Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1410/17.0T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: RECURSO DE REVISTA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES
DEVER DE COOPERAÇÃO
CULPA
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / INTERVENÇÃO DE TERCEIROS / OPOSIÇÃO / OPOSIÇÃO MEDIANTE EMBARGOS DE TERCEIRO / HABILITAÇÃO / LIQUIDAÇÃO / PROCEDIMENTOS CAUTELARES / PROCEDIMENTOS CAUTELARES ESPECIFICADOS / ARRESTO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL / DIREITOS DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / PACTOS DE PREFERÊNCIA.
Doutrina:
- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, p. 222 e 223;
- Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, Almedina, 2.ª edição, 2004, p. 454 e 455;
- Luís Filipe de Sousa, Prova Por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2017, p. 45;
- Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2.ª edição, 2017, Almedina, p. 374;
- Rui Rangel, O Ónus da Prova em Processo Civil, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, p. 191.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 344.º, N.º 2, 351.º, 358.º, N.º 2, 371.º, N.º 1 E 393.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 417.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-05-2016, PROCESSO N.º 85/14;
- DE 12-04-2018, PROCESSO N.º 744/12, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I- Inscreve-se no âmbito do recurso de revista a apreciação do modo como as instâncias interpretaram e aplicaram a norma de direito probatório material prevista no art. 344°, nº 2, do CC, na medida em que a inversão do ónus da prova é susceptível de influir no conteúdo da decisão do tribunal que aprecia as provas produzidas.

II- A inversão do ónus da prova, no termos do art. 344º nº 2, do Código Civil e art. 417°, n° 2 do Código de Processo Civil, apresenta-se como uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material, consagrado no nº 1 do citado art. 417°, quando essa falta de colaboração vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte recusante podia e devia agir de outro modo.

III- Os princípios da boa fé e da cooperação determinam que as partes processuais adoptem uma conduta colaborante com o Tribunal no sentido da descoberta da verdade.

IV- O princípio do contraditório não pode ser interpretado como uma garantia de defesa ilimitada, mas como defesa pautada pelos princípios da lealdade e da colaboração na participação da decisão judicial.

V – À impossibilidade da prova, por actuação culposa da parte não colaborante para com o onerado, deve ser equiparado, em termos de sanção do art. 344º, nº 2, do Código Civil, um comportamento omissivo total ou parcialmente inviabilizador da prova, desde que, dessa falta de colaboração resulte, comprovadamente, fragilidade probatória causada pelo recusante.

VI- No caso dos autos, a falta de cooperação dos Réus traduziu-se na não junção, injustificada, do documento comprovativo do pagamento do preço, bem como na falta, injustificada, na audiência final para prestação de depoimento de parte.

VII- Os Réus, escudando-se nos efeitos da prova plena conferida pela confissão de pagamento do preço feita pela Autora na escritura de compra e venda, adoptaram um comportamento omissivo e não colaborante com o Tribunal na descoberta da verdade, ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil à Autora a produção de prova da falta de pagamento.

VIII- Os Réus, ao não terem comparecido na audiência final, para prestação de depoimento de parte, impossibilitaram a Autora de usar do único meio de que dispunha para prova do não pagamento do preço mencionado na escritura.

IX- Com efeito, a Autora estava praticamente impossibilitada de fazer a prova negativa do não pagamento do preço, por força da prova plena dos factos constantes da escritura (documento autêntico), que lhe interditava, inclusivamente, o recurso à prova testemunhal e por presunção judicial (cf. arts. 351º, 358º, nº 2, 371º, nº 1, e 393.º, n.º 2 do CC).

X- A falta de colaboração dos Réus, sem qualquer justificação, terá de ser valorada como comportamento que determina a inversão do ónus da prova, relativamente ao pagamento do preço mencionado na escritura.

XI- Deste modo, tendo-se operado a inversão do ónus da prova, incumbia aos Réus provarem terem pago o preço declarado na escritura, o que não lograram fazer.

XII- Nestes termos, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, repristinando-se o sentenciado em 1ª instância, quanto à condenação do Réus.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de justiça

I- Relatório

AA, Lda propôs a presente acção contra BB e mulher, CC, pedindo que seja declarado resolvido o contrato celebrado com o R. marido em 13.01.2006, condenando os RR. a pagar-lhe o valor do lote, no montante de € 80.000,00 e a pagar-lhe a quantia de € 24.000,00 a título de perdas e danos, e ainda a quantia de € 250,00 mensais a contar de 08.05.2017. Subsidiariamente, pede a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia de € 80.000,00, acrescida de juros à taxa comercial, contados desde 10.03.2006.

Os RR. contestaram alegando que o R. marido celebrou com a A. um contrato de compra e venda, posteriormente formalizado através de escritura pública, na qual foi pago o preço, conforme declarado na escritura, invocando a ineptidão da petição inicial e a prescrição dos juros para além dos cinco anos.

Procedeu-se a julgamento, após o que o tribunal decidiu “…julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condeno os RR. a pagar à A. o montante de € 80.000,00, acrescido de juros desde 16.05.2012, à taxa de juros comercial.”

Inconformados vieram os Réus interpor recurso de apelação.

O Tribunal da Relação julgou procedente a apelação, revogando a sentença na parte recorrida e, em consequência, julgou improcedente a acção quanto ao pedido de pagamento do preço absolvendo os réus do mesmo.

Deste acórdão veio a Autora interpor recurso de revista, concluindo nas suas alegações:

a)-O art. 1- CPC prevê uma "comunidade de trabalho processual" ao estabelecer que "na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes, cooperar entre si para obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio";

b)-Se a parte notificada para juntar aos autos documento o não faz e nada diz, viola o seu dever de cooperação, permitindo o art. 430 CPC a inversão do ónus da prova;

c)-Se a parte notificada para comparecer na audiência de julgamento, a fim de prestar depoimento de parte, não comparece e nada diz, viola o seu dever de cooperação, sendo tal comportamento livremente apreciado pelo tribunal para efeitos probatórios, nomeadamente em vista da inversão do ónus da prova (art. 417/2 CPC);

 d)-Entendendo a Relação que a inversão do ónus da prova impõe notificação à parte nesse sentido, com "expressa advertência", que não foi feita na 1ª instância, deve aquele Tribunal (art. 662 CPC) ordenar à 1ª instância que tal seja cumprido, em vista da verdade material;

e)-Ao não o fazer violou o art. 662/2 CPC;

f)-Não tendo a relação usado tais poderes pode este STJ fazer uso deles, nos termos do art.682/3 CPC

g)-Não decorre da letra da lei que na notificação à parte para prestar depoimento de parte deva constar a "expressa advertência" da inversão do ónus da prova, caso não compareça injustificadamente;

h)-Essa "expressa advertência" não decorre dos artigos 417, nº 2, 250 ou 452, todos do CPC;

i)-O princípio do inquisitório confere ao Tribunal a faculdade de tudo fazer para apurar a verdade material (art. 411 CPC), sem prejuízo da inversão do ónus da prova, em vista de uma eficaz efectivação do princípio da cooperação;

j)-Os preceitos jurídicos acima referidos deveriam ter sido interpretados e aplicados no sentido de fazer retornar os autos à 1ª instância, em vista do apuramento da verdade material e, ao não o ter ordenado a ora recorrente é gravemente lesada, e, também no sentido de que a notificação para prestar depoimento de parte não carece de expressa advertência de inversão do ónus da prova, podendo apreciar e valorar o Tribunal o comportamento da parte injustificadamente faltosa, para efeitos probatórios.

Razão porque a douta sentença proferida pela 1ª instância não merece reparo e, em consequência, deve manter-se; ou, então devem os autos retornar àquele tribunal com vista ao apuramento da verdade material, ordenando-se a notificação para junção de documento e depoimento de parte com a "expressa advertência" de inversão do ónus da prova, a fim de ser feita Justiça.

Os Réus responderam ao recurso pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

II- Apreciação e Fundamentação

1. Objecto do Recurso:

Admitido o recurso, importa fixar o seu objecto.

 Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são:

- A violação do dever de colaboração por parte do RR. determinou a inversão do ónus da prova relativamente ao pagamento do preço?

- Deverão os autos regressar à 1ª instância para ser ordenada nova notificação aos RR., com expressa advertência da inversão do ónus da prova, para junção de documento e depoimento de parte?

 

2. Factualidade Provada

Foi a seguinte a matéria de facto provada pela 1ª instância:

1 - A A. e o R. marido subscreveram o escrito particular datado de 13 de Janeiro de 2006, de que existe cópia a fls. 11 e 12, denominado "Contrato de Compra e Venda", no qual consta o seguinte:

"1 ° Outorgante: AA, S.A., com sede na rua …, n." …, ... em ..., freguesia de ..., Concelho de ..., pessoa colectiva n." ..., aqui representada pelos administradores DD e EE.

2.° Outorgante: BB, com o contribuinte fiscal n°... e o B.I. ... emitido em 02/09/2002 pelo arquivo de ..., casado com CC, com o contribuinte fiscal n.º ... e o B.I. ... emitido em 23/03/1998 pelo arquivo de ..., residentes em ..., concelho de ....

Entre os outorgantes acima indicados é celebrado o seguinte contrato que se rege pelas cláusulas seguintes:

PRIMEIRA: O 1.º Outorgante vende ao 2.°, um lote de terreno para construção de bloco habitacional e comercial com o n.º 2 da Urbanização ..., concelho de ..., Alvará n.º ..., inscrito na respectiva matriz sob o artº ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... da freguesia de ....

SEGUNDA: A venda é feita contra entrega do 2° andar tipo T3 do referido lote, com uma garagem individual no Piso O e uma arrecadação no sótão, identificados em planta anexa, livres de quaisquer ónus ou encargos.

QUARTA: São de conta do 2.° Outorgante as despesas com a escritura, registos e IMT.

 QUINTA: As partes prescindem das formalidades previstas no n.º 3 do art.° 410° do Cód. Civil de reconhecimento notarial presencial das suas assinaturas e de certificação notarial da existência de licença de alvará de utilização para o prédio em causa, pelo que, prescindem do direito de invocar a nulidade do contrato por falta destes requisitos.

SEXTA: O 1.º e 2° Outorgantes pretendem submeter o presente contrato ao estipulado pelo art.° 830° do Código Civil, desejando o seu efectivo cumprimento.

SÉTIMA: Para a resolução de qualquer litígio decorrente da celebração deste contrato, convencionam as partes outorgantes como competente o Tribunal Judicial de ..., com renúncia expressa a qualquer outro.

Pelos 1.º e 2.° Outorgantes foi dito que aceitam o presente contrato nas condições em que fica exarado." (artigos l° a 4° da petição inicial).

2 - Em 10 de Março de 2006 a A. emitiu a factura n° …, respeitante a venda de um lote de terreno para construção de Bloco Habitacional e Comercial, área de 256,50 m2, com o n° 2 da Urbanização "..." freguesia de ... e concelho de ..., sendo o valor de 80.000,00 €. (art° 6° da petição inicial)

3 - No dia 10 de Março de 2006, no Cartório Notarial da ..., FF e EE, em representação da A. declararam que, pelo preço de € 80.000,00 que para a sua representada já receberam, vendem ao R. BB, o prédio urbano composto de parcela de terreno destinada a construção urbana, designado por lote número 2, sito na Estrada Nacional 118, freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial de € 34.627,50, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número …, daquela freguesia, registado a favor da sociedade vendedora pela inscrição G-l, encontrando-se registada a autorização de loteamento número ..., de 7 de Março de 2002, pela inscrição F-l, da descrição número …, da mesma freguesia, declarando o R. que aceita a venda nos termos exarados. (art°s. 17° e 18° da petição inicial e 8°, 14°, 17°, 22°, 42° (parte) da contestação)

4 - Os RR. não pagaram o preço, apesar de constar na escritura de venda que o mesmo foi recebido. (artº 8° da petição inicial)

5 - Montante este que se encontra em débito, na contabilidade da A. (artº 7° da petição inicial)

6 - A compra e venda foi uma maneira mais agilizada de transmitir o lote para que os RR. pudessem avançar com a construção. (art° 8° da petição inicial)

7 - Pela Ap. 16 de 2006/05118, mostra-se registada a favor dos RR. a aquisição do prédio n° …, por compra à A. (facto provado nos termos do art" 607°, n° 4, CPC)

8 - Pela Ap. 12 de 2006/05118, mostra-se registada a favor dos RR. hipoteca voluntária a favor do Banco GG, S.A., sobre o prédio n° ..., para garantia do capital de € 150.000,00, com limite máximo assegurado de € 219.000,00. (facto provado nos termos do artº 607°, n° 4, CPC)

9 - Em 6 de Maio de 2009, no Cartório Notarial de HH, em ..., os RR. BB e mulher, CC, declararam ser donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto de rés-do-chão destinado a garagens e a comércio ou serviços, primeiro e segundo andares destinados a habitação e sótão destinado a arrecadações, (...), edificado no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número …-..., autonomizado pelo Alvará de Loteamento número ..., de 07.03.2002, conforme inscrição Ap. 21, de 29.05.2002, lá registado a seu favor pela inscrição Ap. 16, de 18.04.2006, do qual foi apresentada declaração para inscrição de prédios urbanos na matriz, no Serviço de Finanças de ..., em 29.04.2009, tendo sido atribuído o artigo P1605 (anterior ... Parcela), ainda pendente de avaliação. Que o prédio, a que atribui o valor de € 250.000,00, é composto por seis fracções, completamente autónomas, distintas e isoladas entre si, (…):

- fracção "A" - Loja Um, destinada a comércio ( ... );

- fracção "B" - rés-do-chão direito, destinado a comércio ou serviços ( ... );

- fracção "C" - primeiro andar esquerdo, destinado a habitação, composto por dois quartos, sala, cozinha, casa de banho e hall, com a área coberta de 100,15 m2, uma varanda na cozinha com estendal, com a área de 2,40 m2, uma varanda na sala com a área de 4,05 m2, uma arrecadação no sótão com a área de 36,25 m2, uma garagem no rés-do-chão com a área de 15,15 m2, à qual atribuem o valor de € 43.325,00, a que equivale 173,30 por mil do valor total do imóvel.

- fracção "D" - primeiro andar direito, destinado a habitação, composto por três quartos, sala, cozinha, duas casas de banho e hall, com a área coberta de 145 m2, uma varanda na cozinha com estendal, com a área de 2,40 m2, uma varanda na sala com a área de 4,60 m2, uma arrecadação no sótão com a área de 38,73 m2, uma garagem no rés-do-chão com a área de 18,95 m2, à qual atribuem o valor de € 57.500,00, a que equivale 230 por mil do valor total do imóvel.

- fracção "E" - segundo andar esquerdo, destinado a habitação, composto por dois quartos, sala, cozinha, casa de banho e hall, com a área coberta de 100,15 m2, uma varanda na cozinha com estendal, com a área de 2,40 m2, uma varanda na sala com a área de 4,05 m2, uma arrecadação no sótão com a área de 45,30 m2, uma garagem no rés-do-chão com a área de 15,10 m2, à qual atribuem o valor de € 45.775,00, a que equivale 183,10 por mil do valor total do imóvel.

- fracção "F" - segundo andar direito, destinado a habitação, composto por três quartos, sala, cozinha, duas casas de banho e hall, com a área coberta de 145 m2, uma varanda na cozinha com estendal, com a área de 2,40 m2, uma varanda na sala com a área de 4,60 m2, uma arrecadação no sótão com a área de 61,96 m2, uma garagem no rés-do-chão com a área de 17,85 m2, à qual atribuem o valor de € 63.570,00, a que equivale 254,30 por mil do valor total do imóvel. (...)" (art°s 9°, 10° e da petição inicial)

10 - Os RR. não entregaram à A., até à presente data, o 2° andar tipo T3. (art°s 8° e 21 ° da petição inicial).

11 - Pela Ap. 2745, de 2012/12/11, a fracção "E" do prédio n° … mostra-se registada a favor de II, divorciado. (art" 20° da petição inicial)

12 - Pela Ap. 2612, de 2014/08/08, a fracção "F" do prédio n° ... mostra-se registada a favor de JJ, casado com KK. (art° 20° da petição inicial).

O Tribunal da Relação, em reapreciação da matéria de facto, eliminou os pontos 4 e 5, passando estes a integrar o elenco dos factos não provados. E aditou aos factos provados o seguinte:

O preço da compra e venda foi pago pelo comprador, ora réu, como expressamente consta da declaração dos representantes da sociedade autora, quando referem que “pela presente escritura e pelo preço de oitenta mil euros, que para a sua representada já receberam, vendem ao segundo outorgante o seguinte imóvel: prédio urbano composto por parcela de terreno destinada a construção. “

III- O Direito

A violação do dever de colaboração por parte dos RR. determinou a inversão do ónus da prova relativamente ao pagamento do preço?

Sublinhe-se, como ponto prévio, que a questão da inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, n.º 2 do C. Civil, tal como salienta o Acórdão do STJ, de 12.05.2016[1], inscreve-se nos limites do recurso de revista, pois não obstante não estar em causa qualquer “erro de apreciação das provas”, “tal como é viável a interferência do Supremo Tribunal de Justiça na matéria de facto cuja fixação esteja associada a alguma ofensa a disposição expressa de lei que exija determinado meio de prova ou que fixe a força probatória de algum meio, também deve admitir-se que, no âmbito do recurso de revista, possa ser sindicado pelo Supremo o modo como as instâncias interpretaram e aplicaram uma norma de direito probatório material, como a do art. 344º, n.º 2 , do CC, na medida em que (…) tal se possa traduzir na modificação do juízo probatório subjacente à decisão da matéria de facto provada e não provada”.

Como decorre das conclusões das alegações, a primeira questão objecto do recurso prende-se com a apreciação do erro de direito sobre a repartição do ónus de prova relativamente ao pagamento ou não do preço declarado na escritura de compra e venda, isto, é a de saber se estavam preenchidos os pressupostos para a inversão do ónus da prova, por violação do princípio de colaboração.

Importa desde já determinar em que termos se traduziu a falta de colaboração por parte dos RR.

Conforme decorre dos autos, (despacho de fls. 79) os RR foram notificados para juntar aos autos suporte documental do pagamento do preço declarado na escritura. O certo é que os RR não juntaram qualquer documento nem deram explicação por não terem cumprido a notificação ordenada pelo tribunal de 1ª instância.

Por outro lado, apesar de devidamente notificados para comparecerem na audiência final a fim de prestarem depoimento de parte, os RR não compareceram, nem deram qualquer justificação (despacho de fls 119 e 120).

E foi precisamente com base nestes dois comportamentos por parte dos RR que o Tribunal de 1ª instância inverteu o ónus da prova ao abrigo do disposto no artº 417º, nº 2 do CPC e 344º, nº 2 do CC. Vejamos a sentença, nesta parte, quanto à motivação de facto e de direito:

“Mostrou-se igualmente relevante para o apuramento da matéria de facto a circunstância de os RR. se terem recusado a colaborar com o tribunal no apuramento da matéria de facto, como resulta do despacho que ficou consignado na acta da audiência final (fls. 119 e 120), que motivou e determinou a inversão do ónus da prova, nos termos dos art°s. 417°, nº 2, CPC e 344°, n° 2, CC. Em consequência, incumbia aos RR. provar terem pago o preço declarado na escritura, o que não lograram fazer, pois não só não compareceram para prestarem depoimento de parte, como não juntaram qualquer suporte documental ou outro meio de prova donde resultasse ter sido efectuado o pagamento, apesar de notificados para o efeito (cfr. fls. 79)

(…)

No caso dos autos, estariam os RR. dispensados de provar a veracidade do pagamento do preço, impendendo sobre a A. o ónus de provar o não recebimento apesar de ter declarado ter recebido. Porém, como resulta do despacho que ficou consignado na acta da audiência final (fls. 119 e 120), a recusa de colaboração dos RR. teve como efeito a inversão do ónus da prova, nos termos dos art°s. 417°, n° 2, CPC e 344°, n° 2, CC”.

 Esta decisão veio a ser revogada pelo Tribunal da Relação, que, alterando a matéria de facto provada pela 1ª instância, concluiu pela não inversão do ónus da prova. Vejamos a fundamentação utilizada pela Relação:

“Face ao quadro normativo em presença, uma vez que a declaração de quitação quanto ao pagamento do preço devido foi objecto de confissão perante o credor, ora 1° réu, prestada na escritura de compra e venda, incumbia a esta provar que tal pagamento não ocorrera, nos termos do citado artigo 347.°, com referência ao artiso 358.°, n° 2. E em derrogação do preceituado na norma geral do n° 2 do artigo 342.° do CC.

Isso mesmo, bem entendeu a Mmª Juiz quando refere:

«No caso dos autos, estariam os RR. dispensados de provar a veracidade do pagamento do preço, impendendo sobre a A. o ónus de provar o não recebimento apesar de ter declarado ter recebido».

Mas prossegue, agora sem razão.

«Porém, como resulta do despacho que ficou consignado na acta da audiência final (fls. 119 e 120), a recusa de colaboração dos RR. teve como efeito a inversão do ónus da prova, nos termos dos art°s. 417°, nº 2, CPC e 344º do CC.

Deste modo, incumbia aos RR. provar terem pago o preço declarado na escritura, o que não lograram fazer, pois não só não compareceram para prestarem depoimento de parte, como não juntaram qualquer suporte documental ou outro meio de prova donde resultasse ter sido efectuado o pagamento, apesar de notificados para o efeito (cfr. fls. 79)».

(…)

Feitos estes considerandos de cariz teóricos, fácil é concluir que a simples falta dos réus, sem justificação, à audiência final, notificados sem essa expressa advertência, não justifica, a inversão do ónus da prova, certo que o comportamento dos réus não pode sem mais, consubstanciar uma violação do princípio da cooperação em sentido material, nem determinou culposamente a impossibilidade da prova do facto àquele a quem a competia fazer.

Basta isto para dizer que não é caso da aplicação da sanção gravosa, como seja a inversão do ónus da prova nos termos do art. 344º, n.º 2 do CC. a falta, sem justificação à audiência final, sem que os réus tivessem sido notificados com essa expressa advertência.

Nesta conformidade, procedem as conclusões dos apelantes quanto a este fundamento (inversão do ónus de prova).

Assim, a sentença recorrida, ao considerar que tal ónus probatório recaía sobre os réus, ao considerar sem mais a falta de comparência dos réus que apenas se mostravam notificados para comparecer na audiência a fim de prestarem depoimento de parte com a mera advertência de que “Incorre em pena de multa se faltar e não apresentar a justificação no prazo legal”.

Da leitura do acórdão, desde logo, ressalta uma omissão quanto à apreciação da matéria que justificou a inversão do ónus da prova operada pela 1ª instância. Com efeito, resulta claramente da sentença que foram dois os motivos que levaram à inversão do ónus da prova: a falta de colaboração por parte dos RR. pela não junção de documento para prova do pagamento, apesar de devidamente notificados para o efeito, e a falta de comparência na audiência final para prestação de depoimento de parte.

No entanto, a Relação, estranhamente, apesar de se referir a estes dois elementos (cfr. p. 36 do acórdão), acaba por fundamentar a sua decisão apenas com base na falta de comparência dos RR. na audiência final (cfr. p. 46 e 47 do acórdão) , para daí  extrair a conclusão que essa “simples falta dos réus, sem justificação, à audiência final, notificados sem essa expressa advertência, não justifica a inversão do ónus da prova”.

Ora, a apreciação conjunta destes dois elementos factuais (não junção de documento e a falta de comparência na audiência para prestação de depoimento de parte) consubstanciadores da falta de colaboração por parte dos RR. é decisiva para a tomada de decisão quanto à inversão do ónus da prova. Sendo certo que foi com base nestes dois elementos que se estribou a sentença para inverter o ónus da prova, também será com referência a ambos que incumbe a este tribunal apreciar a inversão do ónus da prova, como alega a ora Recorrente.

Vejamos:

Estipula o art. 344°, n.º 2, do CC, que há “inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações”.

Com a inversão do ónus da prova, a lei impõe a demonstração da realidade de um determinado facto à parte (recusante) que, de acordo com o critério geral, não carecia de desenvolver uma actividade instrutória nesse sentido. O que significa que, “em desvio à regra, a prova do facto não tem de ser feita pela parte a quem o mesmo aproveita, antes recaindo sobre a outra parte o encargo de provar o facto contrário[2] . Decorre, assim, do citado preceito estar a inversão do ónus da prova dependente da verificação de dois pressupostos[3] :

1- que a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer, o que inculca que a prova que foi inviabilizada seja decisiva para demonstrar a realidade do facto[4] ;

2- que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título de culpa .

O supra mencionado normativo sanciona com a inversão do ónus da prova a actuação da parte com ele não onerada que culposamente impeça o onerado de fazer a prova do facto[5].

Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[6] , verifica-se o condicionalismo do citado art. 344º, n.º 2 do CC quando o comportamento do recusante “impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs.: 313-1 CC; art. 364 C.C), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos (por exemplo, a destruição pelo condutor do automóvel, logo após o acidente, dos indícios da sua culpa no acidente de viação, o obstáculo eficaz erguido à deslocação a tribunal duma testemunha da parte contrária ou a não apresentação dum documento na posse da parte pode, se outra prova dos factos em causa não existir ou, existindo, for insuficiente, dar lugar à inversão do ónus da prova, que ficará a cargo da parte não cooperante)». O mesmo sucederá quando, por exemplo, «a parte notificada para apresentar um documento não o apresenta (art. 430º do CPC) ou declara que não o possui, tendo-o já possuído e não provando que ele desapareceu ou foi destruído sem culpa sua (art. 431º do CC) e quando, duma maneira geral, a parte recusa colaborar para a descoberta da verdade»[7].

Nas palavras de Lopes do Rego[8], “provindo a recusa da colaboração da parte e revelando-se inviável (por razões de facto ou jurídicas) a realização específica e coerciva da diligência determinada, a recusa de cooperação é susceptível de influir no conteúdo da decisão do tribunal que aprecia as provas produzidas.

 Assim: (a) se a recusa tiver tornado impossível a prova à outra parte, sobre quem recaía o ónus probatório de certo facto (v. g. a diligência probatória culposamente frustrada recaía sobre matéria de facto absolutamente essencial, que só podia ser demonstrada por esse meio, já que o onerado não dispõe de outros meios de prova que, em concreto, demonstrem o facto) ocorre a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º, nº2, do Código Civil (…).

(b) Se não for assim - isto é, se a recusa não implicar aquela impossibilidade de o onerado provar facto absolutamente essencial à acção ou à defesa - deverá o tribunal apreciar livremente o valor probatório da recusa (nomeadamente, dela inferindo que a parte, ao menos no plano subjectivo, receava seriamente o resultado daquela diligência instrutória)”.

A impossibilidade deve aferir-se pela importância do meio probatório inviabilizado, para provar um facto que, segundo Rui Rangel[9], deverá ser decisivo (facto principal). Não faz sentido penalizar a parte não colaborante, se o meio por esta inviabilizado não for de importância decisiva para o apuramento de facto principal e, portanto, para o desfecho da acção.

À impossibilidade da prova, por actuação culposa da parte não colaborante para com o onerado, deve ser equiparada [em termos de sanção do art. 344º, n.º 2, do CC para que remete o art. 417º, n.º 2, do CPC] uma colaboração reticente ou parcialmente inviabilizadora da prova, desde que, dessa falta de colaboração resulte, comprovadamente, fragilidade probatória causada pelo recusante, isto em homenagem ao princípio da colaboração – art. 7º do Código de Processo Civil – e da boa-fé, seja na perspectiva processual, seja na perspectiva substantiva – art. 762º, n.º 2, do CC[10].

A inversão do ónus da prova surge, assim, como uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material, consagrado no art. 417º, n.º 1, do CPC, quando essa falta de colaboração vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte podia e devia agir de outro modo (art. 344º, n.º 2 do CC e art. 417º, n.º 2 do CPC)[11].

É neste quadro jurídico que importa apreciar as consequências do comportamento dos RR. traduzido na falta de colaboração para a descoberta da verdade, ao abrigo do disposto no arts. 7º e 417º do CPC.

Conforme decorre dos autos, (despacho de fls 79) os RR foram notificados para juntar aos autos suporte documental do pagamento do preço declarado na escritura. O certo é que os RR não juntaram qualquer documento nem deram explicação para tal facto.

Dispõe o artº 429º do CPC que:

1- Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.

2 - Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.

Por sua vez dispõe o artº 430º do mesmo diploma que:

Se o notificado não apresentar o documento, é-lhe aplicável o disposto no nº 2 do artigo 417º. 

Este preceito concretiza, em matéria de prova documental, o princípio ínsito no artº 417º que envolve o dever de cooperação para a descoberta da verdade, estatuindo que a conduta omissiva da parte será apreciada livremente pelo tribunal, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do nº 2 do artº 344º do CC[12].

Por sua vez, decorre também dos autos que, apesar de devidamente notificados para comparecerem na audiência final a fim de prestarem depoimento de parte, os RR não compareceram, nem deram qualquer justificação para a falta, sendo que nesse acto os RR. foram devidamente notificados, na pessoa do seu mandatário,  por despacho judicial de que a falta de comparência, sem qualquer justificação, seria considerada como recusa de colaboração, que o tribunal não deixaria de apreciar livremente, para efeitos probatórios (artº 357º, nº 2 do CC), sem prejuízo da inversão do ónus da prova  (despacho de fls 119 e 120).

E foi precisamente com base nestes dois comportamentos (não junção de documento e falta de comparência na audiência final para prestação de depoimento de parte) por parte dos RR que o Tribunal de 1ª instância inverteu o ónus da prova ao abrigo do disposto no artº 417º, nº 2 do CPC e 344º, nº 2 do CC.

No caso dos autos, resulta claramente do quadro factual que os RR se recusaram a colaborar com o Tribunal na descoberta da verdade, pelo que o tribunal de 1ª instância, aquando da prolação da sentença, nos termos do disposto nos nºs 4 e 5 do art. 607º do CPC inverteu o ónus da prova, dando como provado o não pagamento do preço declarado na escritura.

Decisão que se nos afigura correcta já que se mostram preenchidos os requisitos conducentes à inversão do ónus da prova, ao abrigo do disposto dos citados artsº 417º, nº 2 e 344º, nº 2 do CPC

Com efeito, os RR., escudando-se nos efeitos da prova plena conferida pela confissão de pagamento do preço feita pela A. na escritura de compra e venda adoptaram um comportamento omissivo e não colaborante com o Tribunal na descoberta da verdade, ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil ao A. a produção de prova da falta de pagamento, no sentido de que podiam e deviam ter agido de outro modo.

Na verdade, os RR., ao não terem comparecido na audiência final, para prestação de depoimento de parte, impossibilitaram o A. de usar do único meio disponível que tinham para prova do não pagamento do preço mencionado na escritura. Com efeito, não podemos olvidar que a A. estava praticamente impossibilitada de fazer a prova negativa do não pagamento do preço, por força da prova plena dos factos constantes da escritura (documento autêntico), que lhe interditava, inclusivamente, o recurso à prova testemunhal e por presunção judicial (cf. arts. 351º, 358º, nº 2, 371º, nº 1, e 393.º, n.º 2 do CC).

Esta falta injustificada de comparência na audiência final, bem como a não apresentação do documento comprovativo do pagamento, sem qualquer justificação, traduzem factos que terão de ser valorados como comportamento não colaborante que justifica a inversão do ónus da prova. Com efeito, os RR., que sempre alegaram ter efectuado o pagamento do preço, teriam uma forma fácil e expedita de fazer essa prova, juntando o documento comprovativo, ou comparecendo na audiência final esclarecendo o meio e o modo como tal pagamento foi realizado.

Todavia, não optaram pela via da colaboração com o Tribunal na descoberta da verdade, adoptando um comportamento omissivo, que deve equiparado a recusa para efeitos de aplicação do regime previsto no artº 417º, nº 2 do CPC.

Como se refere no Acórdão 09A197 de 31 de Março de 2009[13], à “impossibilidade da prova, por actuação culposa da parte não colaborante para com o onerado, deve ser equiparada, [em termos de sanção do art. 344º, nº2, do Código Civil para que remete o art. 519º,nº 2, do Código de Processo Civil], uma colaboração reticente ou parcialmente inviabilizadora da prova, desde que dessa falta de colaboração resulte, comprovadamente, fragilidade probatória causada pelo recusante, isto em homenagem ao princípio da colaboração – art. 266º do Código de Processo Civil e da boa-fé, seja na perspectiva processual, seja na perspectiva substantiva – art. 762º, nº2, do Código Civil”.

A flexibilização do conceito de impossibilidade de prova para efeitos do artº 344º, nº 2 do CC, ínsita neste acórdão, não pode deixar de ser considerada, em homenagem aos princípios da boa-fé e da cooperação para descoberta da verdade.

É que, como salienta Lopes do Rego[14], “a recusa de cooperação da parte é susceptível de influir no conteúdo da decisão do tribunal que aprecia as provas produzidas.

Assim:

(a) se a recusa tiver tornado impossível a prova à outra parte, sobre quem recaía o ónus probatório de certo facto (v.g. a diligência probatória culposamente frustrada recaía sobe matéria de facto absolutamente essencial, que só podia ser demonstrada por esse meio, já que o onerado não dispõe de outros meios de prova que, em concreto, demonstrem o facto), ocorre a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2, do Código Civil”[15].

 

E como refere Luís Filipe de Sousa[16], “A circunstância de recair sobre uma das partes o ónus de alegação e prova não permite que a contraparte se refugie num ensurdecedor silêncio sistemático. Tal consubstanciaria uma falta de colaboração com a justiça bem como a violação da regra da boa-fé”.

Desde a reforma do processo civil de 1995/6 que a lei processual consagra expressamente o dever de boa-fé processual (artº 8º) e o princípio da cooperação (artº 7º). A boa-fé impõe uma norma de conduta das partes pautada pelos deveres de esclarecimento e lealdade. Nesta perspectiva, o princípio do contraditório não pode ser visto como uma garantia de defesa ilimitada, mas como defesa pautada pelo comportamento leal e correcto. O dever de boa-fé busca um interesse que excede o das partes, como seja o interesse público do Estado na prestação da tutela jurisdicional.

O princípio da cooperação impõe às partes e ao juiz uma actuação comprometida com a verdade com vista a obter-se com brevidade e eficácia a justa composição do litígio. Às partes compete prestar todos os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes, devendo comparecer em juízo sempre que para isso sejam notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos.

O dever de cooperação para a descoberta da verdade previsto no art. 417º do CPC traduz, enquanto radicado nas próprias partes, uma concretização do dever geral de cooperação, consagrado no art. 7º, no campo da instrução da causa[17].

Argumenta o Tribunal da Relação que “a simples falta dos RR., sem justificação, à audiência final, notificados sem essa expressa advertência, não justifica, a inversão do ónus da prova (…)”.

Já vimos que não foi apenas a falta, injustificada, de comparência dos RR. na audiência final que motivou a inversão do ónus da prova operada pela 1ª instância, mas também o facto de não terem juntado (sem qualquer justificação) o documento comprovativo do pagamento, apesar de devidamente notificados para o efeito.

Por outro lado, a lei não impõe que a notificação seja feita com a “expressa advertência” de que a falta de comparência injustificada na audiência final, implicaria a inversão do ónus da prova, nos termos do artº 344º, nº 2 do CC. Com efeito, nada ressalta a tal respeito dos arts. 417º, nº 2, e 452º do CPC e 344, nº 2 e 357º, nº 2 do CC.

A decisão de inversão do ónus da prova está dependente da livre apreciação que o julgador faz ex post facto (isto é, depois da produção de prova em julgamento), designadamente sobre a necessidade de recorrer, ou não, ao sobredito mecanismo legal de inversão do ónus da prova.

Procedimento, aliás, que os RR. não podiam deixar de conhecer na medida em que, nos presentes autos, estavam assistidos juridicamente pelo seu mandatário forense.

Deste modo, tendo-se operado a inversão do ónus da prova, incumbia aos RR. provar terem pago o preço declarado na escritura, o que não lograram fazer, pois não só não compareceram para prestarem depoimento de parte, como não juntaram qualquer suporte documental ou outro meio de prova donde resultasse ter sido efectuado o pagamento.

Pelo exposto e ficando prejudicada a apreciação da segunda questão do objecto do recurso (baixa dos autos para repetição das notificações com expressa advertência), procede a pretensão recursiva da Autora.

III- Decisão:

 Nestes termos concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, repristinando-se o sentenciado em 1ª instância, quanto à condenação do Réus.

Custas pelos Réus.

Lisboa, 10 de Setembro de 2019

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Assunção Raimundo

______________________

[1] Processo 85/14 e no acórdão do STJ de 12/4/2018, processo 744/12, ambos in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., 2017, Almedina, p. 374.
[3] Cfr., Ac. do STJ de 12/04/2018 e Ac. da RP de 1/02/2016, supra citados, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] Todavia, alguma jurisprudência tem-se orientado no sentido de admitir a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, n.º 2 do CC, não apenas quando a prova seja impossível para a parte onerada, mas também quando esta se torne particularmente difícil. - cfr., neste sentido, entre outros, o Ac do STJ de 31.03.2009, in www. dgsi.pt.
C:\Users\andre.r.capricho_st\Desktop\processo 1410 17 projecto 2.docx - _ftnref5 [5]Cfr. José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, Almedina, 2017, p. 427.
C:\Users\andre.r.capricho_st\Desktop\processo 1410 17 projecto 2.docx - _ftnref6 [6]Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 222/223.
[7]Cfr. José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, pp. 427/428.
[8]Cfr., Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, 2ª Ed., 2004, em anotação ao artigo 519.º, pp. 454-455.
[9]Cfr. O Ónus da Prova em Processo Civil, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, p. 191.
[10]Cfr., Ac. do STJ de 31/03/2009, in www.dgsi.pt.
[11]Cfr., Ac. do STJ de 12/04/2018, processo 744/12, in www.dgsi.pt.
[12] Vide Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3ª ed., comentário aos arts 430º e 431º.
[13] In www.dgsi.pt.
[14] Ob. cit. pp 454/455.
[15] RITA LYNCE DE FARIA, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Português, Universidade Católica Editora, 2018, p. 60, defende que deve entender-se que “quando o artigo 417º, nº 2, segunda parte, do Código de Processo Civil preceitua que, havendo recusa de colaboração, nomeadamente em matéria de apresentação de meios de prova, «o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios», estamos perante a situação e em que é a parte onerada com a prova daquele facto que se recusa a prestar a colaboração requerida pelo juiz. Nesta situação, nunca poderia verificar-se uma inversão do ónus da prova. Já quando se trate da parte não onerada com a prova do facto que se recusa a colaborar na descoberta da verdade, deverá entender-se que é aplicável o disposto no nº 2 do artigo 344.° do Código Civil, ou seja, passa a ser a parte que não colaborou a ficar onerada com a prova do respetivo facto”.
[16] Luís Filipe de Sousa, Prova Por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2017, p. 45.
[17]Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, p. 221.