Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4759/07.6TBGMR-A.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
RECURSO DE REVISTA
DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TÍTULO EXECUTIVO
ASSINATURA
JUÍZO PERICIAL
Data do Acordão: 04/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISTA
Decisão: JULGADO O RECURSO DE REVISTA IMPROCEDENTE E MANTIDO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS / INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA.
Doutrina:
- Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 239;
- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, p. 222;
- Luís Filipe Pires de Sousa, A valoração da prova pericial, Revista Portuguesa do Dano Corporal (27), 2016, p. 11-24;
- Vaz Serra, Provas (direito probatório material), BMJ, n.º 110, p. 160.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 344.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 23-02-2012, PROCESSO N.º 994/06.2TBVFR.P1.S1;
- DE 12-05-2016, PROCESSO N.º 85/14.2T8PVZ.P1.S1;
- DE 12-04-2018, PROCESSO N.º 744/12.4TVPRT.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
1. A apreciação do modo como as instâncias qualificaram a actuação de uma das partes no contexto da inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil insere-se no âmbito do recurso de revista.
2. Porém, não se inclui nesse âmbito a apreciação da alteração baseada na livre apreciação da prova.
3. A inversão do ónus da prova, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, como sanção civil que é à violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, exige uma actuação culposa da parte que tenha tornado impossível ou particularmente difícil a produção de prova pela contraparte dos factos que lhe competiam.
4. Opera a inversão do ónus da prova a conduta do oponente que, por meio de alteração voluntária da escrita, tornou impossível a obtenção de um resultado pericial conclusivo, quanto à autoria das assinaturas apostas nos títulos executivos, quando a perita que subscreveu o relatório acabou por assegurar, em julgamento, essa autoria.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 4759/07.6TBGMR-A.G1.S1[1]
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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:

I. Relatório

AA, executado na execução para pagamento de quantia certa, que lhe moveu BB, Lda., ambos melhor identificados nos autos, deduziu oposição mediante embargos, pedindo que aquela seja declarada extinta, alegando, para tanto, em resumo, que os cheques que foram apresentados à execução não foram por si assinados.

A exequente contestou, por impugnação, negando a versão apresentada pelo executado/oponente e sustentando que os títulos executivos foram por ele assinados, enquanto avalista, e que tais assinaturas foram “dolosa e defeituosamente” feitas para criar a incerteza sobre a sua autoria, concluindo pela improcedência da oposição e pela condenação do oponente em multa e indemnização.

Na audiência preliminar, frustrada a tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador e feita a condensação, com selecção dos factos assentes e elaboração da base instrutória, sem reclamações.
Depois de produzida prova pericial, foi realizada audiência de discussão e julgamento, após o que, em 2/3/2018, foi lavrada sentença que decidiu julgar procedente a oposição e declarar extinta a instância executiva contra o oponente/executado.

Inconformada com essa sentença, a exequente/embargada interpôs recurso de apelação, o qual foi apreciado e decidido por acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 18/10/2018, que concluiu pela sua procedência e revogou a sentença recorrida, julgando improcedente a oposição deduzida, com o consequente prosseguimento da execução.

 

Não conformado, desta feita, o executado/oponente interpôs recurso de revista e apresentou a correspondente alegação que culminou com as seguintes conclusões:

 “1- A discordância do Recorrente insurge-se contra o douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de ..., que decidiu julgar a apelação procedente, revogando a douta sentença proferida em primeira instância e assim julgou improcedente a oposição à execução.

2- A exequente contestou a oposição à execução deduzida pelo opoente/recorrente, pugnando pela sua procedência, alegando, em síntese e com interesse para o presente recurso, os seguintes fatos, a final, dados como não provados pelo Tribunal de 1.ª Instância:

- Que o embargante subscreveu, enquanto avalista, os cheques apresentados à execução;

- Que após o recebimento desses cheques pela exequente e antes da apresentação a pagamento do primeiro deles, a exequente foi informada que o opoente se andava a vangloriar que nunca os pagaria, visto que, dizia, apusera neles, e propositadamente com vista à criação de confusão, uma assinatura breve, sumida e diversa da que usualmente utilizava; que em face de tal informação, a exequente, em Abril de 2007, através dos seus representantes de então, e numa reunião nos seus escritórios de ..., na qual, além deles, do opoente e do CC, estavam ainda presentes a sócia DD e EE, interpelou e interrogou o opoente expressamente sobre a razão de ser da divergência entre o aspeto gráfico da sua assinatura usual e das assinaturas apostas no verso dos cheques sob a declaração de aval

- Tendo dele recebido como resposta a afirmação, feita perante todos os acima identificados circunstantes que ele, opoente, tinha e usava várias assinaturas e que, por isso, os representantes da exequente poderiam ficar descansados que ele nunca prevaleceria de tais divergências gráficas, reafirmando perante a exequente que sempre honraria os avais que prestara em todo e cada um dos cheques ora dados à execução.

- O opoente, ao colocar nos cheques em execução, com o seu punho, as assinaturas que apôs, dolosa e defeituosamente, com um aspeto gráfico diverso daquele que usualmente utilizava, por forma a criar a incerteza da sua autoria, visava deliberada e conscientemente enganar a exequente e conseguir, em prejuízo desta, que ela, por força de tal engano em que ele dolosamente a induziu, entregasse à sociedade sacadora dos cheques as mercadorias que ele, opoente, pretendia que lhe fossem entregues, para manter a sua laboração industrial em seu proveito e da sacadora dos cheques, que doutra forma não conseguiria obter.

- Dolosamente se reservando o direito de, se e quando viesse a ser chamado a honrar o aval que lhe fora exigido, poder invocar a divergência de assinaturas em ordem a não pagar aquilo que ficou a dever em consequência da sua prestação.

3- A primeira instância considerou que, da conjugação da prova produzida, não resultou provado, com a certeza que se exige, que o embargante subscreveu com o seu punho as assinaturas que lhe são imputadas nos vários cheques apresentados à execução, tendo dado não provada a referida tese da exequente.

4- A exequente, no recurso por si interposto, alegou que a conduta do opoente, evidenciada na realização das perícias dos autos, constitui alteração voluntária de escrita que impediu os peritos de dispor de elementos genuínos de comparação, em quantidade e qualidade suficientes para um resultado conclusivo, o que constitui um comportamento culposo que determinou a impossibilidade de a parte onerada demonstrar os fatos que era relevantes para a sua defesa, devendo, por isso, inverter-se o ónus da prova.

5- Por sua vez, o Tribunal Recorrido entendeu que no presente caso, em termos periciais, existia uma clara incompatibilidade entre a escrita de assinaturas, fluente e em maiúsculas e a escrita de texto, pouco fluente, em maiúsculas, sendo cada letra constituída por vários traços, tendo considerado estarmos na presença de uma escrita não natural, artificial ou intencionalmente modificada.

6- O Tribunal a quo concluiu que o "opoente por meio da alteração voluntária de escrita tornou possível a obtenção de um resultado pericial conclusivo e, assim, a impossibilidade de a parte onerada, o exequente, demonstrar os factos que eram relevantes para a sua defesa", cuja consequência se traduz na inversão do ónus da prova.

7- Seguindo este critério o Tribunal Recorrido alterou, unicamente, o ponto 1 dos fatos dados por não provados, passando, em decorrência da inversão do ónus da prova, a dar como provado que "os dizeres dou o meu aval a favor da firma FF, lda e a assinatura ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso dos cheques referidos em 1 dos factos provados, foram apostos pelo punho do exequente, AA".

8- Salvo o devido respeito por opinião diversa, não se aceita a apreciação jurídica feita pelo Tribunal Recorrido, ao ter considerado que a descrita conduta do executado tornou culposamente impossível a prova ao exequente dos fatos relevantes para a sua defesa e, por essa via, entendeu ocorrer inversão do ónus da prova.

9- Assim entendemos, desde logo, partindo da tese da exequente, defendida em sede de contestação à oposição, segundo a qual o próprio executado havia chegado a vangloriar-se que havia manipulado a assinatura dos cheques e que, por isso, jamais poderia vir a ser incomodado com a cobrança de tais cheques.

 10- Ou seja, a exequente preparou e defendeu a tese de que os cheques dados à execução continham já uma assinatura manipulada, natural ou artificial do executado/opoente, alteração esta diversa da que foi verificada no exame de escrita pericial.

11- Acresce que, a exequente preparou e defendeu a tese segundo a qual, sabendo, suspeitando ou ficcionando da irregularidade das assinaturas, o executado comprometera-se, numa reunião em Pombal e na presença de diversas testemunhas, a não invocar a falsidade da sua escrita e assinaturas e a cumprir os avais prestados.

12- Porém, a descrita tese da exequente não prevaleceu, não tendo sido minimamente demonstrada em audiência de julgamento, já que a primeira instância deu como não provada a descrita factualidade.

13- No recurso apresentado a exequente abandonou a referida versão e ancorou a sua nova estratégia nos resultados periciais constantes dos autos, em que as divergências relevantes para a apreciação da questão central dos autos, não resultavam dos cheques dados à execução, mas dos exames de escrita realizados no âmbito da perícia.

14- Sucede que foi a própria exequente na sua versão, a trazer ao autos (outros) fetos absolutamente relevantes para a sua defesa, nomeadamente os que já citamos, com vista ao bom cumprimento do ónus da prova que lhe competia, não tendo sido o opoente (não obstante a considerada "alteração voluntária de escrita"), quem tornou impossível à exequente, enquanto parte onerada, demonstrar os fatos relevantes para a sua defesa.

15- Consequentemente, não poderá operar, conforme se considerou no acórdão recorrido, a inversão do ónus da prova, no sentido de dar como provado o Ponto 1 dos fatos dados por não provados pelo Tribunal de Primeira Instância e de ser o opoente a demonstrar que a assinatura não foi por si produzida.

16 - Ao assim não ser entendido, não foi feita a melhor interpretação e aplicação ao caso, designadamente, dos normativos previstos nos artigos 344º n°. 2 e 519° n°. 2 do CPC.

 Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido e recuperando-se a decisão proferida em primeira instância ou proferida decisão que julgue procedente a oposição à execução deduzida pelo recorrente, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!”

A exequente contra-alegou, sustentado a improcedência do recurso.

O recurso foi admitido como de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo Relator no despacho liminar.
           Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
           Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se não pode operar a inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, por inexistir outra prova e por a recorrente apresentar versão diversa da que havia apresentado na contestação.

II. Fundamentação


1. De facto

No acórdão recorrido foram dados como provados os factos que já haviam sido dados como provados na sentença e que são os seguintes:

1.- A exequente tem em seu poder 10 cheques juntos a fls. 10 a 14 dos autos da ação executiva, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, constando oposto: na face desses cheques, “conta ... ..., Lda.”, no “local da emissão“ ..., no lugar destinado às assinaturas duas assinaturas manuscritas ilegíveis precedidas do carimbo “..., Lda.- A gerência”, “à ordem de BB, Lda.”, apresentando como o ”Ano-Mês- Dia” as datas de, respetivamente, 2007-05-25, 2007-06-16, 2007-06-30, 2007-07-14, 2007-07-28, 2007-07-20, 2007-08-16, 2007-08-22, 2007-08-09 e 1007-08-27, e as quantias, respetivamente, 8.331,36€, 7.662,13€, 7531,81€, 4007,00€, 4007,00€, 4007,00€, 4007,00€, 4007,00€, 4007,00€ e 4006,97€; no verso desses cheques, constam os seguintes dizeres “dou meu aval a favor de firma FF, lda., seguidos de uma assinatura manuscrita ilegível, “dou o meu aval a favor da firma FF, lda., seguidos de uma assinatura manuscrita ilegível, seguindo-se um carimbo com os dizeres “devolvido p/ falta provisão Banco ... - serviço de compensação”, com as duas datas, respetivamente, de 14 de Junho de 2007, 19 de Junho de 2007 (e uma segunda data 26 Julho de 2007), 03 de Julho de 2007, 17 de Julho de 2007, 31 de Julho de 2007, 23 de Julho de 2007, 17 de Agosto de 2007, 24 de Agosto de 2007, 10 de Agosto de 2007 e 29 de Agosto de 2007.

2.- A exequente é uma empresa que exerce a sua atividade de comércio de borracha.

3.- A executada FF, Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida em 23-11-2007, pelo 4.º Juízo Cível desta Comarca, no âmbito do processo n.º 2480/07.4TBGMR, transitada em julgado no dia 20-02-2008.

4.- Em Março de 2006, eram gerentes da sacadora dos cheques, os ditos GG, HH e CC, sendo certo que a sociedade só se obrigava validamente mediante a assinatura de dois gerentes.

5.- Em Março de 2006, o opoente comprou a outro avalista dos cheques em execução – CC – a quota com o valor nominal de 72.000,00€ que este então detinha no capital social da sacadora dos cheques capital social este que era de 216.000,00 euros e se encontrava dividido da seguinte forma: uma quota de 48.000 € pertencente a GG; outra, de 72.000 € pertencente ao dito CC; outra, de 72.000 € pertencente a HH e outra, de 24.000 € pertencente em compropriedade à dita GG e aos seus filhos, DD e II.

6.- Em assembleia geral realizada no dia 14 de Março de 2006, foi deliberado pelos demais sócios destituir de gerente o sócio HH, bem como excluí-lo de sócio, sendo ainda, nessa mesma assembleia, deliberado que a sociedade consentisse na cessão ao aqui opoente da quota de 72.000 € que o CC detinha no capital da sacadora dos cheques.

7.- Cessão esta que nesse mesmo mês foi celebrada e inscrita no registo comercial.

8.- A partir de então, de Março de 2006 e até meados de Maio de 2007, o opoente esteve intimamente ligado ao dia a dia empresarial da sacadora dos cheques exequendos, sendo quem, de facto e em conjunto com os demais gerentes da sacadora dos cheques, CC e GG, dirigiu a empresa de recauchutagem por aquela detida e explorada.

Além destes, em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação considerou provado mais o seguinte:

9 - Os dizeres “dou o meu aval a favor da firma FF, Lda.”, e a assinatura ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso dos cheques referidos em 1 dos factos provados, foram apostos pelo punho do opoente AA.
2. De direito

O art.º 674.º, n.º 1, do CPC[3] prevê como fundamento da revista, na al. a) “a violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável”, acrescentando no n.º 2 que, para estes efeitos, “consideram-se como lei substantiva, as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum e as disposições genéricas, de carácter substantivo, emanadas dos órgãos de soberania, nacionais ou estrangeiros, ou constantes de convenções ou tratados internacionais”; e, na al. b), “[a] violação ou errada aplicação da lei de processo”.

Estipula, ainda, no n.º 3, que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
O executado/oponente invocou que o acórdão recorrido incorreu em erro na apreciação das provas ao alterar o facto não provado para provado, tal como consta do n.º 9 da fundamentação de facto, com base na inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, e no que foi afirmado pela Ex.ma Perita, quando a recorrente apresentou versão diversa da que havia apresentado na contestação da oposição.
Parece, assim, querer fundamentar a revista na violação do citado art.º 344.º, n.º 2.
A questão da inversão do ónus da prova prevista nesta norma inscreve-se nos limites da revista, pois, não obstante não estar em causa qualquer “erro de apreciação das provas”, «… tal como é viável a interferência do Supremo Tribunal de Justiça na matéria de facto cuja fixação esteja associada a alguma ofensa a disposição expressa de lei que exija determinado meio de prova ou que fixe a força probatória de algum meio, também deve admitir-se que, no âmbito do recurso de revista, possa ser sindicado pelo Supremo o modo como as instâncias interpretaram e aplicaram uma norma de direito probatório material, como a do art. 344º, n.º 2, do CC, na medida em que (…) tal se possa traduzir na modificação do juízo probatório subjacente à decisão da matéria de facto provada e não provada»[4]
Mas vejamos se, apesar desta admissibilidade, em abstracto, da questão, o seu mérito deve ser reconhecido.
O art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil dispõe:
Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”
Daqui resulta que a inversão do ónus da prova prevista nesta norma está dependente da verificação dos seguintes pressupostos:
- a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer;
- que tal comportamento lhe seja imputável a título de culpa.
Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[5], verifica-se o condicionalismo do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, quando a conduta do recusante “impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs: art. 313-1 CC; art. 364 do CC), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos…”.
A inversão do ónus da prova surge, assim, como uma sanção civil à violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, consagrado no art.º 417.º, n.º 1, do CPC, que constitui, enquanto radicado nas próprias partes, uma emanação do princípio geral da cooperação consagrado no art.º 7.º, n.º 1 do mesmo Código, “quando essa falta de cooperação vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte podia e devia agir de outro modo”[6]  (art.ºs 344.º, n.º 2 do C. Civil e 417.º, n.º 2 do CPC).
Bem se compreende a razão de ser desta sanção de ordem probatória, pois que, como refere Vaz Serra[7], «não é justo que fique exposto às consequências da falta de prova o onerado que não pode produzi-la devido a culpa da outra parte».
Isto não significa, porém, que tal circunstancialismo importe, só por si, que o facto controvertido se tenha por verdadeiro ou por provado, pois, como adverte o acórdão deste Supremo, proferido no processo n.º 994/06.2TBVFR.P1.S1[8], se assim fosse, estaríamos perante um meio de prova com força probatória plena, o que não é o caso.
Tal recusa significa, somente, que passou a caber à parte recusante a prova da falta da realidade desse facto, não estando, por isso, as instâncias dispensadas de valorar essa recusa para efeitos da formação da sua convicção com vista a dar, como provado, ou não provado, o facto em causa.
É neste contexto que cabe analisar a questão supra enunciada, tendo em conta que está em causa a resposta dada ao art.º 1.º da base instrutória que o Tribunal da Relação deu como provada, tal como consta no n.º 9 da fundamentação de facto, com base na inversão do ónus da prova, com os fundamentos que aqui se transcrevem:

«A questão central reconduz-se a saber se os dizeres “dou o meu aval a favor da firma FF” e se a assinatura manuscrita ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso de cada um dos cheques dados à execução, foram apostos pelo punho do opoente AA.

Para o efeito foi ordenada a realização de prova pericial.

O Laboratório incumbido do exame apresentou o relatório pericial no qual afirma que não é possível formular conclusão.

Assim, numa primeira fase, o resultado da prova pericial revelou-se inconclusivo.

A questão, todavia, não ficou resolvida na medida em que se consignou expressamente naquele relatório pericial que “a escrita produzida na colheita de texto, quando comparada com a escrita de assinaturas, não configura a hipótese de uma escrita natural”.

E esta afirmação vem estribada na circunstância de a escrita contestada ser maioritariamente em maiúsculas, fluente e evoluída enquanto a escrita produzida na colheita de autógrafos ser em maiúsculas, muito pouco fluente e de traçado lento.

Acrescenta-se naquele relatório que a escrita das assinaturas genuínas de AA é também fluente e envolve letras minúsculas. No entanto, quando solicitado a escrever texto em minúsculas, declarou não saber escrever de outra forma que não em letras maiúsculas.

Daí que, no caso presente, em termos de juízo pericial, considerou-se existir uma clara incompatibilidade entre a escrita de assinaturas, fluente e em minúsculas, e a escrita de texto, pouco fluente, em maiúsculas, sendo cada letra constituída por vários traços.

Nestas condições, não foi possível o exame comparativo e, consequentemente, formular qualquer conclusão.

Daqui, podíamos já inferir que a impossibilidade de realização do exame em termos conclusivos se ficou a dever ao facto de o opoente AA não ter produzido ou oferecido, como termo de comparação, quando da colheita de texto perante o Laboratório, uma escrita natural.

Mas esta hipótese de escrita não natural, significará o mesmo que escrita artificial, isto é, intencionalmente modificada?

No caso sub judice, cremos que sim, em face das diligências instrutórias realizadas.

A simples observação visual, mesmo sem possuir conhecimentos especiais, causa a impressão forte de artificialidade (cada letra é constituída por vários traços).

Mas é o próprio perito que, não obstante as justificações apresentadas pelo opoente, afirma existir uma clara incompatibilidade entre a escrita de assinaturas, fluente e em minúsculas, e a escrita de texto a maiúsculas, muito pouco fluente e constituída por traços.

Admitindo, até aqui, alguma dúvida, cremos ter sido sanada com as diligências instrutórias posteriormente realizadas, e assentes num juízo pericial.

Foram juntos novos elementos documentais e realizou-se um novo exame pericial.

Neste novo exame, o Laboratório, tendo procedido à comparação entre os cheques incontestavelmente preenchidos pelo punho do opoente e os originais dos cheques dados à execução, já concluiu que a escrita contestada atribuída a AA, pode ter sido produzida pelo seu punho.

Mas de importância capital revelou-se a prestação de esclarecimentos da Srª Perita que subscreveu o relatório e que após ressaltar as diferenças entre a escrita dos documentos obtidos de forma espontânea e os obtidos por colheita de autógrafos afirma que este tipo de inconsistência interna na produção da escrita nas colheitas de autógrafos, com falta de fluência, hesitações e correcções configura a hipótese de “alteração voluntária de escrita”.

Conclusão que manteve e explicou quando foi ouvida em julgamento, afastando com argumentação técnica as diversas hipóteses que lhe eram colocadas como justificativas daquele tipo de letra.

A Srª Perita não emitiu uma opinião, uma probabilidade, ou sequer manifestou um estado de dúvida. Emitiu um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão em análise.

Daí a valoração da prova pericial, por assentar em critérios científicos e objetiváveis, tendo sido descrito e explicado pela perita o procedimento de análise que conduziu às suas conclusões. É este conjunto de critérios objetivos que permite ao juiz, na ausência de conhecimentos científicos equiparáveis ao do perito, formular um juízo sobre o mérito intrínseco e grau de convencimento a atribuir ao laudo pericial (neste sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, “A valoração da prova pericial”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal (27), 2016, p. 11-24).

Do que se deixa exposto, forçosa se impõe a conclusão de que o opoente por meio da alteração voluntária de escrita tornou impossível a obtenção de um resultado pericial conclusivo e, assim, a impossibilidade de a parte onerada, o exequente, demonstrar os factos que eram relevantes para a sua defesa.

Sendo certo que, no caso, não se trata de uma mera culpa ou culpa negligente, mas sim de uma atuação dolosa, pois é manifesto que o opoente usou propositadamente uma escrita aos tracinhos visando com isso impedir o Laboratório de comparar a escrita contestada com a sua escrita genuína, obtida esta em quantidade e qualidade suficientes que o habilitassem a um juízo científico rigoroso e conclusivo.

Quando assim é, verificado um comportamento culposo, opera a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2, do C. Civil.

A propósito da impossibilitação culposa da prova, defende Ferreira de Almeida que, “inverte-se o ónus da prova com base na regra de experiência de quem coloca entraves excessivos, ou mesmo insuperáveis, à descoberta da verdade material é o que mais descrê da consciência do seu direito, além de violar o princípio da cooperação entre as partes no domínio do processo” (Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 239).

Invertido o ónus probatório, passa a competir ao opoente demonstrar não ter sido ele o autor das escritas e das assinaturas em discussão nos presentes autos.

Coligida a prova produzida, não logrou o opoente fazer a demonstração de tal facto.»

Desta fundamentação da decisão de facto resulta que se encontram preenchidos os pressupostos, acima aludidos, de que depende o mecanismo probatório da inversão do ónus da prova, como bem se explica no trecho acabado de transcrever, com o que se concorda.

Aliás, em bom rigor, o recorrente nem sequer os põe em causa em termos de este Supremo Tribunal poder aferir da sua (in)admissibilidade, única questão de que pode conhecer.

Limita-se a fundamentar a sua discordância no facto de não existir outra prova que justifique a inversão do ónus da prova e de a contraparte ter apresentado no recurso de apelação versão diferente da que havia sustentado na contestação à oposição.

O primeiro argumento não tem fundamento, porquanto, a provarem-se os restantes factos alegados, nem sequer seria necessário lançar mão do mecanismo probatório da inversão do ónus da prova.

E o segundo também não ocorre, pois que, logo no art.º 1.º da contestação, a exequente/recorrida imputou ao executado/oponente as assinaturas apostas no verso dos cheques dados à execução, já então invocou a inversão do ónus da prova em face da sua desconformidade gráfica, deliberada e enganosa (cfr. art.ºs 18.º a 23.º) e  era-lhe imprevisível, à data da apresentação daquele articulado, a conduta que acabou por este adoptar aquando da sua sujeição à prova pericial.

De resto, o que o recorrente pretende é insurgir-se contra a alteração da resposta ao art.º 1. º da base instrutória, feita pela Relação no exercício da sua competência privativa, ao abrigo do disposto no art.º 662.º do CPC, na sequência da impugnação da decisão de facto que havia sido proferida pela 1.ª instância, pondo em causa a sua livre apreciação a que está sujeita a prova produzida, nomeadamente a pericial (cfr. art.º 489.º do CPC).

Todavia, isso sai do âmbito da revista, por não constituir fundamento previsto no art.º 674.º, n.º 3, do CPC, o qual, recorde-se, visa a intervenção (excepcional) do Supremo, no plano dos factos, quando tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a exigência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Não sendo este o caso, por não estarem em causa erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, o Supremo não pode cassar a decisão sustentada em determinado facto cuja prova tenha sido feita através de um meio que respeite a exigência de prova legal que ao caso respeita.

Também não se vislumbra a violação ou errada aplicação da lei de processo, nem o recorrente a concretiza, já que se limitou a referir, na conclusão 16.ª, o art.º 519.º, n.º 2, do CPC, que se presume ser do anterior, ao qual corresponde, sem alterações, o n.º 2 do art.º 417.º do CPC actual, acima já referido, onde se prevê a inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do art.º 344.º do Código Civil.

Ademais, os juízos de facto da Relação, quanto à impossibilidade criada pelo executado para a obtenção de um resultado pericial conclusivo e quanto ao contributo probatório da Ex.ma Perita, através dos esclarecimentos que prestou, têm de ser tidos por adquiridos e justificativos da inversão do ónus da prova.   
Não se vislumbra, assim, qualquer erro de apreciação da prova que este Tribunal possa corrigir, pelo que deve improceder o recurso de revista com a conseqeunte manutenção do acórdão recorrido.

Sumariando:
1. A apreciação do modo como as instâncias qualificaram a actuação de uma das partes no contexto da inversão do ónus da prova prevista no art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil insere-se no âmbito do recurso de revista.
2. Porém, não se inclui nesse âmbito a apreciação da alteração baseada na livre apreciação da prova.
3. A inversão do ónus da prova, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, como sanção civil que é à violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, exige uma actuação culposa da parte que tenha tornado impossível ou particularmente difícil a produção de prova pela contraparte dos factos que lhe competiam.
4. Opera a inversão do ónus da prova a conduta do oponente que, por meio de alteração voluntária da escrita, tornou impossível a obtenção de um resultado pericial conclusivo, quanto à autoria das assinaturas apostas nos títulos executivos, quando a perita que subscreveu o relatório acabou por assegurar, em julgamento, essa autoria.

III. Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar o recurso de revista improcedente e manter o acórdão recorrido.


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Custas pelo recorrente.

Lisboa, 9 de Abril de 2019

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[1] Do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de Guimarães – Juiz 1.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Gonçalves
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. Alexandre Reis
[3] Na redacção actual, dada pela Lei n.º 41/2013, aqui aplicável (cfr. seus art.ºs 5.º, n.º 1 e 8.º).
[4] Cfr. Acórdão do STJ, de 12.05.2016, processo n.º  85/14.2T8PVZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] In Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, pág. 222
[6] Cfr. Acórdão do STJ de 12/4/2018, processo n.º 744/12.4TVPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] In  “Provas (direito probatório material), BMJ, n.º 110, pág. 160.
[8] Acessível em www.dgsi.pt.