Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2146/05.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
CULPA
DEVER DE DILIGÊNCIA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE HOSPITALAR
ACTO MÉDICO
ÓNUS DA PROVA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Data do Acordão: 09/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO DE PROCESSO CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO /SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, p. 576.
- Guilherme de Oliveira, in RLJ, Ano 125, p. 34.
- Sérvulo Correia, «As Relações de Prestação de Cuidados pelas Unidades de Saúde do Serviço Nacional de Saúde», in Direito da Saúde e Bioética, ed. AAFDL, 1996, pp. 21 a 27.
- V. Freitas do Amaral, «Natureza da Responsabilidade Civil por Atos Médicos Praticados em Estabelecimentos de Saúde», in Direito da Saúde e Bioética, Ed. LEX, 1991, pp. 123, ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 344.º, 346.º, 487.º, N.º2, 569.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 661.º, N.º2, 722.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:
-DE 9-6-2011, N.º 0762/09.
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 3-11-1992, B.M.J. 421- 400, AC. DO S.T.J. DE 11-10-1994, B.M.J. 440-448, DE 22-4-1997, C.J., 2, PÁG. 70, AC. DO S.T.J. DE 21-3-2012, REVISTA N.º 6123/03. 7TBVFR.P1.S1.
Sumário :

I - Os poderes de cognição do STJ admitem considerar, com base nos factos provados, se foi praticado um ato lesivo culposo à luz do critério que consta do art. 487.º, n.º 2, do CC, ou seja, aferir da diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso.

II - Assim sendo, deve considerar-se que incorreu em ato ilícito o profissional de estabelecimento hospitalar que se encontra contaminado com bactérias, como a P. Aeroginosa da espécie Pseudomonas, que executou no autor uma punção (introdução da ponta da agulha na veia) em condições tais que se deu a introdução da bactéria na corrente sanguínea.

III - Resultando necessariamente tal ocorrência de uma execução defeituosa, não compete ao lesado, em sede de ónus da prova (art. 342.º, n.º 1, do CC), provar ainda o concreto erro de execução determinante da infeção, designadamente se a infeção resultou do manuseamento do material utilizado sem proteção ou do contacto deste com superfícies ou matérias não desinfetadas ou da sua falta de esterilização ou da falta de limpeza e desinfeção da zona corporal.

IV - Com efeito, cumprindo ao agente hospitalar executar todo um conjunto de procedimentos destinados a evitar infeção sanguínea causada pela defeituosa execução de uma punção, o juízo destinado a afastar o reconhecimento de que essa má execução revela a falta de diligência exigível no caso pressupõe a contraprova (art. 346.º do CC) de que foram observados todos os procedimentos que no caso concreto se impunham.

V - Na fixação do montante indemnizatório a título de danos morais é de considerar a angústia do autor visto que em consequência dessa infeção o autor passou a sofrer de uma septicemia, com falência renal, correndo risco de vida e com celulite (infeção da pele) e suspeita de gangrena gasosa, lesão muito destrutiva (destruição celular), caracterizada por uma multiplicidade de bactérias a qual leva muitas vezes à amputação dos membros, provando-se que, se o cotovelo do autor não conseguisse ser revestido, o braço poderia ter de ser amputado.

VI - É de considerar ainda que o autor teve de se sujeitar a várias intervenções cirúrgicas e a tratamentos muito dolorosos, saindo do Hospital com o braço manchado e com o cotovelo desfigurado; e que ficou com uma cicatriz no abdómen inferior, tendo sido sujeito a três intervenções cirúrgicas destinadas a evitar a amputação e ainda a uma sequência de tratamentos dolorosos, o que tudo levou à fixação de um quantum doloris de 6/7.

VII - O autor ficou a padecer de uma incapacidade geral permanente de 15 pontos por ter ficado impossibilitado de lavar as costas sozinho por se encontrar o braço direito em flexão de 120º, sendo a amplitude de máxima flexão do cotovelo inferior à do membro colateral, não conseguindo levar a mão à nuca.

VIII - Por isso, considera-se adequada a indemnização pedida de 40 000€ a título de danos morais.

Salazar Casanova (Relator) *

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. AA intentou ação declarativa com processo ordinário contra o Hospital de S. Francisco Xavier, S.A. e Hospital Egas Moniz, S.A., atualmente denominados Centro Hospitalar Ocidental, E.P.E representado por um único mandatário (cf. fls. 271) e contra os Drs. BB e CC pedindo a sua condenação solidária no pagamento da indemnização de 40.000€ pelos danos físicos e morais causados e na indemnização pela incapacidade permanente que se vier a apurar resultante das atuações descritas.

2. O A. alegou que no dia 8 de julho de 2004 começou a sentir febre. Nesse dia, às 21 horas, foi atendido nos cuidados ambulatórios do Hospital de S. Francisco Xavier, S.A. onde lhe foi feita uma colheita de sangue no braço direito que foi enviada para análise.

3. Foi-lhe aplicado soro enquanto aguardava o resultado da análise, sendo transferido para o Balcão Homens.

4. Os resultados da análise foram negativos no que respeita à suspeita de malária.

5. Regressando a casa, o A. começou a sentir ardor no local do antebraço onde lhe tinha sido aplicado o soro, aparecendo no mesmo local uma mancha escura.

6. A mancha no braço foi crescendo em direção à mão e ao cotovelo, começando no dia 12 de julho a envolver todo o braço, dirigindo-se ao Instituto de Medicina Tropical onde lhe foi feita nova recolha de sangue e análise à malária cujo resultado deu negativo.

7. Voltando ao Hospital de S. Francisco Xavier, e queixando-se do que estava a suceder no braço, foi-lhe dito que tinha sido infetado por bactéria, sendo internado no S.O.

8. No dia 13 de julho é transferido para o Hospital Egas Moniz.

9. Inicia na Unidade de Cuidados Intensivos Gerais, onde lhe é aplicado um "cateter" na virilha direita, tratamento com antibióticos pela via venosa.

10. Constata-se no dia 25 de julho que o cateter implantado havia sido infetado por um fungo " candida albicans".

11. Um novo cateter é implantado, removido o anterior, mas agora na virilha esquerda, sendo muito dolorosa a implantação.

12. Abre-se fístula, devido à infeção, na parte interior do braço.

13. Como o sangue estava coagulado, são abertas duas incisões à esquerda e à direita do cotovelo, do lado exterior do braço, para permitir a extração de sangue coagulado e massa muscular e permitir a desinfeção, minimizando a morfina administrada o doloroso tratamento.

14. No dia 30 de julho o cateter implantado também aparece infetado pelo mesmo tipo de fungo.

15. Carecia o autor de uma cirurgia plástica para tapar exposição do cotovelo provocada pelas incisões descritas resultantes da bactéria que o infetara com a administração do soro.

16. É transferido para medicina II, no dia 17 de agosto é-lhe dada alta hospitalar que dura até ao dia 21 de agosto, data em que regressará ao hospital para intervenção cirúrgica agendada para 24 de agosto.

17. No dia 24 de agosto é submetido a intervenção cirúrgica com anestesia geral para extração de tecidos recolhidos da coxa direita para tapar a exposição do cotovelo direito, ficando com o braço direito ligado e com uma tala que vai do ombro até ao pulso.

18. Fica a saber que foi infetado com uma bactéria que, para além de infetar os tecidos, estava também a atingir o tricípite.

19. Os tecidos do braço direito são queimados com nitrato de prata.

20. No dia 14 de setembro é sujeito a nova intervenção cirúrgica com anestesia geral para remoção dos tecidos infetados e para proceder à excisão do tricípite.

21. É sujeito a terceira intervenção no dia 28 de setembro para coser o cotovelo ao abdómen para que se verificasse a transferência de tecidos e para que a pele do abdómen forrasse o cotovelo, ficando o cotovelo afundado e ligado ao abdómen e o braço dobrado de tal modo que tinha a mão direita sobre o ombro esquerdo.

22. No dia 26 de outubro é submetido a nova intervenção cirúrgica com anestesia geral destinada a separar o braço do abdómen.

23. Alegou o autor ter sido infetado com uma bactéria no Hospital de S. Francisco Xavier, com um fungo nas virilhas e uma outra bactéria no Hospital Egas Moniz.

24. Mais alegou o autor:
- Que a existência de fungos e bactérias nas instalações dos Hospitais não se enquadra numa prestação de serviços de saúde com qualidade, devendo existir diligência máxima na fiscalização e controlo dos níveis de higiene de instalações e equipamentos.
- Que as comissões de controlo de infeções e o pessoal encarregado de prevenir as infeções hospitalares não cumpriram as suas atribuições.
- Que o serviço de enfermagem não foi eficiente tendo sido colocado gelo sem qualquer cuidado em cima do joelho
- Que a tala não lhe foi bem colocada pois causava-lhe dores intensas
- Que as casas de banho apresentavam graves problemas de higiene e limpeza
- Que os médicos não se certificaram de que os instrumentos médicos utilizados estão devidamente esterilizados
- Que não atuaram com a prontidão devida na marcação da operação relativa à cirurgia plástica para tapar a exposição em que se encontrava o cotovelo, cirurgia que era urgente, estando o autor em condições de ser operado no dia 8 de agosto o que só veio a suceder no dia 24 de agosto.

25. Em consequência dos factos referidos o A. ficou com manchas, deformações e cicatrizes no corpo, ficou impossibilitado de conduzir, de proceder sozinho à sua higiene pessoal diária, não levanta o braço a mais de 30º, o antebraço não vai abaixo dos 45º e não o levanta acima dos 60º a 65º, tem problemas na articulação da mão e na rotação do braço e mão, sofrendo incapacidade permanente, tudo isto em consequência direta das operações a que teve de ser sujeito devido à bactéria e fungos com que foi infetado.

26. A ação foi julgada improcedente por sentença confirmada pelo acórdão da Relação de que o autor interpôs recurso de revista cuja minuta finaliza com as conclusões que a seguir se transcrevem:

1.Não procede a argumentação que o ora A. não logrou provar o facto ilícito. O facto ilícito foi a própria punção, uma vez que resulta da natureza das coisas e da experiência comum que uma punção que respeite as leges artis não leva à entrada de bactérias no sangue. In casu a punção levou à entrada na corrente sanguínea de uma bactéria perigosíssima. Uma punção feita de acordo com as leges artis não levaria a uma infeção que quase matou o recorrente. O ato ilícito é pois o modo como foi feita a punção. O relatório pericial e os factos dados como provados não dão margem para dúvidas. O recorrente logrou identificar o que foi ilícito no sentido de violar as leges artis.
2.Sem conceder acrescenta, no caso em apreço , a prova do facto ilícito e da culpa, tal como o acórdão recorrido pretende, é impossível ou praticamente impossível para quem se encontre na mesma situação que o recorrente. Ele não sabe quem lhe fez a punção, se lavou as mãos, se o material foi esterilizado, se a agulha esteve em contacto com algo estranho. E não sabe porque é impossível saber.
3.Em todo o caso sempre se deverá interpretar o art. 342º do C.C. no sentido de que se inverte o ónus da prova nestes casos, interpretação essa que, salvo melhor entendimento, é legítima, como demonstra o Ac. STJ de 17-12-2002, revista 02A4057 (rei. Afonso Melo), disponível em www.dgsi.pt, já supra citado.
4.Entende o recorrente que existe uma lacuna na lei já que à data em que criou o regime dos arts. 342º a 344º do C.C., o legislador nunca vislumbrou a possibilidade de virem a existir fora do âmbito contratual serviços que até então sempre foram típica e tradicionalmente contratuais. Temos assim uma situação que a lei não previu. Tal lacuna deverá ser preenchida aplicando a presunção de culpa contida no art. 799º nº2 aos casos deste tipo de serviços, ou alternativamente, aplicando a regra do nº 2 do art. 344º aos casos em que, no âmbito desse tipo de serviços, a prova dos factos seja diabólica, ainda que o seja por facto não imputável à parte contrária.
5.Uma interpretação do nº2 do art. 344º do C.C. que não tenha em conta o supra exposto, isto é, que não tenha em conta a impossibilidade de prova por motivo alheio ao recorrente é inconstitucional por violação do art. 20º da C.R.P.
6.A interpretação que o acórdão recorrido faz das regras do art. 342º a 344º cria um sistema no qual, em caso de erro médico culposo praticado no S.N.S., na maioria dos casos, a existência de tutela jurisdicional por violação de direitos do doente é meramente formal.
Tal sistema não será aceitável no quadro do art. 209.º da Constituição, que não se satisfaz com a mera existência formal de meio de tutela, antes exigindo sempre meios efetivos de tuteia.
7.Estabelece ainda, sem razão material legítima que o justifique, um sistema de tutela muito menos equitativo para os utentes do S.N.S. em comparação com os do privado. Se os direitos do paciente são os mesmos, se os deveres de cuidado do prestador são os mesmos, se os bens jurídicos em causa são os mesmos, é arbitrário dar ao utente do serviço público uma tutela muito diminuída dos seus direitos face aos utentes do privado. Ora, a proibição do arbítrio é um dos corolários máximos do princípio da igualdade contido no art. 13.º, que, assim, foi violado.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V/ Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser considerado procedente por provado, e o douto acórdão a quo revogado e substituído por outro que condene a R. Hospital São Francisco Xavier, S.A., hoje Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, E.P.E. em indemnização pedida pelos danos provocados, só assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA!

27. Factos provados:
1. Em 2002, o autor teve malária.
2. No dia 8 de julho de 2004, pela tarde, o autor começou a sentir febre.
3. No dia 9 de julho a febre manteve-se e o autor marcou uma consulta com o seu médico de família que admitiu que a febre pudesse ser originada por malária e o aconselhou a fazer análises de sangue no hospital.
4. O autor achava que não tinha malária, nomeadamente, porque não tinha diarreia nem vómitos.
5. No dia 9 de julho de 2004 o autor é atendido na Unidade de Cuidados Ambulatórios do Hospital S. Francisco Xavier onde lhe é feita uma colheita de sangue, no braço direito, que é enviada para análise por forma a detetar se o autor teria malária.
6. Enquanto o autor espera pelo resultado da análise, é-lhe aplicado soro, sendo transferido para o balcão «Homens».
7. No Hospital S. Francisco Xavier foi ministrado ao autor soro e Nolotil diluído em 100 cc de soro fisiológico, no braço direito e por via intravenosa, por se considerar que era o tratamento mais adequado ao seu quadro clínico.
8. O médico que atendeu o autor no Hospital S. Francisco Xavier, Dr. DD, considerou que seria melhor fazer um tratamento preventivo da malária pois poderia ainda estar em desenvolvimento e não ter sido evidenciada na análise.
9. O autor aceitou fazer o tratamento da malária que lhe foi sugerido pelo Dr. DD.
10. O autor tem um historial clínico de malária cerebral e um internamento anterior ao da sua entrada no Hospital Egas Moniz.
11. O autor tinha regressado recentemente de África.
12. No dia 10 de julho, pela 1 hora da manhã, os resultados da análise realizada revelaram-se negativos, ou seja, o autor não tinha malária.
13. No dia 9 de julho, depois de ter saído do Hospital S. Francisco Xavier, o autor começou a sentir um ligeiro ardor no braço no local onde lhe tinha sido feita uma punção e, nesse mesmo local, apareceu uma mancha vermelha.
14. No dia 10 de julho a mancha antes referida já tinha alastrado.
15. Após ter tomado os comprimidos para a malária, o autor teve espasmos interiores.
16. No dia 11 de julho, o autor desmaiou.
17. O autor passou o dia (11 de julho) bastante incomodado e a mancha vermelha continuava a alastrar.
15. No dia 12 de julho a mancha no braço já havia crescido em direção à mão e ao cotovelo, começando a envolver todo o braço.
16. Seguindo instruções do médico do Hospital S. Francisco Xavier, o autor dirigiu-se ao Instituto de Medicina Tropical onde lhe foi feita nova recolha de sangue e análise à malária cujo resultado foi de novo negativo.
17. No dia 12 de julho de 2004 o autor dirigiu-se ao Hospital S. Francisco Xavier, queixando-se do que estava a suceder ao seu braço.
18. No dia 12 de julho de 2004 o autor deu entrada no serviço de urgência do Hospital S. Francisco Xavier e ficou internado.
19. No dia 13 de julho o autor é transferido para o Hospital Egas Moniz, S.A., onde dá entrada na Unidade de «Medicina II».
20. O autor deu entrada no Hospital Egas Moniz com alterações visíveis desde a mão até ao terço, e com uma mancha que se estendia ao tórax e parte do pescoço.
21. O autor deu entrada no Hospital Egas Moniz com uma septicemia, com falência renal, correndo risco de vida e com celulite (infeção da pele) e suspeita de gangrena gasosa, lesão muito destrutiva (destruição celular), caracterizada por uma multiplicidade de bactérias a qual leva muitas vezes à amputação dos membros.
22. No dia 14 de julho de 2004 o autor é transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Egas Moniz, depois de ter estado no Serviço de Medicina II daquele hospital, sendo-lhe implantado um cateter na virilha direita, começando de imediato um tratamento com uma cobertura alargada de antibióticos pela via venosa, cobrindo organismos hospitalares.
23. A colocação de cateter central na via femoral direita foi necessário para a administração de antibiótico e para a monitorização hemodinâmica e a escolha desta via foi condicionada pela localização das lesões existentes.
24. O autor sentia-se desconfortável.
25. Em resultado do tratamento, os sinais inflamatórios da infeção deixaram de se apresentar no pescoço e no ombro, focalizando-se no braço direito, e houve redução de edema.
27. O autor foi informado que a sua situação clínica era grave e que afetava os tecidos moles do braço e antebraço direitos, as massas musculares e articulação do cotovelo.
28. No dia 25 de julho foi isolado um fungo denominado "candida albicans".
29. O fungo supra mencionado foi contraído já no Hospital Egas Moniz.
30. É implantado um novo cateter ao autor, na outra virilha, implantação que causou dor ao autor.
31. Abriu-se uma fístula na parte interior do braço e, como o sangue estava coagulado, foram abertas duas incisões na região do cotovelo do braço direito do autor para permitir a extração do líquido hemático e desinfeção.
32. Foi ministrada morfina ao autor para minimizar a dor.
33. O autor passou pelo menos uma noite muito incomodado pelo frio proveniente de um aparelho de ar condicionado.
34. No dia 30 de julho, é isolado uma bactéria denominada Pseudomonas Aerugmosa no cateter da virilha esquerda.
35. O cateter foi removido, sendo-lhe implantado um "avocato" no pulso esquerdo.
36. O autor chegou a pensar que nunca sairia vivo do hospital.
37. O autor necessitou de cirurgia plástica para tapar a exposição do cotovelo provocada pelas incisões supra referidas (em 31) e uma loca que se desenvolveu durante o tratamento.
37. A operação veio a realizar-se no dia 24 de agosto.
38. No dia 24 de julho surge novo edema duro, com febre baixa e glóbulos brancos baixos.
39. No dia 25, a equipa de cirurgia geral é chamada e drena do edema uma coleção de 300 ml de líquido hemático;
40. Tal intervenção é realizada pelo Dr. EE;
41. No dia 29 de julho é feito penso, deixando-se dois drenos nas locas, juntando-se à medicação antibiótico com antifungico.
42. No dia 2 de agosto é pedida a intervenção dos médicos da equipa de cirurgia plástica à qual pertencia o Dr. BB o qual acorreu no próprio dia.
43. Só a partir do dia 2 de agosto é que se verifica a intervenção dos Drs. BB e CC Ribeiros, enquanto membros da equipa de médicos de cirurgia plástica;
44. O autor manteve-se medicado e permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos até ao dia 10 de agosto.
45. No dia 10 de agosto o autor foi transferido para o serviço de Medicina II por estar livre de perigo de vida e de não necessitar de cuidados intensivos, com indicação para fazer penso diário.
46. O autor foi visto no dia 12 de agosto pela equipa de cirurgia plástica e foi marcada a intervenção cirúrgica para o dia 24 de agosto.
47. No dia 8 de agosto o autor estava em condições de ser operado;
48. No dia 17 de agosto foi dada alta clínica ao autor e no dia 21 de agosto o autor regressou ao Hospital Egas Moniz para preparação de operação agendada para o dia 24 de agosto, tendo sido internado na Unidade de Cirurgia Plástica.
49. Só quando o autor regressou ao Hospital Egas Moniz, em 21 de agosto é que lhe foi substituído o penso que havia sido colocado há 4 dias.
50. Entre 12 de julho e 24 de agosto, o autor perdeu cerca de 20 kg.
51. No dia 24 de agosto procedeu-se à operação que consistiu no enxerto de tecidos recolhidos da coxa direita para tapar exposição do cotovelo direito.
52. A operação foi feita sob anestesia geral e durou cerca de 1 hora.
53. Ao recuperar da anestesia, o autor tem o braço direito todo ligado e com uma tala.
54. A partir de então, o autor ficou numa situação de grande dependência para se vestir, alimentar e proceder à higiene pessoal.
55. O penso que lhe foi colocado era renovado com a periodicidade indicada pelo cirurgião.
56. Em conversa com o Dr. BB este diz ao autor que ele teria de aprender a usar mais o braço esquerdo.
56-B O autor sentiu-se deprimido.
57. Os tecidos expostos do braço direito do autor foram queimados com nitrato de prata e o autor sofreu dores com tal tratamento.
58. No dia 21 de setembro o autor foi submetido a nova cirurgia, com anestesia geral, para remover os tecidos infetados e proceder à excisão do tricípite.
59. No dia 28 de setembro, o autor é submetido a uma cirurgia que consistiu em coser o cotovelo ao abdómen para que se verificasse a transferência de tecidos e para com a pele do abdómen forrar o cotovelo.
60. O autor acordou numa situação extremamente desconfortável e dolorosa, sentia o cotovelo ligado ao abdómen e tinha a mão direito sobre o ombro esquerdo.
61. A partir do dia em que acorda da operação, o autor não aguentava estar deitado, dormindo sentado.
62. No dia 27 de outubro, o autor é submetido a operação cirúrgica para separar o braço do abdómen na qual lhe é, de novo, ministrada anestesia.
63. Quando o autor recupera, verifica que o braço direito se encontra imobilizado e que tem problemas de rotação no antebraço e na mão.
64. O autor teve alta hospitalar no dia 29 de outubro.
65. O autor deixou o Hospital com pontos e pensos no abdómen e braço.
66. O autor saiu do Hospital Egas Moniz com o braço manchado e com o cotovelo desfigurado.
67. A mão permaneceu manchada ainda durante alguns meses.
68. O autor ficou com uma cicatriz no abdómen inferior, em forma de "y", com o maior ramo horizontal medindo 14 cm e ramos curtos medindo, respetivamente, 9,5 cm e 10,5 cm.
69. O autor está impossibilitado de lavar as costas sozinho.
70. O braço direito do autor encontra-se em flexão de 120.°, a amplitude de máxima flexão do cotovelo é inferior à do membro colateral e que não consegue levar a mão à nuca.
71. Os factos descritos em 74.° a 80.° da BI são as sequelas de uma infeção, causada por uma bactéria, que se desenvolveu no braço direito do autor.
72. Em data não determinada, no Hospital Egas Moniz, o autor pediu gelo para aliviar as dores que sentia; o gelo foi-lhe dado dentro de uma luva para ser posto em cima do joelho.
73. A tala que foi colocada no seguimento de uma das várias operações causava desconforto ao autor.
74. No serviço de Medicina II do Hospital Egas Moniz havia duas casas de banho, uma de mulheres e outra de homens, e as casas de banho apresentavam deficiências de higiene e limpeza.
75. Os drs. BB e CC não se certificaram que os instrumentos médicos utilizados estão devidamente esterilizados, com o esclarecimento de que não era a eles que competia fazer tal certificação pois os instrumentos são abertos por um enfermeiro com essa concreta função.
76. O autor é um quadro superior da PT.
77. O autor era reconhecido como um trabalhador «competente».
78. O autor desenvolveu importantes funções em Moçambique.
79. O autor era um homem bem disposto e saudável.
80. A recolha de sangue referida supra sob o n.º 5 foi realizada por pessoal técnico especializado e com utensílios esterilizados e descartáveis.
81. Toda a instalação e equipamentos do Hospital S. Francisco Xavier são limpos por pessoal especializado com recurso a detergentes e desinfetantes.
82. Toda a instalação, equipamentos incluídos do HSFX sujeita-se a limpezas diárias e sempre que necessário.
83. Nesse local, por norma, não é permitida a presença de qualquer tipo de pessoas estranhas ao serviço.
84. Por regra, todos os trabalhadores que ali prestam serviço usam vestuário e calçado adequado ao local e quando as circunstâncias o exigem, utilizam luvas descartáveis de látex que, uma vez utilizados, são colocadas em contentor de recolha de resíduos próprios.
85. Todos os resíduos hospitalares são devidamente acondicionados em contentores próprios para o efeito.
86. As camas, cadeiras de roda e macas ali existentes são objeto de limpeza imediata quando tal é exigido pelas circunstâncias.
87. Os lençóis, cobertores e resguardos são sempre mudados, uma vez utilizados, sendo trocados por outros devidamente lavados.
88. O cateter para aplicação do soro foi introduzido e encontrava-se embalado em vácuo e em material adequado a mantê-lo devidamente esterilizado.
89. O soro aplicado ao autor estava hermeticamente fechado, destinando-se exclusivamente a um doente.
90. A tubagem que liga o saco do soro ao cateter também é descartável e encontra-se devidamente esterilizada e embalada em vácuo e material adequado a manter a sua esterilização.
91. O Nolotil é hermeticamente acondicionado em ampolas, correspondendo cada frasco a uma dose única individual.
92. Uma vez terminado o tratamento foi retirado ao autor o cateter.
93. A Comissão de Controlo de Infeções do Hospital S. Francisco Xavier procede a ações de fiscalização das instalações e equipamentos periódicas, promove ações de formação profissional junto dos mais variados funcionários do hospital e promove ações de divulgação de medidas tendentes a evitar a existência e/ou propagação de agentes bacteriológicos no seio das instalações.
94. No Hospital Egas Moniz, o autor foi observado e visto pelo menos duas vezes por dia por médicos e por enfermeiros, sempre que necessário.
95. Durante a sua permanência no Hospital Egas Moniz, o autor foi observado, para além da equipa de Cuidados Intensivos e de Cirurgia Geral, pela Dermatologia, Otorrino e Cirurgia Plástica, sempre que necessário.
96. O autor foi submetido a exames como ecodopler e radiologia.
97. O caso clínico do autor foi amplamente discutido por todos os elementos do serviço, sendo objeto de apresentação em reuniões clínicas.
98. O autor manteve-se medicado e permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos até ao dia 10 de agosto.
99. Todos os seres humanos têm "candida albicans" na pele.
100. A contaminação por "candida albicans" é uma ocorrência possível no contexto em que o autor se encontrava e este foi contaminado por aquele fungo.
101. A "candida albicans" existe abundantemente no intestino e na zona perineal e um dos fatores que favorece o seu desenvolvimento é o uso de antibióticos de largo espectro, os quais eram imprescindíveis para o tratamento clínico do autor e o seu isolamento na ponta de cateter é uma situação comum.
102. A "pseudomonas sensível" é um agente que existe quer na comunidade quer em comunidades hospitalares.
103. No estado em que se encontrava, o autor era muito sensível a quaisquer microrganismos.
104. A implantação de cateteres é um procedimento clínico que pode ser doloroso e que pode exigir uma anestesia local.
105. No que à cirurgia respeita, realizou-se um programa terapêutico de pensos e intervenções cirúrgicas seriadas, adaptado à evolução clínica do doente sempre que necessário e executado no tempo que a equipa cirúrgica considerou adequado para o doente.
106. O autor foi informado sempre da sua situação clínica e das soluções equacionadas.
107. Quando o autor teve alta, foi-lhe dada indicação de que poderia dirigir-se ao hospital da sua área de residência para muda de penso ou, em alternativa, voltar ao Egas Moniz ou ao S. Francisco Xavier.
108. Os pensos pré e pós cirúrgicos foram realizados com a frequência e de acordo com a prescrição de substâncias determinadas pela equipa cirúrgica e consoante e evolução clínica do doente.
109. O braço teve de ficar ligado com tala para que os enxertos ficassem viáveis e o braço tinha de estar imobilizado.
110. O penso era mudado sempre que necessário, tanto de dia como de noite, durante o horário de trabalho da equipa cirúrgica e fora dele.
111. Os diversos pensos foram aplicados com respeito das regras de assepsia, com utilização exclusiva de materiais esterilizados e credenciados.
112. Apresentando os tecidos do braço áreas de granulação, o procedimento clínico habitual é a queima com nitrato de prata, substância excelente enquanto controlador de infeções, e as áreas a tratar eram mínimas.
113. Se não se conseguisse revestir o cotovelo, o braço do autor poderia ter de ser amputado.
114. No pós-operatório o autor foi visitado pelos diversos membros do serviço várias vezes durante o dia e a noite.

Apreciando

28. O autor, embora não o diga expressamente, restringe, nas conclusões da sua minuta de recurso, a responsabilização da ré aos atos praticados no Hospital de S. Francisco Xavier (artigo 684.º/3 do C.P.C.) que originaram a infeção cujo tratamento, bem sucedido pois evitou a amputação do membro superior (21 e 113 supra ), não conseguiu evitar que o autor ficasse a padecer das limitações mencionadas ( ver 66, 67, 68, 69, 70, 71).

29. Significa isto que já não se vai aqui discutir a responsabilização dos médicos ou a do réu Centro Hospitalar Ocidental pelos atos médicos e as intervenções auxiliares que se realizaram no então Hospital Egas Moniz, restrição que bem se compreende considerando que à luz dos factos provados a causa dos padecimentos do autor resultou da infeção contraída com a veno punção realizada no Hospital de S. Francisco Xavier no dia 9 de julho de 2004 (5).

30. Face a esta delimitação, situar-nos-emos tão somente na questão, sem dúvida essencial, que consiste em saber se os factos provados permitem ou não permitem considerar que houve uma atuação culposa no dia 9 de julho na execução da punção venosa.

31. A culpa, estejamos no âmbito da responsabilidade contratual ou da responsabilidade delitual (artigo 799.º/2 do Código Civil), deve ser "apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso" ( artigos 487.º/2 do Código Civil).

32. Resulta deste preceito que a ponderação da culpa deve ser realizada abstratamente - o Código Civil consagra a tese da culpa em abstrato - mas em face das circunstâncias de cada caso , o que naturalmente envolve a análise das concretas circunstâncias evidenciadas pelos factos fixados pelas instâncias que o Supremo Tribunal tem de acatar, respeitando a determinação legal constante do artigo 722.º/2 do C.P.C.

33. Essa análise das circunstâncias de cada caso significa que " a diligência relevante para a determinação da culpa é a que um homem normal ( um bom pai de família) teria em face do circunstancialismo próprio de cada caso concreto" (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol I, 10.ª edição, pág. 576).

34. Estamos, pois, num plano normativo que está no âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (Ac. do S.T.J. de 3-11-1992, rel. Amâncio Ferreira, B.M.J. 421- 400, Ac. do S.T.J. de 11-10-1994, rel. Cardona Ferreira, B.M.J. 440-448, Ac. do S.T.J. de 22-4-1997, rel. Pais de Sousa, C.J., 2, pág. 70, Ac. do S.T.J. de 21-3-2012, rel. Maria dos Prazeres Beleza, revista n.º 6123/03. 7TBVFR.P1.S1).

35. Diz o recorrente, de modo impressivo, que " a grande questão da qual os tribunais de 1.ª e 2.ª instância passaram ao lado é esta: uma simples punção para retirar sangue para uma análise de rotina ou para ministrar soro que introduz no paciente uma bactéria como a pseudomonas aeruginosa tem necessariamente de ser um ato muito grosseiramente mal executado".

36. E acrescenta: " não é humanamente possível exigir ao ora recorrente que demonstre se foi por causa de alguém na equipa clínica não ter lavado as mãos, de ter retirado a seringa sem cuidado, de a seringa não estar devidamente esterilizada, etc. etc.
Porém, o tribunal recorrido, por uma questão meramente formalista, faz de conta que o recorrente não foi capaz de identificar o ato ilícito, mas na verdade ele está identificado e provado: a punção. Se a punção foi feita de modo a que se tenha introduzido na corrente sanguínea uma bactéria perigosa não pode haver dúvida de que aquele ato violou as leges artis.
As coisas são simples. Uma punção é uma coisa simples: introduzir a ponta da agulha na veia. Em nenhuma circunstância em pleno século XXI é admissível que uma tal punção possa introduzir na corrente sanguínea uma bactéria perigosa. Só pode desconformidade com a leges artis. E o erro é do hospital através dos seus funcionários. O recorrente logrou provar que aquela punção foi mal executada porque uma punção bem executada não leva à entrada de bactérias no sangue, como é do conhecimento geral de toda a humanidade, salvo a que se encontra ainda nas selvas recônditas".

37. No caso vertente importa atentar que é do conhecimento das entidades hospitalares, e obviamente de todas as pessoas que ali exercem funções, o risco de morte derivado das infeções por bacteriémias nosocomiais que " são uma das infeções que contribuem para a morbilidade e mortalidade hospitalar e aumenta os custos na prestação de cuidados de saúde. O internamento em cuidados intensivos, o uso de dispositivos intravasculares e o modo de frequência do seu manuseamento, entre outros, constituem importantes fatores de risco para a sua existência […]
No HSFXavier a Bacteriémia Nosocomial representa 12,8% das infeções Nosocomiais e ocupa o 2.º lugar ( a par com a infeção cirúrgica) entre as infeções nosocomiais mais frequentes" (Relatório de Vigilância Epidemiológica da Bacteriémias Nosocomiais, período de 1 de janeiro a 30 de junho de 2004, fls. 916/959).

38. Refere-se ainda nesse relatório que " a mortalidade dos doentes com BN foi superior à mortalidade global (9,8% e 11,4%) " e " a análise das origens prováveis da BN apresentadas no quadro n.º 5 e 6 permite concluir que a principal porta de entrada é o CVC seguida da via respiratória. O cateter venoso central como principal porta de entrada tem vindo a diminuir ao longo dos três anos enquanto que a via respiratória sofre uma tendência inversa" ( fls. 920).

39. Conclui o relatório referindo que " no sentido de prevenir o aumento das taxas verificadas sugere-se […] 3. Formação dos enfermeiros e médicos sobre as recomendações para a prevenção da bacteriémia nosocomial associada a CVC. 8. Divulgação dos resultados".

40. Do relatório de junho de 2004 "Auditoria às Estruturas e Práticas de Lavagem das Mãos" consta que " a prática da lavagem das mãos tem vindo sistematicamente a ser evidenciada na bibliografia como uma medida de eficácia comprovada na prevenção e controlo da infeção nosocomial. Contudo, a experiência tem vindo a demonstrar que, apesar deste facto ser do conhecimento dos prestadores de cuidados, a adesão a ela fica muito aquém do desejado e do esperado tendo em conta o conhecimento generalizado da sua eficácia. Sendo assim a CCI do HSFX decidiu dar início , no ano de 2004, a um ciclo de auditorias nesta matéria, em todo o hospital, tendo como objetivos:
1. Calcular o índice de qualidade da prática de lavagem de mãos.
2. Conhecer as atuais estruturas de higienização das mãos.
3. Identificar práticas incorretas de lavagem das mãos.
4. Implementar medidas de melhoria, se for caso disso, na prática de lavagem de mãos" ( fls. 930 dos autos).

41. E mais adiante lê-se: " em relação à avaliação dos procedimentos foram encontrados pontos críticos em todos os padrões e em todos os serviços podendo afirmar-se que há necessidade de intervenções em todos os padrões avaliados" (fls. 935)

42. A existência de deficientes condições hospitalares impõe, assim, que haja na realização de punções, uma das causas de infeção, todo um conjunto de cuidadosos procedimentos que obstem à infeção.

43. Pode dar-se o caso de se provar que todos os procedimentos foram seguidos e, ainda assim, constatar-se que a bactéria penetrou na corrente sanguínea.

44. Numa situação deste tipo admite-se que se possa concluir, no plano normativo em que nos situamos que é o da determinação da diligência posta pelo funcionário cuidadoso, que houve o cumprimento dos procedimentos que no caso se impunham, existindo, no entanto, uma falha de execução, porventura mínima, que ainda assim levou à infeção.

45. O recorrente entende que a infeção originada pela punção implica sempre uma grosseira violação das leges artis.

46. Sabendo-se que, se forem observados sem falhas os procedimentos que se impõem, a infeção não pode ocorrer pela punção venosa, e se ela ocorreu é porque houve uma falha, um erro, um deslize, abre-se a questão de saber se, em tais circunstâncias, deve ser considerado, no plano normativo, que, não obstante a falha, o agente do ato não incorreu em ilícito culposo.

47. Mas para que assim seja, pressupõe-se a prova, uma vez assente que a punção venosa foi a causa da infeção que necessariamenteresultou de erro na execução do ato, de que os procedimentos devidos foram todos seguidos no caso em concreto.

48. Ora nós estamos efetivamente longe de poder afirmar que está provado que todos os procedimentos devidos foram seguidos no caso concreto.

49. É que, no caso vertente, não ficou provada a observância da totalidade dos procedimentos que deviam ter sido necessariamente seguidos, a saber - matéria que foi objeto de alegação e de prova - " quando da recolha do sangue no HSFX a zona corporal do autor foi limpa e desinfetada" (quesito 87, não provado), " terminada a recolha do sangue, foi a zona novamente desinfetada e o local de introdução do cateter foi coberto com um novo penso" (quesito 88, não provado) " à data dos factos em apreço as instalações do HSFX adstritas ao balcão dos homens da urgência da zona ocidental da área metropolitana de Lisboa encontravam-se em perfeito estado de higiene e salubridade" ( quesito 90, não provado), " inexistindo qualquer tipo de acumulação de sujidade e detritos" (quesito 91, não provado).

50. No relatório do Instituto de Medicina Legal ( fls. 663) refere-se que " […] dentre 1992 e 1999 P. aeroginosa era a segunda maior causa de pneumonia, a quarta causa mais frequente de infeções urinárias e a sexta causa mais frequente de invasão hematológica nas unidades de cuidados intensivos. Vários potenciais reservatórios de infeção têm sido identificados em meio hospitalar, nomeadamente equipamento respiratório, soluções de limpeza, desinfetantes, vegetais, flores, endoscópios e piscinas de fisioterapia. Assume-se que o organismo é transmitido pelas mãos do pessoal hospitalar ou por fómitos".

51. Ora não se demonstrando que todos os procedimentos no caso foram observados quando da punção venosa, mas provando-se - prova pericialmente conseguida ( ver fls. 663 do mencionado relatório do IML; ver 5, 7, 73, 75) - a existência de nexo de causalidade entre a veno-punção no sangradouro do membro superior direito e a celulite do mesmo (infeção do tecido celular subcutâneo), não pode ficar afastado, nos termos do artigo 487.º/2 do Código Civil, o reconhecimento de que houve falta de diligência traduzida na má execução da punção nas circunstâncias concretas do ambiente hospitalar contaminado em que foi realizada.

52. E não pode ficar afastado esse juízo de culpa porque nem sequer se provou que, não obstante a má execução da punção, o enfermeiro ou auxiliar que a realizaram seguiram todos os procedimentos que deviam ter sido seguidos.

53. A partir do momento em que o lesado prova o ato ilícito que em si mesmo revela uma execução defeituosa, a falta de diligência que essa situação demonstra pode ser afastada mediante a contraprova (artigo 346.º do Código Civil) de que, no caso em apreço, foram observados pelo agente todos os procedimentos que se justificavam, podendo então sustentar-se que não houve falta de diligência, resultando a infeção de uma falha acidental.

54. O recorrente, num plano de argumentação subsidiária, sustenta que a exigência, no caso em apreço, da prova do concreto erro de execução que se verificou ( saber as superfícies estavam desinfetadas, se os materiais estavam esterilizados, se as mãos do profissional que executou a punção estavam lavadas e desinfetadas), constitui obviamente uma prova impossível a exigir a inversão do ónus da prova sob pena de violação dos princípios da igualdade e do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva.

55. Não são os exemplos referidos casos de impossibilidade de prova, são antes exemplificativos de dificuldade de prova, não constituindo tal dificuldade razão para inversão do ónus da prova pois nenhuma das razões que constam do preceito integram tal situação (artigo 344.º do Código Civil).

56. No entanto, como se viu, no caso concreto a prova da culpa não reclama a prova dessas sub-causas pois, como se disse, a infeção verificada nas condições que ficaram provadas, prova que o autor logrou conseguir, demonstram, por si, que houve má execução da punção.

57. Se esta má execução, nos termos que ficaram provados atentas as circunstâncias do caso, permitem concluir que o agente atuou culposamente à luz do critério consagrado no artigo 487.º/2, eis questão sobre a qual já nos pronunciámos.

58. Perde, assim, também interesse a questão de saber se a responsabilidade da ré é contratual ou delitual.

59. No contencioso administrativo tem-se considerado que a responsabilidade por atos ou omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos tem natureza extracontratual visto que quem recorre a um estabelecimento de saúde público fá-lo ao abrigo de uma relação jurídica de utente, modelada pela lei, "submetida a um regime jurídico geral estatutário, aplicável, em igualdade, a todos os utentes daquele serviço público, que define o conjunto dos seus direitos, deveres e obrigações e não pode ser derrogado por acordo, com introdução de discriminações positivas ou negativas. Não o faz, portanto, na qualidade de parte contratante, ainda que num hipotético contrato de adesão ou ao abrigo de relações contratuais de facto. Neste sentido é a doutrina dominante (V. Freitas do Amaral, «Natureza da Responsabilidade Civil por Atos Médicos Praticados em Estabelecimentos de Saúde», in Direito da Saúde e Bioética, Ed. LEX, 1991, pp. 123, ss.; Sérvulo Correia, «As Relações de Prestação de Cuidados pelas Unidades de Saúde do Serviço Nacional de Saúde», in Direito da Saúde e Bioética, ed. AAFDL, 1996, pp. 21 a 27 e Guilherme de Oliveira, in RLJ, Ano 125, p. 34.: ver Ac. do S.T.A. de 9-6-2011, rel. Adérito Santos, n.º 0762/09.

60. A questão é duvidosa porque não se vê que a pessoa que recorre a um serviço público não firme um acordo com base no qual esse serviço lhe prestará assistência pondo à sua ordem os seus meios humanos e materiais independentemente da circunstância de o concreto utente beneficiar ou não de dispensa do pagamento dos serviços prestados por ser beneficiário do SNS.

61. No entanto, não foi este um ponto que tenha sido suscitado pelo recorrente nas suas conclusões; o recorrente defendeu a inversão do ónus da prova a título subsidiário, ou seja, para o caso de não proceder a argumentação de que não logrou provar o facto ilícito, pois, no seu entender, logrou provar o que foi ilícito no sentido de violar as leges artis (conclusão 1.ª).

62. No que respeita à indemnização, o autor reclama a indemnização por danos físicos e morais no montante de 40.000€, mas reclama igualmente a indemnização pela incapacidade permanente que se vier a apurar resultante das atuações descritas.

63. O primeiro valor inclui danos físicos e morais.

64. Os primeiros, porém, não incluem, porque excluídos do âmbito do pedido, a indemnização pela incapacidade permanente (danos patrimoniais: ver 69 e 70 e ainda relatório do I.M.L. que fixou a incapacidade permanente em 15 pontos - fls. 666).

65. Por isso, atento o valor do pedido, e no tocante aos danos morais, a condenação não pode exceder 40.000€, valor que se tem por ajustado, considerando, por um lado, os períodos fixados de incapacidade temporária e permanente, e, por outro, o sofrimento padecido pelo autor que o Instituto de Medicina Legal fixou num quantum doloris de 6/7 numa escala de sete graus de gravidade crescente " tendo em conta as lesões resultantes tais como as decorrentes desepsis grave e a necrose de tecidos do membro superior direito, as várias intervenções cirúrgicas a que foi submetido, bem como as intercorrências hospitalares posteriores, o período de recuperação funcional e os tratamentos efetuados (internamento na Unidade de Cuidados Intensivos, drenagem, mudanças de pensos várias ( sendo de realçar o sofrimento psicológico e moral ligado à perda de autonomia pessoal do examinado).

66. No que respeita ao pedido deduzido na alínea b) - condenação pela incapacidade permanente , que se vier a apurar, resultante das atuações acima descritas - cumpre referir que a lei, na verdade, não impõe a quem exige indemnização a indicação exata em que avalia os danos ( artigo 569.º do Código Civil).

67. Mas isso não significa que o lesado não deva alegar os factos essenciais determinativos dos danos que sofreu, justificando-se a liquidação para momento ulterior se não houver elementos paraquantitativamente fixar os danos verificados (artigo 661.º/2 do C.P.C.).

68. A liquidação pressupõe a prova dos danos.

69. Ora, para efeito de uma atribuição indemnizatória tendo em vista a incapacidade permanente de que o autor ficou a padecer ( ver relatório do I.M.L.) não basta a prova dessa incapacidade permanente, impondo-se a prova dos factos que revelam a perda patrimonial causada pela verificada incapacidade permanente. A inexistência de tais factos não permite a fixação de indemnização por danos patrimoniais. E assim sendo não há que relegar para liquidação uma indemnização que não pode ser concedida salvo se fosse admissível, e não é, que, no âmbito da liquidação, o lesado alegasse os factos essenciais que justificariam a atribuição de um montante indemnizatório pela incapacidade permanente.

70. Assim sendo, o reconhecimento dessa incapacidade é valorizado no plano da indemnização por danos morais pois, como é evidente, uma incapacidade permanente gera intensa infelicidade; como se viu ( ver 65supra) a fixação da indemnização no montante pedido entrou em linha de conta com a dor moral resultante da incapacidade que ficou a afetar o autor.

Concluindo:
I- Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça admitem considerar, com base nos factos provados, se foi praticou um ato lesivo culposo à luz do critério que consta do artigo 487.º/2 do Código Civil, ou seja, o da diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso.
II- Assim sendo, deve considerar-se que incorreu em ato ilícito o profissional de estabelecimento hospitalar que se encontra contaminado com bactérias, como a P. Aeroginosa da espécie Pseudomonas, que executou no autor uma punção (introdução da ponta da agulha na veia) em condições tais que se deu a introdução da bactéria na corrente sanguínea.
III- Resultando necessariamente tal ocorrência de uma execução defeituosa, não compete ao lesado, em sede de ónus da prova (artigo 342.º/1 do Código Civil), provar ainda o concreto erro de execução determinante da infeção, designadamente se a infeção resultou do manuseamento do material utilizado sem proteção ou do contacto deste com superfícies ou matérias não desinfetadas ou da sua falta de esterilização ou da falta de limpeza e desinfeção da zona corporal.
IV- Com efeito, cumprindo ao agente hospitalar executar todo um conjunto de procedimentos destinados a evitar infeção sanguínea causada pela defeituosa execução de uma punção, o juízo destinado a afastar o reconhecimento de que essa má execução revela a falta de diligência exigível no caso pressupõe a contraprova (artigo 346.º do Código Civil) de que foram observados todos os procedimentos que no caso concreto se impunham.
V- Na fixação do montante indemnizatório a título de danos morais é de considerar a angústia do autor visto que em consequência dessa infeção o autor passou a sofrer de uma septicemia, com falência renal, correndo risco de vida e com celulite (infeção da pele) e suspeita de gangrena gasosa, lesão muito destrutiva (destruição celular), caracterizada por uma multiplicidade de bactérias a qual leva muitas vezes à amputação dos membros, provando-se que, se o cotovelo do autor não conseguisse ser revestido, o braço poderia ter de ser amputado.
VI- É de considerar ainda que o autor teve de se sujeitar a várias intervenções cirúrgicas e a tratamentos muito dolorosos, saindo do Hospital com o braço manchado e com o cotovelo desfigurado; e que ficou com uma cicatriz no abdómen inferior, tendo sido sujeito a três intervenções cirúrgicas destinadas a evitar a amputação e ainda a uma sequência de tratamentos dolorosos, o que tudo levou à fixação de um quantum doloris de 6/7.
VII- O autor ficou a padecer de uma incapacidade geral permanente de 15 pontos por ter ficado impossibilitado de lavar as costas sozinho por se encontrar o braço direito em flexão de 120º, sendo a amplitude de máxima flexão do cotovelo inferior à do membro colateral, não conseguindo levar a mão à nuca.
VIII- Por isso, considera-se adequada a indemnização pedida de 40.000€ a título de danos morais.

Decisão: concede-se revista parcial, condenando-se o réu Centro Hospitalar Ocidental, E.P.E., a pagar ao autor , a título de danos morais, a quantia de 40.000€ (quarenta mil euros), mantendo-se, quanto ao demais, o acórdão recorrido e negando-se indemnização patrimonial pela incapacidade permanente apurada.
Custas pela ré
Lisboa, 12-9-2013
(Salazar Casanova)
(Lopes do Rego)
(Orlando Afonso)