Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
148/14.4TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
DEVER DE INFORMAÇÃO
CONSENTIMENTO INFORMADO
DANO
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
HOSPITAL
MÉDICO
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I - A ambiguidade ou a obscuridade apenas relevam quando gerem ininteligibilidade, id est, quando um declaratório normal não possa extrair da parte decisória (e só desta) um sentido ou alcance unívoco, mesmo depois de lançar mão da fundamentação para a interpretar. Se os recorrentes compreendem bem os fundamentos e apenas não concordam com eles, nem com a respetiva decisão, não se verifica a alegada ambiguidade/obscuridade originadora de ininteligibilidade.

II - Verifica-se a existência de oposição entre os fundamentos e a decisão, de alguma ilogicidade, quando no dispositivo do acórdão recorrido o tribunal da Relação não delimita no tempo, em oposição ou divergência com a correspondente fundamentação, os danos patrimoniais e não patrimoniais em cujo ressarcimento condena solidariamente a ré.

III - A condenação dos réus no ressarcimento dos danos em apreço, sofridos pelo autor, respeita os limites do pedido, já que o aresto se limitou, neste âmbito, a deferir a pretensão do autor.

IV - A não apresentação, sem qualquer justificação, dos relatórios – médicos ou de enfermeiros – respeitantes ao dia da alta hospitalar, por parte do réu, afigura-se suscetível de tornar impossível, ou particularmente difícil, a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e, por isso, justifica a inversão do ónus da prova relativamente ao estado febril da autora ao tempo da alta hospitalar.

V - O juízo probatório acerca da verificação da situação febril da autora no dia da alta hospitalar não padece de qualquer ilogicidade evidente ou manifesta, pelo que não merece censura.

VI - Perante a violação ilícita e culposa de deveres de informação, por parte do médico, e a ocorrência de danos que aqueles visam prevenir, acolhe-se uma presunção de comportamento conforme à informação, dispensando o paciente da prova da causalidade (preenchedora) que intercede entre o fundamento da responsabilidade invocado e os danos por si sofridos, que o cumprimento correto daqueles deveres visa prevenir (perturbação de decisão esclarecida do paciente).

VII - A cirurgia Sleeve, não tendo sido validamente consentida – designadamente porque a autora não foi devida e adequadamente informada e esclarecida nem sobre os respetivos riscos gerais e específicos e nem sobre os riscos inerentes à sua condição de obesidade –, constitui uma ofensa ao seu direito à integridade física por falta de justificação, conforme resulta dos arts. 81.º e 340.º do CC e do art. 157.º do CP.

VIII - Não pode partir-se de um ponto de referência abstrato, pois na decisão do caso deve ter-se em conta o perfil do paciente concreto. Pode, nesse sentido, dizer-se que a intensidade e a extensão dos deveres de informação do médico dependem das circunstâncias do caso concreto.

IX - Compete à instituição de saúde – e/ou médico – provar que, mesmo que houvesse cumprido corretamente os seus deveres de informação, o paciente se teria comportado do mesmo modo, tomando a mesma decisão. Não deve admitir-se a invocação da figura do consentimento hipotético quando estejam em causa violações graves dos deveres de conduta da instituição de saúde – e/ou do médico –, como sucede quando aquela omite informações fundamentais ou essenciais para a autodeterminação do paciente.

X - A responsabilidade pelos danos diretamente sofridos pela autora – e também pelos danos indireta ou reflexamente sofridos pelo autor – deve ser imputada, desde logo, ao Hospital, como devedor de uma prestação de cuidados médicos para com a autora, à qual se encontra ligado por uma relação obrigacional que a tem como credora desses cuidados. Havendo sido celebrado um "contrato total", é o Hospital que responde por todos os danos verificados. De acordo com o art. 800.º, o Hospital responde pelos atos dos seus auxiliares, que nenhuma relação contratual mantêm diretamente com o paciente. De notar que a responsabilidade do Hospital decorre também, independentemente do contrato, da lesão infringida à integridade física da autora, que é fundamento de responsabilidade aquiliana.

XI - Mas, além ou independentemente da responsabilidade do Hospital por atos dos seus auxiliares, existe também uma responsabilidade própria, pessoal, dos médicos, auxiliares de cumprimento das obrigações do Hospital para com a autora. Pode também dizer-se que os contratos de tais profissionais de saúde são, nesse sentido, contratos com eficácia de proteção para terceiros. De resto, a lesão do direito à integridade física gera também responsabilidade delitual pessoal do médico perante o paciente ao abrigo do art. 483.º, n.º 1, do CC.

XII - Pelos danos verificados respondem, solidariamente, o Hospital e os réus médicos (art. 497.º, n.º 1, do CC). Os danos pelos quais respondem são os que se ligam causalmente aos ilícitos praticados. Estando em causa deveres destinados à preservação da vida, da saúde e da integridade física, bens fundamentais, justifica-se considerar - pela prevenção da lesão de bens jurídicos fundamentais – a versão negativa, mais rigorosa, da doutrina da causalidade adequada. Isto é: são indemnizáveis todos os danos sobrevindos ao ilícito praticado, devendo excluir-se apenas os decorrentes de factos ou causas anormais positivamente demonstradas.

XIII - Os arts. 497.º, n.º 1, e 512.º, n.º 1, do CC, não estabelecem como requisito da solidariedade, a identidade de causa ou de fonte da obrigação – podendo as obrigações dos diferentes responsáveis ter fundamentos diferentes –, nem que as obrigações provenham do mesmo facto jurídico.

XIV - Nada impede que, à luz do art. 494.º do CC, havendo vários responsáveis pelos mesmos danos, mesmo em regime de solidariedade, se proceda à diminuição do montante indemnizatório relativamente apenas a alguns deles.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 148/14.4TVLSB.L1.S1
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,

I – Relatório
1. AA e BB intentaram a presente ação declarativa contra CC e DD, ambos com domicílio profissional no Hospital ... (doravante Hospital ...), ..., e o SBSI - Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas (doravante SBSI), com sede em Lisboa, pedindo que os Réus sejam declarados solidariamente responsáveis pela incompletude da informação e esclarecimento prestados aos Autores sobre os efeitos da primeira cirurgia a que se submeteu, pelos danos sofridos pelos Autores desde a primeira intervenção até ao presente e, ainda, por todos os prejuízos que os Autores venham a sofrer, incluindo os danos patrimoniais, a incapacidade permanente e, também, os danos não patrimoniais; por último, que o último Réu – SBSI – seja condenado à prestação de assistência médica permanente e vitalícia à Autora - AA.
2. Na última sessão da audiência final, os Autores concretizaram o pedido nos seguintes termos:
- € 350.000,00: a título de compensação pelos danos não patrimoniais e incapacidade;
- € 209.792,34: a título de indemnização pelos danos patrimoniais.
3. Foi admitida a intervenção acessória provocada de ... - Companhia de Seguros, S.A., com sede em Lisboa, e de ...- Companhia de Seguros, S.A., com sede no Porto.
4. Pelo Tribunal de 1.ª Instância foi proferida a seguinte decisão:
“Por todo o exposto, julgo a presente ação improcedente e, consequentemente, absolvo os RR. do pedido.
Custas pelos AA., sem prejuízo do apoio judiciário concedido à A. AA.
(…).”
5. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação.
6. Segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de junho de 2019, retificado em conferência, pelo mesmo Tribunal, por acórdão de 19 de novembro de 2019:
“Pelo exposto e, de harmonia com as disposições legais citadas, julgando parcialmente procedente a apelação, decide-se condenar solidariamente os RR. a pagar aos AA. as seguintes quantias:
A título de danos patrimoniais a quantia de € 209.792,34, sendo €195.821,52, para o A., destinado ao pagamento ao R. Hospital e o remanescente para a A., até perfazer € 209.792,34, correspondente ao limite do valor a este título pedido.
Mais vai o R. SBSI condenado a prestar assistência médica permanente e vitalícia à A. AA, desde que por manifestações decorrentes do complexo das intervenções a que os autos aludem.
A título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 300.000, sendo €275.000, para a A. e €25.000 para o A..
Custas por AA. e RR., na proporção do decaimento”.

7. Em conferência, por acórdão de 19 de novembro de 2019 – mencionado supra -, o Tribunal da Relação de Lisboa apreciou as nulidades alegadas pelos Réus - tendo concluído pela sua não verificação - e o incidente suscitado – mediante o qual os Autores requereram “seja proferido despacho de especificação da decisão quanto às indemnizações por danos patrimoniais fixadas a favor do A. BB, no valor de 10.000,00 € pelo prejuízo na sua carreira profissional, e no valor de 1.000,00€ por gastos em gasolina, fixadas a fls. 55 a 56 do Acórdão proferido.
8. Irresignados, os Réus SBSI, DD e CC, interpuseram recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:
“1. O Acórdão da Relação sofre de vícios que levam a que a sua revista possa ser fundamentada quer por violação de lei substantiva, quer por errada aplicação da lei do processo, quer ainda por se verificarem nulidades constantes do elenco da aplicação dos arts. 615º e 666º do CPC.
2. Ao alterar a matéria do nº 8 dos factos provados a Relação desconsiderou a figura da presunção judicial (art. 349º e segs. do Código Civil), existindo assim erro de direito que afecta tal decisão.
3. Na fundamentação da sentença da 1ª Instância, a M. Juiz formou a sua convicção com base nas declarações do R. DD, atendendo à própria posição dos AA. na p.i. em que invocam que o mesmo explicou as várias técnicas existentes e aconselhou a técnica do ..., sendo plausível que tenha mencionado também determinados riscos para a operação, o que aliás decorre expressamente das próprias declarações do R.
4. Tal juízo de probabilidade assenta num encadeamento de factos absolutamente lógicos, sendo que a Relação erra ao considerar que a 1ª Instância partiu de facto desconhecido pois, ao invés, partiu da prova produzida para firmar a opinião do julgador.
5. O raciocínio da Relação ao alterar o facto viola directamente os princípios das presunções judiciais, isto é, as regras da experiência, os princípios da lógica e os próprios dados da intuição humana.
6. Ao prestar-se um depoimento em 2018 em relação a uma conversa havida em 2008 é perfeitamente plausível, de acordo com as regras da experiência, que não haja memória dos detalhes da conversa, mas apenas das linhas gerais da mesma, sendo absolutamente fora do normal, para um qualquer profissional que entretanto praticou centenas ou milhares de actos idênticos, que tenha uma memória precisa de um facto inserido na corrente normal da sua vida profissional.
7. A expressão do voto de vencido no Acórdão da Relação constitui a via correcta para a sustentação da prova, quer assentando nas declarações de DD, que na utilização adequada e pertinente da figura da presunção judicial tal como foi feita na sentença da 1ª Instância.
8. Assim, por erro de Direito, deve ser desconsiderada a alteração feita pela Relação em relação ao facto 8 da matéria de facto provada, e igualmente o aditamento feito ao nº 11 do elenco dos factos não provados.
9. Ao decorrerem 10 anos não é plausível que um depoimento mencione as informações específicas que levaram a um consentimento informado, antes se compaginando as regras da experiência e da intuição com um testemunho credível como referem as linhas gerais de uma conversa havida muitos anos atrás.
10. O douto Acórdão da Relação pede e exige uma prova realisticamente impossível – a de exigir que, no caso concreto, um médico descreva o conteúdo específico de uma conversa havida 10 anos antes num quadro pré-operatório, sendo que o depoimento prestado é, por si só, claro e detalhado quanto ao teor de uma conversa que o médico tinha habitualmente em situações idênticas.
11. Se é certo que a jurisprudência vai no sentido de que cabe ao médico o ónus probatório de que prestou informações ao paciente, tal dever de informação abrange em sede de prova o diagnóstico e as consequências do tratamento referindo as vantagens previsíveis do tratamento e os seus riscos, não se exigindo uma referência à situação médica em detalhe – neste sentido o Ac. do STJ de 9.10.2014 Rel. Cons. João Bernardo.
12. Face ao erro de Direito e mantendo-se os factos provados na 1ª Instância, deve ser mantida a absolvição dos RR., uma vez que ocorreu consentimento informado validamente prestado pela A.
13. No caso concreto estamos perante uma obrigação de meios e não perante uma obrigação de resultado.
14. A falta de consentimento informado não constitui erro médico e se, por mera hipótese e sem conceder, se considerar que não foi validamente prestado o consentimento da A., há que considerar que não houve cumprimento defeituoso das obrigações assumidas pelo R. DD.
15. É o que decorre claramente das perícias efectuadas, as quais não foram questionadas ou postas em crise.
16. O que ocorreu foram complicações pós-cirúrgicas que não se relacionam com qualquer execução defeituosa por parte do R. DD.
17. Ao entender-se que houve deficiente informação médica abriu-se a porta a um aproveitamento ínvio, em que se constata um dano por ocasião da prestação debitória de um médico, mas em que não existe um comportamento desvalioso por parte daquele profissional.
18. Assim, e mesmo que se seguisse a tese probatória da Relação, não deveria ter sido aplicada a figura da falta de consentimento, mas sim a figura do consentimento hipotético.
19. Na verdade, a. escolheu o estabelecimento de prestação de cuidados de saúde e escolheu o médico, num percurso de saúde já anteriormente seguido noutra especialidade (endocrinologia) que apontou para cirurgia, pelo que há uma exigência de uma “informação menos informada, predispondo-se a aceitar as indicações médicas que receba nos mesmos termos e com o mesmo cuidado de confiança com que firmou a sua escolha” – neste sentido o Ac. do STJ de 18.03.2010 (Cons. Pires da Rosa).
20. E caso se considere que não houve cumprimento do dever de informação por parte do médico, o consentimento hipotético da A. deve ser acolhido in casu como a legítima defesa do médico perante a acção movida pela mesma, excluindo-se a ilicitude da sua conduta, com as legais consequências em sede de responsabilidade civil.
21. No caso concreto estão reunidos todos os requisitos exigidos para o consentimento hipotético, ou seja, foi fornecido ao paciente um mínimo de informação, existe a fundada presunção de que o paciente não teria recusado a operação se tivesse sido devidamente informado, a intervenção era medicamente indicada, conduzia a uma melhoria da saúde da paciente, visava afastar um perigo grave e a recusa da paciente não era objectivamente irrazoável no caso concreto da A. – neste sentido o Ac. do STJ de 02.06.2015 – Rel. Cons. Maria Clara Sottomayor.
22. O Tribunal da Relação aditou ao elenco dos factos provados a seguinte matéria “aquando da alta em 14 de Setembro de 2009, a. AA tinha febre”, facto que é obscuro e ambíguo quando entendido como único fundamento para a condenação da R. CC em sede de responsabilidade civil.
23. Perante tal facto, há que legitimamente indagar: Qual febre? Que febre? Com que evolução? Em que medida há responsabilidade se tal febre existiu? Qual a relação de causalidade entre o facto febre e todos os factos posteriores até à alta definitiva da A?
24. O douto Acórdão não segue qualquer linha de raciocínio entre o facto e os danos, limitando-se a generalidades.
25. Ao fixar um facto ambíguo e obscuro, sendo ininteligíveis os factos que o fundamentam, do qual se retiram conclusões em termos decisórios, o Acórdão está ferido de nulidade – alínea c) nº 1 do art. 615º do CPC.
26. Ao sustentar-se no art. 3º nº 3 da Lei 12/2005, com uma redacção que lhe foi dada pelo art. 45º da lei 26/2016, a qual entrou em vigor em 01.10.2016 – data posterior aos factos e à própria entrada da acção em juízo – a decisão incorre em manifesto erro de Direito.
27. À data dos factos o nº 3 do art. 3º da lei 12/2005 postulava que o acesso à informação de saúde era feito através de médico de habilitação própria, escolhido pelo titular da informação.
28. Tal erro de Direito inquina, irreversivelmente, todos os raciocínios do douto Acórdão.
29. Até à entrada em vigor da Lei 26/2016, vigorou em Portugal um sistema dualista de acesso aos dados de saúde, sendo que quando o processo clínico está depositado em instituição de saúde privada, como é o caso do Hospital do R. Sindicato, o acesso ao processo era feito através de médico indicado pelo titular, ao abrigo do nº 5 do art. 11º da Lei 67/98, do nº 3 do art. 3º da Lei 12/2005 e ainda do art. 100º nº 4 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
30. Inexiste assim qualquer fundamento para inversão no ónus da prova, baseado numa alegada recusa sem fundamento de entrega do processo clínico, que não existiu, por falta de base legal aplicável, tendo sido feita errada aplicação do disposto no nº 2 do art. 342º do Código Civil.
31. A informação de saúde da A. foi solicitada não pela mesma e para ser entregue a um médico, por si indicado, mas sim por terceiros, sem poderes para tal e sem que o pedido fosse para o processo ser entregue a um médico, mas sim à mandatária.
32. A aceder a tal solicitação, seriam violadas as normas legais supra.
33. Foi assim legítima a não entrega do processo clínico por parte do R. Sindicato.
34. Mas, ao mesmo tempo, não ocorreu qualquer violação do dever de cooperação por parte do R. Sindicato, uma vez que entregou nos autos todo o processo clínico, o qual foi a base da realização das perícias efectuadas.
35. Ainda por esta via, se deve considerar afastada a inversão do ónus da prova, sendo certo que os registos clínicos estavam depositados no R. Sindicato e não na posse dos restantes RR., alheios aos mesmos.
36. E não havendo inversão do ónus da prova, cabia à A. provar que tinha febre no momento da alta, mas tal prova não fez, sendo que tal carga probatória não recai sobre os RR.
37. Por outra via, o douto Acórdão fez errada aplicação da presunção judicial, violando o disposto nos arts. 349 e segs. do Código Civil.
38. Com efeito, e sempre na base da presunção judicial, o douto Acórdão considera que “é de crer que, na realidade, a A. tinha efectivamente febre, visto que em 72 horas voltou ao Hospital, foi internada e teve os internamentos e intervenções descritos abundantemente na matéria de facto”.
39.Sendo as presunções judiciais situações em que, numa conexão entre factos provados e não provados, se justifica a existência dos último, à luz da experiência comum, da lógica corrente e da intuição humana, perante a prova dos primeiros, num quadro de alta probabilidade, inserir o facto não provado “febre no dia da alta” na sua ligação aos factos provados – na fórmula da decisão”internamentos e intervenções descritas abundantemente na matéria de facto” - ultrapassa visivelmente a aplicabilidade de tal figura.
40. A questão da febre ou não febre apenas poderia relevar para os factos constantes dos pontos 16 a 20 da matéria de facto provada, ou seja, os que se seguiram à alta, que motivaram reinternamento, operação e nova alta em 10.10.2008, sendo que os factos posteriores não têm relação de causalidade com estes.
41. O douto Acórdão teria de ser rigoroso e preciso na aplicação da figura da presunção judicial, estabelecendo factos objectivos e determinados para fazer a ligação entre factos provados e o facto não provado, algo que não ocorreu, pois limita-se a ligar a febre a todos e a qualquer um dos internamentos posteriores, como se a febre desse dia fosse a causa de tudo o que aconteceu depois, num conjunto de factos clínicos muito diversos e sem ligação entre si, com intervalos no tempo.
42. No caso concreto, a utilização da figura da presunção judicial para a fixação de um novo facto provado, pode ser sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, pois a sua utilização no caso concreto, ofende norma legal (art. 349 do C. Civil) e padece de evidente ilogicidade.
43. Não é possível inferir por lógica, nem por regras de experiência, nem por intuição humana, que a pessoa que volta ao hospital 72 horas depois da alta já tinha febre no momento da alta.
44. Assim, por violação das regras que decorrem do art. 349º do Código Civil, não poderá ser considerado o aditamento ao facto 61 do elenco dos factos provados.
45. Mas, mesmo que tal não se entenda, tal facto não poderá ser dado por provado, uma vez que o ónus da prova do mesmo era da A., não podendo o Tribunal suprir tal ausência de prova.
46. E, por outra via, é errado responsabilizar a R. CC por todos os factos ocorridos posteriormente à alta, sem os especificar e sendo evidente a falta de ligação deles, quer em relação à febre, quer em relação entre si, sendo evidente a inexistência de nexo de causalidade entre a alta com febre e os factos que se seguiram, muitos deles intervalados entre si.
47. Na falta do nexo de causalidade, não podia a R. CC ter sido condenada nos termos em que o foi e o mesmo se diga, face aos factos supra, em relação ao R. DD, devendo ser revogado o Acórdão proferido e decidido tal como já foi decidido na 1ª Instância.
48. Por outra via, e sempre sem conceder, ocorre igualmente nulidade do Acórdão ao escrever-se na fundamentação que a responsabilidade da R. CC só pode ser equacionável a partir do momento em que a mesma intervém e, logicamente, não poder ser responsabilizada por qualquer valor gasto pelos AA. em data anterior a ....2008, que apenas poderia ser imputável ao 1º e 3º RR., sendo que no segmento decisório se escreveu algo diverso.
49. Com efeito, a decisão condena solidariamente todos os RR., sem destrinçar seja o que for em termos da responsabilidade da R. CC, sendo assim evidente a contradição entre os fundamentos e a decisão.
50. Por tal, também assim o Acórdão está ferido de nulidade, o que se invoca nos termos do art. 615/1 c) do CPC, com todos os legais efeitos.
51. Ao escrever-se na douta decisão que “a matéria de facto provada não espelha o concreto valor mensal que o A. deixou de auferir pela perda do cargo de gerente” e ao decidir-se que “uma vez que nada se provou quanto à evolução profissional do A. após a perturbação decorrente do que consta da matéria de facto descrita, e tendo ainda em conta que tal situação perdurou por cerca de 4 anos, temos por equitativo fixar em 10.000,00 euros tal valor. O mesmo se diga quanto a despesas com gasolina e desgaste de automóvel, tendo-se por adequado em função do período temporal e a frequência que resulta dos factos, fixar tal quantia em 1.000 euros”, ocorre nova nulidade da decisão.
52. Com efeito, se atentarmos na p.i. (arts. 114 a 117), há que assinalar que o A. nenhum pedido formula, a título de ressarcimento de danos patrimoniais, sendo que no art. 118 da p.i. o que o A. peticona é o valor de 50.000,00 euros, a título de danos morais.
53. Não tendo sido feita qualquer prova pelo A. em relação aos danos patrimoniais que haja sofrido, o Acórdão está duplamente ferido de nulidade, quer por pronunciar-se sobre questões de que não podia tomar conhecimento, quer por condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, nulidade que se vem arguir ao abrigo do art. 615/1 d) e) do CPC, com todas as legais consequências.
54. O valor atribuído à A. a título de indemnização por dano biológico é desajustado tendo em conta, por um lado, a idade da A. à data dos factos (47 anos), a esperança de vida média (32 anos) e a fixação do dano biológico em 15 pontos percentuais e, por outro lado, a jurisprudência mais recente sobre tal matéria.
55. Sem conceder, a condenação do valor da indemnização aos AA. a título de danos patrimoniais nunca deveria ser fixada em valor superior ao padrão da jurisprudência actual.
56. No que concerne aos danos não patrimoniais, não tendo sido provada a falta de diligência dos médicos, a falta de utilização dos meios adequados com as legis artis, o defeito no cumprimento ou que os médicos não praticaram todos os actos considerados necessários para alcançar a finalidade desejada, não há lugar a erro médico e, por consequência, inexiste incumprimento ou cumprimento defeituoso.
57. Na falta de prova de tais factos, não há lugar, no domínio da responsabilidade contratual à presunção de culpa dos médicos.
58. Pelo que, tal como em relação aos danos patrimoniais, não deveria ter sido fixada qualquer indemnização para ressarcimento de danos não patrimoniais a favor dos AA.
59. No entanto, e caso tal não se entenda, o valor fixado pela Relação é absolutamente desconforme à jurisprudência dos nossos Tribunais e, mais objectivamente, do Supremo Tribunal de Justiça.
60. Assim, e sem conceder, a condenação do valor da indemnização aos AA. a título de danos não patrimoniais nunca deveria ser fixada em valor superior ao padrão da jurisprudência actual.
61. Na hipótese de se entender que houve falta de prestação de informação para consentimento por parte do R. DD, não pode responsabilizar-se o R. Sindicato pela conduta do médico, uma vez que este não é auxiliar do cumprimento das obrigações do Sindicato (nº 1 do art. 800 do código Civil).
62. E inexistindo erro médico praticado pelos RR. DD e CC, não podem esses RR. e o R. Sindicato ser responsabilizado seja a que título for.
63. A douta sentença é nula por traduzir plúrimas situações enquadráveis nos arts. 615º e 666º do CPC, tendo feito errada aplicação e interpretação dos arts. 342º, 349º, 483º, 487º, 496º, 499º, 562º, 563º, 564º, 799º e 800º, todos do Código Civil, bem como do art. 3º nº 3 da Lei 12/2005, do art. 11 nº 5 da Lei 67/98 e do nº 4 do art. 100º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
Termos em que
Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o Acórdão da Relação, sendo os RR. absolvidos de todos assim se fazendo os pedidos formulados pelos AA., JUSTIÇA!”
9. ...- Companhia de Seguros, S.A., e ... - Companhia de Seguros, S.A., nos termos do art. 634.º, n.os 1, 2, al. a) 3, e 4 do CPC, aderiram, na totalidade e sem reservas, ao recurso de revista apresentado por SBSI, DD e CC.
10. Os Autores - AA e BB- apresentaram contra-alegações, com as seguintes Conclusões:
“1. Apesar de invocarem a violação da lei substantiva como fundamento do Recurso de Revista, em todos os pontos das suas conclusões, os Recorrentes põem em crise a prova produzida alegando que os factos foram erradamente dados como provados e como não provados, em virtude da aplicação da norma errada e da não aplicação da norma correta, tudo sem evidenciar qual o erro jurídico.
2. Os Recorrentes não aceitam a decisão sobre a matéria facto e pedem a sua alteração, por a mesma ter sido decidida com base em normas que no seu entender, não deviam ter sido aplicadas. Ou seja, os Recorrentes não põem em crise as normas do direito substantivo aplicados à matéria de facto julgada em duas instâncias e dada como assente,
4. os Recorrentes põem em crise a apreciação das provas, pedindo a alteração dos factos provados e não provados, mas sem invocar ofensa de disposição legal que exige certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
5. Salvo melhor entendimento, o STJ não pode apreciar a forma como o Tribunal da Relação de Lisboa analisou e valorou os elementos de prova dos autos, conforme impõe a nº 4 do artigo 662º do C.P.C.
6. Os Recorrentes entendem que a matéria do nº 8 dos factos provados e nº 11 dos factos não provados não devia ter sido alterada pela Relação, porque a prova sobre tal matéria deve ser feita com juízo de probabilidade e não o tendo sido, há um erro de direito.
7. E os Recorridos entendem que a prova produzida (as declarações do R. DD e do A. BB) impunham decisão diversa, por não reunir os requisitos legais da presunção judicial (artigo 349º C.C), tal como melhor decidiu o Tribunal da Relação.
8. A não aplicação da presunção judicial, não implica qualquer violação dos princípios das presunções judiciais nem implica a violação dos artigos 349º e dos seguintes do C.C..
9. O julgador é livre de tirar ou não, conclusões presuntivas, para concluir que certos factos provados denunciam ou não, outros factos não provados.
10.O próprio Recorrente DD assume nas suas alegações e conclusões que não se lembra em 2018, da conversa que teve em 2008 e que é normal que não se lembre dos detalhes da conversa, logo,
11.Se o próprio Recorrente diz que não se lembra, não é aceitável que o Tribunal de 1ª Instância considere provados factos, que o Recorrente DD afirma não se lembrar.
12.Das suas declarações transcritas a fls. 26 do Acórdão Recorrido, o próprio Recorrente médico refere aquilo que diz em geral aos doentes e não aquilo que disse especificamente aos Recorridos.
13.O médico refere:
• “explico a técnica”;
• “explico quais os efeitos”;
• “explico, depois, como é que se processa a cirurgia”;
• “explico as complicações”.
14.Ora daqui, resulta o que refere em geral aos doentes, mas não resulta que o tenha referido concretamente aos A.A., logo, não é facto provado relativamente aos A.A..
15.O próprio médico não referiu nem alegou, qualquer probabilidade ou plausibilidade de ter referido os riscos gerais das cirurgias e os riscos específicos da cirurgia ... e com a agravante de ser em paciente obesa.
16.Da conversa especifica com os Recorridos, o Recorrente DD apenas disse:
• “foi tudo muito rápido”;
• “foi uma consulta”;
• “exames médicos”;
• “anestesia”;
• “operação”.
Reconhecendo que não houve qualquer esclarecimento dos riscos. E destes factos declarados pelo R. DD, não têm lógica, nem é coerente concluir que esclareceu os riscos gerais e específicos da cirurgia ... em obeso.
17.Assim, bem decidiu o Tribunal da Relação abstendo-se de considerar provado por presunção um facto, que o próprio Recorrido se absteve de presumir.
18.O consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre todas as possíveis consequências da cirurgia.
19.Para um cabal consentimento informado, o conteúdo da informação tem que conter, diagnóstico, incertezas e fundamentos, tratamento proposto e seus custos e dificuldades, efeitos secundários e riscos gerais e específicos e quanto maiores forem os riscos do tratamento ou da intervenção cirúrgica, maior é a necessidade de mais informação.
20.Para prestar a informação deve-se usar o critério do “paciente concreto”, ou seja, dar as informações que aquele concreto paciente precisa de saber ou desejaria conhecer para tomar a sua decisão, com a sua personalidade e capacidade cognitiva.
21.O ónus da prova de esclarecimento impende sobre o médico, pois teria que ser o Recorrente DD a provar que esclareceu todos os riscos gerais e específicos da cirurgia ... em paciente obesa.
22.Por muita pressa que os Recorridos tivessem devido à ansiedade inerente à operação, cabia ao médico Recorrente orientar e introduzir a calma necessária e adequada, porque o conhecimento está do lado do médico.
23.As presunções judiciais, simples ou de experiência (artigos 349º e 351º do C.C.), partem de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido e no caso vertente, o médico Recorrente apenas declarou aquilo que explica aos doentes em geral e não aquilo que explicou aos Recorridos e disse que explica as complicações, mas não disse quais.
24.Daqui não resulta qualquer facto conhecido referente ao esclarecimento aos A.A., que possa levar à probabilidade da existência de outro facto desconhecido.
25.Do exame pericial do I.M.L., existente aos A.A., constam todos os riscos gerais específicos da cirurgia ... (fls 474 a 479) do qual consta, nomeadamente que se trata de um pós operatório “habitualmente muito fácil e benigno. Contudo várias complicações infeciosas surgem em todas as estatísticas sobre tratamento cirúrgico do obeso; assumindo aliás, nestes doentes, particular frequência e gravidade.
26.As Complicações pós-operatórias das cirurgias bariáticas, inlcuem:
• Riscos gerais à cirurgia:
- Complicações respiratórias.
- Complicações cardiovasculares.
- Trombose venosa e embolia pulmonar (coágulo de sangue no pulmão).
- Hemorragia.
- Problemas urinários.
- Reações alérgicas, nomeadamente a medicamentos.
- Complicações da ferida operatória.
- Morte. Há sempre um risco de morte associado a qualquer cirurgia, influenciado pelas condições associadas ao doente.
• Riscos específicos: - Colecção intra-abdominal: estabelece-se quando há acumulação de líquido no interior do abdómen que pode tornar-se infectado (abcesso) e necessitar de drenagem por via percutânea ou cirúrgica. - Fistula (vazamento do conteúdo do estômago para o interior da cavidade abdominal).- Infeção.- Hemorragia. - Distúrbios nutricionais e metabólicos. - Alterações psicológicas.
27.Cabia ao médico provar que explicara aos A.A. todos esses riscos gerais e os riscos específicos da cirurgia ... acrescidos por se tratar de uma paciente obesa, o que não aconteceu.
28. O Recorrente DD não provou que explicou ou esclareceu aos Recorridos sobre os riscos gerais e específicos da cirurgia ... e inerentes a paciente obesa e depressiva.
29.Assim, cabe ao Tribunal da Relação decidir livremente, se das declarações do Recorrido DD e do A. BB, resulta dever ser dado como provado apenas aquilo que referiu lembrar-se dos A.A. ou se , com base nisso, devem presumir a conversa ocorrida com os A.A., que o próprio R. DD declara e assume não se lembrar. Inexiste ligação lógica entre as conversas com os doentes em geral e a conversa com os A.A. em específico.
30.O Tribunal da Relação é livre de formular convicção diversa do Tribunal da 1ª Instância e considerou não ser possível afastar a incerteza e situação de dúvida se foram ou não explicados os riscos gerais e específicos da operação ... e é livre de considerar não estarem reunidos os elementos necessários para aplicar os princípios da presunção judicial.
31.Nos termos dos artigos 4º e 5º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina ratificada em Portugal em 2001, qualquer intervenção na área da saúde, deve ser efetuada na observância das normas e obrigações profissionais.
32.Mais referindo a regra geral do Consentimento – artigo 5º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina: “Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido”.
33.Esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objetivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos.
34.A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia refere no seu artigo 3º -“Direito à Integridade do Ser Humano”: 1. Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental. 2. No domínio da medicina e da biologia, devem ser respeitados, designadamente: - O consentimento livre e esclarecido da pessoa, nos termos da Lei...”.
35.Assim, o Recorrido estava obrigado a esclarecer todos os riscos gerais e específicos e a obter o consentimento esclarecido.
36.Na falta de consentimento esclarecido e informado existe ilicitude na atuação médica e existe violação das supra referidas normas a que o R. DD está obrigado.
37.No direito interno português, o artigo 25º da Constituição da República consagra o direito à integridade pessoal, e o artigo 26º, nº 1 estabelece o Direito ao Livre desenvolvimento da personalidade, sendo o Direito à integridade moral e física e o livre desenvolvimento da personalidade expressões concretizadas desse axioma fundamental que é a Dignidade Humana (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa).
38.No Direito Civil, está consagrado no artigo 70º do C.C., o direito geral de personalidade.
39.O dever de esclarecer também está previsto na Lei de Bases da Saúde, Lei nº 48/90 de 24/8, Base XIV, nº 1, alínea e) e no Código Deontológico da Ordem dos Médicos – artigo 38º.
40.As complicações pós cirurgias ocorridas fazem parte os riscos gerais e específicos que deviam ter sido esclarecidos e explicados aos Recorridos, pois se estes soubessem que podiam ocorrer, não consentiriam a intervenção cirúrgica e não quereriam efetuar a operação ... por no seu sistema de valores ser absurdo pôr a vida em risco de forma grave e duradora.
41.O ónus da prova do consentimento como causa da exclusão da ilicitude, cabe ao médico (artigo 342º, nº 2 do C.C.).
42.O consentimento hipotético não deverá ser admitido quando estão em causa violações graves dos deveres de conduta do médico, como é o caso por não haver consentimento e por terem sido omitidas informações fundamentais para que os A.A. pudessem avaliar de acordo com o seu sistema de valores, as vantagens e desvantagens, e no final decidir se consentiam ou não na cirurgia proposta pelo Recorrente DD.
43.Os A.A tinham que saber que havia riscos acrescidos por a A. ser obesa e sofrer depressão;
44.Se os A.A. soubessem que a A. podia ficar ainda mais depressiva e podia ter que passar por todas as situações de intervenção cirúrgicas de alto risco e vários internamentos prolongados e ainda ter que pagar todos esses custos, jamais os A.A. teriam consentido e seguramente teriam recusado a operação.
45.A Recorrida encontrava-se fazendo a sua vida normal, sem qualquer tratamento ou risco de vida ou doença grave, sendo obviamente razoável que recusasse a operação ....
46.Assim, o consentimento hipotético não se aplica ao caso vertente porque os Recorridos não estavam na posse de todas as informações essenciais para determinar as suas vontades designadamente, não foram esclarecidos dos riscos gerais e específicos desta operação.
47.A omissão de informações fundamentais para que o doente se autodetermine, constitui violação grave dos deveres do médico e em caso de violação grave, não pode o médico ficar defendido com o consentimento hipotético.
48.No caso vertente existe um contrato total e nos termos do artigo 800º do C.C., o Hospital Privado responde pelos atos dos seus trabalhadores sejam eles médicos, enfermeiros ou administrativos, por estes não terem qualquer relação contratual com o paciente, sendo o Sindicato que responde por todos os danos ocorridos, sejam eles de caracter médico, assistencial ou de equipamentos.
49.Sobre o Sindicato impendia o ónus da prova de que se tratava de um contrato dividido e o Sindicato não alegou nem provou tratar-se de um contrato dividido e não total.
50.O facto 61º aditado aos factos provados consubstancia o facto concreto, claro e específico de a A. AA ter febre, aquando da alta em 14 de Setembro de 2009.
51.Ter febre é clinicamente assente e aceite que consiste no facto de ter temperatura corporal superior a 37º Celsius.
52.Qual febre e com que evolução, deveriam os Recorrentes CC e Sindicato ter provado e não o tendo feito, não afastaram a ilicitude do erro médico, nem a culpa solidária em tal erro.
53.A febre significa que à data da alta já existia infeção e por ter sido dada alta, não foi acompanhada a evolução da febre, não foi analisada a secreção dos líquidos que saiam do dreno, e não foram feitos os antibióticos que desde logo deviam ter sido feitos para debelar a situação.
54.A alta com febre permitiu que a infeção agravasse e proliferasse ao ponto de, 72 horas depois ter sido necessário o internamento para fazer drenagem da coleção de líquido infecioso (abcesso subfrénico) através de abertura do abdómen (laparotomia), com todas as posteriores consequências constantes da matéria de facto provada.
55.Tal facto constante no ponto 61 dos factos provados não tem qualquer ambiguidade ou obscuridade, pois é muito concreto: ter febre é ter uma temperatura corporal que indica a existência de uma infeção.
56.Tendo a Recorrente CC dado alta, impediu que infeção fosse debelada logo no início, o que agravou e causou os factos provados posteriores à alta em 14/9/209.
57. À luz da invocada redação do nº 3 do artigo 3º da Lei 12/2005, a informação clinica foi devidamente solicitada pelos A.A. diretamente e através de Advogada, com acesso através da Médica Dra. EE, para que fosse entregue a esta, tudo conforme documentos nº 20, nº 21, nº 22 e nº 23 da P.I., não tendo os Recorridos dado qualquer resposta a tais pedidos, nem informando das exigências só agora clamadas, demonstrando desrespeito pelo exercício do direito de acesso ao processo clinico.
58.Acresce que “a Lei nº 46/2007 de 24 de Agosto (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e sua reutilização – LADA), veio consagrar a seguinte norma: “A comunicação de dados de saúde é feita por intermédio de médico se o requerente o solicitar (artigo nº 7º). Ora a interpretação mais correta, quer pelo elemento gramatical, quer pelo elemento sistemático (a regra geral no âmbito desta Lei é o acesso direto, inclusive a consulta e reprodução) é a de considerar que o médico apenas intermedeia o acesso aos dados de saúde se o requerente o desejar”. – Artigo nº 5º (Direito de Acesso): “Todos, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, têm direito de acesso aos documentos administrativos, o qual compreende os direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua existência e conteúdo”. In Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, de André Gonçalo Dias Pereira – 1ª Edição, Fevereiro 2015, pág. 608).
59.Inexiste assim qualquer lapso do Acórdão Recorrido e de qualquer forma a inversão do ónus da prova, sempre se verifica pela não junção de relatório ou informação com a temperatura corporal da A. AA à data da alta, no processo clínico entregue nos autos.
60.E caso se entendesse que todo o processo clínico foi junto aos autos, sempre se teria que concluir que os Recorridos não fizeram levantamento nem relatório da temperatura corporal na data da alta da A. AA, o que conduz ao mesmo erro e resultado por violação da legis antis, presunção de culpa e responsabilidade pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, por parte dos Recorrentes CC e Sindicato. Pois todos os médicos afirmaram que tem que ser tirada a febre no dia da lata e se tiver febre não pode ser dada alta.
61.Nos termos dos artigos 674º e 682º do NCPC, não cabe no âmbito dos poderes de cognição do STJ, o controlo da reapreciação da prova realizada pelo Tribunal da Relação.
62.Existe assim, inversão do ónus da prova por aplicação do artigo 342º, nº 2 do C.C.
63.Com o devido respeito, o douto Acórdão Recorrido, faz conexão entre a alta com febre, ou seja, alta com infeção e a existência de abcesso subfrénico 72 horas depois, que obrigou a internamento e às intervenções constantes da matéria de facto provada, com o abcesso subfrénico surge a fistula que obriga a todas as intervenções posteriores com a sequência de internamentos e intervenções melhor descritas na matéria de facto provada.
65.Assim, há uma relação e conexão entre a alta com existência de infeção no organismo da A. AA (assinalada pela existência de febre à data da alta) e a formação de abcesso subfrénico (ponto 17 da matéria de facto provada) e o surgimento da fistula e de todas as complicações seguintes.
66.Existe assim um raciocínio obviamente lógico, inteligível e coerente entre a matéria de facto provada quanto aos internamentos e tratamentos sucessivos 72 horas após a alta, e a alta com infeção no corpo, assinalada com a febre, estando assim preenchidos os requisitos do artigo 439º do C.C..
67.Se 72 horas após a alta, a A. AA já tinha abcesso subfrénico (coleção de liquido) com um grau infecioso que exigiu a abertura do abdómen para aspiração e drenagem dos líquidos infeciosos, é de concluir que à data da alta, já o organismo da A. AA dava sinais de alerta, demonstrado que algo não estava bem, com a existência da febre, havendo assim uma relação direta entre os factos conhecidos e o facto desconhecido.
68.Os factos que se seguiram posteriormente à alta em 14/9/2009, relacionam-se todos com o abcesso subfrénico e com a fistula, conforme consta da matéria de facto provada, e tal abcesso e fistula relacionam-se com a infeção que se iniciou após a cirurgia ... e existia à data da alta logo, existe nexo de causalidade entre o erro médico alta com febre e os danos sofridos pelos A.A., devendo o Acórdão ser mantido.
69. O Acórdão em Recurso condenou todos os Recorridos, incluindo a R. CC, apenas e tão só pelos gastos dos A.A. após 14/9/2009, data da alta médica emitida pela R. CC.
70. Inexiste assim qualquer nulidade do Acórdão quanto à responsabilidade da R. CC.
71.O A. alegou danos patrimoniais e peticionou-os relativamente aos prejuízos na sua carreira profissional e às despesas com a gasolina e peticionou-os em requerimento para a Ata no início da primeira sessão da Audiência de Julgamento e por isso, foram os mesmos julgados e decididos no Acórdão, mas não referenciados no segmento decisório. Na presente data foi pedido esclarecimento nos termos do artigo 614º do C.C..
72.O valor atribuído a título de indemnização por dano biológico é apenas de 4.178,48€ que é muito inferior ao valor fixado na jurisprudência enunciada.
73.O valor de 195.821,52€ é o valor cobrado pelo R. Sindicato pelos serviços prestados aos A.A. após a alta de 14/9/2009.
74.A conduta ilícita dos Recorrentes gerou danos nos A.A., e não tendo os Recorrentes afastado a sua culpa, estão obrigados a indemnizar os prejuízos por danos patrimoniais e não patrimoniais.
75.O sofrimento com internamentos e intervenções arrastados ao longo de mais de 3 anos, internamentos longos de 1 ano e meio e vários episódios de vida e risco, nomeadamente com as Sepsis, não pode ser comparado com os outros casos, porque se trata de uma situação excecional que nem os médicos acreditavam na sobrevivência.
76.Assim, a indemnização tem que ser superior ao padrão da jurisprudência e por isso, o valor fixado é junto e adequado.
77.O R. médico DD é trabalhador do R. Sindicato e por isso ambos têm responsabilidade solidária.
78.Os Recorrentes não deduziram qualquer oposição, nem invocaram qualquer ilegalidade ou violação da Lei quanto à condenação do R. Sindicato a prestar assistência médica permanente e vitalícia à A. AA, desde que por manifestações decorrentes do complexo das intervenções a que os autos aludem, o que se aceita.
Termos em que deve o presente Recurso de Revista ser julgado improcedente, mantendo-se na integra o Acórdão Recorrido e assim se fazendo JUSTIÇA”.

11. Conforme referido supra, em conferência, por acórdão de 19 de novembro de 2019, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu:
“- perante o requerimento dos Autores - “seja proferido despacho de especificação da decisão quanto às indemnizações por danos patrimoniais fixadas a favor do A. BB, no valor de 10.000,00 € pelo prejuízo na sua carreira profissional, e no valor de 1.000,00€ por gastos em gasolina, fixadas a fls. 55 a 56 do Acórdão proferido” – parece “resultar implícito o rateio do valor da condenação – que não pode ultrapassar o peticionado entre os AA., mas resultando expresso o valor que coube a cada um mediante esse rateio. Por isso neste particular a decisão terá de ficar inalterada”;
- por seu turno, perante as nulidades do acórdão, invocadas pelos Réus, à luz do art. 615.º, n.º 1, als. c)-e), do CPC, pela sua inverificação. por obscuridade e ambiguidade da decisão em virtude de o facto dado como provado sob o n.º 61 - “Aquando da alta de 14 de setembro de 2009, a A. AA tinha febre” - obscuro e ambíguo, que “esta matéria foi devidamente explanada na fundamentação a fls. 31 a 33 do Acórdão. A reserva dos RR., a nosso ver, inscreve-se numa razão de mera discordância do juízo que suporta o facto 6”. Por isso, decidiu pela inverificação da nulidade alegada.
- quanto à nulidade do acórdão, invocada pelos Réus, ao abrigo do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, que “quanto à responsabilidade da R. CC pelos danos patrimoniais, a decisão não pode ser lida à margem dos seus fundamentos, os quais são claros quando delimitam a responsabilidade daquela mesma R., como é patente do texto acima transcrito pelos próprios recorrentes. Depois, quanto aos danos não patrimoniais, a questão da delimitação da R. CC já não se coloca, visto que os mesmos danos foram ponderados relativamente a um arco temporal que abrange a intervenção daquela R., não havendo, pois, que distinguir entre a sua responsabilidade e a dos demais RR.. O mesmo se diga quanto aos danos sofridos pelo A.”.
- No que respeita à nulidade invocada pelos Réus com base no art. 615.º, n.º 1, al. e), do CPC – “Ora, como se viu a matéria de facto provada não espelha o concreto valor mensal que o A. deixou de auferir pela perda do cargo de gerente (ver facto 58)”. (…) “Assim, e uma vez que nada se provou sobre a evolução profissional do A. após a perturbação decorrente do que consta da matéria de facto descrita, e tendo ainda em conta que tal situação perdurou por cerca de 4 anos, temos por equitativo fixar em €10.000,00 tal valor. O mesmo se diga quanto a despesas com gasolina e desgaste de automóvel, tendo-se por adequado - em função do período temporal e a frequência que resulta dos factos – fixar tal quantia em € 1.000,00” - que “a questão dos danos patrimoniais do A. foi submetida à apreciação do tribunal nos termos supra mencionados e a condenação mostra-se perfeitamente enquadrada pelos limites e objecto do peticionado, como pensamos ter ficado demonstrado”.

II – Questões a decidir
Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões:
a) Verificação ou não da nulidade do acórdão recorrido por ambiguidade e obscuridade que tornam a decisão ininteligível (art. 615.º, n.º 1, al. c), ex vi dos arts. 666.º, 679.º e 685.º do CPC) – alegam os Recorrentes que o Tribunal da Relação de Lisboa fundou a decisão de condenação da Ré CC apenas no facto de a Autora AA ter febre aquando da alta, a 14 de setembro de 2009, “não seguindo qualquer linha de raciocínio entre o facto e os danos, limitando-se a generalidades”;
b) Verificação ou não da nulidade do acórdão por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615.º, n.º 1, al. c), ex vi dos arts. 666.º, 679.º e 685.º do CPC) – segundo os Recorrentes, na fundamentação do acórdão afirma-se que a responsabilidade da Ré CC apenas se pode estabelecer a partir do momento da sua intervenção, a 14 de setembro de 2008, não podendo ser considerado qualquer quantia despendida pelos Autores em data anterior, mas, no dispositivo, todos os Réus foram condenados solidariamente no pagamento da mesma indemnização, sem qualquer distinção;
c) Verificação ou não da nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia e por condenar em quantidade superior ao pedido (art. 615.º, n.º 1, als d) e e), ex vi dos arts 666º, 679º e 685.º do CPC): por arbitrar, segundo os Recorrentes, uma indemnização por danos patrimoniais ao Autor BB, uma vez que este não formulou qualquer pedido de ressarcimento desses danos;
d) Violação – ou não –, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, das regras legais de inversão do ónus da prova no que respeita ao facto de a Autora AA ter febre no dia da alta hospitalar, baseada na alegada recusa injustificada de entrega do respetivo processo clínico, por ausência de fundamento legal, tendo sido aplicada incorretamente – ou não – a norma do art. 344.º, n.º 2, do CC. Segundo os Recorrentes, o acórdão recorrido baseou-se no art. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro, na redação que lhe foi dada pelo art. 45.º da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto, que entrou em vigor a 1 de outubro de 2016, ou seja, depois dos factos e da própria entrada da ação em juízo;
e) Poderes do Supremo Tribunal de Justiça para apreciar o uso, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de presunções judiciais para firmar o facto de a Autora AA apresentar febre ao tempo da alta hospitalar e quanto à infirmação, pelo mesmo Tribunal, da presunção judicial de que se serviu o Tribunal de 1.ª Instância no que respeita aos factos provados sob o n.º 8;
f) Responsabilidade civil médica:
(i) Ónus da prova do (in)cumprimento do dever de informação e de esclarecimento
(ii) Intensidade e extensão do dever de informação a que o Réu DD estava obrigado perante a Autora AA;
(iii) Verificação ou não de consentimento hipotético (comportamento lícito alternativo) da Autora AA;
(iv) Nexo causal entre o erro médico imputado à Ré CC(deu alta à Autora quando esta tinha febre) e os danos sofridos pela mesma e peticionados nesta ação;
(v) Quantum da indemnização atribuída à Autora AA a título de dano biológico, e a ambos os Autores - AA e BB- a título de compensação de danos patrimoniais e não patrimoniais.

III - Fundamentação
Os Réus – CC e FF, Hospital do SAMS e SBSI - interpõem recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de junho de 2019, subsequentemente retificado por acórdão de 19 de novembro de 2019, que julgou parcialmente procedente a apelação, condenando solidariamente os Réus a pagar aos Autores - AA e BB - as seguintes quantias:
a) a título de danos patrimoniais, a quantia de € 209 792,34: o montante de € 206.821,52 para o Autor BB, por equivaler ao preço por si pago ao Réu Hospital ... pelos serviços prestados (€ 195.821,52), ao prejuízo sofrido pela sua carreira profissional (€ 10.000,00) e aos gastos implicados pelo consumo de gasolina (€ 1.000,00), e o remanescente para a Autora AA, até perfazer o valor de € 209 792,34, correspondente ao limite do valor a este título pedido;
b) a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 300 000: o valor de € 275 000 para a Autora - AA - e o montante de € 25 000 para o Autor - BB.
O Tribunal da Relação de Lisboa condenou ainda o Réu SBSI a prestar assistência médica permanente e vitalícia à Autora AA, sempre que estejam em causa sequelas decorrentes do conjunto das intervenções a que os autos aludem.
As intervenientes acessórias Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., e ... – Companhia de Seguros, S.A., declararam nos autos que aderem, na totalidade e sem reservas, ao recurso de revista interposto pelos Réus.
A) De Facto
“Em primeira instância foram dados como provados os seguintes factos (com as modificações que se deixam consignadas de acordo com a posterior fundamentação adiante explanada), quanto aos factos 8, 14 e 61 e 1 e 11 da matéria não provada.
1 - A A. AA procurou ajuda médica e andou na consulta de endocrinologia com a Dra. GG, tendo feito várias dietas.
2 - Durante essas consultas, foi sugerida uma consulta com o R. DD, cirurgião no Hospital SAMS.
3 - Em consulta com o R. DD, este informou existirem três técnicas e aconselhou a A. a submeter-se a intervenção “...”.
4 - Mais informou que “...” era uma intervenção cirúrgica laparoscópica, aplicando-se cinco pequenas incisões.
5 - O pós-operatório duma intervenção de "gastric ..." é habitualmente muito fácil e benigno, mas variadas complicações infeciosas surgem em todas as estatísticas sobre tratamento cirúrgico do obeso (a A. AA tinha obesidade mórbida de grau III), assumindo nestes doentes particular frequência e gravidade.
6 - São riscos específicos da cirurgia bariátrica a coleção intra-abdominal (estabelece-se quando há acumulação de líquido no interior do abdómen que pode tornar-se infetado - abcesso - e necessitar de drenagem por via percutânea ou cirúrgica); a fístula (vazamento do conteúdo do estômago para o interior da cavidade abdominal); infeção; hemorragia; distúrbios nutricionais e metabólicos; e alterações psicológicas.
7 - A fístula é a complicação mais grave e de mais elevada mortalidade na cirurgia bariátrica e a sua incidência é de 0,3% a 8,3%.
8 - O R. DD informou a A. AA do risco de perda de cabelo.
9 - No dia 9 de setembro de 2008, a A. AA deu entrada no estabelecimento hospitalar ... sito nos ....
10 - No dia seguinte, a A. AA foi submetida a uma gastrectomia vertical por via laparoscópica.
11 - O R. DD foi o cirurgião e a R. CC a 1ª ajudante.
12 - Na operação, foi colocado um dreno abdominal à A. AA.
13 - A A. AA teve alta no dia 14 de setembro de 2008.
14 - Aquando da alta, saía pelo dreno um líquido.
15 - A alta foi dada pela R. CC, a pedido do R. DD.
16 - No dia 17 de setembro de 2008, a A. AA deu entrada no Hospital ....
17 - Foi diagnosticada à A. AA um abcesso subfrénico.
18 - Foi operada a 20 de setembro de 2008, tendo sido realizada drenagem cirúrgica do abcesso intra-abdominal.
19 - Teve alta a 10 de outubro de 2008.
20 - No dia 28 de outubro de 2008, a A. AA foi de novo internada.
21 - Foi sujeita a drenagem cirúrgica de coleção periesplénica.
22 - Teve alta no dia 15 de novembro de 2008.
23 - A A. AA esteve internada entre 10 e 11 de dezembro de 2008.
24 - A 10 de dezembro de 2008, foi submetida a endoscopia com tentativa de encerramento de fístula diagnosticada na parte superior da sutura, diagnóstico esse por tomografia axial computorizada de 9 de dezembro de 2008.
25 - Por persistência da fístula gástrica e consequente infeção intra-abdominal, foi submetida em janeiro a colocação de endoprótese por via endoscópica, na tentativa de controlo/encerramento da fístula gástrica, havendo necessidade de realizar várias endoscopias por deslocação da endoprótese.
26 - A A. AA teve alta a 13 de janeiro de 2009.
27 - Esteve internada de 3 a 25 de fevereiro de 2009.
28 - Foi efetuada drenagem de abcesso sub-frénico e encerramento da fístula com tissucol por via endoscópica.
29 - A A. AA, a 28 de maio de 2009, é internada.
30 - O internamento é por fístula gástrica complicada de abcesso, após várias tentativas de encerramento cirúrgico.
31 - A A. AA ficou internada na unidade hospitalar do SAMS desde 28 de maio de 2009 até 26 de novembro de 2010, tendo estado na UCIP desde 10 de junho de 2009 até 27 de outubro de 2010.
32 - Esteve internada em Unidade de Cuidados Intensivos por sépsis.
33 - Foram realizados vários tratamentos no sentido de encerramento da fístula gástrica quer por cirurgia, quer por via endoscópica.
34 - Foi submetida a ileostomia para alimentação complicada de brida e estenose e necessidade de posterior de gastrojejunostomia com Roux em Y (19 de agosto de 2009).
35 - Não foi possível o encerramento da laparotomia, que epitelizou gradualmente; fez episódios múltiplos de sépsis com ponto de partida abdominal, com falência multiorgânica, ventilação mecânica prolongada, falência renal com hemodiálise transitória, nutrição parentérica prolongada, abcesso infra-hepático, enterocolite a CMV e pneumonias nosocomiais.
36 - Teve peritonites e fez uma traqueostomia.
37 - Foi submetida a várias drenagens, diálises, endoscopias e cirurgias.
38 - À data da alta - 26 de novembro de 2010 -, tinha dependência física acentuada, dependente de gestos básicos da vida diária, com dificuldade na continência de esfíncteres, dependente para a mobilização, sob alimentação mole sem resíduos.
39 - A A. AA esteve internada de 23 de fevereiro a 1 de março de 2011; de 18 a 30 de abril de 2011; e de 24 de junho a 5 de julho de 2011.
40 - A 30 de maio de 2011, a A. AA fez uma endoscopia alta.
41 - Em endoscopia digestiva alta realizada no Hospital ..., a 24 de abril de 2012, foi identificada fístula gástrica pós cirurgia bariátrica, tendo sido submetida a terapêutica com Árgon Plasma e colocação de sonda entérica.
42 - A 2 de maio de 2012, realizou endoscopia no Hospital ... por exteriorização da sonda nasoentérica, tendo sido repetida terapêutica com árgon plasma e colocada sonda nasoentérica.
43 - A 18 de maio de 2012, repete endoscopia no Hospital ..., tendo sido verificado orifício de fístula complexa, sendo efetuada recolocação de sonda e terapêutica com árgon plasma.
44 - Houve tentativa de colocação de clip metálico para encerramento do orifício da fístula, mas sem sucesso.
45 - Na endoscopia de 29 de maio de 2012, realizada no Hospital ..., verifica-se aparente encerramento eficaz do orifício da fístula com clip metálico Ovesco 10,5 x 12 mm.
46 - As complicações atrás descritas, nomeadamente fístula gástrica, abcesso intra-abdominal, episódios de sépsis abdominal, pneumonias nasocomiais, abcesso hepático, falência multiorgânica com necessidade de suporte avançado de vida (ventilação mecânica, hemodialise, nutrição parentérica total), enterostomia para alimentação são complicações possíveis após uma cirurgia bariátrica.
47 - As fugas ou fístulas gástricas podem ser devidas a causas mecânicas (por falha na sutura mecânica) ou isquémicas (má irrigação do local).
48 - A A. AA sofreu dores de grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
49 - A A. AA teve complicações pós-operatórias que têm taxas de mortalidade significativas.
50 - A 29 de março de 2016, apresentava os orifícios das fístulas gastrocutânea e traqueocutânea encerrados.
51 - Em consequência das complicações e dos procedimentos efetuados, a A. AA ficou sem baço e com um defeito importante na parede abdominal, com fraqueza da mesma, decorrente das cicatrizações em segunda intenção das laparotomias.
52 - Ficou com cicatrizes permanentes em todo o abdómen.
53 - As cicatrizes (orifício de traqueostomia para ventilação; cicatrizes de laparotomia, que cicatrizou por segunda intenção; cicatrizes de drenos abdominais) são consequência da necessidade de tratamento das complicações que ocorreram após a cirurgia.
54 - A A. AA ficou, como sequela, com uma perturbação persistente do humor com moderada repercussão na sua autonomia pessoal, social e profissional, condicionante de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 15 pontos.
55 - Em abstrato, os fatores associados ao não encerramento de uma fístula após cirurgia bariátrica são a isquemia local, aumento da pressão intra-luminal do tubo gástrico, fatores próprios da cicatrização, manuseamento do tratamento da fístula e fatores inerentes ao doente.
56 - O A. BB foi condenado a pagar à R. SBSI a quantia de € 195.458,70 com relação aos encargos da assistência prestada à A. AA, quantia essa que não inclui a quantia de € 362,82 já paga pelo A. BB.
57 - O A. BB despendeu gasolina e desgaste do seu veículo nas suas viagens entre … e ..., durante os internamentos e idas às urgências.
58 - Em virtude do apoio que teve de dar à A. AA, a rentabilidade do seu trabalho no Banco ficou prejudicada, o que fez com que perdesse o cargo de gerente.
59 - A A. BB teve dificuldades em dormir.
60 - O A. BB, depois do que viu e passou durante os tratamentos da A. AA, não consegue ter vida conjugal e sexual com ela.

Este tribunal acrescenta ainda que:

61- Aquando da alta de 14 de setembro de 2009, a A. AA tinha febre.

Em primeira instância foram dados como não provados os seguintes factos:

1 -
2 - A A. AA retirou o dreno em casa contra indicação médica expressa.
3 - Surgiu edema pulmonar em virtude do abcesso referido no ponto 17 da matéria de facto provada.
4 - A alta a 14 de setembro de 2008 foi precoce face à possibilidade do abcesso acontecer.
5 - Os drenos colocados a 20 de setembro de 2009 deveriam ter sido colocados mais cedo.
6 - A A. AA ficou com incapacidade física para toda a sua vida.
7 - Sofreu uma grande perda de cabelo.
8 - Passou a ter que tomar mensalmente uma injeção de vitamina B12.
9 - Desenvolve mensalmente gripes e constipações que facilmente se transformam em pneumonias.
10 - Sofre de problemas crónicos e permanentes, tendo que recorrer mensalmente e por vezes semanalmente às urgências do hospital ....
11. O R. DD informou a A. AA que o risco operatório é maior no obeso e que, nas operações do tipo da aconselhada, há risco de hemorragia e de abertura da linha de sutura (fístula)”.

Note-se que o facto sob o n.º 1 (1 - Aquando da alta de 14 de Setembro de 2009, a A. AA tinha febre) foi transferido, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, do elenco dos factos não provados para o dos factos provados, enquanto o facto sob o n.º 11 foi adicionado ao primeiro.

B) De Direito
a) Verificação ou não da nulidade do acórdão recorrido por ambiguidade e obscuridade que tornam a decisão ininteligível (art. 615.º, n.º 1, al. c), ex vi dos arts. 666.º, 679.º e 685.º do CPC) – alegam os Recorrentes que o Tribunal da Relação de Lisboa fundou a decisão de condenação da Ré CC apenas no facto de a Autora AA ter febre aquando da alta, a 14 de setembro de 2009, “não seguindo qualquer linha de raciocínio entre o facto e os danos, limitando-se a generalidades”
1. Os Recorrentes alegam queO Tribunal da Relação aditou ao elenco dos factos provados a seguinte matéria “aquando da alta em 14 de Setembro de 2009, a A. AA tinha febre”, facto que é obscuro e ambíguo quando entendido como único fundamento para a condenação da R. CC em sede de responsabilidade civil” e que “O douto Acórdão não segue qualquer linha de raciocínio entre o facto e os danos, limitando-se a generalidades”.
2. Segundo o art. 615.º, n.º 1, al. c), in fine, do CPC, “É nula a sentença quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
3. A decisão é nula no caso de a parte decisória conter mais do que um sentido ou conteúdo de pensamento (ambiguidade) ou de não ser percetível qualquer sentido ou conteúdo de pensamento (obscuridade), sendo, consequentemente, ininteligível para um declaratário normal. A ambiguidade ou a obscuridade apenas relevam quando gerem ininteligibilidade, id est, quando um declaratário normal não possa extrair da parte decisória (e só desta) um sentido ou alcance unívoco, mesmo depois de lançar mão da fundamentação para a interpretar Cfr. José Lebre de Freitas, A Acção declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, Gestlegal, 2017, p.382..
4. Está, pois, em causa a questão de se saber de a decisão recorrida se encontra ferida de nulidade por ambiguidade (pluralidade de sentidos) ou obscuridade (ausência de sentido percetível) que a torne ininteligível.
5. Impõe-se, assim, interpretar a decisão judicial proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de junho de 2019, retificada pelo acórdão de 19 de novembro de 2019.
6. Atendendo à sua natureza e características, considera-se que a interpretação do ato jurídico “decisão judicial” visa “a descoberta do sentido preceptivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de janeiro de 2013 (Henrique Antunes), Proc. nº 1500/03.6TBGRD-B.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho de 2017 (Maria João Matos), Proc. n.º 426/11.4TBPTL-A.G1 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.. Esse sentido consiste, precisamente, na indicação dos respetivos efeitos (jurídicos).
7. Exprimido a decisão judicial “uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei” no caso concreto, correspondendo ao “resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objectivo a essa situação Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de fevereiro de 2011, Proc. nº 190-A/1999.E1.S1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho de 2017, Proc. n.º 426/11.4TBPTL-A.G1 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt., compreende-se que a jurisprudência preconize, maioritariamente, a sua interpretação de acordo com o sentido que um declaratário normal – figura normativamente construída Segundo Carlos Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Volume II, Coimbra, Almedina, 1992, pp.762 e ss, declaratário pode ser a “pessoa ou conjunto de pessoas que são receptores efectivos ou potenciais da declaração e a quem esta interessa e se dirige”. -, colocado na posição real do declaratário - a parte ou, mutatis mutandis, outro tribunal, onde já cabem considerações que supõem conhecimentos jurídicos no declaratário - possa deduzir do seu contexto Inter alia, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de dezembro de 2002 (Ferreira Girão), Proc. n.º 02B3349; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de novembro de 2009 (Oliveira Rocha), Proc. n.º 4800/05.TBAMD-A.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de fevereiro de 2011 (Lopes do Rego), Proc. n.º 190-A/1999.E1.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de abril de 2012 (Maria dos Prazeres Beleza), Proc. n.º 289/10.7TBPTB.G1.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de março de 2014 (Fernandes do Vale), Proc. n.º 392/10.3TBBRG.G1.S1; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de janeiro de 2013 (Henrique Antunes), Proc. n.º 1500/03.6TBGRD-B.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho de 2017 (Maria João Matos), Proc. n.º 426/11.4TBPTL-A.G1 - disponíveis para consulta in www.dgsi.pt., ou a necessidade de levar em linha de conta as regras da interpretação da lei (art. 9.º do CC) Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de março de 2011 (Teles Pereira), Proc. n.º 243/06.3TBFND-B.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho de 2017 (Maria João Matos), Proc. n.º 426/11.4TBPTL-A.G1 - disponíveis para consulta in www.dgsi.pt..
8. É, pois, através da interpretação que se obtém o sentido do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de junho de 2019, retificado pelo acórdão de 19 de novembro de 2019 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de julho de 2019, proc. n.º 3142/07.8TBGMR-B.G1.S1.. Sendo as decisões judiciais atos formais - amplamente regulados pela lei processual e implicando uma objetivação da composição de interesses nelas contida -, tem de se aplicar à respetiva interpretação a regra fundamental segundo a qual não pode a decisão valer com um sentido que não tenha no respetivo texto um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de fevereiro de 2011, Proc. n.º 190-A/1999.E1.S1..
9. Segundo o art. 238.º, n.º 1, do CC, o sentido da declaração formal, para valer, há-de ter um mínimo de correspondência “no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”. O sentido da declaração não necessita de se refletir perfeitamente no texto.
10. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de junho de 2019, retificado pelo acórdão de 11 de novembro de 2019, no seu dispositivo, estabelece o seguinte:
“Pelo exposto e, de harmonia com as disposições legais citadas, julgando parcialmente procedente a apelação, decide-se condenar solidariamente os RR. a pagar aos AA. as seguintes quantias:
A título de danos patrimoniais a quantia de € 209.792,34, sendo €195.821,52, para o A., destinado ao pagamento ao R. Hospital e o remanescente para a A., até perfazer € 209.792,34, correspondente ao limite do valor a este título pedido.
Mais vai o R. SBSI condenado a prestar assistência médica permanente e vitalícia à A. AA, desde que por manifestações decorrentes do complexo das intervenções a que os autos aludem.
A título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 300.000, sendo €275.000, para a A. e €25.000 para o A..
Custas por AA. e RR., na proporção do decaimento”.

11. O juízo jurídico-substantivo surge claro ao concluir pelo entendimento de que o facto de a Autora apresentar febre ao tempo da alta hospitalar (temperatura corporal superior a 37 graus celcius) - “aquando da alta em 14 de Setembro de 2009, a A. AA tinha febre” – fundamenta a condenação da Ré CC em sede de responsabilidade civil. Não se verifica aqui a existência de qualquer ambiguidade ou obscuridade, pois esse facto pode e deve ser compreendido no contexto dos demais e neles integrado.
12. Com efeito, o Tribunal da Relação de Lisboa levou em linha de conta a ausência de junção de qualquer registo ao processo e a falta de audição de enfermeiros; a regra do art. 3.º da Lei n.º 12/05, de 26 de janeiro, que regula a informação genética pessoal e informação de saúde; que as dificuldades de conhecimento de factos que se presume integrarem o processo clínico de paciente terão de implicar a incidência do ónus probatório sobre o depositário dos dados, neste caso, o Réu titular do hospital e, por isso, a inversão do ónus da prova nos termos do art. 344º, n.º 2, do CC; que a febre da Autora ao tempo da alta constitui facto cuja prova se afigura totalmente impossível por parte dos Autores, em virtude de os registos se encontrarem apenas na esfera de disponibilidade do Réu SBSI; que o SBSI não apresentou o processo clínico solicitado, aplicando-se o disposto no art. 344, nº. 2, do CC; que os próprios Réus médicos – CC e FF - reconhecem que, em caso de febre, não deveria ter sido dada alta; que é inequívoco que a avaliação da temperatura é um dos parâmetros que obrigatoriamente têm de ser avaliados antes de ser concedida alta a um paciente; que o responsável pela alta hospitalar teve, necessariamente – segundo as leges artis, – de haver acesso à informação; que essa informação só poderia ser credivelmente uma informação registada por escrito, tanto mais que resulta abundantemente dos autos que os riscos do pós-operatório correspondiam a uma percentagem elevada (o relatório de fls. 474 e ss. alude a um risco de incidência situado entre 0.3% a 8.3% - no que toca a verificação de fístula) e, portanto, não poderia ser apenas uma informação baseada na oralidade; que a Autora em 72 horas regressou ao hospital, foi internada e teve que viver os internamentos e intervenções descritos abundantemente na matéria de facto.
13. Assim, se os Recorrentes compreendem bem os fundamentos e apenas não concordam com eles, nem com a respetiva decisão, não se verifica a alegada ambiguidade/obscuridade originadora de ininteligibilidade.
14. Na verdade, a decisão recorrida não permite duas ou mais interpretações – ambiguidade –, nem suscita qualquer incerteza sobre o raciocínio nela plasmado - obscuridade.
15. De um lado, ao invocarem a nulidade do acórdão recorrido porque se pronunciou sobre o referido facto (da febre da Autora), dando-o indevidamente como provado, os Recorrentes reconduzem essa invalidade à apreciação da matéria de facto, da competência exclusiva do Tribunal da Relação. Na realidade, porém, ao sustentarem que esse facto foi mal apreciado, reportam-se ao mérito da ação, que não se confunde com a nulidade que imputam ao acórdão, da qual o erro de julgamento não constitui causa. Com efeito, é objeto de consenso que as nulidades da decisão, cujas causas se encontram taxativamente previstas no art. 615.º do CPC, não incluem o erro de julgamento, de facto ou de direito Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de julho de 2019 (Fernando Samões), Proc. n.º 252/14.9T8GRD-G.C1.S1..
16. No fundo, os Recorrentes pretendem reiterar a sua discordância com a decisão, procurando demonstrar a comissão de um hipotético “erro de julgamento”.
17. Improcede, por isso, a arguição da referida nulidade invocada pelos Réus/Recorrentes.

b) Verificação ou não da nulidade do acórdão por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615.º, n.º 1, al. c), ex vi dos arts. 666.º, 679.º e 685.º do CPC) – segundo os Recorrentes, na fundamentação do acórdão afirma-se que a responsabilidade da Ré CC apenas se pode estabelecer a partir do momento da sua intervenção, a 14 de setembro de 2008, não podendo ser considerada qualquer quantia despendida pelos Autores em data anterior, mas, no dispositivo, todos os Réus foram condenados solidariamente no pagamento da mesma indemnização, sem qualquer distinção
1. Segundo os Recorrentes, afirma-se, na fundamentação do acórdão, “que a responsabilidade da R. CCsó pode ser equacionável a partir do momento em que a mesma intervém e, logicamente, não poder ser responsabilizada por qualquer valor gasto pelos AA. em data anterior a ....2008, que apenas poderia ser imputável ao 1º e 3º RR., sendo que no segmento decisório se escreveu algo diverso” e que “ a decisão condena solidariamente todos os RR., sem destrinçar seja o que for em termos da responsabilidade da R. CC, sendo assim evidente a contradição entre os fundamentos e a decisão”.
2. Conforme o art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC, “É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
3. Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Se, na fundamentação, o julgador segue determinado percurso de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, apesar dela, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a contradição é causa de nulidade da decisão Cfr. José Lebre de Freitas, A Acção declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, Gestlegal, 2017, p.381.; Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p.690.
4. A nulidade baseada na contradição entre os fundamentos e decisão pressupõe, pois, um erro ou vício lógico na argumentação jurídica, retirando conclusão inesperada e oposta à linha de raciocínio adotada. Apenas se verifica quando os fundamentos invocados pelo Tribunal deviam logicamente conduzir a resultado oposto ou divergente do adotado no dispositivo do acórdão: “os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto” Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra, Coimbra Editora, 1952, p.141..
5. A referida oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou com o erro na interpretação da regra jurídica. No caso de o julgador, embora mal, entender que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e esta sua compreensão se encontrar expressa na fundamentação, ou dela decorrer, verifica-se a existência de erro de julgamento e não a oposição enquanto causa de nulidade da decisão. Por seu turno, na hipótese de o raciocínio constante da fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão surgir outra consequência, ainda que esta seja aquela que é juridicamente correta, existe nulidade Cfr. José Lebre de Freitas, A Acção declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, Gestlegal, 2017, pp.381-382..
6. Reitera-se o mencionado supra a propósito da interpretação da acórdão recorrido.
7. Verifica-se a existência de oposição entre os fundamentos e a decisão, de alguma ilogicidade, porquanto, no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa, depois de analisar as circunstâncias de tempo da intervenção da Ré CC, ulterior à prestação de informação deficiente por parte do Réu DD e, consequentemente, a medida da sua responsabilidade, não respondeu de modo adequado.
8. Com efeito, no dispositivo do acórdão, o Tribunal da Relação de Lisboa não delimita no tempo, em oposição ou divergência com a correspondente fundamentação, os danos patrimoniais e não patrimoniais em cujo ressarcimento condena solidariamente a Ré CC. A delimitação temporal efetuada na fundamentação do acórdão recorrido não encontra ressonância no dispositivo.
9. Procede, assim, a arguição da referida nulidade pelos Recorrentes.
10. Deste modo, nos termos do art. 684.º, n.º 1, do CPC, supre-se a nulidade em apreço, determinando-se que, segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a Ré CC é condenada solidariamente a indemnizar os Autores pela totalidade dos danos não patrimoniais alegados e considerados provados, porque respeitantes ao período de tempo subsequente à sua intervenção, de um lado e, de outro, a ressarcir os danos patrimoniais sofridos pelos Autores apenas após a sua intervenção.
c) Verificação ou não da nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia e por condenar em quantidade superior ao pedido (art. 615.º, n.º 1, als d) e e), ex vi dos arts 666º, 679º e 685.º do CPC): por arbitrar, segundo os Recorrentes, uma indemnização por danos patrimoniais ao Autor BB, uma vez que este não formulou qualquer pedido de ressarcimento desses danos
1. Segundo os Recorrentes, “(…), se atentarmos na p.i. (arts. 114 a 117), há que assinalar que o A. nenhum pedido formula, a título de ressarcimento de danos patrimoniais, sendo que no art. 118 da p.i. o que o A. peticiona é o valor de 50.000,00 euros, a título de danos morais”,Não tendo sido feita qualquer prova pelo A. em relação aos danos patrimoniais que haja sofrido, o Acórdão está duplamente ferido de nulidade, quer por pronunciar-se sobre questões de que não podia tomar conhecimento, quer por condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, nulidade que se vem arguir ao abrigo do art. 615/1 d) e e) do CPC, com todas as legais consequências”.
2. De acordo com os Recorrentes, o Autor não formulou qualquer pedido indemnizatório pelos danos patrimoniais – que também não teria provado - decorrentes da perda do cargo de gerente e implicados pelo consumo de gasolina e desgaste do automóvel. Assim, o acórdão recorrido padeceria de excesso de pronúncia e teria condenado em quantidade superior e objeto diverso do pedido.
3. Estabelece o art. 615.º, n.º 1, als. d) e e), do CPC, “É nula a sentença quando: d) o juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.
4. Se o julgador conhecer de causas de pedir não alegadas, ou de exceções que estejam na exclusiva disponibilidade das partes (art. 608.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC), a decisão encontra-se ferida de nulidade. Isto é, se o julgador conhecer de questões que não podia apreciar, por não haverem sido postas em causa, a decisão é nula.
5. A decisão é igualmente nula quando, em violação do princípio do dispositivo, no que respeita à conformação da instância, o julgador não observa os limites estabelecidos no art. 609.º, n.º 1, do CPC, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido (pronúncia ultra petitum). A não coincidência da decisão com os petita partium implica, pois, a nulidade da decisão Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção declarativa comum à luz do Código Revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2010 (Reimpressão), p.299; Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p.675..
6. O juiz não deve apreciar questões não submetidas ao seu conhecimento, sob pena de incorrer em excesso de pronúncia. A lei, no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, refere “questões”, isto é, assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes fundamentam as suas pretensões. Portanto, o juiz não tem de se pronunciar sobre razões ou argumentos usados pelas partes para alicerçar os seus pontos de vista.
7. In casu, da última sessão da audiência final resulta, inter alia, que a mandatária dos Autores “especificou o pedido nos seguintes termos: 350.000,00 a título de indemnização pelos danos morais e incapacidade e 209.792,34 pelos danos patrimoniais”
8. E foi precisamente com base nesta clarificação do pedido que o julgador integrou os termos atualizados do pedido no relatório da decisão do Tribunal de 1.ª Instância. Também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa reflete essa atualização do pedido.
9. De resto, a título de danos patrimoniais do Autor, é alegado na petição inicial que “Em virtude do apoio que teve de dar à 1.ª A., o 2.º A. atrasou e prejudicou a rentabilidade do seu trabalho no Banco, o que fez que lhe fosse retirado o cargo de gerente, o que constituiu uma desvalorização e sofrida humilhação profissional e pessoal para o 2.º A.” (artigo 114º) e que “O 2.º A. despendeu gasolina e desgaste do seu veículo nas suas viagens diárias entre Lisboa e a ..., durante os internamento e idas às urgências” (artigo 115º).
10. Além do mais, foi considerado como provado “57 - O A. BB despendeu gasolina e desgaste do seu veículo nas suas viagens entre … e ..., durante os internamentos e idas às urgências. 58 - Em virtude do apoio que teve de dar à A. AA, a rentabilidade do seu trabalho no Banco ficou prejudicada, o que fez com que perdesse o cargo de gerente”.
11. Nestes termos, a condenação dos Réus no ressarcimento dos danos em apreço, sofridos pelo Autor, respeita os limites do pedido, já que o aresto se limitou, neste âmbito, a deferir a sua pretensão.
12. Improcede a arguição da mencionada nulidade por parte dos Réus/Recorrentes.
d) Violação ou não, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, das regras legais de inversão do ónus da prova no que respeita à prova da febre, ou da sua ausência (que inclui a prova do dever de medição da temperatura), da Autora AA no dia da alta hospitalar, baseada na alegada recusa injustificada de entrega do respetivo processo clínico, por ausência de fundamento legal, tendo sido aplicada incorretamente – ou não – a norma do art. 344.º, n.º 2, do CC. Segundo os Recorrentes, o acórdão recorrido baseou-se no art. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro, na redação que lhe foi dada pelo art. 45.º da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto, que entrou em vigor a 1 de outubro de 2016, ou seja, depois dos factos e da própria entrada da ação em juízo.
1. Inscreve-se no âmbito do recurso de revista a apreciação do modo como as instâncias interpretaram e aplicaram a norma de direito probatório material plasmada no art. 344.º, n.º 2, do CC, na medida em que a inversão do ónus da prova é suscetível de influir no conteúdo da decisão do tribunal que aprecia as provas produzidas. A não apresentação dos relatórios – médicos ou de enfermeiros – respeitantes ao dia da alta hospitalar da Autora AA, por parte do SBSI afigura-se suscetível de tornar impossível, ou particularmente difícil, a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais. O SBSI podia e devia ter agido de outro modo. À impossibilidade da prova, por atuação culposa da parte não colaborante para com o onerado, deve ser equiparado, em termos de sanção do art. 344.º, n.º 2, do CC, um comportamento omissivo total ou parcialmente inviabilizador da prova, desde que, dessa falta de colaboração resulte, comprovadamente, fragilidade probatória causada pelo recusante. No caso dos autos, a falta de cooperação do Réu SBSI traduziu-se na não junção, injustificada, dos relatórios respeitantes ao dia em que foi concedida alta hospitalar à Autora. A falta de colaboração do Réu SBSI sem qualquer justificação, foi valorada como comportamento que determina a inversão do ónus da prova, relativamente ao estado febril da Autora ao tempo da alta hospitalar. A circunstância de a recusa do Réu SBSI haver tornado, culposamente, à contraparte, a prova impossível ou particularmente difícil, não importou, sem mais, que o facto controvertido se tivesse por verdadeiro, mas tão só que passasse a caber ao Réu SBSI a prova da falta de realidade desse facto. Tendo-se operado a inversão do ónus da prova, incumbia ao Réu provar que a Autora não apresentava temperatura no dia em que lhe foi concedida alta Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de abril de 2018 (Rosa Tching), Proc. n.º 744/12.4TVPRT.P1.S1 – disponível para consulta in
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9b32a5b3043e41a6802582710056ebc2?OpenDocument; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de setembro de 2019 (Raimundo Queirós), Proc. n.º 1410/17.0T8STR.E1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/42aa9360a9d93bf98025847200319242?OpenDocument..
2. A apreciação do modo como as instâncias qualificaram a atuação de uma das partes no contexto da inversão do ónus da prova prevista no art. 344.º, n.º 2, do CC insere-se no âmbito do recurso de revista. Porém, não se inclui nesse âmbito a apreciação da alteração baseada na livre apreciação da prova. A inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344.º, n.º 2, do CC, como sanção civil que é da violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, exige uma atuação culposa da parte que tenha tornado impossível ou particularmente difícil a produção de prova pela contraparte dos factos que lhe competiam Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de abril de 2019 (Fernando Samões), Proc. n.º 4759/07.6TBGMR-A.G1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d84cabb3c97546e3802583d7004e7fec?OpenDocument. - o que, in casu, se verificou, pois o SBSI não apresentou qualquer justificação para a sua conduta.
3. O Tribunal da Relação de Lisboa considerou que as dificuldades de conhecimento de factos que se presume integrarem o processo clínico do paciente terão de implicar, nos termos do art. 344.º, n.º 2, do CC, a inversão do ónus da prova, cabendo ao Réu SBSI - depositário dos relatórios e registos em apreço – provar que a Autora não apresentava febre no dia da alta hospitalar.
4. Uma vez que o facto alegado de que “aquando da alta de ....2009 a A. AA tinha febre” constitui um dos factos essenciais em que se apoia o pedido dos Autores, cuja prova lhes é totalmente impossível, em virtude de os respetivos registos se encontrarem em poder do Réu SBSI, que os não disponibilizou, de um lado e, de outro, os Réus médicos - CCe DD - reconhecerem que, em caso de febre, não deveria ter sido dada alta, o Tribunal da Relação de Lisboa ponderou que a avaliação da temperatura é um dos parâmetros que têm, obrigatoriamente, de ser avaliados antes de ser dada alta a um doente. Por isso, a Ré médica - CC-, responsável pela alta hospitalar, teve necessariamente, segundo as leges artis, acesso à informação. E essa informação só poderia ser credivelmente uma informação registada por escrito, tanto mais que resulta abundantemente dos autos que os riscos do pós-operatório não eram irrelevantes. Não poderia, portanto, tratar-se apenas de uma informação transmitida oralmente, tantas vezes baseada numa memória falível ou prestada de forma menos precisa ou rigorosa. Acresce que a falta de rigor se consubstanciava num risco que não se podia correr dada a gravidade dos perigos possíveis que, efetivamente, se vieram a verificar quase na totalidade. Riscos estes que a Ré deveria conhecer, até porque participou na cirurgia como primeira ajudante.
5. Está em causa o dever jurídico de documentação do médico – e/ou da instituição de saúde -, que tem fundamento legal (arts. 573.º, 575.º, 1161.º, al. d), do CC, Base II, n.º 2, als d) e e), e Base XIV da Lei nº 48/90, de 24 de agosto, então em vigor), deontológico (art. 100.º, n.º 1, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (doravante CDOM)), contratual (dever lateral) e, por último, nas leges artis. É que o registo adequado das informações médicas permite evitar acidentes graves. O médico – e/ou a instituição de saúde - é prejudicado no plano probatório, não apenas se subtrair ou alterar documentos relevantes para a lide, mas também se a redação dos atos médicos for inexata ou incompleta. Segundo o art. 100.º, n.º 2, do CDOM, “a ficha clínica é o registo dos dados clínicos do doente e tem como finalidade a memória futura e a comunicação entre profissionais que tratam ou virão a tratar do doente. Deve, por isso, ser suficientemente clara e detalhada para cumprir a sua finalidade.” Afigura-se objeto de consenso a inversão do ónus da prova com base em documentação médica incompleta ou errada. O médico tem o dever de documentar toda a atividade clínica e terapêutica. Se o não cumprir devidamente, tem lugar a inversão do ónus da prova a favor do paciente, na medida em que as dificuldades de esclarecer a matéria de fato não possam ser resolvidas em virtude da falta de documentação. A doutrina preconiza a inversão do onus probandi do erro médico e do nexo de causalidade em caso de falta de documentos Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, pp.525-526, 529, 684 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf.. No caso em apreço, na medida em que o dever de junção dos documentos respeitantes ao dia da alta hospitalar recaía sobre o Réu SBSI, e que este não o cumpriu, competia-lhe provar que Autora AA não tinha febre ao tempo da alta.
6. Reveste-se, pois, de especial relevância o cumprimento do dever de registo das informações clínicas e o bom preenchimento do processo clínico.
7. Sem prejuízo, reconhece-se razão aos Réus quando afirmam que ao tempo dos factos se encontrava em vigor a versão originária do art. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 12/05, de 26 de janeiro, que estabelecia um regime de acesso indireto à informação de saúde (“O acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de terceiros com o seu consentimento, é feito através de médico, com habilitação própria, escolhido pelo titular da informação”). Todavia, esse lapso afigura-se, in casu, irrelevante.
8. Improcede a arguição de violação das regras da inversão do ónus por parte do Tribunal da Relação de Lisboa.
e) Poderes do Supremo Tribunal de Justiça para apreciar o uso, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de presunções judiciais para firmar o facto de a Autora AA apresentar febre ao tempo da alta hospitalar e quanto à infirmação, pelo mesmo Tribunal, da presunção judicial de que se serviu o Tribunal de 1.ª Instância no que respeita aos factos provados sob o n.º 8.
1. Entre os poderes do Tribunal da Relação, na reapreciação e valoração dos meios de prova sujeitos à livre apreciação e na formação da sua convicção com autonomia do juízo feito pelo Tribunal de 1.ª Instância, encontra-se aquele de recorrer a presunções judiciais (arts. 349.º e 351.º, do CC).
2. Neste domínio, o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode censurar o recurso a presunções judiciais pelo Tribunal da Relação no caso de ofensa de norma legal, se partir de factos não provados ou de evidente ilogicidade Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de março de 2019 (Rosa Tching), proc. n.º 281648/11.7YIPRT.L1.S1, de 17 de outubro de 2019 (Maria da Graça Trigo), Proc. n.º 1146/17.1T8BGC.G1.S2, de 24 de outubro de 2019 (Maria Clara Sottomayor), Proc. n.º 56/14.9T8VNF.G1.S1 – disponíveis para consulta in
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/640eb2041f21ae8080258496005b084c?OpenDocument.. Enquanto Tribunal de revista - que apenas conhece de questões de direito, sem competência para modificar os factos e para corrigir erros de julgamento ou erros na apreciação da matéria de facto ou formação de juízos de facto -, não tem, pois, poderes para apreciar da conformidade das ilações inerentes às presunções judiciais com as regras de experiência e de probabilidade, nem para controlar a congruência dos juízos feitos pelo Tribunal da Relação.
2. Assim, o uso de presunções judiciais apenas é suscetível de ser sindicado em sede de recurso de revista quando a lei o não admita, por violação, verbi gratia, do art. 351.º do CC, ou, quando admitindo-o, tal uso ocorra fora do quadro legal estabelecido no art. 349.º do mesmo corpo de normas, que exige a prova de um facto-base ou instrumental e a ilação a partir dele de um facto essencial presumido Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de outubro de 2019 (Tomé Gomes), Proc. n.º 1703/16.3T8PNF.P1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/28aab96ca84b820f80258496005aa5ac?OpenDocument.. O erro sobre a substância do juízo presuntivo formado com base nas regras da experiência apenas é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça em casos de manifesta ilogicidade. Importa, para o efeito, que da decisão de facto ou, porventura, da respetiva motivação, constem os factos-base ou instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede dos factos essenciais, nos termos dos arts. 349.º do CC e 607.º, n.º 4, do CPC, ou até algum argumento probatório decisivo, que permitam, nessa base objetiva, aferir a ocorrência de manifesta ilogicidade. Nos termos dos arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça averiguar, por via da livre reapreciação da prova produzida, erro intrínseco na formação da convicção do julgador Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de outubro de 2019 (Tomé Gomes), Proc. n.º 1703/16.3T8PNF.P1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/28aab96ca84b820f80258496005aa5ac?OpenDocument..
3. No caso dos autos, o recurso a presunções judiciais por parte do Tribunal da Relação de Lisboa não ofende qualquer norma legal, designadamente aquelas dos arts. 349.º e 351.º do CC. Desde logo, o Tribunal, no contexto geral da prova produzida, tirou de um facto conhecido - “em 72 horas voltou ao Hospital, foi internada e teve os internamentos e intervenções descritos abundantemente na matéria de facto” - ilações para firmar um facto desconhecido - “a A. tinha efectivamente febre” -, em conformidade com o art. 349.º do CC. Depois, trata-se de uma situação em que é admitida prova testemunhal, nos termos do art. 351.º do CC, porquanto esta, segundo o art. 392.º, do mesmo corpo de normas, não é afastada nem direta e nem indiretamente.
4. O juízo probatório acerca da verificação da situação febril da Autora no dia da alta hospitalar não padece de qualquer ilogicidade evidente ou manifesta, pelo que não merece censura. Por outro lado, deve ser enquadrado e compreendido no contexto geral dos factos sobre os quais foi produzida prova.
5. Na convocação de uma presunção natural, simples, de facto, de experiência ou judicial Cfr. Acórdão do STJ de 29 de abril de 2010 (Lopes do Rego), Proc. n.º 792/02.2YRPRT.S1 – disponível em www.dgsi.pt., observando as regras de direito probatório e nela fundando a sua convicção de que a Autora tinha febre ao tempo da alta hospitalar, o Tribunal da Relação de Lisboa respeitou o limite da congruência: pois o facto conhecido - “em 72 horas voltou ao Hospital, foi internada e teve os internamentos e intervenções descritos abundantemente na matéria de facto” – não apresenta qualquer contradição lógica com o facto desconhecido - “a A. tinha efectivamente febre”. Importa não esquecer que os Réus não lograram provar a ausência de febre da Autora nesse dia.
6. O Tribunal da Relação de Lisboa retirou ilações de factos conhecidos e provados, interpretando-os à luz das regras da experiência, extraindo deles, depois, factos desconhecidos.
7. As presunções judiciais admitem a contraprova (art. 346.º do CC), dirigida contra o facto presumido, tendo em vista convencer o juiz de que, apesar da realidade de facto que serve de base à presunção, o facto presumido não se verificou ou o direito presumido não existe. A contraprova visa tornar incerto o facto presumido, criando no espírito do juiz dúvida ou incerteza sobre a verificação do facto presumido.
8. Segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, os Réus/Recorrentes não lograram elidir a presunção, pois não carrearam elementos nem demonstraram que “a A. não tinha efectivamente febre”.
9. Acresce que os argumentos invocados pelos Réus/Recorrentes, no seu recurso de revista, não se afiguram suscetíveis, nem de afetar negativamente a lógica e a legalidade do recurso a presunções judiciais, nem de reverter a alteração da matéria de facto operada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
10. No seu acórdão, no uso de presunções judiciais, o Tribunal da Relação de Lisboa, respeitou, portanto, os requisitos legalmente estabelecidos para o exercício dos seus poderes.
11. Na fixação da matéria de facto relevante para a solução do litígio, a última palavra compete ao Tribunal da Relação, através do exercício dos poderes que lhe são legalmente conferidos (art. 662.º, nos 1 e 2, do CPC). O Supremo Tribunal de Justiça limita-se, no desempenho da sua função de Tribunal de revista, a definir e aplicar o respetivo regime jurídico aos factos já anterior e definitivamente fixados.
12. Deste modo, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da matéria de facto relevante reveste-se de caráter excecional e residual, porquanto se limita a controlar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da decisão de facto ou o suprimento de contradições na decisão sobre a matéria de facto (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, do CPC).
13. O Tribunal da Relação de Lisboa motivou a sua decisão, de acordo com o princípio da convicção racional, consagrado no art. 607.º, n.º 5, do CPC. No domínio da livre apreciação da prova - livre convicção do julgador - está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça exercer censura e sindicar a respetiva substância (art. 662.º, n.º 4, do CPC).
14. Apesar de apreciar livremente as provas e fixar a matéria de facto segundo a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, impende sobre o julgador o dever de analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos decisivos para a sua convicção sobre a prova ou a inexistência de prova dos factos (art. 607.º, n.º 4, do CPC). Pode dizer-se que o Tribunal da Relação de Lisboa referiu as razões que o conduziram a alterar a matéria de facto.
15. As ilações – presunções judiciais ou naturais – baseadas nas regras da experiência e formuladas pelo Tribunal da Relação de Lisboa no desenvolvimento e integração da matéria de facto apurada em julgamento nem colidem e nem contrariam os factos apurados em consequência da livre apreciação das provas efetivamente produzidas em audiência, não se alcançando, com base em considerações de normalidade, plausibilidade ou probabilidade, um resultado probatório incompatível com a realidade factual emergente dos meios probatórios produzidos em audiência contraditória e concretamente valorados pelo Tribunal no momento em que fixou a matéria de facto decorrente da livre apreciação das provas Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de maio de 2014 (Lopes do Rego), Proc.
Revista n.º 3566/06.8TBVFX.L1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/363ec20735cb4af280257ce700541b1b?OpenDocument..
16. Improcede a pretensão de reapreciação do uso de presunções judiciais por parte do Tribunal da Relação de Lisboa.
17. Mutatis mutandis, o mesmo se refira a propósito da infirmação, por parte do Tribunal da Relação de Lisboa, da presunção natural, simples, de facto, de experiência ou judicial de que se serviu o Tribunal de 1.ª Instância no que respeita aos factos por si dados como provados sob o n.º 8 (“O R. DD informou a A. AA que o risco operatório é maior no obeso e que, nas operações do tipo da aconselhada, há risco de hemorragia, de abertura da linha de sutura (fístula) e de perda de cabelo“). Considerando inexistir base legal para a formulação do juízo de plausibilidade a que alude a fundamentação do facto, o Tribunal da Relação de Lisboa conferiu nova redação a este ponto (DD informou a A. AA do risco de perda de cabelo”), adicionando, simultaneamente, o n.º 11 ao elenco dos factos não provados (“O R. DD informou a A. AA que o risco operatório é maior no obeso e que, nas operações do tipo da aconselhada, há risco de hemorragia, de abertura da linha de sutura (fístula)).
18. Insiste-se: a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da matéria de facto relevante tem caráter excecional e residual, pois que se limita a controlar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da decisão de facto ou o suprimento de contradições na decisão sobre a matéria de facto (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, do CPC).
19. Improcede, assim, também esta pretensão de afastar a infirmação, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, da referida presunção judicial.

f) Responsabilidade civil médica
(i) Ónus da prova do (in)cumprimento do dever de informação e de esclarecimento
1. A Autora AA, enquanto paciente, era titular, inter alia, do direito à informação e do direito ao consentimento.
2. Por seu turno, sobre os Réus SBSI (enquanto gere os SAMS, que, por seu turno, detêm o hospital)por força do contrato - e médico DD – com base na lei e no seu estatuto profissional - recaíam, inter alia, os deveres de informar e de obter o consentimento informado da Autora AA.
3. O direito do paciente à informação (previsto, inter alia, no art. 5.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina ou Convenção de Oviedo (doravante CDHBio), no art. 157.º CP, no art. 44.º do CDOM, na Base XIV, n.º 1, al. e), da Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, então em vigor Revogada pela Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro.) e ao consentimento livre e esclarecido (plasmado no art. 25.º CRP, no art. 5.º da CDHBio, no art. 45.º do CDOM, no art. 70.º, n.º 1, do CC e na Base XIV, n.º 1, al. b) da Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, então em vigor) são expressões do direito ao consentimento informado enquanto informed choice. A autodeterminação nos cuidados de saúde implica, não só que o paciente consinta ou recuse uma intervenção determinada heteronomamente, mas também que disponha de toda a informação relativa às diversas possibilidades de tratamento Conforme o art. 5.ª da CDHBio, “1. Qualquer intervenção no domínio da saúde apenas pode ser efetuada depois da pessoa em causa dar o seu consentimento de forma livre e esclarecida. 2. A esta pessoa deverá ser dada previamente uma informação adequada quanto ao objetivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e os seus riscos. 3. A pessoa em causa poderá, a qualquer momento, revogar livremente o seu consentimento”. Por outro lado, segundo o art. 3.º, n.º 2, al. a) da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (incorporada no Tratado de Lisboa, “No domínio da medicina e da biologia, devem ser respeitados, designadamente: o consentimento livre e esclarecido da pessoa, nos termos da lei”. O consentimento informado assumiu também dimensão universal com a aprovação, na Assembleia Geral da UNESCO, da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, em outubro de 2005 (arts. 6.º e 7.º). Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, pp.325, 351 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de novembro de 2017 (Maria dos Prazeres Beleza), Proc. n.º 23592/11.4T2SNT.L1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d9767a1df7ff6495802581cd0035c593?OpenDocument; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de março de 2018 (Maria da Graça Trigo), Proc. n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/988c851558ed0ab88025825800550bef?OpenDocument; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 2019 (Acácio das Neves), Proc. n.º 3192/14.8TBBRG.G1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2feb138ecf6eb5cb8025849d0056a41a?OpenDocument..
4. O fundamento jus-civilístico do consentimento informado encontra-se no art. 70.º, n.º 1, do CC, que, além de estabelecer o direito geral de personalidade, consagra também o direito especial de personalidade à integridade física e moral que, por sua vez, se encontra intimamente ligado à autodeterminação da pessoa humana.
5. Na nossa ordem jurídica, em que o princípio do dispositivo no âmbito da alegação dos factos é temperado pelo princípio do inquisitório no que respeita à respetiva prova, o onus probandi corresponde à “situação da parte contra quem o tribunal dará como inexistente um facto, sempre que, em face dos elementos carreados para os autos (seja pela parte interessada na verificação do facto, seja pela parte contrária, seja pelo próprio tribunal), o juiz se não convença da realidade dele” Cfr. Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p.450.. O ónus da prova traduz-se “para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto (trazida ou não pela mesma parte)” Cfr. Manuel A. Domingues de Andrade, Noções elementares de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp.196-197..
6. De acordo com a orientação dominante, compete, via de regra, à instituição de saúde e/ou ao médico provar que prestou ao paciente as informações devidas e adequadas para que este pudesse livre e esclarecidamente exercer o seu direito de autodeterminação sobre o próprio corpo e sobre os serviços de saúde. Com efeito, trata-se, desde logo, da necessidade de acautelar o equilíbrio processual entre a impossibilidade de provar um facto negativo (não ter sido – ou não ter sido adequadamente - informado) que, segundo a doutrina, se traduz numa prova diabólica, de um lado e, de outro, da facilidade relativa da prova para o médico. Depois, a consideração do consentimento informado como causa de justificação ou de exclusão da ilicitude de uma lesão à integridade física e da prestação de informação adequada como seu requisito de validade implica, nos termos do art. 342.º, n.º 2, do CC, a atribuição do onus probandi do consentimento informado ao médico Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, pp.387-390 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf; André Gonçalo Dias Pereira, Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo e causalidade, disponível para consulta in https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/10577/1/Responsabilidade%20m%c3%a9dica.pdf; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de junho de 2015 (Mário Mendes), Proc. n.º 308/09.0TBCBR.C1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7b7baaf723e3e99480257e6700362e31?OpenDocument..
7. O risco de uma falta ou deficiência de informação recai sobre a instituição de saúde e/ou o médico. É que, em geral, médico e paciente não se encontram em paridade situacional, em pé de igualdade, porquanto o último não tem e nem pode ter a mesma quantidade e a mesma qualidade de informação do primeiro. O médico é que tem de provar a criação de condições concretas e efetivas que permitissem ao paciente compreender o significado, o alcance e os riscos do tratamento proposto. Qualquer situação de dúvida se decide contra ele.
8. A imputação dos danos à instituição e/ou ao médico pressupõe que a decisão do paciente haja sido tomada com base no comportamento informativo daquela. Por outro lado, é certamente por existir, em muitos casos, uma extrema dificuldade de o paciente provar com segurança o nexo causal entre a falta ou a deficiência da informação e a sua decisão, que se justifica a inversão do ónus da prova do nexo de causalidade entre a violação ilícita e culposa dos deveres de informação e os danos verificados.
9. Trata-se de acautelar a posição de vulnerabilidade do paciente na demonstração do nexo de causalidade, posição que de outro modo correria o risco de ficar esvaziada de qualquer tutela adequada, por o paciente não lograr, muitas vezes, provar facilmente, com o grau de certeza próprio da prova em juízo e para ela requerido que, caso houvesse tido acesso à informação que lhe era devida, não teria tomado a decisão de se submeter a determinada intervenção ou tratamento.
10. Se o modelo informativo de tutela do paciente tem a finalidade de prevenir a violação de determinados bens jurídicos (a autodeterminação, a tutela da esclarecida formação da vontade do que lhe consinta autodeterminar-se sobre o seu próprio corpo e os serviços de saúde), não é, naturalmente, indiferente a distribuição do ónus da prova, pois que a eficácia dos deveres de informação depende da possibilidade de sucesso em matéria de prova do nexo de causalidade Sobre as presunções no domínio do nexo de causalidade preenchedora para facilitar a prova, de outro modo difícil ou impossível, cfr., por exemplo, Manuel A. Carneiro da Frada, Direito Civil - Responsabilidade Civil (O método do caso), Coimbra, Almedina, 2006, pp.101-103.
A inversão do ónus da prova é passível de permitir a transferência do risco da assunção de uma decisão desvantajosa do credor da informação para o devedor dessa informação..
11. O facto de os deveres de informação do médico – e/ou da instituição de saúde - terem em vista esclarecer o paciente, de modo a permitir-lhe adotar uma decisão adequada aos seus interesses, afigura-se relevante para a aceitação de uma inversão do ónus da prova em matéria de causalidade. Perante a violação desses deveres e a ocorrência de danos que estes deveres têm em vista prevenir, deve admitir-se uma inversão do ónus da prova de um comportamento conforme à informação – causalidade preenchedora Num contexto distinto, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de novembro de 2012 (Nuno Cameira), Proc. n.º 4068/06.8TBCSC.L1.S1, segundo o qual: “… constatando as dificuldades que suscita a prova da causalidade, para a conduta do credor da informação (e portanto para o dano), da violação de deveres de informação, designadamente quanto a determinar se ele teria assumido um comportamento diverso se tais deveres tivessem sido observados, o Prof. Paulo Mota Pinto admite […] que se justifica em geral uma inversão do ónus da prova da causalidade da violação do dever de informação em relação ao dano (…), admitindo uma (…) ‘presunção de conduta conforme à informação’. Será, pois, ao lesante que compete provar que, mesmo que tivesse cumprido os seus deveres, o lesado se teria comportado de igual modo, podendo aceitar-se uma fundamentação de tal presunção assente na diversidade dos encadeamentos causais (esclarecido e não esclarecido) ou na ideia do comportamento alternativo lícito”- disponível para consulta in www.dgsi.pt..
12. Tendo a consagração dos deveres de informação como escopo permitir a regular formação da vontade do paciente, uma vez demonstrada a omissão ou a deficiência da informação prestada perante os danos sofridos, deverá presumir-se que a omissão ou a deficiência da informação foi causa da decisão do paciente; que da lesão do bem jurídico protegido – o exercício do poder de autodeterminação sobre o próprio corpo e sobre os serviços de saúde, a correta formação da vontade – resultaram os danos patrimoniais e não patrimoniais concretamente sofridos pelo paciente.
13. Compreende-se. Atendendo às dificuldades probatórias da causalidade da conduta do devedor da informação em relação ao comportamento que o paciente-credor da informação adotaria em caso de cumprimento correto do dever, assim como em relação à influência que nele exerceu a informação deficiente que recebeu ou a omissão da informação devida, como factos internos, reais ou hipotéticos, insuscetíveis de prova direta, deve ter lugar a inversão do ónus da prova da influência da deficiência da informação na vontade individual do paciente Sobre a presunção da conduta conforme com a informação, vide Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp.1385 e ss.. Presume-se, portanto, que a vontade individual do paciente foi determinada pela irregularidade da informação, ou seja, o nexo causal entre a falta ou deficiência da informação e a decisão do paciente, e que essa vontade teria sido diferente caso a informação houvesse sido corretamente prestada.
14. Esta solução afigura-se, pois, equilibrada: parece que a incerteza ou a não dilucidação do efeito da informação devida sobre a conduta do paciente é, ou deve ser, um risco do devedor dessa informação. O médico – e/ou a instituição de saúde - pode infirmar a causalidade mediante a alegação e a prova de factos idóneos para tal, incluindo a possibilidade de utilização, se necessário ampla, das praesumptiones hominis para o efeito.
15. Esclareça-se que a inversão do ónus da prova do nexo de causalidade não equivale a prescindir da ligação entre a violação ou o cumprimento deficiente do dever de informar e a decisão adotada pelo paciente. Com efeito, não se revelaria adequada neste contexto, em que o poder de autodeterminação ou a regular formação da vontade constitui o bem jurídico protegido, a opção de prescindir do estabelecimento do nexo causal entre o incumprimento ou deficiente cumprimento do dever de informar e a decisão do paciente. Trata-se apenas de estabelecer uma presunção que poderá vir a ser afastada – reitera-se - se o médico (ou a instituição de saúde) lograr fazer prova em contrário. Sendo que os tribunais podem admitir também, caso ou onde se justifique, uma atenuação ou facilitação do grau de prova exigível ao onerado – ao médico – na elisão da presunção de causalidade preenchedora.
16. A propósito da norma do art. 799.º, n.º 1, do CC, tende a prevalecer, atualmente, na doutrina, um entendimento amplo da presunção de culpa, abrangendo a de ilicitude e a de causalidade fundamentante Sobre o entendimento amplo da presunção de culpa (hoje largamente referenciada, vide António Menezes Cordeiro, “Responsabilidade bancária, deveres acessórios e nexo de causalidade”, in Estudos de Direito Bancário I, 2018, Almedina, 2018, pp.37 e ss.), já Manuel A. Carneiro da Frada, Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, pp.190 e ss (a propósito da responsabilidade obrigacional e considerando que o art. 799.º, n.º 1, do CC, estabelece, na realidade, ocorrido um incumprimento, uma presunção de ilicitude na sua origem).
Defendendo que a presunção de culpa do art. 799.º, n.º 1, do CC, inclui também uma presunção do nexo de causalidade entre o incumprimento, ou o cumprimento defeituoso, e o dano de valor equivalente ao valor da prestação incumprida, vide António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. IX, Coimbra, Almedina, 2017, p.391; Nuno Pinto de Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p.268.. Com esse sentido, a falta de prestação da informação exigida presume-se culposa.

17. Por outro lado, perante a violação ilícita e culposa de deveres de informação, por parte da instituição de saúde e/ou do médico, e a ocorrência de danos que aqueles visam prevenir, acolhe-se uma presunção de comportamento conforme à informação, dispensando o paciente da prova da causalidade (preenchedora) que intercede entre o fundamento da responsabilidade invocado e os danos por si sofridos, que o cumprimento correto daqueles deveres visa prevenir (perturbação de decisão esclarecida do paciente). Presumindo que o paciente, se houvesse sido adequadamente esclarecido, não teria consentido, respeita-se a regra estabelecida no art. 563.º do CC.
18. A cirurgia ..., não tendo sido validamente consentida – designadamente porque a Autora AA não foi devida e adequadamente informada e esclarecida nem sobre os respetivos riscos gerais e específicos e nem sobre os riscos inerentes à sua condição de obesidade -, constitui uma ofensa ao seu direito à integridade física por falta de justificação, conforme resulta dos arts. 81.º e 340.º do CC e do art. 157.º do CP. É que os deveres da instituição de saúde e/ou do médico de esclarecer e de obter o consentimento do paciente têm em vista a salvaguarda dos bens jurídicos da autodeterminação e liberdade pessoal e, como que mediatamente, da integridade física e psíquica do paciente. Deste modo, em princípio, a instituição de saúde – e/ou o médico – responde por todas as consequências da intervenção, devendo ressarcir o paciente dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes da intervenção arbitrária Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, p.406 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf..
19. In casu, após a intervenção médico-cirúrgica a que foi sujeita, verificaram-se diversos riscos – abrangidos pelo âmbito de proteção dos deveres de informação e esclarecimento - sobre os quais a Autora AA não foi devida e adequadamente esclarecida e, por isso, os Réus SBSI e médico DD respondem pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados. Note-se que a Autora não foi advertida dos riscos mais graves da intervenção a que foi submetida (a matéria de facto revela que o Réu DD informou a Autora AA do risco de perda do cabelo, tendo resultado não provado que a tivesse informado de que o risco operatório é maior no obeso e que, nas operações do tipo da aconselhada, há risco de hemorragia e de abertura da linha de sutura (fístula) – factos sob o n.os 8 e 11 dos factos não provados. A operação a que a Autora foi sujeita apresentava riscos gerais e específicos que não lhe foram devida e adequadamente comunicados. O risco de hemorragia constituía um dos riscos gerais e específicos, neste caso a par, inter alia, também da coleção intra-abdomninal e da fístula (factos sob os n.os 6 e 7)). Não se tratando de riscos extremamente raros, imprevisíveis ou do conhecimento comum, deviam ter sido devidamente comunicados à Autora. Não o havendo sido e tendo vindo a verificar-se, não deve ser a Autora a suportá-los, pois não foram para si transferidos. Acresce que da consideração do consentimento, não como um conjunto atomístico de assunções de risco, separadas ou isoladas, mas antes como um todo como que indivisível, pressupondo uma análise global dos riscos e benefícios do tratamento proposto, pode retirar-se que se o risco não comunicado tiver conexão com o risco verificado, ou se foi omitida informação de tal modo importante que de outro modo o paciente recusaria o tratamento, o médico – e/ou a instituição de saúde - responde por todos os danos causados Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, p.408, 410, 420-421 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf..
20. Por último, não se demonstrou que se a Autora AA houvesse sido devidamente informada a recusa de submissão à cirurgia ... era implausível.
21. Pode, pois, concluir-se, que a falta de informação por parte do SBSI – enquanto gere os SAMS que, por sua vez, detêm o hospital – e do médico - foi culposa e que a Autora teria tido um comportamento conforme com o esclarecimento que recebesse.
(ii) Intensidade e extensão dos deveres de informação e esclarecimento do Réu DD perante a Autora AA
1. Os deveres de informação e de esclarecimento do médico, ainda que se apresentem como próprios também de um estatuto profissional e por ele implicados, fundam-se, em último recurso, num conjunto de princípios e valores gerais que entretecem conceções de justiça generalizadamente aceites no âmbito do direito comum. Tem-se em vista a adoção de decisão livre e esclarecida, porquanto o paciente deve ter todos os conhecimentos que relevam para a decisão sobre o tratamento que lhe é proposto ou heteronomamente determinado.
2. A proteção do paciente assenta na elucidação necessária para assegurar um exercício consciente da sua liberdade, do seu direito de autodeterminação sobre o próprio corpo e sobre os serviços de saúde, para garantir a adoção de decisões livres, informadas e esclarecidas. Apenas um consentimento livre, informado e esclarecido é expressão do poder de autodeterminação do paciente Cfr. Mafalda Miranda Barbosa, “Notas esparsas sobre responsabilidade civil médica – Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de maio de 2003”, in Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 3, n.º 7, 2007, p.144..
3. Sobre o médico impendem deveres “de falar” e estes, por seu turno, articulam-se com o dever de verdade Cfr. Manuel Caneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, 2004, pp.471-473. .
4. A determinação do cumprimento pontual efetivo dos deveres de informação pelo médico deve atender a algumas coordenadas. Assim, o médico deve prestar, relativamente aos serviços que ofereça, que lhe sejam solicitados ou que efetivamente preste, todas as informações necessárias para uma tomada de decisão esclarecida, incluindo nomeadamente aquelas respeitantes a riscos especiais envolvidos pelo tratamento a realizar. Os deveres de informação do médico incluem, portanto, todas as informações necessárias para a adoção de uma decisão esclarecida, designadamente aquelas relativas aos riscos especiais implicados pelos tratamentos a realizar. Tem-se em vista prevenir a lesão dos interesses do paciente.
5. Não pode, no entanto, partir-se de um ponto de referência abstrato, pois na decisão do caso deve ter-se em conta o perfil do paciente concreto. Com efeito, o médico – e/ou a instituição de saúde - deve moldar a informação a prestar de acordo com as características do paciente concreto e não dos pacientes em geral. Esses deveres cumprem-se, portanto, individualmente perante cada um dos pacientes, levando em devida linha de conta a situação concreta de cada um deles, pois se dirigem, efetivamente, à proteção do poder de autodeterminação e da correta formação da vontade do paciente individual: é esta o bem jurídico tutelado O art. 19.º, n.os 3 e 4, do Regulamento de Deontologia Médica prevê o dever do médico de esclarecer o paciente “com palavras adequadas, em termos compreensíveis, adaptados a cada doente, realçando o que tem importância ou o que, sendo menos importante, preocupa o doente” e de levar em devida linha de conta “o estado emocional do doente, a sua capacidade de compreensão e o seu nível cultural”..
6. Pode, nesse sentido, dizer-se que a intensidade e a extensão dos deveres de informação do médico dependem das circunstâncias do caso concreto.
7. Essa informação deve ser completa para evitar uma imagem parcelar, distorcida, da realidade. O médico deve explicitar ao paciente, com um grau suficiente de particularização, a natureza e os riscos associados ao tipo de tratamento proposto. Os riscos relevantes para o cumprimento do dever de prestar informação completa são aqueles em que, em abstrato, o paciente pode vir a incorrer considerando o concreto tratamento em causa. Quanto a estes, a forma extrema que possam apresentar deve, em princípio, ser comunicada em virtude da relevância de que se reveste para a decisão do paciente.
8. Recai, assim, sobre o médico – e/ou a instituição de saúde - a obrigação de comunicar ao paciente os riscos “significativos”, id est, os riscos que sabe ou devia saber que são relevantes e pertinentes para uma pessoa normal colocada nas mesmas circunstâncias do paciente, chamado a consentir. O risco será considerado “significativo” em razão (i) da necessidade terapêutica da intervenção (quanto mais necessária for a intervenção, mais flexível poderá ser a informação a prestar sobre os riscos; considerando a necessidade na perspetiva da urgência, quanto mais urgente o tratamento, menos rigor deverá ser exigido na prestação de informação); (ii) da frequência (quanto mais frequente o risco, mais se justifica a prestação da informação sobre o mesmo; a frequência do risco deve ser apreciada atendendo ao paciente concreto); (iii) da gravidade (a gravidade do um risco, ainda que este não seja frequente, conduz à obrigação da sua comunicação; quanto mais perigosa a intervenção, mais ampla deve ser a informação a prestar; quanto mais grave a patologia, maior o quantum de informação; quanto mais recente o procedimento terapêutico ou diagnóstico, maior o rigor da informação); e (iv) do comportamento do paciente (Na avaliação dos riscos de que o paciente deve ser informado em razão da sua frequência e/ou gravidade, os fatores pessoais do paciente devem ser objeto da devida atenção por parte do médico) Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, pp.370, 376, 379-380, 382 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf..
9. O art. 157.º do CP constitui uma norma fundamental no ordenamento jurídico interno sobre o direito ao esclarecimento (“o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico, a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento...”). O dever de informação e esclarecimento visa permitir ao paciente decidir informada e esclarecidamente se pretende ou não consentir na intervenção que lhe é proposta Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, p.367 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf..
10. Competia, pois, aos Réus SIBS e DD informar, ou assegurar-se de que a Autora AA estava devidamente informada sobre os riscos gerais e específicos da operação ..., assim como sobre aqueles particularmente decorrentes da sua condição de obesidade. Não o tendo feito, violaram o direito desta à autodeterminação sobre o próprio corpo e sobre os cuidados de saúde, assim se tornando responsáveis pela violação do seu direito à integridade física, porquanto a intervenção não foi validamente consentida. Na verdade, havendo aconselhado a operação ..., perante o quadro clínico da Autora, o Réu DD não colocou qualquer restrição.
11. Tratando-se de riscos próprios da cirurgia ..., ainda que fossem remotos, verifica-se uma falha na informação devida à Autora. A informação insuficiente ou deficientemente prestada à Autora impediu-a de exercer o seu direito de escolha entre sujeitar-se ou não a essa intervenção. O agravamento do estado clínico da Autora, ainda que sem desrespeito pelas leges artis por parte do Réu DD, apenas ocorreu em virtude da realização da cirurgia ... que ela poderia ter recusado. Acresce que não se tratava de uma intervenção imprescindível Cfr. Guilherme de Oliveira, “O fim da arte silenciosa”, in Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3854, p.103; Mafalda Miranda Barbosa, “Notas esparsas sobre responsabilidade civil médica – Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de maio de 2003”, in Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 3, n.º 7, 2007, p.145..
12. O comportamento do Réu DD é ilícito - porquanto violou o direito da Autora à autodeterminação sobre o próprio corpo e sobre os cuidados de saúde - e culposo – ainda que apenas negligentemente; mesmo não prevendo que a Autora poderia recusar a cirurgia ..., devê-lo-ia ter previsto de acordo com o padrão do médico satisfatória ou medianamente diligente, esclarecido e prudente Cfr. Mafalda Miranda Barbosa, “Notas esparsas sobre responsabilidade civil médica – Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de maio de 2003”, in Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 3, n.º 7, 2007, p.145..
13. O agravamento do quadro clínico da Autora não é consequência direta da insuficiência ou deficiência da informação. Contudo, tal não obsta à adoção de uma conceção normativa da causalidade Cfr. Mafalda Miranda Barbosa, “Notas esparsas sobre responsabilidade civil médica – Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de maio de 2003”, in Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 3, n.º 7, 2007, p.146., que o torna responsável – tal qual o SBSI - pelas consequências ulteriores da falta de informação. De resto, conforme referido supra, presumindo que o paciente, se houvesse sido adequadamente esclarecido, não teria consentido, respeita-se a regra do art. 563.º do CC.
(iii) Verificação ou não de consentimento hipotético (comportamento lícito alternativo) da Autora AA
1. Os Réus/Recorrentes alegam que mesmo que a informação prestada não houvesse sido insuficiente ou deficiente, a Autora AA teria, de igual modo, consentido em submeter-se à cirurgia .... Convocam, pois, a figura do comportamento lícito alternativo, do consentimento hipotético.
2. Nesta sede, importa notar que o consentimento hipotético não desobriga o médico incumpridor – nem a instituição de saúde – do dever de indemnizar o paciente pelos danos não patrimoniais sofridos no seu direito de autodeterminação sobre o seu corpo e sobre os cuidados de saúde. Porém, in casu, estes danos não foram peticionados, mas apenas, fundamentalmente, aqueles decorrentes da ofensa ao direito à integridade física da Autora – porquanto uma intervenção que não é validamente consentida se traduz numa violação do direito à integridade física e psíquica. Foram apenas alegados e provados danos ao bem jurídico da integridade física e psíquica e não ao bem jurídico da liberdade da Autora.
3. Conforme referido supra, o facto de os deveres de informação do médico terem em vista esclarecer o paciente de modo a permitir-lhe adotar uma decisão livre e esclarecida afigura-se relevante para a aceitação de uma inversão do ónus da prova em matéria de causalidade. Perante a violação desses deveres e a ocorrência de danos que estes deveres têm em vista prevenir, deve admitir-se uma inversão do ónus da prova de comportamento conforme à informação, sem o qual o dever de informação que impende sobre o médico dificilmente poderia ter consequências, se infringido.
4. Compete, assim, ao médico – e/ou à instituição de saúde - provar que, mesmo que houvesse cumprido corretamente os seus deveres de informação, o paciente se teria comportado do mesmo modo, tomando a mesma decisão, ou que o cumprimento dos deveres de informação nenhum impacto teria tido nas decisões do paciente, correndo deste modo o primeiro o risco de não serem provados factos que permitam uma conclusão clara em matéria de nexo de causalidade entre a violação do dever de informação e a decisão do paciente.
5. Atendendo às dificuldades probatórias da causalidade da conduta do devedor da informação em relação ao comportamento que o paciente-credor da informação adotaria em caso de cumprimento correto do dever, assim como em relação à influência que nele exerceu a informação deficiente que recebeu ou a omissão da informação devida, como factos internos, reais ou hipotéticos, insuscetíveis de prova direta, tem lugar a inversão do ónus da prova da influência da deficiência da informação na vontade individual do paciente: parte-se do princípio de que este adotaria a conduta razoável de um paciente na posse da informação devida .
6. Entre nós, a doutrina não admite a invocação da figura do consentimento hipotético quando estejam em causa violações graves dos deveres de conduta do médico, como sucede quando o médico omite informações fundamentais ou essenciais para a autodeterminação do paciente. Reitere-se que, em todo o caso, o critério de aferição desse consentimento é o do paciente concreto e não o do paciente razoável. Depois, o ónus da prova impende sobre o médico – ou a instituição de saúde (art. 342.º, n.º 2, do CC) Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, p.435 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de junho de 2015 (Maria Clara Sottomayor), Proc. n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/13c2cea356c7279080257e590036948b?OpenDocument..
7. Por outro lado, no direito alemão, o comportamento hipotético do paciente deve ser analisado de acordo com o paciente concreto – as suas características e circunstâncias concretas naquele momento – e não segundo o critério do paciente razoável. Se a recusa de submissão à intervenção for medicamente irrazoável ou, no caso de não realização dessa intervenção se verificarem riscos semelhantes com consequências mais gravosas, o paciente deve oferecer fundamentos plausíveis para sustentar que, se porventura houvesse sido prestada informação devida, se teria deparado com um conflito decisório. Apesar de a recusa da Autora não ser, no caso concreto, medicamente irrazoável e de na hipótese de não se sujeitar à intervenção não se verificarem riscos análogos com consequências mais severas, a Autora apresentou, in casu, esses fundamentos. Mas é sempre sobre o médico – e/ou a instituição de saúde - que recai o ónus da prova do consentimento hipotético, que deve observar requisitos muito exigentes: a) que tenha sido prestado ao paciente um mínimo de informação; b) que exista uma presunção fundada de que o paciente não teria recusado a intervenção se tivesse sido devidamente informado; c) que a intervenção: (i) fosse medicamente indicada, (ii) conduzisse a uma melhoria da saúde do paciente, (iii) visasse afastar um perigo grave; d) que ainda que a recusa do paciente se afigurasse objetivamente irrazoável, o que releva é o critério do paciente concreto. No caso de não se afigurar improvável a ocorrência de um conflito decisório se a informação houvesse sido devidamente prestada, o paciente tem o direito de ser indemnizado pela totalidade dos danos sofridos. Note-se, contudo, que não existe consenso sobre o consentimento hipotético enquanto instrumento de desresponsabilização do médico: pois que o direito à autodeterminação não pode ser retirado ao paciente ex post facto Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, pp.425-428 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf.
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8. Não procede a alegação de consentimento hipotético da Autora por falta da respetiva demonstração por parte dos Réus.
(iv) (In)existência de nexo de causalidade entre o erro médico imputado à Ré CC(concessão de alta à Autora AA quando esta apresentava febre) e os danos por si sofridos e peticionados nesta ação
1. O agravamento sério do estado clínico da Autora AA logo 72 horas depois da alta recebida indica e manifesta a violação do direito da Autora a um tratamento adequado ou conforme com as normas profissionais e a ciência médica. A culpa do devedor SBSI presume-se, nos termos do art. 799, n.º 1, do CC (a qualificação da obrigação de prestação de serviços médicos como obrigação de meios não releva para este efeito). E também os Réus SBSI e CCnão lograram demonstrar, como se disse, um comportamento conforme com as leges artis ao conferir alta à Autora, decorrendo mesmo da factualidade dada como provada que a Ré lhe deu alta com febre.
2. A Ré CC não conformou a sua conduta àquela de um médico satisfatória ou medianamente diligente e prudente, colocado nas mesmas circunstâncias, porquanto este não concederia alta a um paciente que apresentasse temperatura.
3. A conduta da Ré CC revela um incumprimento do dever de cuidado para o qual se não apresentou justificação, devendo, por isso, considerar-se culposo.
4. Atendendo ao leque de interesses tutelados pelas leges artis, pode estabelecer-se o nexo de imputação objetiva entre a conduta da Ré CC e os danos diretamente sofridos pela Autora AA e indireta ou reflexamente pelo Autor BB, porquanto estes se inscrevem no círculo de prejuízos que aquelas tendiam a evitar.
(v) Quantum da indemnização atribuída à Autora AA pelo dano biológico, e a ambos os Autores pelos danos patrimoniais e não patrimoniais.
1. A compensação por danos não patrimoniais é arbitrada perante os danos que, “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.” Nesta sede, devem ser levados em conta vários fatores como a idade da vítima, o grau de culpa do agente e, sobretudo, o relatório de dano corporal realizado por um médico perito.
2. IX - A conceptualização do dano não patrimonial, a partir da concreta situação em que se encontra a pessoa lesada, conduz ao reconhecimento de várias subcategorias consoante o aspecto da vida ou da personalidade que ficou afectado: o dano existencial (afecta toda a vida relacional da pessoa lesada com a sua família e a esfera intima da pessoa); o dano estético (afecta o aspecto físico e a beleza corporal, envolvendo a avaliação personalizada da imagem em relação a própria pessoa e perante os outros); o dano biológico (traduz-se na diminuição psicossomática da pessoa, compreendendo factores susceptíveis de afectar as actividades laborais, recreativas, sociais, a vida sexual e sentimental, assumindo um caracter dinâmico, na medida em que tende a agravar-se com o avançar da idade da pessoa lesada, produzindo consequências na mensuração do dano não patrimonial e/ou dano patrimonial); o dano de perda de autonomia (afecta a liberdade de iniciativa, a auto-realização e a auto-estima); o dano da perda da alegria de viver (que altera a forma como a pessoa vê e sente o mundo no seu quotidiano); o dano da afirmação pessoal (que altera a forma como a pessoa se insere no mundo e se sente a si mesma perante os outros); o dano da incapacidade laboral (que, para além da perda de rendimentos, enquanto dano patrimonial futuro, retira à pessoa a sensação de utilidade e de produtividade, acarretando a perda de auto-estima e do sentido da vida; o dano da perda de esperança de vida ou de diminuição da longevidade; o dano da perda de possibilidade de gozar os anos da juventude Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de março de 2015 (Maria Clara Sottomayor), Proc. n.º 1988/05.0TBOVR.P1.S1 – disponível para consulta in www.dgsi.pt. .
3. No que toca às consequências patrimoniais do dano biológico - em função dos 15 pontos percentuais que, segundo os factos, foram fixados à Autora, a sua idade à data dos factos (47 anos), a esperança de vida média (cerca de 32 anos) -, conforme resulta do acórdão de 19 de novembro de 2019, que retifica o de 4 de junho do mesmo ano, o Tribunal da Relação de Lisboa atribuiu o valor de apenas de 2.970,92 €, que se revela muito inferior àquele usualmente concedido pela jurisprudência enunciada.
4. Importa, agora, apreciar o montante da compensação por danos não patrimoniais. De acordo com o art. 496.º, n.º 4, do CC, “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º”. O Tribunal decide, pois, segundo a equidade.
5. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o recurso à equidade “não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2017 (Maria dos Prazeres Beleza), Proc. n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S2 - disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c6ec438b8e346c658025813900593730?OpenDocument. Conforme este acórdão, importa “não nos afastarmos do equilíbrio e do valor relativo das decisões jurisprudenciais mais recentes acórdão de 25 de Junho de 2002 (www.dgsi.pt, proc. nº 02A1321); nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal, de 31 de Janeiro de 2012 (www.dgsi.pt, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1), “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição..
6. De modo particularmente claro e impressivo, “escreveu-se no acórdão de 7 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 3042/06.9TBPNF.P1.S1: “Mais do que discutir a substância do casuístico juízo de equidade que esteve na base da fixação pela Relação do valor indemnizatório arbitrado, em articulação incindível com a especificidade irrepetível do caso concreto, importa essencialmente verificar, num recurso de revista, se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados para todos os casos análogos – muito em particular, se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis (…)”.” Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2017 (Maria dos Prazeres Beleza), Proc. n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S2 - disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c6ec438b8e346c658025813900593730?OpenDocument..
7. A equidade traduz-se, pois, no critério decisivo para a fixação do montante da compensação por danos não patrimoniais. Trata-se da equidade como padrão de justiça do caso concreto, da decisão ex aequo et bono (segundo a equidade). O julgamento segundo a equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição Cfr. António Menezes Cordeiro, “A decisão segundo a equidade”, in O Direito, Ano 122, 1990, abril-junho, p.272..
8. Porém, a decisão segundo a equidade não exclui o pensamento analógico. Uma solução individualizadora que assuma todas as circunstâncias do caso concreto não pode encontrar-se sem a comparação de hipóteses. “O que ocorre é que as analogias de que o julgador inevitavelmente se socorre se encontram, na equidade, desvinculadas da autoridade do sistema. O recurso à analogia na equidade mostra, portanto, a suscetibilidade de generalização do critério de decisão que também possui a sentença de equidade Manuel Carneiro da Frada, “A equidade (ou a justiça com coração): a propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in Revista da Ordem dos Advogados, 2012, Ano 72, Vol. I, pp.140-141..
9. Pode, assim, concluir-se que a equidade não remete, de forma alguma, para o simples entendimento pessoal do juiz ou para a sua íntima convicção, e, também por isso, afasta-se o puro arbítrio judicial. Não está igualmente em causa, na decisão segundo a equidade, uma apreciação intuitiva e puramente individual, mas antes racional e objetivável Manuel Carneiro da Frada, “A equidade (ou a justiça com coração): a propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in Revista da Ordem dos Advogados, 2012, Ano 72, Vol. I, p.143; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de janeiro de 2012 (Nuno Cameira), Proc. n.º 875/05.7TBILH.C1.S1 - disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e8780a8e82ded7968025799c00562411?OpenDocument -, segundo o qual “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição.”..
10. Importa, por conseguinte, ter em conta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, no caso apreciado no acórdão de 8 de junho de 2017 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2017 (Maria dos Prazeres Beleza), Proc. n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S2 disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c6ec438b8e346c658025813900593730?OpenDocument., em consequência de perfuração do intestino ocorrida no decurso da execução de uma colonoscopia, a autora foi vítima de um sofrimento significativo, apercebeu-se do perigo de perda da vida, foi submetida a diversas intervenções cirúrgicas subsequentes, passou a padecer de limitações na sua vida em virtude da visibilidade das cicatrizes, ficou com uma incapacidade geral permanente de 16 pontos, situando-se o grau de culpa do lesante no campo da negligência legalmente presumida. O Tribunal considerou adequado fixar em 80 000 € o montante devido a título de danos não patrimoniais.

Reveste-se ainda de particular importância a análise comparativa empreendida neste acórdão, a este propósito, com outras decisões do Supremo Tribunal de Justiça:

– No acórdão de 7 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 3042/06.9TBPNF.P1.S1, vinha fixado da 2ª Instância uma indemnização de € 60.000,00 por danos não patrimoniais; na revista, a seguradora pretendia o abaixamento para € 40.000,00 e o lesado sustentava que a indemnização devia ser aumentada para € 150.000,00, tal como pretende a recorrente no recurso agora em apreciação.

O Supremo Tribunal de Justiça, considerando os “traços fundamentais” identificativos do caso (“acidente que envolveu lesões múltiplas, de particular extensão e gravidade, cumulando-se as sempre problemáticas lesões neurológicas, ao nível de traumatismos e contusões crâneo-encefálicas (geradoras de perturbações ao nível cognitivo e psicológico) com extensas e gravosas lesões ortopédicas, insuficientemente consolidadas e ultrapassadas; - afectação relevante e irremediável do futuro padrão de vida de sinistrado ainda jovem, associada, desde logo, ao grau de incapacidade fixado (susceptível de, em prazo não muito dilatado, alcançar praticamente os 40%) - com repercussões gravosas, não apenas ao nível da actividade profissional, mas também ao nível da vida pessoal do lesado.- múltiplas cicatrizes, geradoras do consequente dano estético;- internamentos e tratamentos médico-cirúrgicos muito prolongados, com imobilização do doente e envolvendo dores e sofrimentos intensos”) – e confrontando-o com as “situações-limite de numerosas lesões físicas, de elevada gravidade e sofrimento para o lesado, acarretando profundíssimos sofrimentos e sequelas” tratadas nos acórdãos de 28 de Fevereiro de 2008, de 25 de Junho de 2009 e de 7 de Outubro de 2010, respectivamente em www.dgsi.pt como procs. nºs 08B388, 08B3234 e 839/07.6TBPFR.P1.S1), considerou adequado o montante indemnizatório de € 90.000,00;

– No proc. nº 08B388, fixou-se em € 125.000,00 a indemnização a um lesado que esteve em coma profundo durante vários dias,(…); esteve internado em diferentes instituições hospitalares e foi submetido a diversas e delicadas intervenções cirúrgicas e sessões de tratamento e recuperação; quer durante o internamento quer posteriormente, sofreu muitas dores, intensas privações, aborrecimento e desconforto; continuará a sentir tais dores, privações e aborrecimento, bem como a ter necessidade de tratamentos, nomeadamente fisioterapia, por toda a vida; ficou com limitações físicas graves, com elevado índice de incapacidade, que é total em relação à actividade profissional que exercia; que sente, em consequência das dores, aborrecimentos e privações, depressões, infelicidade, sentimento de inferioridade e de diminuição das suas capacidades, bem como profundo desgosto pela sua total dependência de terceiros, quer para se mover quer para tratar de outros assuntos; ficou com cicatrizes extensas e notórias; está condicionado na mobilidade do seu próprio corpo; há manifestamente um dano decorrente de limitação da sua capacidade de afirmação pessoal; há um decréscimo de qualidade de vida, que mais se acentuará com o decurso do tempo, face às limitações de mobilidade e a um previsível acréscimo do grau de dependência em relação a terceiros”;

– No proc. nº 08B2318, fixou-se em € 180.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais a uma lesada que sofreu “ferimentos, dores, tratamentos e demais consequências (…) gravíssimos”, descritos no acórdão, com sequelas permanentes dolorosas e incapacitantes, nomeadamente quanto à mobilidade, também relatadas no acórdão. Note-se que ficou a sofrer de uma IPP de 65%, com incapacidade total para o exercício da profissão habitual, limitação pessoal que também deve ser considerada, no âmbito dos danos não patrimoniais;

– No proc. nº 839/07.6TBPFR.P1.S1, considerou-se não ser “excessiva uma indemnização de €150.000,00, calculada como compensação dos danos não patrimoniais, decorrentes de lesões físicas gravosas e absolutamente incapacitantes, envolvendo uma IPG de 80% e a incapacidade definitiva para qualquer trabalho, com absoluta dependência de terceiros para a realização das actividades diárias e necessidades de permanente assistência clínica, envolvendo degradação plena e irremediável do padrão de vida do lesado.”

Por seu turno, na situação em apreço no acórdão de 7 de março de 2017 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de março de 2017 (Gabriel Catarino), Proc. n.º 6669/11.3TBVNG.S1 - disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d6c49e6fd3e66825802580dc00577556?OpenDocument., após uma intervenção cirúrgica, a autora ficou a padecer de total disfunção ano-rectal e genitourinária, tendo necessariamente passado a recorrer à auto-algaliação e a defecar para um saco, padecendo de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 52 pontos, evidenciando sintomatologia do foro depressivo, a qual se tinha vindo a agravar, também devido às limitações físicas na sua vida quotidiana, e necessitando, ainda, de apoio psicossexual. Atendendo à idade da lesada (… anos) e às consequências gravosas, no plano da auto-estima e da estabilidade físico-psíquica, resultantes da necessidade de auto-algaliação e colostomia, estimou-se em 120 000 € o valor da compensação dos danos não patrimoniais.

No caso do acórdão de 23 de março de 2017 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de março de 2017 (Tomé Gomes), Proc. n.º 296/07.7TBMCN.P1.S1 - disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4af25347f0bf0727802580ed00530d81?OpenDocument., a lesada, então de … anos de idade e que dantes era uma mulher cheia de vida e força, no decurso de uma intervenção cirúrgica destinada a colher tecido necrosado na zona da cabeça femoral para permitir a sua revascularização, sofreu uma lesão do tronco externo do nervo ciático, passando a ter dores intensas e a apresentar uma dismetria positiva de 1,5 cms do MID, tem uma prótese total da anca direita sem aparentes reações, o pé direito ficou pendente, que não consegue levantar, passou a ter grande dificuldade em se deslocar de um local para o outro, necessitando sempre de ajuda de duas canadianas, apresentando marcha claudicante mesmo com recurso às canadianas, ficou incapacitada para o trabalho, nada conseguindo executar, não consegue cozinhar, brunir, lavar, arrumar a casa ou fazer as camas, não é capaz de sair de casa sozinha e de se calçar sozinha, ficou totalmente incapacitada para trabalhar, viu-se obrigada a não ter mais animais em casa, resultando ainda provado que sofre por não poder caminhar, nem deslocar-se sozinha e por saber que será inválida para o resto da vida. O Supremo Tribunal de Justiça, tendo em conta a idade com que a autora sofreu a lesão, a natureza física das sequelas persistentes, a sua incapacidade total para o exercício da atividade profissional ou de qualquer outra atividade similar, bem como para as tarefas domésticas, a sua reduzida mobilidade e o efeito psicológico que tudo isso acarreta para a sua auto-estima e qualidade de vida, teve por ajustada uma indemnização no valor de € 60.000,00.

Por último, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de setembro de 2013 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de setembro de 2013 (Salazar Casanova), Proc. n.º 2146/05.0TVLSB.L1.S1 - disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0f33fe8a9762eeb680257be800546844?OpenDocument., em que se discutiu a responsabilidade civil por ato ilícito de um profissional de estabelecimento hospitalar, contaminado com bactérias, que executou no autor uma punção (introdução da ponta da agulha na veia) em condições tais que se deu a introdução da bactéria na corrente sanguínea. Na fixação do montante indemnizatório, considerou-se o seguinte: i) a angústia do autor, pois que em consequência dessa infeção passou a sofrer de uma septicemia, com falência renal, correndo risco de vida e com celulite (infeção da pele) e suspeita de gangrena gasosa, lesão muito destrutiva (destruição celular), caracterizada por uma multiplicidade de bactérias a qual leva muitas vezes à amputação dos membros, provando-se que, se o cotovelo do autor não conseguisse ser revestido, o braço poderia ter de ser amputado; ii) que o autor teve de se sujeitar a várias intervenções cirúrgicas e a tratamentos muito dolorosos, saindo do Hospital com o braço manchado e com o cotovelo desfigurado; e que ficou com uma cicatriz no abdómen inferior, tendo sido sujeito a três intervenções cirúrgicas destinadas a evitar a amputação e ainda a uma sequência de tratamentos dolorosos: tudo isto conduziu à fixação de um quantum doloris de 6/7; iii) que o autor ficou a padecer de uma incapacidade geral permanente de 15 pontos por ter ficado impossibilitado de lavar as costas sozinho, por o braço direito se encontrar em flexão de 120º, sendo a amplitude de máxima flexão do cotovelo inferior à do membro colateral, não conseguindo levar a mão à nuca. O Tribunal considerou-se adequado fixar a indemnização em 40 000 € a título de danos não patrimoniais.

11. No caso sub judice, no que respeita aos danos não patrimoniais sofridos pela Autora, os autos mostram que no período de tempo aproximadamente de quatro anos, na sequência da primeira intervenção, a Autora foi internada pelo menos oito vezes (uma das quais durante cerca de dezoito meses, dezasseis dos quais em cuidados intensivos – factos provados sob os n.os16, 20, 23, 27, 29 e 31 e 39); que a Autora efetuou inúmeros exames (factos provados sob os n.os18, 21, 24, 25, 28, 30, 33, 34, 40, 41, 42, 43 e 44), nomeadamente com intervenções cirúrgicas (factos provados sob os n.os 9, 18, 33 e 37) em ordem ao encerramento da fístula; que foi submetida a várias drenagens, diálises, endoscopias e cirurgias; que foi vítima de várias complicações, designadamente fístula gástrica e abcesso intra-abdominal; que padeceu de múltiplos episódios de sépsis com ponto de partida abdominal, com falência multiorgânica, ventilação mecânica prolongada, falência renal com hemodiálise transitória, nutrição parentérica prolongada, abcesso infra-hepático, enterocolite a CMV e pneumonias nosocomiais; que teve peritonites e fez uma traqueostomia; que as complicações pós-operatórias por si sofridas apresentam taxas de mortalidade significativas; que sofreu dores de grau seis numa escala de sete graus de gravidade crescente; que ao temo da alta - 26 de novembro de 2010 -, tinha dependência física acentuada, designadamente nos gestos básicos da vida diária e na mobilidade, com dificuldade na continência de esfíncteres, com alimentação mole sem resíduos (facto provado sob o n.º 38); que, como consequência das complicações e dos procedimentos efetuados, ficou sem baço e com um defeito importante na parede abdominal, com fraqueza da mesma, decorrente das cicatrizações em segunda intenção das laparotomias; que ficou com cicatrizes permanentes em todo o abdómen; cicatrizes consistem consubstanciadas num orifício de traqueostomia para ventilação; cicatrizes de laparotomia, que cicatrizou por segunda intenção; cicatrizes de drenos abdominais - consequência da necessidade de tratamento das complicações que ocorreram após a cirurgia; que ficou também com uma perturbação persistente do humor, com moderada repercussão na sua autonomia pessoal, social e profissional, condicionante de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em quinze pontos.

12. Todas estas lesões e padecimentos, que perduraram no tempo, deixaram sequelas psíquicas na Autora, com que esta tem de viver.
13. Refira-se, nesta sede, que se leva em devida linha de conta que os valores indemnizatórios que os tribunais vêm atribuindo por morte não são limitativos das indemnizações fixadas por danos não patrimoniais, que são sofridos pessoalmente pelo sujeito e não por terceiros.
14. Apesar de se afigurar indiscutível – face aos factos dados como provados - que a Autora sofreu gravemente, na sequência da intervenção ... e de tudo o mais que se lhe seguiu, assim como em consequência das sequelas que a acompanharão o resto da vida, é incontrovertível a menor gravidade das sequelas físicas e psíquicas de que padeceu - e passou também a padecer – perante aquelas em causa nos acórdãos mencionados. Isto justifica a redução do montante da compensação dos danos não patrimoniais. Este resultado conduz igualmente à redução do quantum da compensação dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor.
15. Tratando-se de danos causados pelo incumprimento de deveres específicos dos autores do dano para com o lesado, o que é decisivo é encontrar uma solução justa na relação lesado-lesante. O recurso à equidade para a determinação da indemnização a atribuir por danos não patrimoniais nos termos do art. 496.º, n.os 1 e 4, do CC, não afasta – conforme mencionado supra -, contudo, a conveniência de uma harmonização de critérios jurisprudenciais. Estando em causa uma indemnização fixada pelo Tribunal da Relação segundo a equidade, num recurso de revista importa essencialmente verificar se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios se afiguram suscetíveis de ser generalizados e se se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência atualista, devem ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2017 (Maria dos Prazeres Beleza), Proc. n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S2 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c6ec438b8e346c658025813900593730?OpenDocument..
16. Assim, tendo em conta a factualidade provada – mencionada supra – e atendendo àqueles que são os critérios da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, entende-se como justo e adequado reduzir a quantia de 275.000,00 € para 140.000,00 € a atribuir à Autora a título de compensação dos danos não patrimoniais.
17. Pelo que, nesta parte, o recurso interposto será parcialmente procedente.
18. Por seu turno, no que respeita ao Autor BB, provou-se que este teve dificuldades em dormir e que, depois do que viu e passou durante os tratamentos da Autora AA, não consegue com ela manter vida conjugal e sexual. Está igualmente em causa a repercussão no Autor do sofrimento e da depressão da Autora.
19. Pelas mesmas razões referidas a propósito da compensação dos danos não patrimoniais da Autora AA, considera-se justo e adequado reduzir o montante de 25.000,00 € para 20.000,00 € a atribuir ao Autor como compensação dos danos não patrimoniais.
20. Pelo que, também nesta parte, o recurso interposto será parcialmente procedente.
21. Por seu turno, quanto aos danos patrimoniais, o Autor BB foi condenado a pagar ao Réu SBSI a quantia de 195.458,70 € (facto provado sob o n.º 56), respeitante a encargos com a assistência médica e hospitalar prestada à Autora AA. Além disso, o Autor arcou com as despesas do consumo de combustível e sofreu o desgaste do automóvel nas deslocações … e a ..., durante os internamentos e idas às urgências (facto provado sob o n.º 57). Em virtude do apoio prestado à Autora, a produtividade do seu trabalho diminuiu e, consequentemente, perdeu o cargo de gerente do banco em que trabalhava (facto provado sob o n.º 58). Por outro lado, uma vez que não se provou o montante exato perdido pelo Autor em virtude da cessação das funções de gerente do banco em que trabalhava, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou equitativamente dentro dos limites que teve por provados, atribuindo-lhe o valor de 10.000,00 €. O mesmo se diga a propósito das despesas com combustível e desgaste de automóvel, tendo o Tribunal da Relação considerado adequado – atendendo ao período de tempo e à frequência que resulta dos factos – fixar esse montante no valor de 1.000,00 €.
22. Visando a responsabilidade civil tornar o lesado indemne, não se compreenderia que estes danos, efetivamente sofridos pelo Autor BB, não fossem reparados.

C) Em síntese, do exposto decorre o seguinte quadro de responsabilidade dos sujeitos:
1. A responsabilidade pelos danos sofridos pela Autora AA – e também pelos danos indireta ou reflexamente sofridos pelo Autor BB- deve ser imputada a vários sujeitos: SBSI, DD e CC.
2. Ao SBSI – enquanto gere os SAMS, que, por seu turno, detêm o hospital Os SAMS são uma entidade dotada de autonomia administrativa e financeira, gerida pelo Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, que assegura aos seus beneficiários a proteção na saúde através da prestação interna de cuidados de saúde e da atribuição de comparticipações por despesas realizados fora dos seus serviços. Estes serviços são regulados pelo direito privado. Via de regra, estar-se-á perante o assim denominado “contrato total”. -, em primeiro lugar, como devedor de uma prestação de cuidados médicos para com a Autora, à qual se encontra ligado por uma relação obrigacional que a tem como credora desses cuidados. E tendo em conta que o SBSI – na qualidade referida - responde pelos atos de todos os auxiliares que emprega para o cumprimento das suas obrigações, como se tais atos fossem praticados por ele mesmo (art. 800.º, n.º 1, do CC).
3. A responsabilidade do SBSI não oferece dúvidas. Aliás, o art. 800.º do CC não se aplica apenas ao incumprimento de deveres de prestação principal, mas também à violação de deveres de prestação secundária e de deveres laterais Cfr. Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, “Anotação ao artigo 800.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p.1113..
4. Já o auxiliar (médico), não tendo assumido pessoalmente nenhuma vinculação perante o paciente, não pode ser responsabilizado por via obrigacional. Isto não obsta, contudo, à sua responsabilização por facto próprio, nomeadamente ao abrigo da responsabilidade aquiliana.
5. Apesar de gozarem de autonomia técnica e de estarem abrangidos pelo princípio deontológico da independência profissional, no plano externo, os médicos surgem, perante o paciente, como auxiliares do SBSI ou do seu hospital. Nesta relação triangular médico-SIBS-paciente, no plano das relações externas, o SBSI – enquanto gere os SAMS que, por seu turno, detêm o Hospital - responde diretamente pelos danos causados por ação culposa do seu auxiliar, nos termos do referido preceito Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, p.594 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf.
O art. 800.º, n.º 1, ficciona que a conduta dos auxiliares ou dos representantes é uma conduta do devedor: este fica colocado em situação idêntica àquela em que estaria se fosse ele próprio, pessoalmente, a cumprir a obrigação. Cfr. Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, “Anotação ao artigo 800.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p.1114..
6. Tendo sido celebrado um “contrato total” (que tem elementos do contrato de prestação de serviços médicos, de internamento, de locação, de compra e venda e de empreitada), é o SBSI – enquanto gere os SAMS, detentores do hospital – que responde (antes de mais) por todos os danos verificados. Note-se que os Réus – SBSI, DD e CC-, nem alegaram e nem demonstraram a celebração de um “contrato dividido” em lugar de um “contrato total”. De acordo com o art. 800.º, o SBSI – na qualidade indicada - responde pelos atos dos seus auxiliares (médicos, enfermeiros, auxiliares administrativos ou de limpeza), que nenhuma relação contratual mantêm diretamente com o paciente. É o SBSI – na qualidade mencionada – que se encontra contratualmente obrigado à realização de prestações adequadas às escolhas terapêuticas do paciente e da prestação de assistência médica solicitada, assumindo a correspondente responsabilidade pelos danos causados Cfr. André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, pp.598-599 – disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de março de 2017 (Tomé Gomes), Proc. n.º 296/07.7TBMCN.P1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4af25347f0bf0727802580ed00530d81?OpenDocument.. Sobre o SBSI impendia também o dever de informar e de obter o consentimento informado do paciente. De notar, por fim, que a responsabilidade do SBSI decorre também, independentemente do contrato, da lesão infringida à integridade física da Autora AA, sem consentimento válido por parte desta, que é fundamento de responsabilidade aquiliana ao abrigo do art. 483.º, n.º 1, do CC (em articulação com o art. 70.º, n.º 1, do mesmo corpo de normas) Basta a ofensa de um direito absoluto, como são os direitos de personalidade, para que a lesão verificada esteja contemplada quer pelas regras próprias da responsabilidade por atos ilícitos (art. 483.º, n.º 1, do CC), quer pelas regras da responsabilidade contratual, se tal lesão ocorrer no âmbito de uma relação contratual existente entre lesado e lesante.
A propósito da combinação dos regimes da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, no âmbito da atividade médica, cfr. Nuno Manuel Pinto de Oliveira, “Ilicitude e culpa na responsabilidade médica”, in (I) Materiais para o Direito da Saúde n.º 1, Centro de Direito Biomédico, Instituto Jurídico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2019, pp.32 e ss..

7. Mas, além ou independentemente desta responsabilidade do SBIS – enquanto gere os SAMS, detentores do hospital - por atos dos seus auxiliares, existe também uma responsabilidade própria, pessoal, dos médicos CCe DD, auxiliares de cumprimento das obrigações do hospital para com a Autora AA. De facto, estes respondem por violação de deveres de proteção para com a paciente; deveres que sobre eles impendem enquanto auxiliares no cumprimento de um contrato ou obrigação alheia – na qualidade referida - tendo por objeto a prestação de cuidados de saúde a outrem, e deveres que se fundam no contrato de trabalho ou de prestação de serviços médicos que vinculam esses profissionais de saúde para com o hospital ... em que prestam serviço: pois desses contratos – de trabalho ou de prestação de serviço - decorrem deveres de cuidado e proteção para com o paciente que o credor da prestação (o SBSI, na qualidade mencionada) os encarrega de cuidar. Os contratos de tais profissionais de saúde são, nesse sentido, contratos com eficácia de proteção para terceiros, por isso que vinculam o devedor a cuidados destinadas a preservar interesses de terceiros (os pacientes) estranhos à relação obrigacional estabelecida com o SBSI (seu credor) – na qualidade referida. Tratando-se de deveres para proteção da integridade física, assemelham-se aos deveres delituais. Os contratos com eficácia de proteção para terceiros decorrem da complexidade da relação obrigacional que, além dos deveres de prestar entre credor e devedor, pode implicar também deveres de proteção e cuidado – designadamente por força da regra de conduta segundo a boa fé (art. 762.º, n.º 2, do CC) - para com terceiros destinatários ou beneficiários da prestação Sobre a figura, por todos, Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Coimbra, Almedina, 1989, pp.518 ss, assim como Manuel A. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, 2003, pp.135 e ss..
8. Em qualquer caso, a lesão do direito à integridade física gera sempre também responsabilidade delitual ou aquiliana pessoal do médico perante o paciente ao abrigo do art. 483.º, n.º 1, do CC. Por tais danos respondem, portanto, solidariamente, o SBSI e os Réus médicos - DD e CC- (art. 497.º, n.º 1, do CC).
9. Os arts. 497.º, n.º 1, e 512.º, n.º 1, do CC, não estabelecem como requisito da solidariedade, a identidade de causa ou de fonte da obrigação - podendo as obrigações dos diferentes responsáveis ter fundamentos diferentes -, nem que as obrigações provenham do mesmo facto jurídico. Também não exigem nem a responsabilidade de cada devedor pela totalidade da prestação e nem a liberação recíproca total perante o credor comum Cfr. Gabriela Páris Fernandes, “Anotação ao artigo 512.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, ,2018, p.367..
10. A aparente contradição entre a letra do art. 512.º, n.º 1, do CC, que menciona “prestação” no singular, e o n.º 2, do mesmo preceito, que admite a diferença de conteúdo das prestações de cada um, é superada quando se considera a natureza da obrigação solidária. À pluralidade de sujeitos corresponde efetivamente uma pluralidade de vínculos, com relativa autonomia entre si, conforme se retira do art. 514.º, n.º 2, do CC, que contempla, ao lado dos meios de defesa comuns, também meios de defesa pessoais, que cada devedor pode opor ao credor. Contudo, têm uma identidade comum e são tratados, no plano externo, para efeitos de exigibilidade integral ou realização integral, como se de uma só prestação se tratasse cujo cumprimento extingue, num ato só, todos os vínculos Cfr. Ana Afonso, “Anotação ao artigo 512.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018,p.432..
11. Resulta, pois, do art. 512.º, n.º 2, do CC, que não é requisito da solidariedade que todas as obrigações tenham o mesmo conteúdo obrigacional. Não se prescinde, todavia, da identidade substancial da prestação nas relações externas. Também não é indispensável a identidade causal, como decorre do art. 507.º, n.º 1, do mesmo corpo de normas. A obrigação pode até nascer em momentos sucessivos e com fonte diversa. Assim, por exemplo, quando há uma pluralidade de responsáveis civis em que um responde extracontratualmente com base em culpa e outro por violação de um dever de fonte contratual Cfr. Ana Afonso, “Anotação ao artigo 512.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.432; Acórdão do STJ de 1 de outubro de 2009 (Álvaro Rodrigues), Proc. n.º 118/2000.S1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/66ee10ad4f554cf8802576420034a76b?OpenDocument..
12. Na medida em que a obrigação solidária determina a correspondência a uma pluralidade de sujeitos de um cumprimento unitário da prestação, de modo que, havendo vários sujeitos passivos, qualquer destes responde perante o credor comum pela totalidade da prestação, cujo cumprimento a todos exonera, a doutrina considera que a identidade da prestação traduz uma das características das obrigações solidárias Cfr. Acórdão do STJ de 1 de outubro de 2009 (Álvaro Rodrigues), Proc. n.º 118/2000.S1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/66ee10ad4f554cf8802576420034a76b?OpenDocument.. Trata-se, todavia, da identidade da prestação nas relações externas.
13. A comunhão de fim, caraterística indefetível da solidariedade, evidencia a existência de uma relação entre os obrigados para a satisfação de um mesmo interesse do credor Cfr. Ana Afonso, “Anotação ao artigo 512.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, pp.432-433.. No caso em apreço, pode afirmar-se essa comunhão de fim, pois que existe uma relação entre os SBSI e os Réus médicos para satisfação de um mesmo interesse da Autora.
14. E os danos pelos quais respondem são os que se ligam causalmente aos ilícitos praticados. Estando em causa deveres destinados à preservação da vida, da saúde e da integridade física, bens fundamentais, justifica-se considerar – pela prevenção da lesão de bens jurídicos fundamentais - a versão negativa, mais rigorosa, da doutrina da causalidade adequada. Isto é: são indemnizáveis todos os danos sobrevindos ao ilícito praticado, devendo excluir-se apenas os decorrentes de factos ou causas anormais positivamente demonstradas Nesse sentido, João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2003, p.894..
15. Estão em causa danos patrimoniais e não patrimoniais.
16. Do mencionado supra decorre a obrigação de indemnizar os danos patrimoniais (despesas hospitalares, despesas de deslocação – consumo de combustível e desgaste do automóvel - para visita à Autora AA internada no hospital .... Se alguma(s) desta(s) despesas houvesse(m) sido efetuada(s) antes da intervenção da Ré médica - CC-, sempre se poderia dizer que a sua conduta as teria frustrado e, por isso, por elas seria também responsável) sofridos por terceiro - o Autor -, ao abrigo do art. 495.º, n.os 1 e 2 do CC. Entende-se, nesta sede, que o conceito de lesão corporal abrange as lesões à saúde. O mesmo se diga a propósito dos lucros cessantes de que o Autor ficou privado por deixar de desenvolver as funções de gerente que até então exercia em virtude de, à luz do dever conjugal de cooperação, plasmado nos arts 1672.º e 1674.º do CC, se confrontar com a necessidade de cuidar da Autora Cfr. Gabriela Páris Fernandes, “Anotação ao artigo 495.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2018, pp.344-345..
17. No que respeita aos danos não patrimoniais, o art. 496.º, n.º 1, do CC, consente tutelar o sujeito nas várias dimensões da sua existência e no desenvolvimento da sua personalidade à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção civil da personalidade, segundo os arts 70.º e ss. Trata-se, agora, dos danos não patrimoniais sofridos pela Autora AA, como as perturbações emocionais e afetivas, o sofrimento físico e psíquico – o quantum doloris -, os prejuízos estético, e até sexual, existencial ou à vida de relação e o dano corporal – mesmo que dele não resulte diminuição de rendimentos profissionais Cfr. Gabriela Páris Fernandes, “Anotação ao artigo 495.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2018, pp.356 e ss.. Importa considerar que, no que respeita ao dano corporal, reveste-se de particular importância a natureza e a gravidade do dano, como critério de valoração, justificando-se até que o montante normalmente atribuído pela jurisprudência para a indemnização do dano da morte seja excedido nos casos em que os danos físicos e psíquicos decorrentes da ofensa sejam de extrema gravidade, fortemente incapacitantes e dolorosos e atinjam pessoas cuja esperança de vida seja ainda muito elevada Cfr. Gabriela Páris Fernandes, “Anotação ao artigo 495.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2018, p.364.. Não devendo esquecer-se que o dano da morte não é, naturalmente, susceptível de reparação ao falecido, beneficiando outros da indemnização a atribuir, diferentemente dos danos não patrimoniais que consideramos.
18. Por seu turno, de acordo com alguma doutrina e jurisprudência e, atualmente, também conforme o AUJ n.º 6/2014, de 9 de janeiro de 2014 De acordo com o AUJ n.º 6/2014, os arts. 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1, do CC, “devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos pelo cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”., porquanto a Autora AA foi atingida de modo particularmente grave e o seu cônjuge – o Autor BB– sofreu danos particularmente graves, os danos não patrimoniais do Autor devem ser compensados. Trata-se dos assim denominados danos não patrimoniais indiretos ou reflexos: a Autora sofreu lesões corporais graves que afetaram negativamente a esfera jurídica do Autor – seu marido -, causando-lhe danos. Aquelas lesões, além do sofrimento infligido ao Autor, decorrente da condição de saúde da Autora, afetaram o desenvolvimento da sua vida quotidiana, não podendo, nem dedicar-se à vida profissional como até então, nem a atividades lúdicas ou de tempos livres, porquanto se encontrava adstrito ao cumprimento do dever conjugal de cooperação Cfr. Rute Teixeira Pedro, “Os danos não patrimoniais (ditos) indiretos: uma reflexão ratione personae sobre a sua ressarcibilidade”, in Responsabilidade Civil – cinquenta anos em Portugal, quinze anos no Brasil, coord.: Mafalda Miranda Barbosa/Francisco Moniz, Coimbra, Instituto Jurídico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2017, pp.259-260. .
19. Sem prejuízo, a medida jurídico-normativa pela qual cada um dos Réus – SIBS, DD e CC- é responsável pelos danos causados não é igual.
20. O SBSI – enquanto gere os SAMS que, por sua vez, detêm o Hospital – é que era diretamente devedor, perante a Autora - AA - , das obrigações de informação e de obtenção de consentimento esclarecido, assim como de prestação de cuidados médicos. Os Réus médicos - DD e CC- encontravam-se no cumprimento de obrigações alheias: do SBSI perante a Autora. Na verdade, enquanto existe uma vinculação direta do SBSI perante a Autora, a vinculação dos Réus médicos é secundária, acessória. Torna-se irrelevante, deste ponto de vista, a identidade do médico que concretamente cumpra o dever de informar e de obter o consentimento esclarecido do paciente, ou do médico que lhe conceda alta hospitalar. Verifica-se uma certa fungibilidade da pessoa do médico que observe esses deveres.
21. Na perspetiva de uma correta valoração jurídico-normativa, o grau de imputação ao SBSI – na qualidade referida - e a cada um dos Réus médicos - DD e CC- afigura-se diferente, sendo menor o dos últimos: o ilícito grava menos.
22. O nexo de imputação aos sujeitos deve, por isso, ser diferenciado, porquanto o ilícito não é idêntico (não decorre, para os médicos, de uma vinculação direta perante a Autora), tanto que os Réus médicos - DD e CC- apenas tinham que se assegurar de que a informação fora devidamente prestada à Autora e que a alta lhe era conferida em condições medicamente adequadas. Nenhum dos médicos - AA - era o destinatário primário desses deveres: enquanto sobre o Réu médico - DD - impendia apenas o dever de averiguar que a informação fora devidamente prestada à Autora e que esta havia prestado o seu consentimento livre e esclarecido para a intervenção, sobre a Ré médica - CC- recaía apenas o dever de averiguar da reunião das circunstâncias adequadas para a concessão da alta.
23. Seguindo a tese atualmente perfilhada pelo Supremo Tribunal de Justiça Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 2011 (Bettencourt Faria), Proc. n.º 674/2001.P L.S1, de 2 de Junho de 2015 (Maria Clara Sottomayor), Proc. n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1, de 28 de Janeiro de 2016 (Maria da Graça Trigo), Proc. n.º 136/12.5TVLSB.L1.S1, de 26 de Abril de 2016 (Silva Salazar), Proc. n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1, de 7 de Março de 2017 (Gabriel Catarino), Proc. n.º 6669/11.3TBVNG.S1 e de 22 de Março de 2018 (Maria da Graça Trigo), Proc. n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1., que é a da consunção, o Réu SBSI responde ao abrigo da responsabilidade contratual – e não também da delitual - e os Réus médicos - DD e CC- respondem à luz da responsabilidade delitual. Pode, assim, dizer-se que a causalidade entre a violação do dever de informar, ou o dever de conceder alta em condições adequadas e o dano é, de um ponto de vista normativo-valorativo, mais ténue, menos intenso.
24. Por outro lado, no que respeita aos Réus médicos - DD e CC-, estando em causa condutas que implicam uma exposição ao risco, é o dono do interesse – o SBSI -, que tem o domínio funcional de todo o processo, que há-de ser fundamentalmente onerado.
25. Importa, por último, referir que se admite a aplicação do art. 494.º O art. 494.º confere ao juiz um poder moderador, atribuindo-lhe a faculdade de fixar, segundo um juízo de equidade, uma quantia indemnizatória inferior à que corresponderia aos danos causados segundo o critério geral do art. 562.º. Cfr. Gabriela Páris Fernandes, “Anotação ao artigo 494.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.336. do CC no âmbito das obrigações solidárias, nas relações lesante-lesado, a um dos devedores solidários Cfr. Gabriela Páris Fernandes, “Anotação ao artigo 512.º”, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.369; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de julho de 2012 (João Bernardo), Proc. n.º 1451/07.5TBGRD.C1.S1 – disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/84d3a692d41c1d3780257a3300309bf8?OpenDocument.. De acordo com este preceito, “Quando a responsabilidade se fundar em mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.
26. Esta norma permite, mediante o recurso à equidade, que, se as circunstâncias do caso o justificarem, a indemnização seja fixada em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados.
27. Nada impede que, havendo vários responsáveis pelos mesmos danos, mesmo em regime de solidariedade, se proceda à diminuição do montante indemnizatório relativamente apenas a alguns delesO próprio texto do artigo, ao mandar atender à situação económica do agente, pressupõe essa diferenciação, que terá de se considerar extensiva aos casos cuja decisão assente no grau de culpabilidade ou nas demais circunstâncias do caso” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de julho de 2012 (João Bernardo), Proc. n.º 1451/07.5TBGRD.C1.S1 – disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/84d3a692d41c1d3780257a3300309bf8?OpenDocument..
28. Afirma-se, nesta sede, que só há verdadeira solidariedade em relação à parte comum da responsabilidade De acordo com João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2003, p.759, “ […]só há verdadeira solidariedade em relação à parte comum da responsabilidade […].Só essa parte comum corresponde à prestação integral por que responde cada um dos devedores, nos termos do n.º 1 do artigo 512.º.”..
29. Nada ou pouco se sabe sobre a situação económica do SBSI, de cada um dos Réus médicos - DD e CC- e dos lesados - AA e BB. Mas sabe-se que é diferente a medida jurídico-normativa pela qual cada um dos Réus é responsável pelos danos causados. Conforme mencionado supra, a vinculação direta do SBSI perante a Autora - AA - não pode ser indiferente ao julgador, na consideração das demais circunstâncias do caso, ao abrigo do art. 494.º do CC.
30. De resto, seria injusto condenar do mesmo modo o sujeito que no cumprimento de obrigação alheia perante o lesado pratica um facto ilícito - gerador de responsabilidade própria – e o sujeito que se vincula diretamente à prestação de cuidados médicos.
31. O Réu SBSI e os Réus médicos respondem de modo não idêntico, porque a sua participação na produção dos danos e as imputações não são perfeitamente idênticas do ponto de vista jurídico-normativo.
32. Insiste-se em que, estando em causa, no seu cerne, o incumprimento de uma relação obrigacional por parte do SBSI, o que sobretudo importa é a situação do lesante e do lesado, para uma justiça reparatória, à luz das obrigações infringidas.
33. Por isso, entende-se que a indemnização a que devem ser os Réus médicos - DD e CC- não deve ultrapassar o montante de 80.000,00 €.
34. Importa acrescentar que, não obstante se tratar de danos que, de acordo com a lei, devem ser considerados ocasionados por práticas médicas deficientes, não está em causa nenhum juízo geral sobre a honorabilidade e a competência profissional dos Réus médicos DD e CC.

IV - Decisão
Nos termos expostos, declara-se nulo o acórdão recorrido com base na oposição entre os fundamentos e a decisão e, conforme o art. 684.º, n.º 1, do CPC, supre-se essa nulidade determinando-se que a Ré CC é condenada, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, solidariamente a indemnizar os Autores pela totalidade dos danos não patrimoniais alegados e considerados provados, porque respeitantes ao período de tempo subsequente à sua intervenção, de um lado e, de outro, a ressarcir os danos patrimoniais sofridos pelos Autores apenas após a sua intervenção.
Na parcial procedência do recurso, altera-se o acórdão recorrido, fixando-se o valor da compensação por danos não patrimoniais a atribuir à Autora em 140.000,00 e ao Autor em 20.000,00 €.
Determina-se que os Réus médicos DD e CC respondem apenas até ao montante de 80.000,00 € pela totalidade dos danos (patrimoniais - 209.792,34 € - e não patrimoniais – 160.000,00 €), respondendo exclusivamente o Réu SBSI pelo remanescente (289.792,34 €).
O recurso improcede em tudo o mais, confirmando-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ainda que, ao menos parcialmente, com diferente fundamentação. Note-se também que, ainda que algumas despesas houvessem sido efetuadas pelo Autor BB entre a cirurgia e a alta hospitalar da Autora AA, elas teriam sido frustradas também pela conduta da Ré médica CC que, por isso, por elas também deveria responder.

Custas pelos Recorrentes na proporção do respetivo decaimento.
Lisboa, 8 de setembro de 2020
.

Sumário: 1. A ambiguidade ou a obscuridade apenas relevam quando gerem ininteligibilidade, id est, quando um declaratário normal não possa extrair da parte decisória (e só desta) um sentido ou alcance unívoco, mesmo depois de lançar mão da fundamentação para a interpretar. Se os Recorrentes compreendem bem os fundamentos e apenas não concordam com eles, nem com a respetiva decisão, não se verifica a alegada ambiguidade/obscuridade originadora de ininteligibilidade.

2. Verifica-se a existência de oposição entre os fundamentos e a decisão, de alguma ilogicidade, quando no dispositivo do acórdão recorrido o Tribunal da Relação não delimita no tempo, em oposição ou divergência com a correspondente fundamentação, os danos patrimoniais e não patrimoniais em cujo ressarcimento condena solidariamente a Ré.

3. A condenação dos Réus no ressarcimento dos danos em apreço, sofridos pelo Autor, respeita os limites do pedido, já que o aresto se limitou, neste âmbito, a deferir a pretensão do Autor.

4. A não apresentação, sem qualquer justificação, dos relatórios – médicos ou de enfermeiros – respeitantes ao dia da alta hospitalar, por parte do Réu, afigura-se suscetível de tornar impossível, ou particularmente difícil, a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e, por isso, justifica a inversão do ónus da prova relativamente ao estado febril da Autora ao tempo da alta hospitalar. 5. O juízo probatório acerca da verificação da situação febril da Autora no dia da alta hospitalar não padece de qualquer ilogicidade evidente ou manifesta, pelo que não merece censura.

6. Perante a violação ilícita e culposa de deveres de informação, por parte do médico, e a ocorrência de danos que aqueles visam prevenir, acolhe-se uma presunção de comportamento conforme à informação, dispensando o paciente da prova da causalidade (preenchedora) que intercede entre o fundamento da responsabilidade invocado e os danos por si sofridos, que o cumprimento correto daqueles deveres visa prevenir (perturbação de decisão esclarecida do paciente).

7. A cirurgia ..., não tendo sido validamente consentida – designadamente porque a Autora não foi devida e adequadamente informada e esclarecida nem sobre os respetivos riscos gerais e específicos e nem sobre os riscos inerentes à sua condição de obesidade -, constitui uma ofensa ao seu direito à integridade física por falta de justificação, conforme resulta dos arts. 81.º e 340.º do CC e do art. 157.º do CP.

8. Não pode partir-se de um ponto de referência abstrato, pois na decisão do caso deve ter-se em conta o perfil do paciente concreto. Pode, nesse sentido, dizer-se que a intensidade e a extensão dos deveres de informação do médico dependem das circunstâncias do caso concreto.

9. Compete à instituição de saúde – e/ou médico - provar que, mesmo que houvesse cumprido corretamente os seus deveres de informação, o paciente se teria comportado do mesmo modo, tomando a mesma decisão. Não deve admitir-se a invocação da figura do consentimento hipotético quando estejam em causa violações graves dos deveres de conduta da instituição de saúde – e/ou do médico -, como sucede quando aquela omite informações fundamentais ou essenciais para a autodeterminação do paciente.

10. A responsabilidade pelos danos diretamente sofridos pela Autora – e também pelos danos indireta ou reflexamente sofridos pelo Autor - deve ser imputada, desde logo, ao Hospital, como devedor de uma prestação de cuidados médicos para com a Autora, à qual se encontra ligado por uma relação obrigacional que a tem como credora desses cuidados. Havendo sido celebrado um “contrato total”, é o Hospital que responde por todos os danos verificados. De acordo com o art. 800.º, o Hospital responde pelos atos dos seus auxiliares, que nenhuma relação contratual mantêm diretamente com o paciente. De notar que a responsabilidade do Hospital decorre também, independentemente do contrato, da lesão infringida à integridade física da Autora, que é fundamento de responsabilidade aquiliana.

11. Mas, além ou independentemente da responsabilidade do Hospital por atos dos seus auxiliares, existe também uma responsabilidade própria, pessoal, dos médicos, auxiliares de cumprimento das obrigações do Hospital para com a Autora. Pode também dizer-se que os contratos de tais profissionais de saúde são, nesse sentido, contratos com eficácia de proteção para terceiros. De resto, a lesão do direito à integridade física gera também responsabilidade delitual pessoal do médico perante o paciente ao abrigo do art. 483.º, n.º 1, do CC.

12. Pelos danos verificados respondem, solidariamente, o Hospital e os Réus médicos (art. 497.º, n.º 1, do CC). Os danos pelos quais respondem são os que se ligam causalmente aos ilícitos praticados. Estando em causa deveres destinados à preservação da vida, da saúde e da integridade física, bens fundamentais, justifica-se considerar – pela prevenção da lesão de bens jurídicos fundamentais - a versão negativa, mais rigorosa, da doutrina da causalidade adequada. Isto é: são indemnizáveis todos os danos sobrevindos ao ilícito praticado, devendo excluir-se apenas os decorrentes de factos ou causas anormais positivamente demonstradas.

13. Os arts. 497.º, n.º 1, e 512.º, n.º 1, do CC, não estabelecem como requisito da solidariedade, a identidade de causa ou de fonte da obrigação - podendo as obrigações dos diferentes responsáveis ter fundamentos diferentes -, nem que as obrigações provenham do mesmo facto jurídico.

14. Nada impede que, à luz do art. 494.º do CC, havendo vários responsáveis pelos mesmos danos, mesmo em regime de solidariedade, se proceda à diminuição do montante indemnizatório relativamente apenas a alguns deles.


Este acórdão obteve o voto de conformidade dos Excelentíssimos Senhores Conselheiros Adjuntos António Magalhães – que votou a decisão - e Fernando Dias, a quem o respetivo projeto já havia sido apresentado, e que não o assinam por, em virtude das atuais circunstâncias de pandemia de covid-19, provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, não se encontrarem presentes (art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, que lhe foi aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio).

Maria João Vaz Tomé (Relatora)