfr. Ac. TRP de 04.03.2002 (Pº 0250194)].
e)-a remuneração, contrapartida da prestação do transporte, ou seja, o preço que deverá ser pago pela prestação do serviço, denominado de tarifa, para o transporte de passageiro, e de frete, para o transporte de mercadoria.

São, por outro lado, partes do contrato de transporte, o transportador e o passageiro/expedidor (carregador). Mas, não obstante a relação jurídica contractual haja sido celebrada entre o transportador e o passageiro ou expedidor (carregador), é certo que outra figura intervém no contrato de transporte, de forma essencial, por dispor de direitos e obrigações, qual seja, o destinatário, no caso do contrato de transporte de mercadorias.

Entende-se, por isso, que o contrato de transporte, em especial o de mercadorias, é triangular, porque pode envolver, além do transportador e do expedidor/carregador, pessoa diversa para recebimento da coisa transportada, conhecida como destinatário.

Para além do destinatário, que constitui o núcleo triangular da relação jurídica contratual estabelecida, também outras figuras, agora de cunho acessório, também dispõem de inter-relação com o instituto do transporte, como por exemplo, os operadores rodoviários, os portuários e aeroviários, as empresas de manuseamento de cargas, parques de contentores, pilotagem e agentes de navegação.

De um modo geral, o contrato de transporte caracteriza-se por ser:
a)-Bilateral, já que o transportador se obriga a receber a pessoa ou coisa e deslocá-la até o local de destino, de forma incólume. E, a parte contrária, tem o encargo de efectuar o pagamento da passagem (pessoa) ou frete (mercadorias).
b)-Oneroso, pois a realização do contrato de transporte proporciona vantagem para as duas partes contratantes. O transportador tem a vantagem de receber o valor acordado pelo transporte, ou seja, o preço da passagem ou do frete. O passageiro e o expedidor têm a vantagem auferida com o deslocamento de um lugar para outro. Trata-se de uma onerosidade comutativa, posto que as prestações do transportador e do passageiro ou expedidor são certas e determinadas, desde o momento em que nasce o contrato e existe efectiva correspondência entre vantagens e obrigações.
c)-Consensual, porquanto basta a simples manifestação de vontade para o seu aperfeiçoamento. O contrato está constituído quando as partes cruzam suas vontades. O contrato não exige a efectiva entrega da coisa para sua formação
d)-Informal, vigorando, em regra, o princípio da liberdade da forma, nos termos do artigo 219º, do Código Civil. De forma excepcional, em relação à liberdade formal, encontra-se, no que aqui interessa, o contrato de mercadorias por mar, em que é exigida a forma escrita.

Com efeito, o contrato de transporte de mercadorias por mar é disciplinado pela Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas em 25.08.1924, a que Portugal aderiu por Carta de 05.12.1931, publicada no DG, I Série, de 02.06.32, e que foi tornada direito interno pelo Decreto-Lei nº 37.748, de 01.02.50, e, subsidiariamente, pelas disposições do Decreto-Lei nº 352/86, de 21/10.

É assim imperativamente regulado, quer se trate de transporte internacional, quer de transporte interno, embora neste último caso, se tenha de recorrer também ao disciplinado nos artigos 366º a 393º do Código Comercial.

Conforme decorre do artigo 1º do Decreto-Lei nº 352/86, de 21/10, contrato de transporte de mercadorias por mar " é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar
determinada mercadoria de um ponto para outro diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada frete ".

Como se estatui no artigo 3º do citado diploma, trata-se de um contrato formal ou solene, sujeito a escrito particular, denominado conhecimento de embarque ou conhecimento de carga (
bill of lading, connaissement, Konossement, polizza di carico) – v.  PALMA CARLOS, Novas Perspectivas do Direito Comercial ", 17, CALVÃO DA SILVA, Estudos de Direito Comercial, 52 e 53, parecer publicado na CJSTJ, II, 1º, 16, e MÁRIO RAPOSO, Sobre o Contrato de Transporte de Mercadorias por Mar, BMJ 376/28, e Acs. STJ de 16.09.2008 (Pº 08A2433), de 24.04.2006 (Pº 06B628), acessíveis em www.dgsi.pt e Ac. TRP de 15.06.99, CJ, XXIV, 3º, 217.

Doutrina e jurisprudência têm definido o contrato de transporte de mercadorias, como o contrato pelo qual uma das partes (carregador) encarrega outra (transportador) de deslocar determinada mercadoria de um local para outro e de a entregar pontualmente ao destinatário, mediante retribuição – cfr. designadamente FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias – contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias, 1ª ed., Almedina, 2000, 55.  e Ac. TRL de 03.05.2012 (Pº 43/09.9TNLSB.L1-6).

Assume relevância as duas correntes doutrinárias sobre a posição assumida pelo destinatário na relação jurídica do contrato de transporte de mercadorias.

Para uns, o destinatário é um terceiro beneficiário do contrato de transporte (contrato a favor de terceiro, nos termos dos artigos 443º a 451º do CC), tese defendida, nomeadamente por ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Introdução aos direitos do transporte, Revista da Ordem dos Advogados, ano 68, I, Janeiro de 2008, 169. 

Para outros, o destinatário é considerado parte do contrato de transporte, sendo este um contrato a três: expedidor, transportador e destinatário (contrato transporte como negócio que nasce bilateral, mas que é potenciamente trilateral, ou seja, um contrato trilateral assíncrono), defendida por FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA, ob. cit, 236-243.

A jurisprudência tem acolhido a teoria da trilateralidade assíncrona, conforme decorre, designadamente do Ac. TRL de 03.05.2012 (Pº 43/09.9TNLSB.L1-6) “…Trata-se de um contrato trilateral assíncrono (na medida em que a adesão do destinatário ao contrato é habitualmente posterior ao acordo entre o carregador e o transportador) e de que resultam direitos e obrigações para todas as partes. No mesmo sentido, Ac. TRL de 22.06.2010 (Pº 1/08.0TNLSB.L1.7).

No que concerne aos direitos e obrigações dos intervenientes do contrato de transporte de mercadorias por mar – expedidor, transportador, destinatáriopodem estes ser densificados do modo seguinte:

São direitos do expedidor:
a)-A operação de deslocação da mercadoria de um local para outro, se proceda no tempo convencionado,
b)-Ter a disposição das mercadorias (artigo 380º, do Código Comercial), já que, em qualquer momento da execução do contrato, o expedidor pode dar novas ordens para o transportador, alterando o que, inicialmente, foi convencionado.
c)-A entrega das mercadorias seja feita ao destinatário no mesmo estado em que foram recebidas pelo transportador.
d)-Poder demandar contra o transportador em caso de incumprimento obrigacional, decorrente de perda ou avaria das mercadorias ou por atraso no cumprimento da prestação.

São, por seu turno, deveres do carregador/expedidor:
a)-Entregar a mercadoria para o transportador no local convencionado.
b)-Efectuar o pagamento pela contraprestação do serviço (remuneração do transportador).
c)-Responsabilidade do transportador, mediante a descrição e individualização das mercadorias objecto do transporte, pelos danos resultantes de omissões ou incorreções sobre os elementos necessários à descrição das mercadorias e seus defeitos não declarados na embalagem e acondicionamento adequado das coisas a transportar, nos termos do artigo 4º do Decreto Lei 352/86 e também do artigo 3º, nº 5, da Convenção de Bruxelas.

São, por outro lado, direitos do transportador:
a)-Recebimento da remuneração pela prestação do serviço de transporte (artigo 1º do Decreto Lei 352/86).
b)-Recebimento da mercadoria, objecto do contrato de transporte (artigo 3º, nº 3, da Convenção de Bruxelas).
c)-Apresentação de reserva no conhecimento de carga sobre o estado da mercadoria recebida (artigo 376º do Código Comercial e artigo 3º, nº 6, da Convenção de Bruxelas).
d)-Retenção da mercadoria enquanto não efetuado o pagamento do frete (artigo 390º do Código Comercial).
e)-Poder escolher o trajecto de deslocamento que melhor lhe seja conveniente, salvo estipulação em contrário.

São, por seu turno, obrigações do transportador:
a)-Providenciar o deslocamento das mercadorias objecto do contrato de transporte de um lugar para outro, de forma incólume, no local e no tempo convencionado (artigos 383º a 385º do Código Comercial e artigo 4º, nº 1, da Convenção de Bruxelas), visto que é obrigação do transportador receber a mercadoria e entregá-la ao destinatário. Essa entrega pode ser: i) a bordo (compete ao destinatário as operações de descarga); ii) no cais (compete ao transportador descarregar a mercadoria); iii) no domicílio do destinatário (o transportador deve fazer as operações terrestres necessárias – descarga para o cais e subsequente transporte até o domicílio do destinatário).
b)-Emitir o conhecimento de transporte nos termos legais ou convencionados (artigo 369º do Código Comercial). Além de emitir o conhecimento, o transportador também tem a obrigação de verificar a exactidão das indicações que nele são apostas relativamente às mercadorias, em relação àquelas que, em razão da natureza e do acondicionamento das mercadorias e diante da modalidade técnica das operações de carga, seja possível o controle prévio pelo transportador (cfr. MÁRIO RAPOSO, Sobre o contrato de transporte de mercadorias por mar, Boletim do Ministério da Justiça (BMJ) 376, 1988, 36). 
c)-Dever de informação que, em geral, resulta da boa fé na execução dos contratos (artigo 762º, nº. 2 do Código Civil). Na hipótese do transporte não se poder realizar ou estiver extraordinariamente em atraso, por caso fortuito ou força maior, deve o transportador avisar imediatamente o expedidor, podendo este rescindir unilateralmente o contrato, reembolsando o transportador pelo frete proporcional (artigo 379º, do Código Comercial) e restituindo a guia de transporte. O ónus da prova de que houve força maior é do transportador (artigo 383º do Código Comercial).
d)-Responsabilização pelas perdas e avarias das mercadorias e atrasos no cumprimento do contrato de transporte (artigos 377º, 383º e 384º do Código Comercial e artigos 3º e 5º da Convenção de Bruxelas).

São direitos do destinatário:
a)-Receber a entrega da mercadoria transportada, quando dispõe do título necessário, cabendo ao transportador fazer a prova dessa entrega (artigos 387º e 388º do Código Comercial). A entrega da mercadoria, para efeitos jurídicos, ocorre no momento em que o destinatário aceita a mercadoria transportada e entrega a declaração de recepção ao transportador, liberando-o, a partir daí, de qualquer risco sobre o objeto transportado.
b)-Verificar o estado da mercadoria transportada antes de seu recebimento (artigo 385º do Código Comercial).
c)-Disposição da mercadoria, como o expedidor, de forma alternativa (artigo 380º, § 2º do Código Comercial).
d)-Exigir a entrega da mercadoria transportada ou ressarcimento dos danos ocasionados por inadimplemento contratual (artigo 389º do Código Comercial).

São deveres do destinatário:
a)-Recebimento da mercadoria.
b)-Pagamento do preço, sendo o contrato de transporte um contrato bilateral entre o expedidor e o transportador, a questão que surge é a da possibilidade de ser cobrado o valor do frete ao destinatário e, se possível, em que condições.

A definição do período temporal em que o contrato de transporte marítimo produz os seus efeitos e as consequências daí decorrentes não tem sido unívoca na doutrina.

Para uns (conceito restrito de incidência do contrato), o contrato de transporte marítimo nasce com o recebimento da mercadoria a bordo pelo transportador e cessa com a entrega da mercadoria, ainda a bordo, pelo destinatário, podendo ser inserido no contrato de transporte outras prestação (carga, descarga, armazenamento, depósito), em que cada operação corresponde uma figura típica autónoma, ainda que em conexão económica. Verifica-se neste caso três fases distintas:
a)-carregamento de terra para bordo, que abrange a operação de recebimento da mercadoria e sua entrada para o interior do navio.
b)-transporte no mar, fase que compreende a partida do navio do porto de embarque até a chegada do navio no porto de destino, sendo que somente essa fase é, efectivamente, considerada contrato de transporte para incidência de regulamentação pela Convenção de Bruxelas.
c)-descarga de bordo para a terra.
Cfr. a este propósito, FERNANDO DE ABRANCHES FERRÃO, A avaria da mercadoria como causa de pedir – um caso de competência internacional, Lisboa, 1964, 11-12. 

Para outros, a operação do contrato realiza-se em três fases distintas:
a)-Entrega da mercadoria ao transportador (acto inicial da execução do contrato);
b)-Transporte (fase em que impendem sobre o transportador as obrigações típicas de custódia de transporte);
c)-Entrega da mercadoria ao destinatário, que integra três obrigações distintas: i) avisar sobre a chegada da mercadoria; ii) colocar a mercadoria em disponibilidade e exibir o documento de transporte ao destinatário.
v. neste sentido, HUGO RAMOS ALVES, Da limitação da responsabilidade do transportador na convenção de Bruxelas de 1924, Almedina, 2008, 61-62. 

Segundo outra tese, o transporte terá início quando as mercadorias entrarem na posse do transportador, ou seja, a partir do momento em que lhe são entregues, o que sucede mesmo quando a mercadoria é entregue ao operador portuário, que é um agente do transportador e que recebe as mercadorias como representante daquele, ao abrigo do disposto no artigo 217º e 262º do Código Civil. Neste caso, o transporte tem início quando a mercadoria é entregue ao transportador, ou seja, quando este adquire a posse por si, ou através de representante, e não quando “é carregada a bordo do navio” – cfr. ANDRÉ DE MATOS COELHO E SOUSA MARQUES, A transferência do risco na venda marítima, Temas de Direito dos Transportes, vol. I, coordenador Manuel Januário da Costa Gomes, Centro de Direito Marítimo e dos Transportes da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Almedina, 283-286. 

Na jurisprudência, já foi defendido no Ac. TRL de 17.02.2006 (Pº 837/2005-6) que “(...) o contrato de transporte não se esgota na deslocação das pessoas ou das coisas, mas abrange todo o período que decorre desde o momento em que o transportador recebe as pessoas ou as coisas a transportar até que são deixadas ou entregues no local de destino. (...)”

Na verdade, pode defender-se que a execução do transporte marítimo tem início com a entrega, pelo expedidor, das mercadorias, objeto do contrato de transporte, para o transportador.

A partir do momento em que o transportador recebe a mercadoria apresentada pelo expedidor, pessoalmente ou por seu representante legal (operador portuário), e até o momento da realização do carregamento do navio, não obstante a existência de um contrato de transporte, sobre este ínterim incidem as regras do depósito.

Por consequência, a partir do recebimento da mercadoria, o transportador assume a obrigação de guardar e conservar a mercadoria objecto do contrato de transporte, por si ou pelo operador portuário, que é seu representante, passando a ser responsável pela sua incolumidade.

Da mesma forma, ou seja, respaldado por uma relação jurídica de depósito, encontra-se o período compreendido entre a chegada ao porto de destino, com o descarregamento da mercadoria, até sua efectiva entrega para o destinatário.

Portanto, nesses períodos específicos que são antecedentes ao recebimento da mercadoria e consequentes à sua entrega ao interessado na carga, a relação jurídica entre as partes é disciplinada pelas regras do contrato de depósito.

É que, com efeito, para a Convenção de Bruxelas, principal fonte normativa reguladora do contrato de transporte marítimo, o período temporal do negócio está compreendido entre o porto de partida e o porto de chegada, ao estabelecer no seu artigo 1º, alínea e) que: o transporte incorpora o tempo decorrido a partir do momento em que as mercadorias são carregadas a bordo do navio até o momento em que são descarregadas.

Como se refere no Ac. TRL de 18.04.1991 (Pº 0000456), o preciso momento de início da execução do contrato de transporte marítimo é o da ‘prise en charge’, quando a mercadoria é içada para bordo. À responsabilidade do transportador pela mercadoria no período que decorre entre a recepção e o embarque são aplicáveis as disposições respeitantes ao contrato de depósito regulado na Lei Civil”.

As regras efectivas e imperativas da Convenção de Bruxelas, que representam o contrato de transporte em si, incidem tão somente na etapa do cumprimento do contrato que compreende o período de deslocamento da mercadoria de um local para outro, em suma, do carregamento do navio até sua descarga.

Para efeitos de definição do momento em que se opera o carregamento e a descarga do navio, deverá valer a regra suplementar do Decreto-Lei nº 352/86 que, no seu artigo 23º dispõe que: A mercadoria será considerada carregada no momento em que, no porto de carga, transpõe a borda do navio de fora para dentro. Será considerada descarregada no momento em que, no porto de descarga, transpõe a borda do navio de dentro para fora.

Conclui-se, assim, que para efeitos de definição do período temporal do transporte e incidência do regime legal próprio, há que atender à dinâmica “porto a porto”, com as ressalvas de carregamento e descarregamento do navio, levando-se em conta a regra geral da disciplina expressa no artigo 1º, alínea e) da Convenção de Bruxelas, complementada com a definição do critério apresentado pelo artigo 23º, nº 1 do Decreto Lei 352/86.

Uma vez recebida pelo transportar a mercadora objecto do contrato de transporte, haverá que expedir um documento escrito, denominado conhecimento de carga (bill of landing) que tem uma tríplice função:
a)-recibo das mercadorias;
b)-prova da celebração do contrato de transporte e do seu conteúdo;
c)-título representativo das mercadorias (regime geral dos títulos de crédito).
- cfr. a este propósito, HUGO RAMOS ALVES, ob. cit., 49-50 e Ac. TRL de 08.06.2006 (Pº 0632648), acessível em www.dgsi.pt.

Decorre, de resto, do próprio artigo 3º, nºs 3 e 4 da Convenção de Bruxelas que, após a entrega da mercadoria, o transportador (armador), ou seu representante, emite o conhecimento de carga, que tem a função de demonstrar o recebimento da mercadoria objecto do contrato, sendo que o conhecimento de carga constituirá presunção, salvo prova em contrário, da recepção pelo armador das mercadorias tais como foram descritas naquele documento – v. Ac. STJ de 25.11.2003 (Pº 03A3624).

Expostos os contornos do contrato de transporte marítimo, há que concluir que entre o armador, de que a autora é representante, e a ré, que se dedica à importação, exportação, comércio e representação de electrodomésticos, foram celebrados contratos de transporte marítimos, tendo esta efectuado o pagamento do respectivo frete – v. Nºs 1 a 8 da Fundamentação de facto.

Provado, no entanto, ficou que  a ré, após a chegada e descarga dos contentores a esta destinados, foi pela ré, enquanto expedidor/destinatário, requerido tempo suplementar de permanência nos módulos de transporte pertencente à representada da autora e igualmente não procedeu ao levantamento dos contentores desembaraçados que ficaram armazenados no terminal portuário, para além da dilação sem custos acordada entre as partes, tendo a autora emitido as correspondentes facturas referentes a armazenagem e imobilização dos contentores, que a ré não pagou, o que nos reconduz agora à analise da questão relacionada com as eventuais demoras no efectivo cumprimento do contrato de transporte marítimo, o que se fará subsequentemente.

a)-DA NATUREZA DO CUSTO DECORRENTE DE “DEMURRAGE”  E DE “STORAGE” 
( Sobrestadia e Armazenagem)
Autonomia dos custos de imobilização (contrato de locação) ou,
Simples obrigação subsidiária acessória (cláusula penal de natureza moratória ou indemnizatória)


A ideia de utilizar contentores, como unidades de carga, surgiu na década de 1960, designando-se por contentorização o processo que foi iniciado nessa década, sob o impulso de um empreendedor norte-americano e, posteriormente, globalizado na década de 1980, consistente no uso de contentores para o transporte de mercadorias, principalmente no transporte marítimo.

Após muitas controvérsias por conta da existência de dimensões bem variadas e não uniformes, a maioria dos países passaram a adoptar, a partir de 1968, como padrão, as especificações e dimensões dos “containerspropostas pela International Standards Organization (ISO), embora em alguns países as dimensões American Standards Association (ASA) ainda sejam aplicadas.

No final de 2014, a International Maritime Organization (IMO) aprovou alterações à Convenção Safety of Life at Sea (SOLAS), para entrarem em vigor no dia 1 de julho de 2016, exigindo que cada contentor de exportação tenha peso verificado como condição para carregamento a bordo de um navio. Esta medida dirige-se particularmente a armadores, mas envolve toda a cadeia de transporte de carga contentorizada. O seu cumprimento compromete carregadores, transitários, embaladores, transportadores e operadores de terminais marítimos.

Presentemente, milhões de unidades/ano circulam no mundo, as quais são identificados com as marcas de seus proprietários, local de registo, números, tamanhos, tipos, definição de espaço e peso máximo.

Os contentores deixaram de ser simples caixas fechadas, possuindo actualmente diversos tipos diferentes para se adequarem as mais variadas necessidades, tais como, contentores para cargas refrigeradas (“reefe”), para cargas secas (“dry”), ventiladas ou cargas líquidas (“tank”).

Os módulos mais conhecidos são os de 20 e 40 pés, cujas características e tamanhos utilizados em cada tipo de transporte variam de acordo com o tipo e natureza da carga transportada.

No início da época de contentorização, os contentores pertenciam aos armadores. Entretanto, surgiram também as empresas locadoras de contentores, que os exploram comercialmente, mediante um sistema padronizado de aluguer.

O contentor, seja qual for a modalidade de transporte utilizado (marítimo, rodoviário ou ferroviário), pode pertencer tanto ao próprio armador, o qual constitui parte ou acessório do veículo transportador, ou pode mesmo ser arrendado ou adquirido pelos próprios interessados, para serem utilizados no transporte de suas cargas.

Pertencendo ou não ao armador, é sabido que o contentor deve ser retirado, pelo destinatário (ou expedidor/destinatário) após a conclusão do transporte, devendo ser devolvido no prazo estipulado, sob pena de este incorrer no pagamento de sobrestadia (demurrage), devida justamente pelo atraso na devolução do equipamento.

A expressão “demurrage” vem a ser consagrada no ramo de comércio internacional para designar a remuneração devida ao transportador marítimo pela continuação da utilização de contentores e a não devolução desse equipamento no prazo de utilização estipulado.

Tal cobrança tem como princípio a devolução dos contentores fora do prazo contratualizado, sabendo-se que os mesmos são essenciais para a realização de novos transportes, sem os quais os armadores precisam alterar a sua logística e incorporar novos equipamentos para atender às suas solicitações, deslocando contentores vazios de outros portos ou mesmos países.

Importa, todavia, ter em consideração que os conceitos de “demurrage” e “free time” não são coincidentes.

O free time, há muito utilizado em todos os transportes marítimos de mercadorias, refere-se ao período livre para utilização do contentor pelo destinatário da carga, durante o qual não há incidência de demurrage, período de pode variar, dependendo da negociação acordada entre as partes contratantes.

É certo que a natureza jurídica da demurrage não tem sido unívoca.
Pode considerar-se que se trata de uma cláusula acessória do próprio contrato de transporte marítimo (cláusula penal), ou, ao invés, de um contrato associado ao contrato de transporte marítimo, mas autónomo, de locação.

Como é sabido a cláusula penal, consagrada no artigo 810º do Código Civil resulta de um acordo das partes, no âmbito do princípio da liberdade contratual, e tem como finalidade a fixação antecipada de uma indemnização (antes de ocorrer o facto constitutivo de responsabilidade), normalmente uma quantia em dinheiro, que o devedor deverá satisfazer ao credor em situações de inadimplemento, cumprimento a destempo ou cumprimento defeituoso da obrigação, com intuito de se evitarem futuras dúvidas e litígios entre as partes, quanto à determinação do montante da indemnização.

Como já referia CASTRO MENDES, Teoria Geral, 1968, 3º, 345 trata-se de uma “cláusula sobre o montante da responsabilidade”, que não visa apenas estabelecer uma sanção para o incumprimento das obrigações contratuais, mas, também, fixar, previamente, a forma de cálculo da indemnização devida, em caso de incumprimento, por forma a que o credor da indemnização não tenha de provar, em acção judicial competente, com vista à sua validade e eficácia, a existência de danos, nem o montante dos prejuízos sofridos, já que o valor indemnizatório será aquele que as partes tiverem, antecipadamente acordado, prevenindo, portanto, dificuldades de cálculo da indemnização e dispensando o credor da alegação e prova do dano concreto – v. também a este propósito PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, II, 4ª
edição, revista e actualizada, 1997, 73 e Acs. STJ, de 20.10.98, CJ (STJ), Ano VI, T3, 73 e de 09.02.99, CJ (STJ), Ano VII, T1, 97.

O devedor, vinculado à cláusula penal, não se encontra obrigado ao ressarcimento do dano que, efectivamente, cause ao credor com o incumprimento, mas antes à compensação do prejuízo, negocial e antecipadamente fixado, através da cláusula penal, sempre que não tenha sido pactuada a indemnização pelo dano excedente, nos termos do disposto pelo artigo 811º, nº 2, do Código Civil -  v. CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., 2007, 248 e 249.

Também lhe compete, simultaneamente, uma função de estímulo e de reforço do cumprimento do contrato, como meio eficaz de pressão ao próprio cumprimento da obrigação.

A cláusula penal desempenha, por isso, na prática, uma função ressarcidora e função coercitiva. Reveste uma função, fundamentalmente, ressarcidora e tarifada, de natureza compulsória, agindo como meio de pressão sobre o devedor, mediante a ameaça de uma sanção pecuniária, com vista ao cumprimento pontual das obrigações que assumiu, mas cujos danos advenientes do seu incumprimento ou mora, em consequência da inexecução da obrigação ou da violação do contrato, não importa averiguar, nem determinar o seu montante, na hipótese da sua verificação, e bem assim como, igualmente, o respectivo nexo causal. – Acs. STJ, de 12.01.1994, BMJ nº 433, 559 e de 24.04.2012 (Pº 605/06.6TBVRL.P1.S1).

É possível sintetizar, da forma seguinte os entendimentos da doutrina e da jurisprudência acerca das diversas modalidades de cláusula penal:
i)-Cláusula com função moratória ou compensatória, dirigida à reparação de danos mediante a  fixação antecipada da indemnização em caso de não cumprimento definitivo ou de simples mora do devedor (única figura expressamente prevista no artigo 810.º do Código Civil);
ii)-Cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita, em que a sua estipulação substitui o cumprimento ou a indemnização, não acrescendo a nenhum deles;
iii)-Cláusula penal de natureza compulsória, em que há uma pena que acresce ao cumprimento ou que acresce à indemnização pelo incumprimento, sendo a finalidade das partes, nesta última hipótese, a de pressionar o devedor a cumprir, e já não a de substituir a indemnização.
- Cfr. a propósito desta tripla modalidade de cláusula penal, na doutrina, nomeadamente, PINTO MONTEIRO, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 141.º, n.º 3972, 177 e ss. e NUNO PINTO DE OLIVEIRA, Cláusulas Acessórias ao Contrato, Almedina, 2.ª ed., 63 e ss. e, na jurisprudência, entre muitos, Acs. S.T.J. de 27.09.2011, (Pº 81/1998.C1.S1).

Defende a apelante a natureza de cláusula penal da demurrage. Seguiu a sentença recorrida a tese do contrato de locação, entendimento que se corrobora.
Na verdade, o fornecimento de contentores, que sempre se traduzirá num aluguer, poderá considerar-se incorporado no regime do transporte marítimo durante o estrito período de deslocação da mercadoria, a que se reporta o disposto no artigo 1º, alínea e) da Convenção de Bruxelas, e artigo 23º, nº 1 do Decreto-Lei 352/86, podendo embora o período do free time se encontrar diluído no frete acordado.

Findo este prazo, o destinatário da carga passa a incorrer em sobrestadia, denominada demurrage, que se traduz, como acima se referiu, na cedência de contentores para além do aludido período, e no qual terá aplicação as regras da locação, portanto, alvo de remuneração (artigos 1022º e 1023º do C.C.). Já quanto à armazenagem será aplicável as regras do depósito, neste caso oneroso (artigos 1185º do C.C. e 403º e ss. do C.Comercial).

Ora, no caso vertente, ficou demonstrado que a autora informa os clientes sobre o custo do tempo suplementar, quer em relação à permanência das mercadorias nos contentores, quer à armazenagem destes em terminal, consoante as suas dimensões, circunstância que era do conhecimento da ré – v. Nºs 10 a 14, 38, 57 a 67 da Fundamentação de Facto.

Acresce que, pese embora habitualmente se entenda que o contrato de transporte se apresente como um contrato standard (contrato de adesão), assentando em cláusulas contratuais gerais, em relação às situações, quer de sobrestadia, quer de armazenagem, tal não se verificou, já que autora e ré, mantiveram negociações, em consequência das quais a autora concedeu à ré um período livre superior ao da sua tabela para as imobilizações, mantendo-se o “free time” constante da tabela da autora – v. Nºs  39 a 42 da Fundamentação de Facto.

No caso da armazenagem, provado também ficou que o porto cobra ao transportador uma taxa de utilização diária pela utilização do espaço ocupado pelo contentor, a qual é repercutida para o cliente, responsável pelo não levantamento da mercadoria transportada. Todavia, a autora presta também aos seus clientes um serviço próprio de armazenagem no porto, nomeadamente de guarda – v. Nºs 43, 44, 68 da Fundamentação de Facto.

E, em conformidade com as tabelas de imobilização e armazenamento estabelecidas e o acordado entre autora e ré, aquela emitiu facturas relativas a imobilizações e armazenagem que a ré não pagou, embora continuasse a utilizar os serviços de transporte do armador de que a autora é representante – v. Nºs 27 a 32 e 55 da Fundamentação de Facto.

Mostra-se, assim, devido o pagamento, por parte da ré, de todos os valores facturados e peticionados na acção, quer em relação ao demurrage, quer relativamente à armazenagem, conforme se decidiu na sentença recorrida, que aqui se mantém, tendo em consideração as regras do contrato de aluguer e de depósito.

Mas, ainda que se considerasse que a demurage se enquadrava numa cláusula contratual acessória – cláusula penal com consagração no artigo 810º do C.C., com função moratória ou compensatória, dirigida à reparação   de   danos   mediante   a   fixação   antecipada   da indemnização - à mesma conclusão se chegaria.

Senão vejamos, analisando a pretensão da apelante, ao invocar a sua pretensão de redução da aludida cláusula penal, expressamente contratualizada pelas partes, ao abrigo do princípio da liberdade negocial previsto no artigo 405º do Código Civil.

b)DA REDUÇÃO DA CLÁUSULA PENAL

Estatui o artigo 812.º do C.C., sob a epígrafe “Redução equitativa da cláusula penal” que:
1.A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário.
2.É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida.

É certo que o regime dos artigos 810º e 811º do C.C. não se aplica às cláusulas penais compulsórias, mas apenas, como antes se referiu, às de natureza indemnizatória, como se pode inferir da conjugação do nº 1 do artigo 810º com o nº 3 do artigo 811º.
Conforme refere ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Cláusula Penal e Indemnização, Colecção Teses, Almedina, Coimbra, 1990, 486, “(…) haverá toda a vantagem em considerar que o Código trata apenas da cláusula de fixação antecipada da indemnização: além de ser essa a atitude mais consentânea com a noção que dela dá o nº 1 do artº 810º, o regime prescrito actualmente no artº 811º só se compreende em relação a esta figura, não a respeito da pena com escopo compulsório”.

Todavia, sempre se poderá argumentar que o artigo 812º do Código Civil não faz qualquer distinção entre os diversos tipos de cláusulas a que acima se aludiu, inexistindo qualquer razão de ordem material ou substantiva, para que o intérprete a faça.

O único fundamento que justifica a intervenção do tribunal em nome da equidade, é o excesso manifesto, a evidente desproporção, razões essas susceptíveis de ocorrerem em qualquer das modalidades de cláusulas penais, podendo até afirmar-se que tal sucede com maior premência nas de natureza compulsória.

Salienta, no entanto, PINTO MONTEIRO, ob. cit., 730, que o aludido preceito encerra um princípio de alcance geral, destinado a corrigir abusos no exercício da liberdade contratual, sempre possíveis em razão da ligeireza, da precipitação ou da menor reflexão com que as partes actuam, males estes não raro induzidos pela pressão que a escassez de tempo para bem decidir coloca sobre os contraentes.

E acrescenta ainda, PINTO MONTEIRO, ob. cit., 732 que: (…) o princípio da boa fé inspira várias destas soluções, designadamente a da proibição dos negócios usurários (artº 282º), a ratio do poder de redução, consagrado no artº 812º, funda-se, sim, na necessidade de controlar a autonomia privada, de prevenir abusos do credor, mas ao nível do exercício do direito à pena. Pode não ter havido, ao ser estipulada a cláusula penal, qualquer aproveitamento de uma eventual situação de necessidade do devedor, ou exploração alguma de qualquer ligeireza, inexperiência ou dependência deste, e, todavia, a pena ser excessiva, em termos de se justificar a sua redução; assim como pode ter sido acordada num montante que se afigura razoável e, contudo, ao ser exigida, revelar-se manifestamente excessiva. É que o juízo sobre a manifesta excessividade da pena deve fazer-se, não relativamente ao momento em que ela for estipulada, antes ao ter de cumprir-se. E não é o dano previsível que conta, antes o prejuízo efectivo” – v. ainda neste mesmo sentido Acs. STJ de 12/10/99 (Pº 99A696) e de 27.09.2011 (Pº81/1998.C1.S1 ), acessíveis em www.dgsi.pt.

Todavia, como escreve CALVÃO DA SILVA, ob. cit., 273, "a intervenção judicial do controlo do montante da pena não pode ser sistemática, antes deve ser excepcional e em condições e limites apertados de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter à forfait. Daí que, por toda a parte, apenas se reconheça ao Juiz o poder moderador, de acordo com a equidade, quando a cláusula penal for extraordinária ou manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente".

E mais à frente, observa o mesmo Autor: “A decisiva condição legal da intervenção do tribunal é, por conseguinte, a presença, ao tempo da sentença, de uma cláusula manifestamente excessiva, - não basta uma cláusula excessiva, cuja pena seja superior ao dano -, de uma cláusula cujo montante desmesurado e desproporcional ao dano seja de excesso manifesto e evidente, numa palavra de excesso extraordinário, enorme, que salte aos olhos. Tem de ser, portanto, uma desproporção evidente, patente, substancial e extraordinária, entre o dano causado e a pena estipulada, mas já não a ausência de dano em si" – ob. cit., 274.

O juiz tem, pois, o poder de reduzir, mas não de invalidar ou suprimir a cláusula penal manifestamente excessiva, e só tem o poder de reduzir a cláusula penal manifestamente excessiva e não já a cláusula excessiva.

Esclarece ainda CALVÃO DA SILVA, ob. cit., 276 que, uma cláusula penal de montante superior, mesmo excessivo ao dano efectivo não é proibida por lei, não tendo o Juiz poder para a reduzir. Do mesmo modo, a ausência de dano, por si só, não legitima a intervenção judicial.
                       
Para além da situação da cláusula penal usurária, a que alude o artigo 1146º do C.C., admite-se ainda a intervenção do poder judicial equitativo de redução, não só quando a cláusula penal for, manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente, e quando a obrigação tiver sido, parcialmente, cumprida, nos termos do preceituado pelo artigo 812º, nºs 1 e 2, exigindo, igualmente, a convenção das partes para o ressarcimento do dano excedente, de acordo com o estipulado pelo artigo 811º, nº 2, todos do CC – v. CALVÃO DA SILVA, ob. cit.,  249 nota (458).
 
Dado que a redução prevista no citado artigo 812º do CC limita os princípios da autonomia privada e da liberdade contratual, subjacentes à fixação da cláusula penal, tem de ser ponderada e cuidadosamente exercida, sendo que, na apreciação do carácter manifestamente excessivo da cláusula penal, e atenta a referência à equidade, implica uma valoração global, sob pena de vir a inutilizar a sua função e razão de existência, deverá o juiz ter particularmente em consideração,
interesse do credor no cumprimento;
a natureza e condições de formação do contrato;
a situação económica e social das partes;
o prejuízo previsível no momento da outorga do contrato e o efectivo prejuízo sofrido pelo credor;
as causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa ou má fé do devedor;
o carácter à forfait da cláusula;
a salvaguarda do seu valor cominatório.
cfr. a este propósito, CALVÃO DA SILVA, ob. cit., 274 e Ac. STJ de 03.11.2015 (Pº 266/14.9TBPRD-A.P1.S1) quando refere que: a referência à equidade constante do n.º 1 do art. 812.º do CC pressupõe que se efectue uma valoração global na qual assumirá papel preponderante – mas não exclusivo – o interesse do credor no cumprimento.

Mas, no exercício do seu equitativo e excepcional poder moderador, o juiz só goza, como acima ficou dito, da faculdade de reduzir a cláusula penal que se revele extraordinária ou manifestamente excessiva, tendo sempre presente o seu valor cominatório e dissuasor.

Trata-se de uma faculdade excepcional e estritamente condicionada, um poder dependente de pressupostos rigorosos, em termos de só actuar em circunstâncias excepcionais, por forma a impedir actuações abusivas do credor, devendo ser exercida apenas quando tal é necessário para evitar o abuso, de modo a salvaguardar a autonomia privada.

É que, como bem esclarecem CALVÃO DA SILVA, ob. cit., 274 e PINTO MONTEIRO, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, 2003, 142 e nota (306), a qualificação de uma cláusula como, manifestamente, excessiva não se identifica com a cláusula, meramente, excessiva, em que a pena seja superior ao dano -  cfr. também Acs. S.T.J. de 7-11-89, BMJ 391-565, de 10.02.2004 (Pº 04A4299) e de 24.04.2012 (Pº 605/06.6TBVRL.P1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

De resto, salienta mesmo ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Cláusula Penal e Indemnização, 739-745, que “a pena poderá não ser manifestamente excessiva se houver sido determinada por um intuito compulsório, mas já poderá sê-lo, todavia, se ela tiver sido acordada a título de mera liquidação prévia do quantum respondeatur” (…) e que “enquanto na pena estipulada a título indemnizatório o grau de divergência entre o dano efectivo e o montante prefixado assume importância decisiva, o mesmo não sucederá quando se trate de uma pena convencionada como sanção compulsória. Neste último caso, com efeito, não será o prejuízo real o factor mais importante a considerar, antes o interesse do credor ao cumprimento” - v. também neste sentido Ac. STJ de 03.11.2015 (Pº 266/14.9TBPRD-A.P1.S1).

Para o reconhecimento que se está perante uma cláusula “manifestamente excessiva”, tendo o objectivo da redução da pena o efeito jurídico de modificar o direito do credor, a mesma deverá ser perspectivada como uma excepção de direito material, cujo ónus de alegação e prova caberá ao devedor. A este caberá, assim, alegar e provar os factos que integrem o manifesto excesso, devendo tal excesso ser analisado diferentemente consoante esteja em causa uma cláusula penal indemnizatória – em que o excesso será sempre uma não relação entre a pena e os danos efectivos – ou perante uma cláusula penal exclusivamente compulsória – em que o excesso deverá resultar da enormidade da pressão representada pelo valor da cláusula – cfr., entre outros, os Acs. S.T.J. de 17.11.98, C.J/STJ, ano VI, tomo III, 120, de 09.02.99, C.J/STJ, Ano VII, tomo I, 99, de 03.10.2002, (Pº 02B1499), de 03.6.2003 (Pº 02A2973) e de 17.5.2012 (Pº 3855/05.9TVLSB.L1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

É necessário, todavia, não olvidar que no caso da cláusula compulsória, para impelir o devedor a cumprir é necessário cominar-lhe um mal que represente um desincentivo ao incumprimento, tanto mais que o manifesto excesso não se relaciona com o dano, mas terá antes de se reportar à dimensão da própria cominação e ocorrerá quando esta seja irrealista e desmesurada.

Assim, e como se referiu, e bem, no Ac. R.P. de 03.03.2016 (Pº 11709/15.4T8PRT.P1), só é possível reduzir a cláusula penal quando for manifesto que esta possui uma desproporção substancial e evidente, quando a satisfação da mesma tiver para o devedor efeitos exorbitantes, já que não se poderá, através da redução da pena, eliminar o efeito compulsório pretendido pelas partes, pois isso daria aos devedores a ideia de que podem aceitar qualquer cláusula penal sem temerem pelo seu pagamento, pois em caso de não cumprimento, quando lhes for exigida tal cláusula, obterão a sua redução judicial. Tal redundaria na exclusão por via judicial do mecanismo jurídico da cláusula penal voluntária, o que deve ser evitado.

Mas, como esclarecem ainda ANTÓNIO PINTO MONTEIRO,
Cláusula Penal e Indemnização, 734 e CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, 275, nota 502, o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal não é oficioso, dependendo, outrossim, de pedido expresso nesse sentido, do devedor da indemnização, alegando e provando a factualidade pertinente e a que acima se fez expressa referência.

É que, para aferir do carácter excessivo da cláusula, esclarece CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 274, o juiz terá “de atender à natureza e condições de formação do contrato” e “à situação respectiva das partes, nomeadamente a sua situação económico-social, os seus interesses legítimos patrimoniais e não patrimoniais; à circunstância de se tratar ou não de um contrato de adesão; ao prejuízo previsível no momento da celebração do contrato e ao efectivo prejuízo do credor; às causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa ou má fé do devedor (aspecto importante, senão mesmo determinante); ao carácter forfait da cláusula e, obviamente, à salvaguarda do seu valor cominatório”.

De resto, igualmente a jurisprudência tem perfilhado o entendimento de que não é oficioso o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula – v. neste sentido, a título meramente exemplificativo, e entre muitos, Acs. STJ de 17.04.2008 (Pº 08A630) e de 23.02.2010 (Pº 589/06.0TVPRT.P1), de 22.02.2011 (Pº 4922/07.0TVLSB.L1.S1) e de 24.04.2012 (Pº 605/06.6TBVRL.P1.S1), todos acessíveis na Internet, no sítio www.dgsi.pt.

Aqui chegados, importa alertar que, como é consabido, o recurso jurisdicional visa modificar a decisão proferida e não criar soluções sobre matéria nova, estando vedado aos tribunais superiores apreciar questões não colocadas nas instâncias inferiores.

Como vem sendo jurisprudência pacifica, os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia sobre questões novas.

Às partes não é, portanto, lícito suscitar questões que não hajam sido objecto da decisão recorrida, não podendo o tribunal de recurso pronunciar-se sobre questões ali não decididas, excepto nas situações em que a lei expressamente determine o contrário, ou naquelas em que a matéria em causa seja de conhecimento oficioso.

Ora, ainda que se entendesse que in casu estávamos perante uma cláusula penal – o que se não entende – a questão da eventual redução da pretensa cláusula penal apenas agora suscitada no recurso, pela apelante, é matéria que, não tendo sido atempada e expressamente, suscitada, nem apreciada pelo Tribunal a quo, sempre consubstanciaria uma questão nova. E, não sendo a mesma de conhecimento oficioso, dela nunca poderia este Tribunal da Relação conhecer em sede de recurso.

Assim, e por se entender que não está em causa uma cláusula penal, tão pouco haverá que conhecer da questão, porque prejudicada, também suscitada pela apelante, de indevida cumulação de uma cláusula penal com o pagamento de juros e despesas.

ii)DA CONDUTA PROCESSUAL DAS PARTES -  LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ

Considerou o Tribunal a quo que havia ficado demonstrada a litigância de má-fé da ré, por ter esta deduzido a sua defesa mediante a alteração da verdade dos factos que bem conhecia, o que justificava a sua condenação como litigante de má fé, na multa de 10 UC’s, bem como numa indemnização a pagar à autora, no valor dos honorários e custos dos meios por esta afectados ao processo, no montante de € 1000,00.

Invoca a ré/apelante que, na sua reconvenção, apenas tentou demonstrar a verdade material dos factos, numa lide que, sem dolo, nunca pretendeu nem alterar nem omitir factos essenciais para o apuramento da verdade dos factos.

Importa então apreciar se a conduta processual da ré se processou de molde a integrar o conceito de litigância de má-fé.
                       
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 542º nº 2, 7º e 8º, todos do CPC, litiga com má-fé processual a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere por acção ou omissão a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos.

A proibição da litigância de má-fé apresenta-se como um instituto destinado a assegurar a moralidade e a eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça.

Nos pressupostos da litigância de má-fé há que distinguir aqueles que têm natureza subjectiva, daqueles que têm natureza objectiva.

Os pressupostos subjectivos da condenação por litigância de má-fé englobam a actuação dolosa e a actuação com negligência grosseira, consistindo esta na omissão do dever de diligência exigível a qualquer pessoa que intenta uma acção ou deduz oposição a um pedido, na medida em que a propositura de uma acção judicial deve ser entendida como um acto sério, que normalmente acarreta prejuízos e incómodos para a outra parte – v. neste sentido Ac. R.C. de 28.09.2000 (Pº 1475/00), acessível no supra identificado sítio da Internet.

Quanto aos pressupostos objectivos da condenação por litigância de má-fé há que distinguir a má-fé substancial, da má-fé instrumental.

A má-fé substancial ou material - directa ou indirecta - verifica-se quando a actuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b) do nº 2 do citado artigo 456º do CPC, ou seja, quando se deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas (má fé material directa), se altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes (má fé material indirecta). Esta só pode ter lugar quando o tribunal profere decisão sobre a relação jurídica material que é objecto da acção.

A má-fé instrumental reconduz-se às alíneas c) e d) do apontado normativo – a omissão indesculpável do dever de cooperação ou o uso reprovável dos instrumentos adjectivos.

Mas, quer na má-fé substancial, quer na instrumental, está presente uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação ou de censura e idêntica reacção punitiva.

O juízo de censura radica, pois, na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa-fé a que as partes estão adstritas.

Frequentemente o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, no que concerne às regras consagradas nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 456º do CPC, que as mesmas têm de ser interpretadas em consonância com a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias de um estado de direito, incompatíveis com interpretações apertadas do aludido normativo, impedindo que, por exemplo, a parte seja condenada como litigante de má-fé apenas por não se ter provado a versão dos factos por ela alegados e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária – v. Ac. STJ de 30.01.2003 (Pº 3B3644) e, em sentido não inteiramente coincidente, Ac. STJ de 12.06.2003 (Pº 03B573), ambos acessíveis no supra mencionado sítio da Internet.

Decidiu-se igualmente no Ac. STJ de 11.12.2003 (Pº 03B3893), acessível no mesmo sítio da Internet, que só quando o processo fornece elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente deverá a parte ser sancionada como litigante de má-fé, o que pressupõe prudência do julgador, “sabendo-se que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”.

Tal significa que a sanção por litigância de má-fé exige a verificação de dolo ou negligência da parte que tal conduta adopta, o que não sucederá normalmente com a dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento se verificou por mera fragilidade da prova, e da incapacidade de convencer o tribunal da realidade trazida a julgamento, ou mercê da discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos.

Refere-se também no Ac. STJ de 13.11.2003 (Pº 03B2343), acessível no mesmo sítio da Internet, que a condenação como litigante de má-fé assenta num juízo de censura incidente sobre um comportamento adoptado pela parte, inadequado à ideia de um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito.

Por outro lado, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem abundantemente salientado que o princípio da cooperação constitui, a partir da reforma do CPC, operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12/12, um princípio fundamental e angular do processo civil, com expressão no artigo 266º do CPC e que tem reflexos no princípio da boa-fé processual com expressa  consagração  do  artigo  266º - A  do  mesmo diploma –v. por todos e entre muitos, Ac. STJ de 12.06.2003 (Pº 03B573) e Ac.R.L. de 20.09.2007 (Pº 6114/2007-6), acessíveis na Internet, no sítio www.dgsi.pt.

Visam tais princípios, actualmente consagrados nos artigos 7º e 8º do nCPC, tantas vezes olvidados, fomentar a colaboração entre os magistrados, os mandatários e as próprias partes, com vista a obter-se, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

Entendeu o Exmo. Juiz do Tribunal
a quo, que a ré havia deduzido a sua defesa mediante a alteração da verdade dos factos que bem conhecia, tendo referido que:
“Ré conhecia todos os factos (pessoais) que estiveram na base da emissão da factura n.º L3282, atinente ao custo da imobilização e armazenagem de contentores no porto de Vigo, tanto mais que as partes trocaram extensa correspondência electrónica a esse respeito, conforme avulta do documento n.º 7 junto com a réplica (fls. 323 a 328). A análise de tal correspondência evidencia que a sobredita factura foi objecto de perguntas e pedidos de esclarecimento à Autora, a qual os satisfez mediante o fornecimento de todas as informações solicitadas, designadamente, a indicação dos conhecimentos de embarque e os contentores em causa, das respectivas datas de descarga e carga e de levantamento e das datas em que Ré tinha procedido à sua devolução. Nesse contexto, a Ré bem sabia que o documento em apreço referia-se ao custo de 241 dias de imobilizações e 405 dias de armazenagem de 13 dos 17 contentores que viajaram ao abrigo de 4 conhecimentos de embarque para o porto de Vigo. Sabia ademais que processualmente estava-lhe vedada a possibilidade de impugnar a realidade que esteve na base da emissão da sobredita, alegando, designadamente, que a Autora pretende a cobrança da quantia de € 4375 por um dia de armazenagem e um dia de imobilização de 4 contentores no porto de Vigo.
Num outro plano, apurou-se que a Ré conhecia os preços que tinha contratado com a
Autora para a prestação dos serviços desta (os quais, aliás, nada tinham a ver com o
“preçário oficial” fixado pelos portos de Sines e Leixões para o custo da armazenagem) tanto mais que em 17-11-2009, e quando já tinha recebido dezenas de facturas de custos de imobilização e armazenagem com os valores que agora questiona, encomendou novos transportes para embarque até 31-12-2009 e sem que a tanto estivesse obrigada. Por isso, é notório que a Ré jamais receou a colocação em risco dos transportes que estavam em curso quando procedeu ao pagamento das facturas cujos valores agora reclama (em termos inéditos e contrários à posição por si assumida até à dedução da contestação).

É certo que, como se infere do Ac. STJ de 11.09.2012 (Pº 2326/11.09TBLLE.E1.A1), acessível no supra citado sítio da Internet, a litigância de má-fé susceptível de despoletar a aplicação do artigo 456º, nºs 1 e 2, do aCPC (artigo 542, nºs 1 e 2 do nCPC) exige a consciência de que quem pleiteia de certa forma tem consciência de não ter razão.

Sucede que na situação aqui em apreciação não está apenas em causa uma alegação convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe.
A exemplificação apresentada pelo Exmo. Juiz do Tribunal a quo para justificar a condenação da ré, como litigante de má-fé, demonstra inequivocamente que a ré, na sua defesa, alterou a verdade dos factos que bem conhecia, como, de resto, resulta dos Nºs 60, 67 e 73 dos Factos Provados, o que demostra à saciedade a inobservância, por parte da ré, dos deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé processual.

Entende-se, pois, que será também de manter integralmente, o que, a este propósito, decorre da sentença recorrida, incluindo o quantum da multa e da indemnização fixado, que se mostra adequado atentos os fundamentos ali aduzidos, os quais se corroboram.

Destarte, improcede a apelação da ré, confirmando-se in totum a sentença recorrida.

A apelante será responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

IV.DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Condena-se a apelante no pagamento das custas respectivas.



Lisboa, 19 de Outubro de 2017



Ondina Carmo Alves - Relatora
Pedro Martins
Arlindo Crua