Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª. SECÇÃO | ||
Relator: | GABRIEL CATARINO | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE MÉDICA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DEVER DE INFORMAÇÃO DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO INTERVENÇÃO CIRÚRGICA LEGES ARTIS ERRO OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO DANO NEXO DE CAUSALIDADE INDEMNIZAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 03/07/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE REVISTA. | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / FALTA DE CUMPRIMENTO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / PODERES DE COGNIÇÃO DE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. | ||
Doutrina: | - Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 520-522. - Ana Mafalda Miranda Barbosa, Responsabilidade Civil Extracontratual – Novas Perspectivas em Matéria de Nexo de Causalidade, Princípia Editora, Cascais, 2014, 23-26, 33 e ss., 196. – Antunes Varela, Das obrigações em Geral, Coimbra, 1989, Vol. I, 572-578 (576); Das Obrigações em Geral, 6.ª edição, 495, 861, nota 2, 868, 870-871. - Fernando Reglero Campos, Tratado de Responsabilidad Civil, Tomo I, Parte General, Thomson-Arandazi, 2008, Cizur Menor (Navarra), 721-780. - Ignacio Sierra Gil de la Cuesta, Tratado de Responsabilidad Civil, Tomo 1, Bosch, 2.ª edición, 2008, 14, 219-220, 222, 223, 415. - Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 369. - João Branquinho e Desidério Murcho, Enciclopédia de Termos Lógico-filosóficos, Gradiva 2001, 18. - João Lobo Antunes, «Erro em Medicina», Palestra proferida durante o 1.º Encontro da Faculdade de Medicina de Lisboa, Outubro de 1992. - Jorge Ribeiro Faria, Direito das Obrigações, volume I, 505, 507. - Laura Mancini, Responsabilità Civile. La Colpa nella Responsabilità Civile, Giuffrè Editore, 2015, 25 a 55. - Manuel Carneiro Frada, Direito Civil. Responsabilidade Civil. O Método do Caso. Almedina, 2010, (Reimpressão), 100. – Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, páginas 352, 353 e 357. - Nicola Abbagnano, Dicionário e Filosofia, Martins Fontes, S. Paulo, 2003, 1. - Pessoa Jorge, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil, Almedina, 1995, 53 a 57. – Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, volume I, 2.ª edição, 503. - Rui Alarcão, Direito das Obrigações, 1983, 281, 286. - Sinde Monteiro, «Responsabilidade Civil», Revista de Direito e Economia, Ano IV, n.º 2, Julho/Dezembro, 1978. - Vaz Serra, em Boletim do Ministério da Justiça n.º 84, 41, 284, e n.º 100, 127. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 562.º, 563.º, 566.º, 799.º, N.º 2. CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 682.º, N.º 2, 774.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 28/11/94, PROC. N.º 87187, PUBLICADO NA COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA – ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ANO III, TOMO III, 74, E NO BOLETIM DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA N.º 450, 403. -DE 01/07/2003, PROC. N.º 03A1902, EM WWW.DGSI.PT . -DE 24/05/2007, PROCESSO Nº 07A1187, EM WWW.DGSI.PT . (VIDE TAMBÉM, ACÓRDÃO DE 04/03/2004, E DE 09/10/2004, PROCESSO N.º 2897/2004. -DE 19/02/2009, PROC. N.º 08B3652, EM WWW.DGSI.PT . -DE 15/10/2009, EM WWW.DGSI.PT . -DE 07/10/2010, PROC. N.º 370/04.1TBVGS.C1, EM WWW.DGSI.PT ; DE 07/05/2014, PROC. N.º 1070/11.TBVCT.G1.S1, EM WWW.DGSI.PT ; DE 16/02/2012, PROC. N.º 1043/03.8TBMCN.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT . -DE 11/01/2011, PROC. N.º 2226/07 – 7TJVNF.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT . -DE 15/12/2011, PROC. N.º 209/06.3TVPRT.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT . -DE 15/03/2012, PROC. N.º 3976/06.0TBCSC.L1.S1 IN WWW.DGSI.PT . -DE 12/03/2015, PROC. N.º 1212/08.4TBBCL.G2.S1, IN WWW.DGSI.PT . -DE 28/05/2015, PROC. N.º 3129/09.6TBVCT.G1.S1, EM WWW.DGSI.PT . -DE 02/06/2015, PROC. N.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT . -DE 16/06/2016, EM WWW.STJ.PT . | ||
Sumário : | I - Na relação que se estabelece entre o médico e o doente, o dever de informar/esclarecer do primeiro confina-se, no momento da assumpção do diagnóstico, em dar a conhecer ao segundo o tipo, a extensão e os efeitos da doença de que é portador e a forma medicamente adequada de a tratar. II - O dever de informar mostra-se, em concreto, adequada e correctamente cumprido, porquanto os clínicos consultados (réus) informaram a doente (autora) (i) da natureza e tipo de patologia diagnosticada, (ii) do tipo de intervenção que deveria ser realizada para que fosse debelada, e (iii) das previsíveis consequências, de acordo com a ciência médico-cirúrgica, que poderiam advir do tipo de intervenção a realizar, a nível urológico. III - Os efeitos perversos que advieram à autora em momento posterior à intervenção cirúrgica, relevam de uma deficiente e malformada técnica médico-cirúrgica do clínico e não do dever de informar. IV - A responsabilidade civil médica pode ter, simultaneamente, natureza extracontratual e contratual, pois o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física. V - Em regra, a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual, solução mais ajustada aos interesses do lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada. VI - Entre a autora e o réu firmou-se uma relação contratual mediante a qual este se comprometeu, pela qualificação que lhe está conferida de profissional clínico, mediante retribuição, a tratar uma doença que lhe havia sido diagnosticada e que deveria ser debelada. VII - A obrigação assumida foi obrigação de meios porque não resultou provado que o profissional clínico se tivesse obrigado a um resultado específico, v.g. de proceder a uma cura absoluta e definitiva do morbo a tratar. VIII - O erro médico consubstancia-se na realização de um acto adstrito e da competência funcional de um profissional de medicina que se revelou descaracterizado e desadequado aos fins que a ciência e a arte da medicina injungiam para a debelação ou minoração de um padecimento previamente diagnosticado e reconhecido pela cognoscibilidade da ciência médica. IX - Tendo ficado provado que (i) a autora não padecia ou evidenciava sinais, antes da intervenção cirúrgica, de possuir uma bexiga neurogénica atónica; (ii) as deficiências evidenciadas sobrevieram à cirurgia a que foi submetida; (iii) a cirurgia a que foi submetida implicava ou envolvia a bexiga; e, (iv) não tendo ficado provado que a autora se tenha submetido a outra intervenção cirúrgica, conclui-se pela ocorrência de um nexo causal entre a intervenção e as sequelas que a autora apresenta e outro sim uma actividade (comissiva) culposa traduzida numa imperícia na arte da técnica cirúrgica. X - Atendendo à idade da lesada (33 anos) e às consequências gravosas, no plano da auto-estima e da estabilidade físico-psíquica, resultantes da necessidade de auto-algaliação e colostomia, estima-se em € 120000 o valor da indemnização por danos não patrimoniais a suportar pelos réus..
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 6669/11.3TBVNG.S1. Recorrente: AA. Recorridos: BB; “HOSPITAL CC, S.A.”; “SEGURO DD, S.A.; e “SEGURO EE, S.A.”
I. – Relatório. I.a). – Histórico Processual. I.a.1) – Da Demanda. A demandante, AA, demandou os demandados, BB; “HOSPITAL CC, S.A.”; “SEGURO DD, S.A.; e “SEGURO EE, S.A.”, pedindo a sua condenação, solidária, no pagamento da quantia de duzentos e setenta e cinco mil eros (€ 275.000,00), a título de danos não patrimoniais, com base em responsabilidade extracontratual. Para a pretensão jurisdicional que impetram, aduzem a sequente factualidade essencial. 1. A demandante, AA, nasceu no dia 00-00-1975; 2. Em 2008, por ter agravado as dores aquando do período menstrual, consultou o ginecologista, FF, no “HOSPITAL CC”; 3. A consulta foi efectuada sob a cobertura de um seguro de saúde nº 000005272, pertencente à “SEGURO GG, S.A.”; 4. Foi medicada com analgésicos o que inalterou o estado álgico que a tinha levado à consulta; 5. Foi posta a possibilidade de a demandante sofrer de endometriose (localização anormal da mucosa que reveste o interior do útero) do septo rectovaginal; 6. Foi reencaminhada para o ginecologista, BB, para que este ponderasse (sic): “(…) os sintomas de coitalgia [dor durante as relações sexuais], dismenorreia, proctalgia [dor nevrálgica do ânus], hematuria [presença de sangue na urina], rectorragia [emissão de sangue pelo ânus não acompanhado pelas fezes] perimenstrual intensa e incapacitante, bem como desmaios”; 7. O ginecologista, BB, em 31-05-2008, procedeu ao exame/consulta da demandante, nas instalações da demandada “HOSPITAL CC”; 8. Nessa consulta, o 2.º Réu detectou, então, à Autora um volumoso nódulo septo rectovaginal palpável, aparentemente sem envolvimento na mucosa do recto. 9. A fim de aferir com rigor a origem dos sintomas denunciados pela Autora, o 2.° Réu solicitou-lhe que realizasse, diversos exames, designada mente, uma ressonância magnética, uma cistocospia [observação médica da bexiga] e uma sigmoidoscopia [exame médico minimalmente invasivo do intestino grosso, do recto até ao cólon]. 10. Da realização desses exames resultou apurado pela sigmoidoscopia a ausência de lesões da mucosa do recto e a ressonância magnética foi compatível com endometriose volumosa, tendo a cistoscopia levantou, na óptica do 2º Réu, suspeita de invasão vesical; 11. Para a resolução do problema, o 2.º Réu propôs inicialmente à Autora a realização de uma laparoscopia, mas acabou por optar realizar uma laparotomia. 12. Em vez da realização de um exame endoscópico da cavidade abdominal, o 2º Réu optou por realizar no corpo da Autora uma abertura cirúrgica da cavidade abdominal. 13. O 2.° Réu terá dito à Autora que as sequelas da realização de tal cirurgia seriam provisórias e rápidas e que limitar-se-iam única e exclusivamente a: a) na parte urinária, após a cirurgia, provavelmente iria sair do hospital com algália, que tal facto duraria 4 a 5 dias - no máximo uma semana -, mas que logo de seguida tudo voltaria ao normal; b) na parte intestinal, o 2º Réu salvaguardou a possibilidade de o tumor a remover poder ser grande e estar demasiado junto do intestino, sendo que nesse caso, iria ter de raspar o intestino para retirar o tumor e que se algo corresse mal podia rasgar o intestino; mas também aqui, perante esse cenário, o pior que poderia acontecer à Autora seria ter de colocar um saco durante a fase da cicatrização, sendo, de todo o modo, algo sempre rápido e provisório. 14. em vista da informação prestada pelo médico, a demandante aceitou submeter-se à cirurgia proposta; 15. a demandante foi submetida a intervenção cirúrgica, no dia 19-07-2008, nas instalações do estabelecimento hospitalar administrado pelo demandado “HOSPITAL CC”, sob a direcção cirúrgica do demandado, BB; 16. No bloco operatório, além do 2º Réu, encontravam-se também presentes diversos enfermeiros, anestesista(s) e ainda os Srs. FF e HH, ambos ginecologistas do HOSPITAL CC, administrado pela 1º Ré. 17. a cirurgia consistiu numa cistectomia parcial [remoção cirúrgica de parte da bexiga] parcial e na remoção do endometrioma [tecido do interior do útero fora da cavidade uterina] do septo recto-vaginal; 18. Da cirurgia foram enviados para análise quatro fragmentos irregulares, totalizando 23.3 gramas, medindo o maior 6,8x2,5xl,5 em, um deles parcialmente recoberto por mucosa vaginal com 3,2x1,2 em, esbranquiçada e lisa. 19. O exame histológico que incidiu sobre os referidos fragmentos confirmou os aspectos macroscópicos, tendo mostrado focos de endometriose 20. Após a cirurgia, a Autora ficou internada nas instalações da 1º Ré, até ao dia 24-07-2008 - data em que teve alta hospitalar. 21. Uma semana após - no dia 31-07-2008 -, a Autora constatando que não conseguia urinar de forma normal e natural, deslocou-se ao “HOSPITAL CC” onde deu entrada com uma retenção urinária aguda. 22. atendido pelo médico, HH, foi algaliada; 23. a demandante queixou-se que desde a intervenção cirúrgica não defecava normalmente; 24. A Autora regressou a casa e passado uma semana, atenta a contínua retenção urinária e fecal, deslocou-se novamente ao HOSPITAL CC; 25, manteve as queixas até que no dia 12-08-2008, três semanas após a cirurgia, a Autora, queixando-se repetidamente da retenção urinária e fecal de que estava a padecer, deslocou-se, uma vez mais, ao HOSPITAL CC, onde foi auscultada pelo 2.° Réu. 26. A demandante terá mantido o mesmo quadro mórbido – dificuldade em urinar e retenção fecal – o que levou a que fosse novamente algaliada e Perante o inalterável cenário, o 2.° Réu retirou a algália à Autora e tentou, uma vez mais, que aquela urinasse de forma natural - o que não logrou conseguir. 27. com a manutenção do mesmo quadro fisiológico – retenção urinária e fecal – a demandante, no dia 02-09-2008, foi consultada pelo 2.° Réu, tendo este sugerido à Autora a sua avaliação por um urologista, para o que indicou a HOSPITAL II para aí ser examinada pelo urologista, JJ; 28. este médico, veio a concluir que a Autora padecia de um quadro de bexiga neurogénica atónica [perda do funcionamento normal da bexiga provocado por lesões de uma parte do sistema nervoso], na sequência da cirurgia a que foi submetida no dia 19 de Julho de 2008. 28. No dia 10-09-2008, o urologista JJ, iniciou o tratamento da Autora com a colocação de cistostomia suprapúbica [conexão criada cirurgicamente entre a bexiga e a pele, a qual é utilizada para drenar a urina da bexiga], associada a medicação oral de estimulantes para a bexiga, bem como laxantes diversos, designada mente Omnic e Mestinon. 29. Em Dezembro de 2008, cinco meses após a cirurgia, a Autora os enunciados sintomas do pós operatório, sem quaisquer sinais de recuperação ou melhoria. 30. Em Fevereiro de 2009 a Autora foi reavaliada pelo 2.° Réu e manteve o cateter vesical [sonda que se introduz na bexiga pela uretra], tendo no dia 03-07-2009, isto é, cerca de um ano após a cirurgia, Sr. JJ, retirado o cateter à Autora e mandou-a fazer, a partir daí, auto-algaliações; 31. Com o intuito de aferir a sua situação, a Autora submeteu-se, no dia 14-09-2009 a uma ecografia vesical e uma cistomanometria [medição da tonacidade muscular e da capacidade da bexiga com um cistómetro] no HOSPITAL KK; 32. Da ecografia vesical resultou apurado não se observarem lesões endoluminais na bexiga, para um volume aproximado de 400cc 33. Da cistomanometria resultou apurado que na fase miccional não existiu contracção voluntária do detrusor [músculo liso da parede da bexiga] e que as manobras provocadoras não obtiveram efeito. 34. Tendo sido obtida a conclusão de uma bexiga hipossensível com alta capacidade e sem contracção voluntária do detrusor 34. No dia 23-09-2009, também na supra referida unidade hospitalar a Autora foi submetida a uma cistografia [estudo do funcionamento da bexiga através do seu preenchimento com líquido visível aos raio X]. 35. Na sequência desse exame, após colocação da algália na bexiga, foi administrado contraste iodado, tendo sido obtidos radiogramas seriados para avaliação da bexiga, tendo resultado que não se evidenciarem lesões endoluminais bexiga, registando-se, no entanto, trabeculação das suas paredes, em relação) provável com bexiga de esforço ou bexiga neurogénica; 36. Em Dezembro de 2009, a Autora teve a última consulta com o 2.° Réu, na qual aquele lhe terá dito que nada poderia fazer para a ajudar uma vez que, aquando da cirurgia terá ocorrido uma denervação, isto é, os nervos responsáveis pelo funcionamento da bexiga e do intestino foram rasgados durante a cirurgia, o que fez com que a bexiga e do intestino tivessem, automaticamente, deixado de cumprir as suas funções e implicando a consequente retenção urinária e fecal de que, agora, padece; 37. No dia 11-02-2010, a Autora foi consultada pelo Sr. DR. LL, gastrenterologista, LL, na HOSPITAL MM, que lhe solicitou que realizasse uma videodefecografia e uma manometria ano-recta!. 38. Na sequência desse exame observou-se na Autora uma cinética defecatória caracterizada por completa ausência de relaxamento do puborectal com o esforço defecatório, não tendo ocorrido qualquer esvaziamento da ampola rectal, donde se conclui pela dissinergia [deficiente coordenação dos músculos] do pavimento pélvico; 39. da manometria ano-rectal, realizada no dia 04-03-2010, resultou “que a pressão anal de repouso) é normal, pobre contracção voluntária, reflexos à distensão recta I normais e hipossensibilidade rectal muito acentuada; 40. A demandante mantinha dificuldades em defecar; era incapaz de defecação voluntária normal e natural; passava os fins-de-semana a fazer lavagens intestinais (clisteres) para não necessitar utilizar a casa de banho por vários dias; era obrigada a ter cuidados especiais e permanentes com a alimentação na tentativa de que as suas fezes sejam o menos duras possível; 41. o médico, NN, após consulta efectuada à demandante comunicou-lhe que a fim de ser evitada uma colostomia [cirurgia que consiste na abertura de uma comunicação entre o cólon e o meio exterior de modo a permitir a saída de fezes e a colocação de um saco onde aquelas são armazenadas], não perspectivavam uma solução para o problema em Portugal, tendo sugerido um hospital em Londres; 42. No dia 12-07-2010 a Autora foi observado por médicos no LL, por uma médica que concluiu que a demandante: a) demonstrou uma pressão normal em repouso e diminuída em contracção; b) ser incapaz de relaxar durante o esforço; c) a ampola rectal estava, efectivamente, dilatada como evidenciado através da distensão rectal com ar, também confirmado por sigmoidoscopia rígida; d) a estimulação do nervo sagrado não havia surtido efeito; e que “(…) as sequelas de que a Autora padece se devem à circunstância de os nervos localizados terem sido severamente danificados durante a cirurgia a que foi submetida no dia 19 de Julho de 2008”. 43. No dia 23-07-2010, a Autora foi examinada pelo médico, LL, donde resultou a conclusão de que a Autora padece de desnervação total do intestino delgado e grosso (cólon), “subsequente a uma invasão dos supracitados órgãos por uma endometriose que obrigou a resolução cirúrgica”; 44. No dia 27-07-2010, a Autora foi observada pelo médico cirurgião digestivo e vascular, PP, do HOSPITAL QQ, de Paris, tendo confirmado à demandante que possuía uma bexiga atónica após desnervação, tendo ainda confirmou, que o exame clínico revelava um recto de grande dimensão por distensão passiva e cheio de fezes duras e muito volumosas; 45. No dia 29-07-2010, a Autora foi examinada pelo médico, RR, no Gabinete do Serviço de Medicina do Trabalho, tendo desse exame resultado, ou apurado, que na sequência da intervenção cirúrgica a que a Autora foi submetida no dia 19 de Julho de 2008, resultou um quadro de bexiga neurogénica atónica, bem como uma desnervação total do intestino delgado e grosso (cólon); que que dessa cirurgia, a Autora não apresentava resultados positivos aos tratamentos, apesar do seu acompanhamento por especialistas de ginecologia, urologia e gastroentrologia, o que implicava para a Autora ter de fazer a auto-algaliação várias vezes por dia, Inclusive no local de trabalho, o que teria feito sobrevir uma infecção urinária crónica 46. O funcionamento dos seus órgãos fisiológicos foi destruído de forma definitiva e irreversível pelo 2.° Réu. 47. No dia 17-09-2010, a Autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica no HOSPITAL SS, S.A., na qual lhe foi colocado um ostoma no quadrante inferior esquerdo do abdómen, por a Autora sofrer de total, definitiva e grave disfunção ano-rectal e genito-urinária, o que motiva a realização de colostomia derivativa definitiva e obriga a algaliação para esvaziamento vesical. 48. Após a cirurgia a que foi submetida, a demandante sofreu graves e irreversíveis lesões; dando-lhe um sentido à vida que jamais pensou vir a ter; tanto mais que se trata de uma mulher muito jovem; impossibilitando-a de fazer algo tão básico como urinar e defecar de forma natural e normal; tendo visto precludida a possibilidade ansiada de vir a ser mãe. 49. Os danos provocados à Autora tiveram lugar na cirurgia a que foi submetida, não sendo causa necessária daquele tipo de cirurgia, “posto que é possível intervir cirurgicamente sobre a endometriose sem provocar quaisquer lesões sobre os nervos responsáveis pelo funcionamento da bexiga e do intestino” e “muito menos precludir a possibilidade de Autora urinar e defecar de forma normal e natural”; 50. essa é a expectativa normal em intervenções cirúrgicas similares, “tanto mais que tais aquelas sequelas, em momento algum, antes da cirurgia, foram referidas pelo 2.° Réu à Autora”; “motivo bastante para entendermos que nem ele próprio as equacionou como uma possibilidade, 51. “Se tais sequelas tivessem sido referidas à Autora, esta jamais teria consentido submeter-se à intervenção cirúrgica levada a cabo pelo 2.° Réu, nos termos em que o foi.” 52. “(…) a qualidade de vida da Autora antes da dita cirurgia não era absoluta mercê da endometriose de que padecia, a verdade é que aquela com que ficou após a cirurgia é muito pior”; 52. a demandante foi submetida a uma Junta Médica no dia 22-11-2010, de que resultou “apurado que a Autora era à data - como é actualmente -, portadora de uma deficiência que lhe confere, de acordo com a TABELA NACIONAL DE INCAPACIDADES - ANEXO L aprovada pelo D.L. nº 352/2007 de 23 de Outubro, uma INCAPACIDADE PERMANENTE GLOBAL DE 84,00% (oitenta e quatro por cento)”, a qual é susceptível de variação futura, e devendo ser reavaliada no ano de 2020.” 53. “desde que foi submetida à intervenção cirúrgica realizada no dia 19 de Julho de 2008, a Autora passou a ser obrigada a recorrer à auto-algaliação 8 (oito) a 10 (dez) vezes por dia e a defecar para um saco: 54. No período compreendido entre a realização da cirurgia e a data da propositura desta acção, a Autora não teve qualquer evolução favorável do quadro clínico acabado de referir. 55. Mercê da circunstância de no momento actual não se prever a existência de quaisquer tratamentos alternativos para as sequelas da Autora, esta passou, também, a evidenciar sintomatologia do foro depressivo, a qual se tem vindo a agravar, 56. “devido às limitações físicas que é obrigada a enfrentar na vida “do dia-a-dia”, com sérias, profundas, graves, irreversíveis Implicações e limitações ao nível pessoal, profissional, social e sexual, necessitando de apoio psicossexual. Na contestação, o demandado, BB, incoa por discorrer sobre a caracterologia do morbo denominado “endometriose” e, sem deixar de exalçar as suas qualidades profissionais, no apartado referente à impugnação da factualidade que lhe é imputada, contravém, em síntese, que: - a demandante já havia recorrido aos serviços clínicos do médico ginecologista, TT, dois anos antes de ter solicitado os serviços do médico ginecologista, FF, tendo ainda efectuado exames de diagnóstico e rotina, nomeadamente Eco Mamária, Eco Pélvica e Citologia (exame usualmente designado de papa Nicolau), recomendáveis no estudo da sintomatologia da paciente; - Na consulta ocorrida em 31 de Julho de 2006, a Autora referiu a ocorrência de desmaios com o período menstrual, irregularidades menstruais, dismenorreia intensa e declarou estar medicada com Tri-Minulet; - tendo de acordo com o exacto diagnóstico clínico da patologia evidenciada e relatada pela Autora, em tal data (31/7/2006), evidenciava ela o útero em rectrofleção o que traduz sintoma típico de situação avançada e/ou em evolução da patologia de endometriose por retracção. - Na referida consulta é proposto, pelo referido ilustre clínico, à Autora, o recurso a um implante contraceptivo de uso subdérmico, designado de IMPLANON, o que é hábito quando se está perante um caso de endometriose e é pretendido protelar a intervenção cirúrgica; - na consulta ocorrida no dia 29.04.2008, face às queixas apresentadas pela Autora - agravamento da dismenorreia com mais intensidade à micção e defecação - e ao resultado do exame objectivo efectuado à paciente, o médico, FF, prescreveu a realização de exames de avaliação e eventual confirmação de endometriose recto-vaginal, nomeadamente ecografia transvaginal; - “o referido exame - ECO - confirmou, de forma inequívoca e positiva, o diagnóstico efectuado pelo Dr. FF, nomeadamente, que a Autora padecia de endometriose pélvica do septo recto vaginal, sendo que tal diagnóstico foi confirmado já na consulta subsequente, ocorrida no dia 21.05.2008, pelo que o mesmo clínico propôs, em tal data, à paciente a realização de intervenção cirurgia por laparoscopia, tendo mesmo solicitado a elaboração de estudo pré-operatório e bem assim a colaboração do ora contestante”; - “É, falso o alegado nos artigos 13º e 14.º da P.I., porquanto quando a Autora é observada pelo médico, FF foi-lhe tal doença incapacitante confirmada - e não apenas traçada qualquer mera suspeita clínica”; - “É, que a primeira consulta da ora A. pelo ora contestante ocorreu em 31.05.2008, consulta essa ocorrida nas instalações do 1º demandado, sendo certo que era já do seu conhecimento que se tratava de paciente enviada pelo Dr. FF com diagnóstico confirmado de endometriose do septo retovaginal incapacitante, com coitalgia e dismenorreia, proctalgia (dor anal e perianal), hematúria (sangue na urina) e retorragias (sangue pelo recto) perimenstrual”; - na mesma consulta referiu a paciente, ora A., que a última menstruação ocorrera em 09.05.2008 e que fazia toma de Cerazette, tendo constatado a presença de volumoso nódulo do septo retovaginal palpável, aparentemente sem envolvimento do recto. - dada a existência de retorragia e hematúria solicitou a realização de exames complementares de diagnóstico, concretamente, ressonância/colonoscopia virtual, cistoscopia e protoscopia/retrosigmoidoscopia - na mesma consulta foi a Autora informada de todas as sequelas possíveis quer urológicas, quer protológicas e que poderiam ser mais ou menos prolongadas e duradouras ou persistentes - na sequência da constatação da existência do referido nódulo, logo o contestante fez notar à A. que um nódulo com aquelas dimensões não cresce em meses mas sim em, pelo menos 1 a 2 anos ou mais e mesmo que já exista em dimensões mínimas, com longos anos, estas podem não ser detectáveis, tendo feito notar à A., que bem entendeu, que a existir sintomas de coitalgia incapacitante, hematúria, proctalgia e retorragia, tal constatação implicaria já a existência de lesões ao nível dos nervos satélites que, concreta e nomeadamente, regulam o normal funcionamento do intestino e bexiga (contracções e distensões destes órgãos) - Foi, igualmente, a A. esclarecida destes exames complementares e bem assim informada que se não houvesse lesões endo-luminais, significaria apenas que as mucosas estariam livres mas que os nervos que correm ao longo da parede externa dos órgãos já estariam comprometidos e daí a existência de nevralgias. - dos apontados exames não foi evidenciada a existência de lesões da mucosa do recto, sendo certo é que do resultado da referida ressonância magnética é constatada a existência de obliteração dos planos adiposos entre a vagina e o recto, numa extensão craneo-caudal de, aproximadamente, 35 mm e transversal de 26 mm. Foi igualmente constatada a existência de aspectos de fibrose no fundo do saco posterior de predomínio à direita numa extensão transversal de, sensivelmente, 40 mm e com espessura pericentimétrica, que revelava pequenos espiculados à direita, que se orientam para o Sacro omolateral. - é falso que, na óptica do ora contestante, existisse qualquer suspeita de possível invasão vesical, suspeita essa apenas levantada pelo Urologista a quem foram solicitados os exames complementares de diagnóstico de tal especialidade médica e de que a A. tem conhecimento pessoal; - foi por via do referido relatório de Urologia que a cirurgia prevista de laparascopia veio a ser abandonada e tomada a opção de laparatomia, opção de que, igualmente, foi a A. devidamente informada e que com ela concordou, tal 'como foi, igualmente, advertida que a lesão observada por urologia podia não corresponder a endometriose mas antes a edema bolhoso do trígono motivado por esforço miccional por invasão dos nervos e consequente congestão da mucosa. - nunca foi proposta a realização de qualquer exame laparoscópico de diagnóstico, mas tão só cirurgia por via laparoscópica, o que veio a ser abandonado, dada a suspeita aventada pela especialidade de urologia e, em sua substituição, feita a consequente opção de intervenção cirúrgica por via de laparatomia, o que tudo foi aceite e bem entendido pela paciente, in casu, a ora Autora. - como é usual neste tipo de patologia, antes da proposta cirúrgica foi a A. proposto prévia tentativa de gestação (dado que a gestação iria melhorar os sintomas temporariamente), o que foi recusado por não ter previsto qualquer companheiro para esse fim e por incapacidade de vida sexual; - a A., foi informada, tanto das possíveis como das previsíveis sequelas, quer urinárias, quer digestivas, provenientes da doença e/ou tratamento, quer imediatas quer a longo prazo; - “na consulta subsequente, ocorrida em 15.7.2008, foi a A. relembrada pelo contestante de todas as possíveis consequências pós operatórias, nomeadamente em previsível tempo de recuperação e possibilidade de superveniência, o que tudo aceitou”; - uma das consequências pós operatórias típicas deste tipo de doença e abordagem clínica é exacta e precisamente a necessidade de decurso de tempo mais ou menos longo com empenho e esforço pessoal da paciente para reeducar as funções de micção e de defecação, tudo como previamente explicado à Autora”; - “(…) o acto cirúrgico não incluiu qualquer cistectomia conforme, aliás, se confirma pelo relato operatório, facto pessoal de que a A. tem esclarecido conhecimento pessoal, pois foi devidamente informada que não foi intervencionada na bexiga, nem nos nervos adjacentes, por não se encontrar qualquer lesão visível ou palpável, realidade de que foi pessoalmente informada também pelo ora contestante”, sendo, porém, “verdade que na proposta de pré-autorização operatória elaborada para a SEGURO GG, se refere a possibilidade de ocorrência de cistectomia no acto cirúrgico a realizar, possibilidade que foi, naturalmente, formulada com base nos elementos fornecidos pelo urologista”; - “(..) a cirurgia decorreu normalmente e sem incidentes, nomeadamente por corte acidental dos nervos responsáveis pelo funcionamento da bexiga e do intestino da A., sendo comum e corresponde a procedimento adequado, substituir a algália após medição do resíduo pós-miccional aquando da alta, por uma de longa duração para iniciar treinos vesicais”. - Ignora o contestante e por isso impugna, se corresponde, ou não, à verdade o alegado nos arts. 3°, 10°, 11°,39°,41°,42°,68°,69°,70°,71°,72°,73°,78°,79°, 80°, 83° a 90°, 93° a 120°, 122° a 129º, 131° a 135° e 161° e 183° da p.i. - na consulta, ocorrida em 12.08.2008 apenas referiu retenção vesical pós operatória, sendo realgaliada por duas vezes e, naquela data, retirou a algália, urinando mais ou menos bem, sendo-lhe recomendado algaliação; - ao contrário do alegado, a A jamais referiu qualquer retenção fecal, antes e apenas vesical, nomeadamente na consulta de 12.08.2008 e, nesse mesmo dia, a A. removeu a algália, previamente colocada, urinando espontaneamente com esvaziamento razoável da bexiga, embora sem reflexo miccional”; - nunca referiu qualquer dificuldade defecatória significativa mesmo quando questionada, como aconteceu em 03/02/2009 e 20/02/2009, e quando informada e medicada com Lucrim depot, para uma potencial recidiva da doença e evitar a sua evolução. - em 30/06/2009 refere mesmo melhoria franca dos sintomas de endometriose e sem coitalgia, ao contrário do que agora afirma, mantendo, no entanto, a auto-algaliação para o que fora informada previamente à cirurgia sendo, ainda, certo que até a última consulta, em 08/0112010, nunca referiu queixas digestivas significativas, antes pelo contrário, tal como nunca referiu incapacidade sexual, cuja melhoria salientou e nesta última consulta solicitou ajuda para cirurgia plástica devido á cicatriz da punção supra-púbica sendo certo que ficando de regressar a consulta dentro de 4 a 6 meses, não mais compareceu. - a A manteve a confiança clínica na pessoa do contestante e bem assim no Dr. JJ, pelo menos até 8.01.2010 e, entretanto, como confessa e desde data muito anterior, iniciou outras avaliações clínicas não informando os médicos que a assistiam, nomeadamente o contestante e o referido Dr. JJ omitindo a realização e resultados tanto da eco vesical como da cistografia, nomeadamente nas consultas de 20.10.2009 e 8.1.2010; - é “falso o alegado no art. 920 sendo certo que à A. sempre foi referido, mesmo antes da cirurgia, que os nervos já estariam envolvidos pela endometriose do que resultava a hematúria bem como a pseudo imagem de evasão vesical por bexiga de esforço e das rectoragias por esforço na defecação”; - a “A. foi prévia e claramente informada, antes da realização do acto operatório, existia já comprometimento dos nervos pélvicos que estavam envolvidos pela doença sendo ainda certo que, acaso a respectiva lesão fosse posterior a cirurgia, não teria ela padecido há longos anos dos sintomas que evidenciava aos clínicos - que não só o contestante -, tal como não teria tido episódios de micção espontânea, alternados com retenção, tal como a alegada obstipação sobreviria no pós operatório imediato e não a longo prazo”; De interessante para a compreensão da situação em litigio, colhe-se da contestação da demandada, “HOSPITAL CC”, a sequente factualidade: - Desde Julho de 2006, a A. já vinha sendo acompanhada na unidade de saúde da 1.ª R.; - Onde teve a 1ª Consulta de Ginecologia com o Dr. TT, em 31-07-2006, à qual a A. não deu seguimento; - Foi ainda a A. acompanhada no hospital da 1.ª R. em diversas outras especialidades, como Ortopedia (desde Outubro de 2006 a Outubro de 2009), onde realizou 3 intervenções cirúrgicas, Otorrinolaringologia (em Dezembro de 2007), Clínica Geral (em Outubro de 2007 e Janeiro de 2008), Cardiologia e Gastroentrologia (em Junho de 2008); - E já em 2010, posteriormente aos factos relatados nestes autos, fez análises clínicas, ecografia, ressonância magnética e radiografia, tudo na unidade de saúde da 1.ª R., de Fevereiro a Junho de 2010; - A 29-04-2008, quase 2 anos depois da 1ª consulta de Ginecologia, a A. foi observada no hospital da 1.ª R. pelo médico especialista em Ginecologia e Obstetrícia, FF, - Aquando dessa consulta, a dismenorreia de que a A. padecia era "de tal modo intensa que mesmo a toma de anticoncepcionais e analgésicos orais tornava incapacitante a sua qualidade de vida", - o Dr. FF avaliou as queixas da A., questionou-a sobre informação clinicamente relevante e antecedentes familiares, realizou uma ecografia ginecológica com sonda vaginal e anotou no processo clínico toda a informação recolhida e observada no exame ecográfico, designada mente a presença de "nódulo no útero"; - numa segunda avaliação em consulta de seguimento, em 27-05-2008, o Dr. FF confirmou o diagnóstico de endometriose pélvica do septo rectovaginal, pelo que é inexacto que se tenha limitado a traçar "como suspeita clínica a possibilidade de a Autora poder padecer de endometriose do septo retrovaginal", - Quatro dias depois, em 31-05-2008, a A. teve uma primeira consulta com o 2.º R. para reavaliação da situação clínica e da indicação terapêutica sugerida pelo Colega, Or. FF. - Nessa consulta, o 2.º Réu avaliou as queixas de coitalgia, dismenorreia, proctalgia, hematuria, rectorragia perimenstrual intensa e incapacitante, e confirmou que a A. tinha já um "volumoso nódulo do septo rectovaginal palpável, aparentemente sem envolvimento na mucosa do recto."; - Em 05-06-2008, a A. realizou no hospital da 1.ª R. uma fibrorectosigmoidoscopia; - Na mesma data, a A. fez análises clínicas também no hospital da 1.ª R. - E em 14-06-2008, a A. fez uma cistoscopia e uretroscopia, igualmente no hospital da 1ª R. - Após esse estudo pré-operatório, o 2.º R. propôs à A., em 17-06-2008, a realização de uma laparoscopia (procedimento cirúrgico minimamente invasivo realizado sob anestesia que importa uma pequena incisão para introdução de um telescópio fino (Iaparoscópio) e permite realizar procedimentos diagnósticos e terapêuticos). - o 2.º R. informou a A. sobre a terapêutica sugerida, as finalidades visadas com a mesma, o procedimento cirúrgico e as técnicas propostas, bem como as possíveis complicações inerentes à cirurgia, que são um risco, não apenas naquele, mas em qualquer acto médico/cirúrgico. - Conforme atesta o Relatório Clínico do 2.º R. "Como é o habitual nestas situações, a doente foi perfeitamente elucidada quanto ao problema que tinha, da progressão que a doença teria quando não tratada, mas também das sequelas mais ou menos permanentes, que eventualmente poderiam ficar após a cirurgia, que poderiam ser antecipadas caso não fosse operada, e como a própria doente referia já eram incapacitantes" [sic]. - Logo na primeira consulta do 2.º R., em 31-05-2008, a A. foi "informada de todas as sequelas possíveis quer urológicas [i.e., referentes ao sistema urinário], quer proctológicas [i.e., referentes ao cólon, recto e ânus] e que poderiam ser mais ou menos prolongadas e duradouras ou persistentes", conforme consta registado no processo clínico da A. - Na segunda consulta, em 17-06-2008, foram propostas as duas abordagens terapêuticas possíveis para o tratamento daquele quadro clínico: laparoscopia e laparotomia, conforme consta do registo clínico dessa consulta. [Cfr. Doe. N.º 18] - Nessa data, a A. aceitou realizar a cirurgia. - a A. leu e assinou o documento de consentimento informado, onde declarou expressamente o seguinte: "declaro que compreendi a explicação que me foi fornecida acerca do meu caso clínico e dos métodos de diagnóstico e/ou tratamento que se tenciona instituir, tendo-me sido dada a oportunidade de fazer as perguntas que julguei necessárias (...) a informação ou explicação que me foi prestada versou objectivos, métodos, benefícios previstos, riscos potenciais e o eventual desconforto que daí resultem; além disso, foi-me afirmado que tenho o direito de recusar, a todo o tempo, as propostas que me foram apresentadas, sem que isso possa ter como efeito qualquer prejuízo na assistência que me será prestada."; - Um mês depois de ter decidido realizar a cirurgia, a A. teve uma última consulta prévia à intervenção cirúrgica, em 15-07-2008, destinada a relembrar todos os esclarecimentos anteriormente prestados, a responder a eventuais dúvidas que subsistissem e a confirmar a decisão da A. de se submeter à intervenção cirúrgica; - Esta consulta a A. não refere na p.i., mas o que é certo é que nela foi especificamente "relembrada das possíveis complicações que aceitou", conforme consta do processo clínico; - A A. foi também alertada para o facto de a cirurgia proposta poder "levar a uma situação de algaliação mais ou menos prolongada ou mesmo permanente." [Cfr. Doc. N.º 24] - Conhecendo esse e outros riscos que lhe foram transmitidos em 3 consultas ao longo de 7 semanas, e relembrados na última de 15-07-2008, mesmo assim, a A. tomou a decisão - que reiterou - de realizar a cirurgia proposta pelo 2.º R .; - Fê-lo a A., conhecendo o seu direito - que se ignorasse estava bem explícito no documento de consentimento que assinou - de "recusar, a todo o tempo, as propostas que [lhe haviam sido] apresentada”;. - A informação prestada à A. no pré-operatório foi a que normalmente é prestada a todos os doentes em idênticas circunstâncias de idade/maturidade, compreensão e capacidade de decisão e, bem assim, respeitou o tempo de reflexão necessário para permitir que a A., livre e devidamente esclarecida, escolhesse submeter-se ou não à intervenção cirúrgica que lhe fora proposta pelo 2.º R.; - A 18-07-2008, a A. deu entrada nos serviços da 1.ª R., para a devida preparação préoperatória, segundo indicação clínica, pela equipa de enfermagem, a saber: anamnese (exame físico de sintomas e sinais vitais), ingestão de líquidos seguida de jejum a partir das 22hOO, toma da preparação intestinal, irrigação vaginal com betadine e pré-medicação cirúrgica. - No dia seguinte, antes de a A. ir para o bloco operatório, pelas 14hOO, para ser realizada a cirurgia, foi feita a competente preparação cirúrgica pela equipa de enfermagem: anamnese, tricotomia, confirmação do jejum, colocação a soro ("soroteropia"), c1ister de limpeza e irrigação vaginal e pré-medicação cirúrgica. - Durante a cirurgia observou-se: "útero e anexos normais. Trompa direita normal. Ovário direito com lesões de endometriose, com aderência do sigmoide à parede pélvica. Fundo Saco Douglas parcialmente obliterado. Identificação e dissecção dos ureteres bilateralmente no seu trajecto pélvico. Use da aderência do recto ao colo uterino e vagina, com identificação do nódulo do septo retrovaginal e ligamento uterosagrodo. Exerese do nódulo com abertura de vagina e exerese da mucosa vaginal adjacente."; - Na cirurgia foi realizada "Exérese (ou excisão) de tumor benigno retroperitoneal, Lise de aderência e Exérese de quisto vaginal”; - segundo a descrição da intervenção cirúrgica constante do Relatório Clínico do 2.º R.: foi feita remoção de um "volumoso nódulo (...) que envolvia ambos os ligamentos uterosagrados quer na extensão antero-posterior quer na extensão longitudinal, já com comprometimento dos nervos do plexohipogástrico inferior, aliás está de acordo como sintomas prévios à cirurgia."; - o exame histológico realizado pelo serviço de Anatomia Patológica da 1.ª R., em 28-07-2008, confirmou o volume do nódulo extraído da A. que totalizava 23,3 gramas e que continha focos de endometriose". - Durante o internamento pós-operatório, a A. manteve-se sempre consciente e orientada, com algaliação funcionante com drenagem de urina límpida, apenas com ligeiras perdas vaginais (de sangue), sem queixas álgicas (dores) significativas e com sutura operatória sem sinais inflamatórios; - A 28-07-2008, a A. teve a habitual consulta de pós-operatório no hospital da 1ª R., com médico que havia assistido o 2.º R. na cirurgia, Dr. HH, onde lhe foram retirados os pontos da sutura e foi constatada evolução favorável, sem registo de quaisquer queixas da A. de dificuldade em urinar ou defecar; - em 08-08-2008 foi algaliada (procedimento que designa quer a colocação de algália, quer a troca de algália) na unidade da 1.ª R .. - A 12-08-2008, em nova consulta de pós-operatório, com o 2.º R., mencionou então dificuldade em urinar ("retenção vesical"). - Nessa consulta, porém, observou o médico que "três semanas após a cirurgia, a A. retirou a algália e urinou bastante bem, segundo ela própria referia, apesar de não ter reflexo de micção, mas esvaziou bem a bexiga. Ficou com algaliação suspensa em 5.0.5. Foi-lhe recomendado exercícios perineais de Kegal, como é hábito nestas circunstâncias". - Com efeito, a A. teve um "pós-operatório sem incidentes para além da retenção vesical [Le., dificuldade em urinar] que surge com alguma disfunção que aliás a doente já tinha sido avisada que poderia levar a uma situação de algaliação mais ou menos prolongada ou mesmo permanente" . - A A. não terá referido queixas de qualquer disfunção fecal aos médicos que a acompanharam no hospital da 1.ª R., pois que, por um lado nada resulta a esse respeito dos registos clínicos das consultas de seguimento pós-operatório da A., por contra posição à retenção vesical que é aí mencionada, por outro lado, nos mesmos registos clínicos há, por duas vezes, referência expressa a "sem queixas digestivas e proctológicas significativas" (03-11-2009) e "sem queixas digestivas e proctológicas" (20-02-2009). - Em 20-08-2008, a A. "fez nova retenção vesical e foi realgaliada. Voltou a retirar a algália em fins de Agosto de 2008 e andou cerca de oito dias bem, até que em 02.09.2008 fez nova retenção pelo que foi novamente algaliada." - Em 02-09-2008, a A. teve nova consulta com o 2.º R. no hospital da 1.ª R., onde este lhe recomendou que a sua situação clínica fosse avaliada por um Urologista, o que a A. "concordou e depois de esclarecida aceitou", tendo-lhe recomendado que fosse seguida pelo Dr. JJ, "colega de Urologia fora desta instituição [da 1.ª R.] dado ser um cirurgião urológico oncológico e estar habituado a lidar com este tipo de patologias e sequelas". - Na consulta de 30-06-2009, a A. realizou na unidade da 1º R. exames complementares de diagnóstico: ecografia ginecológica com sonda vaginal, colpocitologia e análise dos respectivos exsudatos vaginais e uretais. - Do relatório da colpocitologia resultou que a amostra retirada da área operada quase um ano antes era" Negativa para a lesão intraepitelial ou malignidade". - Na mesma consulta, o 2.2 R. observou ainda que a A. "refere melhoria franca de sintomas de endometriose. Sem coitalgia (dor durante o acto sexual). - A 08-01-2010, a A. teve nova consulta com o 2.º R. nas instalações da 1ª R., na qual voltou a realizar exames complementares de diagnóstico: ecografia ginecológica com sonda vaginal, colposcopia, colpocitologia e análise dos respectivos exsudatos vaginais e uretais. - Do relatório da colpocitologia resultou, novamente, que a amostra de tecido retirada da zona intervencionada era "Negativa para a lesão intraepitelial ou malignidade". - Em 09-06-2010, a A. fez uma ressonância magnética da pelve na unidade da 1.!! R., prescrita por médico externo, no qual é constatado o seguinte: "Útero com dimensões conservadas e contornos irregulares. Não se observam miomas. O endométrio e a zona juncional têm normal espessura. Óvários com normal morfologia, sem evidência de lesões expansivas na sua dependência. Não se observam imagens suspeitas de traduzir endometriomas. A cúpula vaginal e a ampola rectal encontram-se bem distendidas, sem evidência de espessamentos parietais ou áreas de compressão extrínseca. Bexiga sem alterações parietais ou imagens endomuminais anómalas. Ausência de adenomegalias nas cadeias ilíaco-obturadoras. Fina lâmina de líquido fisiológico na escavação pélvica. Sem apreciáveis alterações nos segmentos ósseos abrangidos." Da sentença proferida – cfr. fls. – recorre, a demandante, per saltum, resultando da proficiente fundamentação, s síntese conclusiva que a seguir queda extractada. I.a). – Quadro conclusivo. “1.ª A autora alicerçou a sua pretensão no instituto da responsabilidade médica e intentou a presente acção pedindo ao tribunal que a acção fosse julgada procedente, por provada e fossem os réus condenados a pagar-lhe solidariamente, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 275.000,00 € (duzentos e setenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora vincendos, calculados à taxa legal em vigor, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento a título de danos patrimoniais e não patrimoniais. 2.ª A única questão que, por isso, se coloca à consideração deste Alto Tribunal é determinar se assiste à autora o direito a ser indemnizada pelos réus, pelos danos não patrimoniais sofridos por aquela em consequência da actuação destes, à luz do regime jurídico da responsabilidade médica. 3.ª Pelos fundamentos que de forma sábia e exaustiva foram explanados na sentença recorrida e não obstante a autora ter enquadrado o caso no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, aceita-se a qualificação jurídica efectuada pelo tribunal a quo de que estejamos no âmbito da responsabilidade contratual, pelo que, nessa parte, não nos merece reparo a sentença recorrida. 4.ª Porém, salvo o devido respeito, que é muito, entende a recorrente que a douta decisão proferida não aplicou o direito conforme a matéria de facto dada como provada. 5.a A presente acção alicerça-se no (1) erro médico por um lado e na (2) violação do dever de informação, pelo outro. 6.ª A matéria de facto julgada provada pelo tribunal a quo impõe uma decisão de direito radicalmente diferente daquela que viria a ser proferida, na justa medida que estamos em crer que a factualidade dada como provada se mostra, outrossim, suficiente para que a presente acção possa ser julgada no sentido da sua procedência. 7.ª A autora padecia de endometriose, a qual é uma doença feminina que se caracteriza pela presença de glândulas e estroma endometriais ("forro que reveste o interior do útero”) em locais fora da cavidade uterina - assim resulta da alínea 22) dos factos dados como provados. 8.ª O principal sintoma da doença em causa é a dor pélvica – cfr. alínea 28) dos factos provados. 9.ª Por todo o desconforto que a doença lhe causava e com o intuito de eliminar (ou reduzir drasticamente) os sintomas, a autora decidiu submeter-se a uma cirurgia, a qual viria a ser realizada pelo 2.º réu médico nas instalações da 1.ª ré. 10.ª As consequências desse acto cirúrgico foram catastróficas, indo muito para além do simples tratamento da doença, tendo a autora ficado definitiva e irremediavelmente incapacitada de poder urinar e defecar de forma natural. Estado incapacitante esse que, também, nunca lhe tinha sido apresentado pelo 2.º réu como uma possível consequência da cirurgia. 11.ª Como resulta dos factos provados, antes da cirurgia a autora padecia de dor pélvica inerente à doença (endometriose). Após a cirurgia, a autora viu a sua vida completamente virada do avesso, passando a padecer de uma total disfunção ano-rectal e genitourinária, ou seja, uma total incapacidade definitiva de urinar e defecar de forma natural. 12.ª Não era esse, pois, o resultado expectável da cirurgia a que decidiu submeter-se. 13.ª Alegou a autora que ficou nesse estado de total disfunção ano-rectal e genitourinária, definitivo e irreversível, porque durante a cirurgia ocorreu uma desenervação, isto é, um corte dos nervos responsáveis pelo funcionamento do intestino e da bexiga, encontrando tal alegação suporte em diversos documentos juntos aos autos, designadamente na videodefecografia (ManopH), na declaração médica do Senhor Dr. LL, no atestado médico de incapacidade multiuso (ARS Norte), no atestado médico do Senhor Dr. UU, na declaração médica VV, no relatório da perícia médico-legal datado de 7 de Março de 2014, no relatório da perícia médico-legal, datado de 9 de Julho de 2015 e na carta de recomendação subscrita pelo 2.º réu em papel timbrado da 1.ª ré, dirigida ao Dr. JJ, que o tribunal a quo valorou e que se encontra refletido nos factos provados nas alíneas 113), 114), 115), 116), 118), 119), 120), 123), 124), 128), 129) e 188). 14.ª Por sua vez, resultou como NÃO PROVADO que: "O comprometimento de nervos, já se registava em momento anterior a esta, o que foi constatado durante a sua realização (como resulta do Relatório Clínico do 2º R.), sendo por conseguinte uma consequência da própria doença da A. " e que "No acto cirúrgico praticado pelo 2.º R. não foram afectados os nervos, nem cortados os nervos responsáveis pelo funcionamento do intestino e da bexiga" - cfr. alíneas vv) e aaa) dos factos não provados. 15.ª Atenta a factualidade dada como provada, em especial a referida nas alíneas 113), 114), 115),116), 118), 119), 125), 126), 127), 188),209) e 210), não nos parece que possam subsistir quaisquer dúvidas de que foi estabelecido e provado o nexo causal entre a cirurgia a que a autora foi submetida e o facto de a partir daí ter deixado, de forma definitiva e irreversível, de urinar e defecar de forma natural. 16.ª Essa conclusão apresenta ainda um cristalino suporte no relatório da perícia médico-legal junto aos autos que, sem margem para qualquer dúvida, estabeleceu um nexo de causalidade entre a cirurgia e as sequelas de que passou a padecer a autora – cfr. fls. 11 do relatório pericial datado do dia 7 de Março de 2014 e fls. 1 do relatório da perícia médico-legal, datado de 9 de Julho de 2015. 17.ª Da factualidade dada como provada não resulta que a submissão a uma intervenção cirúrgica de endometriose tenha como consequência directa e necessária que a paciente fique (ou sequer possa ficar) definitivamente incapacitada de urinar e defecar de forma natural. 18.ª O que resulta da factualidade dada como provada é que as principais complicações da cirurgia a que a autora foi submetida incluem retenção urinária, obstipação e nas complicações mais graves pode haver necessidade de fazer uma colostomia temporária, conforme se extrai dos factos provados nas alíneas 39) e 40). 19.ª Quer isto significar que da apontada cirurgia podem resultar lesões urinárias e intestinais temporárias. Não quer dizer que tais possíveis lesões possam ocorrer de forma definitiva e irreversível, o que aliás é corroborado com a factualidade dada como provada na alínea 250). 20.ª Não resultou, pois, provado, que entre as principais complicações da cirurgia se incluam a incapacidade definitiva e irreversível de poder voltar a urinar e defecar de forma natural. 21.ª Como bem atesta a factualidade dada como provada, antes da cirurgia a autora sofria apenas as consequências normais de padecer de endometriose, que no fundo se resume a dor, conforme se extrai do teor dos factos provados nas alíneas 25), 28) e 29). 22.ª Ficou provado que foi a circunstância de a autora sofrer de total disfunção ano-rectal e genitourinária que motivou a realização de colostomia derivativa definitiva e a obriga diariamente (várias vezes ao dia) a ter de recorrer à auto-algaliação para esvaziamento vesical. 23.ª A autora não se submeteu a uma intervenção cirúrgica para a colocação de um estoma no quadrante inferior esquerdo do abdómen porque quis: fê-lo porque a isso foi obrigada atenta a total disfunção ano-rectal de que passou a padecer após a cirurgia. 24.ª A autora não realiza auto-algaliaçães diárias (várias vezes ao dia) para esvaziamento vesical porque quer: fá-lo porque a isso é obrigada atenta a sua total disfunção genitourinária (bexiga neurogénica atónica) de que passou a padecer após a cirurgia. 25.ª Resulta da factualidade dada como provada cfr. alíneas 199) e 200)] que o 2º réu tentou fazer crer que após a cirurgia a autora passou a padecer de mera obstipação e que isso seria uma consequência normal da cirurgia por si realizada. A obstipação é, como se sabe, uma mera dificuldade (temporária) em defecar, em nada se confundindo com a incapacidade definitiva em poder fazê-lo de forma natural. Sucede que quem padece de obstipação não está impedido de defecar de forma natural, tem apenas e tão-só dificuldade em fazê-lo. E isto, não é claramente o caso da autora que pura e simplesmente deixou de poder defecar de forma natural - o que é muito diferente. 26.ª A incapacidade referida na alínea 203) dos factos provados é uma mera incapacidade temporária, que pode durar mais ou menos tempo, é certo, mas em nada se confunde com a incapacidade definitiva. Nessa medida, não ficou provado que a sobrevivência de incapacidade miccional e defecatória, de forma definitiva de irremediável, é um acidente pós-operatório que pode acontecer e acontece numa percentagem de 10%, estando descrito na literatura. 27.ª Essa conclusão está em perfeita harmonia a factualidade dada como provada na alínea 206) e 252) dos factos provados onde o significado de "permanente" tem de ser interpretado como algo "duradouro" e não algo de "definitivo" e "irreversível". 28.ª Perante tais factos, bem andou, pois, o tribunal a quo ao ter concluído, a fls. 78 da sentença recorrida, que, perante a factualidade dada como provada "Deste modo, está encontrado o requisito da ilicitude do comportamento da R .. De facto, não logram os RR. fazer prova que a falta de cumprimento ou mesmo que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua (i.e, imputando o resultado ao comportamento da A.) pelo que nos termos supra citado se presumo culposa a actuação da 2ª R.. médica - artigo 799º, nº 1 do Código Civil. Em face da factualidade dada como provada, não há dúvidas que o 2º R. com a sua actuação. execução da operação cirúrgica, afectou o corpo da A …”; 29.ª Face aos factos dados como provados, o 2º réu, podia e devia, face as circunstâncias concretas da cirurgia em causa, ter atuado de modo diferente. 30.ª Podia o réu ter realizado a cirurgia sem que dela tivesse resultado para a autora uma incapacidade urinária e defecatória definitiva e irreversível. 31.ª Não ficou igualmente provado que o réu não poderia ter realizado a cirurgia em causa sem necessariamente incapacitar a autora de modo a que esta deixasse definitivamente de urinar e defecar de forma natural. 32.ª Os réus não conseguiram demonstrar que agiram correctamente, provando que as consequências urinárias e proctológicas que resultaram para a autora não se devem a culpa sua por terem utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não terem podido empregar os meios adequados. 33.ª No caso sub judice, como se trata de responsabilidade contratual, à autora caberia fazer a prova dos pressupostos da responsabilidade contratual (contrato e nexo causal) e aos réus caberia fazer a prova da diligência por força da presunção da culpa na responsabilidade contratual, a que se refere o art. 799º, nº 1 do Código Civil. 34.ª No caso presente, apesar do resultado almejado pela cirurgia ter sido obtido, tal como resulta da alínea 233) dos factos provados, o certo é que o foi à custa do sacrifício de forma irreversível e sem necessidade justificada e provada da capacidade urinária e defecatória da autora. 35.ª É certo que a medicina não é uma ciência exacta. Cada doente pode constituir um caso particular. Mas, tendo resultado provado que as eventuais incapacidades de urinar e defecar, expectáveis de uma cirurgia como aquela a que a autora se submeteu são meramente temporárias e que aquela cirurgia não acarreta necessariamente as consequências urinárias e proctológicas que resultaram para a autora, temos de considerar que tais consequências não são normais. 36.ª Aliás, da factualidade dada como provada não resultou sequer apurado que exista outro caso semelhante ao da autora, de outra mulher que tivesse sido submetida ao mesmo tipo de cirurgia e que dela tenham resultado as mesmas sequelas de que padece a autora. 37.ª Não resultou provado que os réus, mas em particular o réu médico, tenham tido na cirurgia em causa um comportamento diligente e competente. 38.ª Eram os réus que tinham de alegar e provar que aplicaram a aptidão e diligência possível, mas que por razões que não podiam prever ou não podiam controlar, a finalidade pretendida da cirurgia, isto é, a exérese (ou excisão) de tumor benigno retroperitoneal, lise de aderência e exérese de quisto vaginal, não pôde ser feito sem incapacitar definitivamente a autora, quer a nível urinário, quer a nível proctológico. 39.ª Alegaram os réus que as consequências advindas para a autora pela realização da referida cirurgia são uma consequência natural, apresentando-se como perfeitamente normais e que podem acontecer em cerca 10% dos casos, estando descritas na literatura, não logrando, contudo, provar tal facto. 40.ª Pretenderam os réus criar a confusão entre consequências temporárias e aqueloutras que de forma definitiva e irreversível atingiram a autora. 41.ª Não elidiram, assim, os réus a presunção de culpa que sobre eles incidia. 42.ª Não demonstraram os réus qualquer causa externa à sua actuação que tenha estado na origem da incapacidade urinária e defecatória definitiva de que passou a padecer a autora após ter sido submetida àquela cirurgia. 43.ª No caso dos autos é manifesto que se acha feita a prova de erro médico por parte do 2º réu. 44.ª Por causa da sua actuação, a autora, ao tempo com 32 anos de idade, sofreu uma mudança radical na sua vida social, familiar e pessoal, já que se tornou incapaz de urinar e defecar de forma natural, jamais podendo fazer a vida que até então fazia e é hoje uma pessoa cujo modo de vida, física e psicologicamente é penoso, sofrendo consequências irreversíveis, não sendo ousado afirmar que a sua autoestima sofreu um abalo fortíssimo tal como o demonstra a factualidade dada como provada – cfr. alíneas 124), 125), 126), 127), 128), 129), 130), 131), 132), 133), 134), 135), 136), 137), 138), 139), 140), 141) e 142). 45.ª No caso dos autos é manifesto, atenta a factualidade dada como provada, que se acha feita a prova do erro médico por parte do Réu, pelo que não poderia o tribunal a quo ter concluído que "Os factos demonstram ter o 2º R. ter empregue todo o saber da sua arte ao realizar o acto médico, de execução da cirurgia à endometriose que a A. padecia. Desta feita, e por este fundamento, terá improceder a presente demanda”, conforme se alcança de fls. 81 da sentença recorrida. 46.ª Realçamos a circunstância de, muito honestamente, não nos parecer que possa, efectivamente ser essa a conclusão a obter dos factos provados, tanto mais que essa conclusão é ela própria manifestamente contraditória com o que resulta referido antes – cfr. fls. 78 da sentença , onde, sem margem para qualquer interpretação extensiva se refere expressamente "Ora, nos autos, como resulta da factualidade provada, estamos perante um caso em que a obrigação assumida pelo 2º R. é de meios. Deste modo, está encontrado o requisito da ilicitude do comportamento da R .. De facto, não logram os RR. fazer prova que a falta de cumprimento ou mesmo que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua (i.e. imputando o resultado ao comportamento da A.) pelo que nos termos supra citado se presume culposa a actuação do 2.º R .médico - artigo 799º, nº 1 do Código Civil. Em face da factualidade dada como provada, não há dúvidas que o 2º R. com a sua actuação, execução da operação cirúrgica, afectou o corpo da A .”. 47.ª No caso sub judice, do acto do réu médico resultou a violação de um direito absoluto da autora integrado na sua personalidade e consistente no direito à sua integridade física - cfr. art. 70º nº 1 do Código Civil e art. 25º da C.R.P. 48.ª Nos termos do disposto no artigo 799º, nº 1 do Código Civil, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua, o que implica o estabelecimento de uma presunção de culpa em relação ao devedor de que o incumprimento lhe é imputável, dispensando-se o credor de efectuar a prova correspondente nos termos do disposto no n.º 1 do art. 350º do Código Civil. 49.ª A obrigação tipificadora dos contratos de prestação de serviço médico é a obrigação de tratamento, sendo a obrigação inicial que o médico assume genérica, indeterminada e imprecisa. Tal obrigação de determina-se apenas pelo alvo ou objectivo a atingir (o tratamento e não a cura). A determinação da prestação é, assim, confiada a uma das partes - cfr. n.º 1 do art. 400º do Código Civil. 50.ª O médico responde, assim, pelos actos médicos, na medida em que os seleccionou e na medida em que, como resultado dessa selecção, passam a assumir a natureza de actos devidos. 51.ª No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2002, Proc. 02A4057, enfatizou-se que não se vê qualquer razão para não fazer incidir sobre o médico a presunção de culpa estabelecida no art. 799º, n.º 1 do Código Civil, o que se reputou de equitativo porquanto a facilidade da prova está do lado do médico. 52.ª Por outro lado, também entendemos que "(...) não constitui causa de exculpação a demonstração singela de que, na sequência de um determinado tipo de cirurgia, ocorre uma franja de casos (por ex., 5%) em que se produzem determinadas sequelas no paciente (percentagem racional de risco típico). A estatística em causa nada esclarece sobre a proporção que, dentro dessa percentagem de risco, deve ser imputável a uma deficiente aplicação da técnica cirúrgica" - cfr. FERNÁNDEZ HIERRO, José Manuel, Sistema de responsabilidade médica, Comares, 5ª Ed., 2007, p. 158-159. 53.ª A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado em vários doutos arestos sobre a questão do erro médico, em casos de alguma forma semelhantes ao aqui em apreço, sendo possível enumerar, exemplificativamente, os seguintes: Ac. STJ de 17-12-2002 - Revista n.º 4057/02 - 6.ª Secção - Manso de Melo (Relator), Fernandes Magalhães e Silva Paixão; Ac. STJ de 22-05-2003 - Revista n.º 912/03 - 7.ª Secção - Neves Ribeiro (Relator), Araújo de Barros e Oliveira Barros; Ac. STJ de 15-10-2009 - Revista n.º 1800/08 - 2.ª Secção - Rodrigues dos Santos (Relator), João Bernardo (vencido), Oliveira Rocha, Oliveira Vasconcelos (vencido) e Serra Baptista; Ac. STJ de 17-12-2009 - Revista n.º 544/09.9YFLSB - 7.ª Secção - Pires da Rosa (Relator), Custódio Montes, Alberto Sobrinho, Maria dos Prazeres Beleza e Custódio Montes; Ac. STJ de 07-10-2010 - Revista n.º 1364/05.5TBBCL.G1.S1 - 6.ª Secção - Ferreira de Almeida (Relator), Azevedo Ramos e Silva Salazar; Ac. STJ de 15-12-2011 - Revista n.º 209/06.3TVPRT.P1.S1 - 1.ª Secção - Gregório Silva Jesus (Relator), Martins de Sousa e Gabriel Catarino. 54.a Nesta esteira, levando em consideração os factos dados como provados, resulta PROVADO o erro médico por parte do 2º réu. 55.a As lesões urinárias e proctológicas irreversíveis sofridas pela autora não eram uma consequência necessária e inevitável da cirurgia em causa. Aconteceram porque, durante a cirurgia, ocorreu uma denervação dos nervos responsáveis pelo funcionamento da bexiga e do intestino, sendo que 2º réu podia e devia ter evitado que tal tivesse ocorrido, pois estava nas suas mãos fazê-lo. 56.a Alegou a autora que se lhe tivessem ido sido apresentadas, pelo 2º réu, como sequer possíveis as sequelas com que ficou após a realização da cirurgia a que se submeteu, nunca a teria realizado. 57.a No entanto, quanto a essa questão submetida à apreciação do tribunal, a sentença recorrida é telegráfica: "Ainda que assim não fosse, como supra ficou dito, a A. deu o seu consentimento, pelo que se encontra excluída a ilicitude - artigo 340º do Código Civil" - cfr. fls. 81 conclusão com a qual não podemos concordar. 58.a Parece-nos sério, honesto e absolutamente credível que para uma mulher, como a autora, em plena flor da idade, que à data da intervenção cirúrgica tinha 32 anos - cfr. factos provados 1) e 12) - e de que o único mal de que padecia era a dor resultante da doença endometriose - cfr. factos provados 25), 28) e 29) - aceitasse submeter-se a uma intervenção cirúrgica como aquela que se submeteu se soubesse que por via dela poderia passar a ser definitivamente obrigada, até ao resto da sua vida, a recorrer à auto-algaliação e a defecar para um saco. 59.ª Não é, pois, verosímil tal cenário e não se compadece o mesmo com as mais elementares regras da experiência comum. 60.ª Da factualidade dada como provada é inquestionável que a autora tenha dado o seu consentimento à cirurgia a que se submeteu, tanto mais que se nisso não tivesse sucedido, tal cirurgia, naturalmente, nem sequer se teria realizado. Porém, o que resulta da factualidade dada como provada é que o consentimento prestado pela autora tem por base as informações dadas pelo 2º réu e das quais não constam que poderiam advir para a autora as definitivas e irreversível consequências urinárias e proctológicas que viria a sofrer. 61.a O consentimento para ser válido à luz do disposto no art. 340º do Código Civil implica que o médico dê a conhecer ao paciente lesado, ou pelo menos lhe apresente como possível, as consequências gravosas e irreversíveis que lhe poderão advir da sua submissão a uma intervenção cirúrgica. 62.a No caso dos autos, atenta a factualidade dada como provada, não podemos afirmar que isso se verificou: a autora ficou numa situação física que nunca lhe foi antes. tão-pouco. apresentada como possível pelo 2º réu. 63.a Seguindo de perto a douta jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça encontramos o Acórdão de 07-02-2013, Revista n.º 4497/07.0TVLSB.L1.S1 – 7ª Secção - Sérgio Poças (Relator), Granja da Fonseca e Silva Gonçalves, cujo sumário refere: “II - O consentimento livre e esclarecido é aquele que, situando-se no princípio da autonomia, é tomado com base numa escolha informada quanto às consequências previsíveis (efeitos secundários, sequelas e riscos de tratamento que se verificam com frequência) e alternativas (possibilidades terapêuticas) possíveis, não abrangendo os riscos de carácter excepcional III - Recai sobre o médico o dever de informação ao paciente dos elementos referidos em II com vista à obtenção do seu consentimento esclarecido”. 64.ª O consentimento só será valido se for livre e esclarecido, isto é, só será válido se forem fornecidos ao doente todos os elementos que determinaram a consentir na intervenção médica que contratou. 65.ª Resulta dos factos provados que as possíveis consequências que poderiam advir da cirurgia eram meramente temporárias ao nível urinário e proctológico – cfr. alíneas 39) e 49) dos factos provados -, não se compadecendo minimamente com o estado em que a autora ficou. 66.ª Não integra o elenco dos factos provados que a autora foi informada pelo 2.º réu de que após a submissão à cirurgia poderia vir a ficar absolutamente incapaz de urinar e defecar de forma natural. 67.ª o documento de fls. 360 referido na alínea 46) dos factos provados é um mero documento genérico que não atesta, ou sequer demonstra, que a autora foi informada pelos réus de que poderia vir a sofrer as graves consequências definitivas a nível urinário e proctológico. Portanto, dali não se pode extrair a conclusão de que a autora estava devidamente informada e esclarecida que poderia vir a ficar com as sequelas com que ficou. 68.ª O ónus da prova do consentimento e da prestação da informação incide sobre o médico ou a instituição de saúde, porque o consentimento funciona como causa de exclusão da ilicitude, e a adequada informação é um pressuposto da sua validade, logo matéria de excepção, como facto impeditivo - cfr. art. 342.º n.º2 do Código Civil, segundo o qual "A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.”; 69.ª Recaía, assim, sobre os réus o ónus de provarem que a autora decidiu submeter-se à intervenção cirúrgica em causa nos autos, não obstante saber que dela poderia resultar a sua incapacidade definitiva de urinar e defecar de forma natural- o que manifestamente não lograram conseguir fazer. 70.ª Nessa medida, não podemos, pois, concluir, como fez o tribunal a quo, que a autora deu o seu consentimento informado à referida cirurgia. 71.ª Resulta do teor do relatório da perícia médico-legal datado de 7 de Março de 2014, valorado pelo tribunal a quo, como consta da sentença recorrida, que "Os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre a patologia ginecológica, os tratamentos efectuados e as sequelas descritas, atendendo a que se confirmam os critérios necessários para o seu estabelecimento: " - cfr. fls. 11 do relatório pericial; 72.ª Resulta, ainda, do teor do relatório da perícia médico-legal, datado de 9 de Julho de 2015, que: “A situação de desenervação é definitiva (...)" e "O quadro que motivou a colostomia permanente foi considerado como sendo ele próprio irreversível. representando a colostomia uma solução adequada." - cfr. fls. 1 do referido relatório, na resposta às questões Q80 e Q85. 73.ª No caso dos autos, é iniludível, atenta a factualidade dada como provada, a existência de danos não patrimoniais sofridos pela autora e cuja responsabilidade é imputável aos réus. 74.ª A prova nesta parte foi arrasadora: as consequências da cirurgia foram de tal forma devastadoras e irreversíveis que a autora ficou definitivamente incapacitada de urinar e defecar de forma natural, sendo que antes da cirurgia a autora sofria apenas as consequências de sofrer de endometriose - cfr. alínea 125) dos factos provados -, que no fundo se resumiam a dor, fazendo de forma absolutamente normal a sua vida pessoal, profissional, social, familiar, sexual - cfr. alínea 126) dos factos provados. 75.ª É, pois, manifesto que por causa da actuação do réu médico, o autora, ao tempo com apenas 32 anos, sofreu uma mudança radical na sua vida social, familiar e pessoal, jamais podendo fazer a vida que até então fazia e é hoje uma pessoa cujo modo de vida, física e psicologicamente é penoso, sofrendo consequências irreversíveis. 76.ª Não é ousado afirmar, atenta a factualidade dada como provada, que a sua auto-estima sofreu um abalo fortíssimo. 77.ª Não voltará a autora a ser mesma que era antes de se ter submetido à intervenção cirúrgica em causa nos autos. 78.ª Como documentam os autos e melhor resulta da factualidade dada como provada, a autora não se conformou com a condição pós-cirúrgica em que ficou - cfr. alíneas 113) e 118) dos factos provados. Inconformada, viajou para vários países e colheu a opinião de reputados médicos internacionalmente reconhecidos, verdadeiras referências na área, os quais, infelizmente, confirmaram à autora, à semelhança de outros médicos nacionais, o pior dos cenários: a situação em que autora se encontrava resultava de uma denervação - cfr. alíneas 116) e 119) dos factos provados. 79.ª A autora não poderá voltar a urinar e a defecar de forma natural. Está perante uma situação irreversível. 80.ª É, ainda, de realçar que por via da situação incapacitante em que ficou, a autora foi obrigada a submeter-se a uma nova cirurgia, com todos os constrangimentos que isso implica, desta feita para a realização de uma colostomia derivativa definitiva - cfr. alínea 124) dos factos provados. 81.ª Além disso, vai ter de proceder a auto-algaliações diárias, várias vezes ao dia, ao que tudo indica, até ao final da sua vida - cfr. alínea 124) dos factos provados. 82.ª Não obstante, bem sabemos que a questão da admissibilidade da reparação autónoma por danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade contratual tem gerado alguma controvérsia na doutrina e mesmo na jurisprudência, contudo, estamos em crer que a grande maioria da doutrina e da jurisprudência sustenta a tese da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais no domínio da responsabilidade contratual encontramos Galvão Telles (Direito das Obrigações, 4 ed., pág. 300); Almeida Costa (Direito das Obrigações, pág. 396); Vaz Serra (Rev. Leg. Jur. ano 108, pág. 222); mesmo Autor em BMJ n.º 83, pago 69 e segs. António Pinto Monteiro ("Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil", pág. 85 nota 164 e "Clausula Penal e Indemnização, pág. 31, nota 77). 83.ª No mesmo sentido, encontramos na jurisprudência diversos acórdãos, designadamente os Acórdãos do ST.J. de 30-1-81 (BMJ n.º 303, pago 212), de 17-1-93 (Col. Jur. ano I, tomo I, pág. 61) de 09.12.93 (CJ 93-3º-174) e de 25.11.98 (BMJ 481-470), da Relação do Porto de 4-2-92 (Col. Jur. ano XVII, tomo I, pág. 232), da Relação de Coimbra de 14-4-93 (Cal. Jur. ano XVIII, tomo 2, pág. 39) e da Relação de Lisboa de 17-6-93 (Cal. Jur. ano XVIII, tomo 3, pág. 129) e de 15.05.03 (recurso nº 3081/03 disponível na Internet). 84.ª São, assim, indemnizáveis os danos não patrimoniais emergentes da falta de cumprimento de obrigações contratuais - cfr. Acórdão do STJ de 15.06.93 (BMJ 428-534 e 534 e 535). 85.ª Se se viola um contrato, poderá o lesado pedir uma indemnização por danos não patrimoniais se estes forem suficientemente graves de modo a justificarem a tutela do direito. Nem outra solução seria aceitável, salvo melhor opinião. 86.ª Nos termos do artigo 496º do Código Civil, na fixação da indemnização deverá, assim, atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, em montante a fixar equitativamente pelo tribunal, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494.º, ou seja, grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem. 87.ª No caso dos autos, parece-nos que não haverá qualquer dúvida de que os danos sofridos pela autora, dada a sua gravidade, são indemnizáveis. 88.ª E são indemnizáveis, com base na equidade - cfr. n.ºs 1 e 3 do art. 496º do Código Civil. 89.ª No caso dos autos o erro médico de que a autora foi vítima causou-lhe dano corporal de muita gravidade, que lhe deixou sequelas permanentes e irreversíveis, quer a nível psicológico, quer a nível físico. 90.ª No que respeita ao montante de indemnização reclamada a título de danos não patrimoniais morais tem-se por equitativa, atenta a gravidade, extensão e irreversibilidade dos danos, a quantia de 275.000,00 € (duzentos e setenta e cinco mil euros). 91.ª Por todo o exposto, deveria o tribunal a quo ter julgado verificado o erro médico e a violação do dever de informação e, nessa medida, deveria ter arbitrado uma indemnização à autora pelo danos não patrimoniais sofridos, com a consequente procedência da ação, por ser esta a única decisão consentânea com a verdadeira realização da justiça material. 92.ª Ao decidir em sentido diverso, violou o tribunal a quo, por deficiente interpretação e aplicação dos mesmos os artigos 70.º, 340.º, 342.º, 350.º, 400.º, 487.º, 494.º, 496.º, 798.º e 799.º do Código Civil e 25.º da Constituição da República Portuguesa. 93.ª Devendo, por isso, ser revogada a douta sentença proferida pelo tribunal a quo e substituída por outra que julgue procedente o pedido de indemnização civil pelos danos não patrimoniais sofridos pela autora e condene os réus no respectivo pagamento. 94.ª Atendendo a que a causa tem valor superior à alçada da Relação, o valor da sucumbência é superior a metade da alçada da Relação e no presente recurso se suscitam apenas questões de direito e não se impugnam quaisquer decisões interlocutórias, requer-se que o mesmo suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça (cfr. art. 678º. nº 1 do C.P.C.). (…) deve ser revogada a douta sentença proferida pelo tribunal a quo e substituída por outra que condene os réus a indemnizar a autora, pelos danos não patrimoniais causados com a sua actuação, pela quantia de 275.000,00 € (duzentos e setenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, ou outra que se venha a considerar justa e adequada ou que se entenda dever ser liquidada em execução de sentença.” Contraveio a demandada “SEGURO EE, S.A.” com fundamentação adversa à pretensão da demandante tendo dessumido o sumário conclusivo que a seguir queda extractado. “1. A douta sentença ora posta em crise decidiu correctamente ao concluir que não estavam reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil. 2. Independentemente de estar em causa a responsabilidade contratual ou delitual, sempre se impunha que a recorrente demonstrasse algum comportamento do médico que, objectivamente considerado, se mostrasse contrário ao Direito, com desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado. 3. Na opinião da ora recorrida, da matéria assente não se consegue descortinar o que o recorrido médico fez e não deveria ter feito ou o que não fez e deveria ter feito. 4. Para a responsabilização civil do lesante, não é suficiente a alegação e prova da não obtenção de um dado resultado. É necessário provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados pelo médico e os que lhe são exigíveis, atendendo a situação concreta do paciente. 5. Na medicina, essa desconformidade objectiva (a ilicitude) afere-se pela violação das leges artis. Significa portanto, que a ilicitude na actuação do médico traduz-se no comportamento que aquele tenha tomado que contrarie as guide fines e standards de actuação clínicos, atendendo à situação concreta. 6. No caso sub judice, nunca se alegou nem se provou qualquer comportamento adoptado pelo R. médico que traduza um desvio desse comportamento diligente. 7. Tal como refere a recorrente nas suas alegações, o comportamento do médico será ilícito se se desviou desse comportamento diligente, tomado o seu agente como um elemento de um grupo caracterizado e diferenciado dentro da categoria geral dos profissionais médicos e da especificidade da situação. Por outro lado, dir-se-á em passo, se se tomando em conta a especificidade do circunstancialismo em que o concreto agente actuou, se puder concluir que ao agente era exigível outro comportamento (sic pág. 22 das doutas alegações de recurso). 8. Há que diferenciar os conceitos de culpa e de ilicitude. 9. O facto ilícito será o comportamento objectivo adoptado pelo médico que contraria as boas práticas médicas, atendendo ao caso concreto, e, por isso, provoca os alegados danos. 10. Este comportamento objectivo não foi provado. 11. A culpa consubstancia-se no juízo subjectivo de reprovação do comportamento adoptado. 12. Quer-se dizer que o comportamento contrário do médico que contrarie as leges artis deverá ser alvo de um juízo de censura, seja pela sua vontade no resultado (dolo), seja pela falta de competência manifestada na assunção de tal comportamento (negligência). 13. Perante a inexistência de prova da ilicitude, cujo ónus incumbiria à recorrente, nada mais restaria do que julgar improcedente a presente acção, tal como se decidiu em primeira instância. 14. Dos factos provados resulta à exaustão ter o R. médico demonstrado a transmissão à recorrente de uma informação simples e aproximativa e sobretudo leal, a qual compreende os riscos normalmente previsíveis. 15. Foi salvaguardado o direito da recorrente a ser informada pelo médico, em ordem a poder decidir sobre se o ato médico em questão deve ou não ser levado a cabo, por referência às vantagens prováveis do mesmo ato médico e dos seus riscos. 16. Acresce que do documento de fls. 360 (a que se refere o ponto 46 dos factos provados) consta que a doente teve oportunidade de fazer as perguntas que julgue necessárias, pelo que deve entender-se que esta abdicou do seu direito a solicitar informação mais detalhada (Neste sentido acórdão de 9 de Outubro de 2014, processo 3925/07.9, sendo relator JOÃO BERNARDO). 17. Pelo que não merece censura a decisão proferida em primeira instância e que julgou válido o consentimento da recorrente e excluída a ilicitude. 18. Caso seja procedente o presente recurso, julgando-se estarem preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar, o que não se concede, deve o processo ser remetido ao Tribunal da Comarca do …, Instância Central de … para que se fixe o montante da compensação. 19. Contrariamente ao que ocorria no domínio do Código de Processo Civil anterior, o Código de 2013 não permite que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie questões que o tribunal recorrido não conheceu, designadamente por as considerar prejudicadas; compare-se o resultado da conjugação entre os atuais artigos 679º e 665º, com aquele que decorria da conjugação entre os anteriores artigos 726º e 715º, preceito do qual apenas se excluía a aplicação do respectivo nº 1. Termos em que e sem necessidade de mais considerandos, deve ser negado provimento ao recurso de revista interposto, com todas as consequências legais. Se assim se não entender, o que apenas por dever de ofício se concede, deve o processo ser remetido ao Tribunal da Comarca do …, Instância Central de … para que se fixe o montante de compensação por danos não patrimoniais.” Desquiciado do pendor conclusivo, contraminou a pretensão de revisão do julgado o demandado, BB – cfr. fls. 1077 a 1120 – para defender a manutenção da decidido. Não deixou a interveniente, SEGURO DD, S.A.”, de responder à pretensão da demandante com os argumentos expandidos de fls. 1125 a 1138. I.b). – Questões a merecer apreciação. As alegações da demandante exponenciam e enfocam como razões fundantes do direito que invoca – o direito à indemnização por danos não patrimoniais com base na violação do dever de prestar um adequado e correcto tratamento para sanação da doença, que para debelação do aleijão fisiológico detectado teve, como corolário, a intervenção cirúrgica e o posterior tratamento por banda do médico, no estabelecimento hospitalar demandado onde a demandante oi observada, diagnosticada, intervencionada e seguida no pós-operatório – duas as questões jurídicas que a demandante assume dever ser objecto de conhecimento no recurso que interpôs da decisão sob sindicância: - errada informação prestada à demandante no momento anterior à decisão de aceitar a realização do acto cirúrgico; - existência/verificação de um erro médico. II-FUNDAMENTAÇÃO. 2.- Nunca a Autora teve filhos. 46. A A assinou o documento de fls. 360, no qual se pode ler “declaro que compreendi a explicação que me foi fornecida acerca do meu caso clínico e dos métodos de diagnóstico e/ou tratamento que se tenciona instituir, tendo-me sido dada a oportunidade de fazer as perguntas que julguei necessárias (…) a informação ou explicação que me foi prestada versou objectivos, métodos, benefícios previstos, riscos potenciais e o eventual desconforto que daí resultem; além disso, foi-me afirmado que tenho o direito de recusar, a todo o tempo, as propostas que me foram apresentadas, sem que isso possa ter como efeito qualquer prejuízo na assistência que me será prestada.”. 47. O 2º R possui notório e relevante curriculum nesta especialidade, tendo participado em inúmeros congressos como orador e é citado pelos demais cirurgiões e sendo detentor de impar perícia e precisão cirúrgicas e conhecedor da melhor ars legis da matéria. 71. Mais lhe disseram, segundo as informações do 2.º Réu, que uma semana após, deveria começar a urinar normalmente, prescindindo da algália, sendo que se tal não sucedesse, deveria dirigir-se novamente ao HOSPITAL CC. II.B.1. – Errónea informação prestada à demandante no momento anterior à decisão de aceitar a realização do acto cirúrgico. Consentimento. Procurando ordenar as temáticas que estão em relevo apreciativo, incoaremos por tentar explicitar o conceito de informação esclarecida. Para tanto busquemos o tramo da decisão em que o tema é aflorado. Na análise a que procede para afastar a responsabilidade do clinico que terá causado os danos/lesões corporais em que a demandante funda o correspectivo dever de indemnizar, o tribunal recorrido expendeu a sequente fundamentação (sic): “Que tais “consequências” não foram informadas à A. em momento anterior ao acto cirúrgico, isto é, que a A. não foi informada de que o seu actual estado poderia ocorrer na sequência de uma operação cirúrgica tal como a A. foi objecto. Caso ocorra consentimento de tal lesão por parte do paciente, consentimento este esclarecido e inequívoco, ganhará relevo tal consentimento por força do disposto no artigo 340.º do Código Civil (1 - O acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão. 2 - O consentimento do lesado não exclui, porém, a ilicitude do acto, quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes. 3 - Tem-se por consentida a lesão, quando esta se deu no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível). Como ensinou o Professor Antunes Varela, que definiu o consentimento do lesado como a «aquiescência do titular do direito à prática do acto que, sem ela, constituiria uma violação desse direito ou uma ofensa da norma tuteladora do respectivo interesse» (A. Varela, Das Obrigações em Geral, I. 10ª edição, pg.560).” A decisão recorrida acaba por concluir que (sic): “(…) Ainda que assim não fosse, como supra ficou dito, a A. deu o seu consentimento, pelo que se encontra excluída a ilicitude – artigo 340.º do Código Civil.” Na relação que se estabelece entre médico-doente, ao doente cabe expor os achaques e padecimentos de que se acha portador e ao médico, após os exames pessoais e exames de técnicas de diagnóstico e laboratoriais que entende serem adequadas a uma correcta avaliação do caso apresentado, formular um diagnóstico do morbo de que o paciente possa ser portador. [[2]] Axial, pensamos, para a atitude relacional entre clínico e doente, deve ter-se, para efeitos de informação esclarecida, o que vem referido no relatório sobre “Consentimento Informado” da Entidade Reguladora de Saúde, em que para este propósito perora (sic): “O conceito de consentimento informado é composto por dois componentes fundamentais: a) Compreensão; b) Livre consentimento. Conjuntamente, estes dois conceitos, quando assumidos pelo doente, são a garantia de que qualquer decisão assenta nos pressupostos de auto-responsabilização e liberdade de escolha. A compreensão (enquanto componente ético do consentimento informado) inclui a informação e o conhecimento quer da situação clínica, quer das diferentes possibilidades terapêuticas. Implica, por via de regra, o fornecimento de informação adequada sobre o diagnóstico, prognóstico e terapêuticas possíveis com os riscos inerentes, incluindo os efeitos da não realização de qualquer terapêutica. A informação que sustenta a compreensão deve ser fornecida numa linguagem compreensível pelo doente, qualquer que seja o seu nível cultural, incluindo por aqueles que tenham limitações linguísticas ou de natureza cognitiva. A compreensão, tal como definida atrás, é um quesito fundamental para assegurar que existe liberdade no consentimento. O livre consentimento é um acto intencional e voluntário, que autoriza alguém, no caso em apreço o prestador dos cuidados de saúde, quer a título individual quer institucional, a agir de determinada forma no decorrer do acto terapêutico. No contexto da prática médica, é o acto pelo qual um indivíduo, de livre vontade, autoriza uma intervenção médica com potencial efeito na sua vida e/ou qualidade de vida, seja sob a forma de terapêutica seja sob a forma de participação numa investigação. A liberdade pressuposta no livre consentimento é incompatível com a coacção e a pressão de terceiros, e envolve a escolha entre diferentes opções, incluindo aquelas que podem não ter indicação da perspectiva das recomendações médicas comummente aceites como adequadas.” [[3]] Esse direito ao livre e esclarecido consentimento é um postulado axiológico e normativo, vigente em vários ordenamentos jurídicos incluindo o português, como se alcança da Declaração de Lisboa da Associação Médica Mundial de 1981, da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, do Conselho da Europa, do art.1°,25° e 26° da CR Portuguesa, art.70 do CCivil, art. 156 e 147 do C Penal e art. 38 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e Lei de Bases da Saúde (Base XIV nº 1 al. e) da Lei n.º 48/90 de 24/AGO; (Ver Conselheiro Álvaro Rodrigues, in Consentimento Informado - Pedra Angular da Responsabilidade Criminal do Médico (Relatório Final do Curso de Pós - Graduação em Direito da Medicina), Coimbra Editora, 2002; Prof. Costa Andrade, in Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora, 1991; André Dias Pereira in O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica. Revista dos Tribunais 2005 S. Paulo pág.69 a 109) Foi a partir da teorização e consciência social do risco médico que se valorizou a participação do paciente, dando-lhe por direito, toda a informação e consciência do referido acto, assim obtendo o paciente a sua própria autonomia deixando definitivamente de fora o velho padrão de paternalismo com que era visto e tratado desde a era Hipócrates. Um marco fundamental dessa valorização situa-se, historicamente em 1957, quando um tribunal da Califórnia usou pela 1a vez a expressão "informed consent, tendo daí ingressado no direito anglo saxónio e no continente europeu (ver ainda, de Mestre Gonçalo Dias Pereira o Estudo "Responsabilidade Médica por Violação do Consentimento Informado" pág.5 e 6 e, ainda Prof. Lesseps dos Reis em RFML. série 111" Vol.- 5 nº 5) Entre nós, seguindo de perto o estudo do Conselheiro Álvaro Rodrigues - Responsabilidade Médica em Direito Penal (Dissertação do Mestrado em Direito Almedina 2007) o consentimento informado releva essencialmente na área do Direito Penal,(mas tem , seguramente interesse no campo do direito civil). É que a partir do Código Penal de 1982, surgiu um novo tipo legal de crime que é o do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punível pelo art. 156.º do C.Penal com referência ao art. 157.º que densifica o conceito de dever de esclarecimento. O bem jurídico tutelado através deste tipo de ilícito, não é o corpo, a saúde ou a vida do paciente, pelo que a sua violação não integra nunca um crime de ofensas à integridade física ou de homicídio. O bem jurídico que constitui objecto deste tipo é a auto-determinação do paciente sobre o seu corpo e sobre a sua vida, isto é, trata-se de um tipo legal que protege a liberdade, por isso situando-se a localização sistemática do mesmo no Código, entre os crimes contra a integridade física os crimes contra a liberdade, mais concretamente, entre a ameaça e o sequestro. Trata-se uma figura que a doutrina alemã gizou há vários anos, mas que o legislador alemão nunca tipificou penalmente, pelo que, naquele País, embora se reconheça que se trata de um crime que visa tutelar o direito de autodeterminação ( do paciente) sobre o seu próprio corpo], como a lei não o prevê no Código Penal alemão (StGB), os Tribunais consideram-no como se de ofensas corporais se tratasse, encaixando a factualidade apurada na previsão normativa (Tatbestand) das ofensas corporais. Deste modo, se o médico operar sem o consentimento esclarecido do paciente, pode vir a ser acusado e condenado por um crime de ofensas corporais, porque o BGH – que é o Supremo Tribunal Federal da Alemanha –, construiu uma jurisprudência que tem merecido a censura da Dogmática, mas o aplauso dos profissionais forenses, segundo a qual, nestes casos o médico comete um atentado contra a integridade moral, anímica, do doente, logo contra o corpo deste que é um composto da parte biológica e da parte espiritual ou moral (unidade biopsicológica) e assim «encaixa» tal conduta omissiva do consentimento na previsão do delito de ofensas corporais, o que levou o famoso penalista Karl Binding, a afirmar que na Alemanha a Justiça equiparava «a incisão cirúrgica do médico à facada do brigão» já que ambas constituíam ofensas corporais, só podendo o médico ver excluída a ilicitude do seu acto, pelo recurso a uma causa de justificação, como o estado de necessidade justificante ( direito de necessidade) ou o conflito de deveres. É o que se passava, entre nós, no domínio do vetusto Código Penal anterior ao de 1982. Em Portugal e também na Áustria (§ 11O do StGB austríaco), tal já não acontece, pelo que integra um ilícito penal autónomo que é o previsto no art. 156.º do nosso C.Penal de 1982 e subsequentes revisões. Ao médico (seja qual for a sua obrigação, estando ou não vinculado por contrato) é exigido que cumpra as "leges artis" (também chamadas "medical standard of care" e "soins conforme aux donnés aquis de la science'?, com a diligência normal de um bom pai de família É esta a forma de cumprimento lógica, coerente e consequente que o médico tem, do exercício de qualquer acto médico. Convém não esquecer que neste domínio existem dois deveres, cuja observância é fundamental, a saber: o dever do médico de dar ao paciente um total e consciente esclarecimento sobre o acto médico que nele se vai realizar, suas características, o grau de dificuldade de necessidade ou desnecessidade, suas consequências e, acima de tudo, sobre o risco envolvente do referido acto médico; e o dever de colaboração do paciente fornecendo ao médico, com verdade qualquer facto da sua história clínica, com relevância para promover o sucesso ou evitar o insucesso do mesmo acto médico. Realce-se que o dever de esclarecer o paciente subsiste, autonomamente, em relação a outros deveres resultantes de eventual contrato entre médico e doente Este dever de colaboração (que será tanto mais optimizado quanto mais eficiente e completo tiver sido o esclarecimento ao paciente transmitido) inclui, em substância, para além da exposição e resposta com verdade e sem qualquer omissão ao seu histórico clínico, inclui também e designadamente a notícia de eventuais incompatibilidades ou restrições à toma de fármacos com incidência no campo da anestesiologia...” [[4]] Esta doutrina vem sendo reafirmada e vincada em diversos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, de que damos nota sequencialmente. Ataviados com este acervo de ensinamentos, importará recensear a matéria de facto adquirida para esta temática. Para contraminar a conclusão a que a decisão se alçou – estimar que a paciente foi adequada, cientifica e plenamente esclarecida das consequências que lhe poderiam advir de uma intervenção cirúrgica ajustada a remover a maleita de que padecia – a demandante contrapõe as exactas sequelas de que é portadora, necessidade de auto-algaliação e de colostomia definitiva (“uma incapacidade urinária e defecatória definitiva e irreversível”). Não pode deixar de se concordar com a demandante quando afirma que as consequências irreversíveis, no plano urinário e defecatório, que para a sua saúde física, lhe sobrevieram da intervenção cirúrgica a que foi submetida são imanes e de repercussões na qualidade de vida, no relacionamento vivencial e na capacidade de se movimentar, com autonomia e despreocupação. E não custa admitir que se lhe fosse explicitado e esclarecido que as consequências e sequelas que lhe adviriam se patenteariam no quadro físico-patológico com que se viria a confrontar não teria, certamente, autorizado e consentido na realização da intervenção, ou tê-lo-ia feito mas tendo outros protagonistas, mais esclarecidos cientificamente e com uma destreza e perícia que não aquele que a intervencionou. O grano está em determinar se num esclarecimento informado e cientificamente conhecedor da realidade patológica que a intervenção cirúrgica devia debelar, por excisão de uma partes do tecido corporal, ao clinico estava cometido o dever – deontológico, clinico e ético – de explicitar a paciente de que, com algum nível de probabilidade, lhe poderiam sobrevir as mazelas e deficiências físicas de que agora padece. Da factualidade adquirida parece resultar, com um mínimo de atinência com o que deve ter-se por correcta prática clínica, que os clínicos que a demandante consultou, FF e BB, terão fornecido à demandante os elementos necessários e suficientes para ela decidir pela necessidade, inevitável, de uma intervenção cirúrgica: 1) natureza e tipo de patologia que era possível diagnosticar (com os exames de diagnóstico que foram realizados – e parece que outros não deveriam ter sido realizados); 2) do tipo de intervenção que deveria ser realizada para que o morbo fosse debelado; 3) de previsíveis consequências que poderiam advir do tipo de intervenção a realizar, a nível urológico (para o que era requestada a colaboração activa e esforçada da paciente). A demandante com as informações que lhe terão sido prestadas não terá tido dúvidas e solicitado esclarecimentos complementares para dar o seu consentimento à realização da intervenção cirúrgica para remoção/excisão da formação tumoral que lhe foi detectada. Para a doença que padecia, o acto médico (terapêutico) necessário à reparação do mal detectado e consequências previsíveis de uma intervenção cirúrgica a informação e os esclarecimentos prestados pelos clínicos terem-se mostrado adequados, necessários e pertinentes para a decisão a assumir pela demandante, qual fosse a de se submeter ao tratamento proposto para a debelação do mal que lhe foi diagnosticado. Constata-se, assim, uma adequação cognoscente e compreensível entre o dever de informar, cientifica e deontologicamente arrimado, por banda do clinico e a capacidade de entender, com vista a uma assumpção de decisão esclarecida e liberta de dúvidas, por parte do doente. Nesta fase do processo – diagnóstico, assumpção do tipo/natureza da doença e medidas terapêuticas a adoptar – a informação a prestar pelo clinico não se mostra desadequada e incorrecta. E era esta a informação que deveria ter sido prestada pelo clinico para que a demandante pudesse assumir uma decisão liberta e consciente quanto à intervenção a realizar. A demandante parece colocar o erro/deficiência de informação num ponto da relação clinica situado (no processo clinico) bem mais adiante, qual seja a de que a informação prestada não foi a adequada se adoptarmos como referente cognoscente as consequências que lhe advieram de uma intervenção – que, itera-se, ela considera ter sido o meio adequado de debelar o mal que lhe fora diagnosticado – que não terá sido realizada de forma adequada a não causar as sequelas de que neste momento padece. (O ónus da prova do consentimento e da prestação da informação incide sobre o médico ou a instituição de saúde, porque o consentimento funciona como causa de exclusão da ilicitude, e a adequada informação é um pressuposto da sua validade, logo matéria de excepção, como facto impeditivo - cfr. art. 342.º n.º 2 do Código Civil, segundo o qual "A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.”; Recaía, assim, sobre os réus o ónus de provarem que a autora decidiu submeter-se à intervenção cirúrgica em causa nos autos, não obstante saber que dela poderia resultar a sua incapacidade definitiva de urinar e defecar de forma natural- o que manifestamente não lograram conseguir fazer. Nessa medida, não podemos, pois, concluir, como fez o tribunal a quo, que a autora deu o seu consentimento informado à referida cirurgia.”) Se bem entendemos, a demandante desdobra o dever de informar/esclarecer em dois momentos, que sendo temporal e funcionalmente distintos, deveriam constar de uma informação única e arrimada para uma tomada de decisão conscientemente assumida. Assim, segundo percebemos, a informação deveria ter assumido uma feição bipartida. Uma primeira tendente a informar a demandante da doença, terapêutica para a debelação do mal e previsíveis consequências da terapêutica adoptada – e esta parece ter sido adequada – e uma segunda, mas que convoca contemporaneidade do dever de informar, para as consequências – referidas às sequelas que ostenta actualmente – que poderiam advir da intervenção cirúrgica. Em nosso juízo, o dever de informar/esclarecer do clinico confina-se, no momento da assumpção do diagnóstico, em dar a conhecer a natureza/tipo de doença de que o paciente é portador – tendo em conta o que terá sido possível extrair dos exames realizados e do estado da ciência médica – qual a extensão da doença, aqui vai incluído o estado actual da doença, os efeitos/consequências do morbo para a saúde do individuo, e, finalmente, qual a forma médico-cientificamente adequada de a tratar – se não for possível curar – e de fazer retornar o estado de saúde do paciente ao ponto de sanidade anterior à deflagração da doença. Não se constitui como componente do dever de prestar uma informação adequada o clinico prestar uma informação pós-operatória – aquela que a demandante faz constituir na sua alegação. A informação pós-operatória apenas deve cingir-se ao que previsivelmente acontece e ocorre nas situações de normalidade, isto é, apenas deve estar contido num esclarecimento pós-operatório aquilo que, para a arte médica e cientifica do momento, é previsível acontecer se a intervenção cirúrgica for realizada segundo a técnica cientifica adequada e com os métodos e meios mais ajustados. Vale por dizer, que não é deontológica e médico-cientificamente exigível que um clinico preste uma informação - inicialmente destinada a dar a conhecer a maleita e a obter o consentimento para o seu tratamento – que inclua as consequências – para além do que essas consequências sejam cientificamente previsíveis e adequadas se o tratamento for o adequado – que, num processo de normalidade devam ser as que advêm e sobrevêm a um tratamento/intervenção clinica ajustada. A demandante inclui – ou parece incluir – no dever de prestar uma informação adequada as consequências deletérias ou inadequadas que, neste caso, sobrevieram à intervenção cirúrgica do clinico, porquanto, refere, se tivesse tomado conhecimento de que as consequências seriam as que neste momento se confronta não teria dado o seu assentimento. Não é difícil prognosticar a atitude da demandante – ou, já agora, de qualquer pessoa – se um clinico antes de uma intervenção lhe dissesse que, previsivelmente, uma intervenção lhe iria determinar as consequências que hoje ostenta. Até poderia tomar a decisão de vir a autorizar a intervenção, mas, certamente, não tomaria essa atitude sem antes se informar com outros clínicos e verificar se a informação estava de acordo com o que a ciência médica do momento achava a mais adequada. A demandante não alega que, de acordo com a ciência médica actual, era previsível que a informação tivesse que conter a informação de que uma intervenção para extirpação da massa tumoral que apresentava poderia, previsivelmente, acarretar as consequências e as sequelas de que neste momento é portadora. Nem tal perspectiva do dever de informar foi abordado. Do que se depreende, da factualidade adquirida, a informação prestada pelo clinico foi a adequada para uma tomada de decisão (informada e esclarecida) para que a demandante autorizasse, livre e conscientemente, a intervenção cirúrgica que se mostrava, de acordo com a ciência médico-cirúrgica, a forma e o meio adequando a debelar a situação patológica que exibia. A informação, segundo se depreende, foi a ajustada e aquela que cientificamente era ajustada a permitir uma tomada de cisão arrimada à realidade mórbida que apresentava. Outra informação, mormente aquela que a demandante faz impender sobre o clinico, sobre os efeitos perversos e malformados que advieram em momento posterior à intervenção cirúrgica relevará de factores que não atinam com o dever de informar para o tratamento da doença e autorização para intervenção cirúrgica, mas de factores estranhos a uma informação ajustada, mais concretamente com eventuais implicações de uma deficiente e malformada técnica médico-cirúrgica de que o clinico demandado se fez portador na intervenção a que procedeu. Adrega, pois, de, para efeitos do correcto dever de informar, destrinçar dois momentos, vista a alegação da demandante. Um primeiro, em que a informação prestada pelo clinico foi a ajustada à tomada de decisão da demandante de permitir a intervenção cirúrgica, como meio eficaz e adequado a debelar o mal de que padecia – segundo a ciência médica actual – e, um segundo, em que a demandante parece querer colocar e estender o dever do clinico, em que o dever de informar não é exigível, por as consequências advenientes da intervenção, no caso concreto, não serem as previsivelmente cognoscíveis pela ciência médico-cirúrgica e de acordo com a prática clinica mais ajustada. Para o primeiro momento era exigível ao clinico prestar informação adequada e correctamente arrimada para uma tomada de decisão arrimada, para o momento em que a demandante coloca o dever de informar não era exigível que o clinico prestasse a informação que a demandante estima dever ser indispensável para que pudesse tomar uma decisão, dado que, neste caso, as consequências patenteadas pela demandante não seriam aquelas que, de acordo com a técnica médico-cirúrgica conhecida, era cognoscível e previsível para a intervenção a realizar. Do nosso ponto de vista a questão deve ser assumida pelo lado de um eventual erro médico, dado que as consequências que a demandante patenteia não eram as que previsivelmente adviriam de uma correcta a arrimada intervenção cirúrgica – como lhe foi profusamente informado (segundo a factualidade adquirida) – mas de uma intervenção cirúrgica em que a arte e perícia médicas faliram ou estiveram arredadas da capacidade e cognoscibilidade científica do clinico interveniente. Falece, por aquilo que se deixou argumentado, este fundamento do recurso. II.B.2. – Existência/verificação de um erro médico. II.B.2.a) – Responsabilidade médica – contratual ou extracontratual. Ainda que excrescente aos temas eleitos para apreciação do recurso – pela recorrente – assume-se dever coonestar a justificação pela qualificação jurídica fornecida pelo tribunal recorrido à relação jurídica estabelecida entre a recorrente e os demandados e donde emerge a obrigação e indemnizar. Justificou, o tribunal recorrido, a divergência com o recorte jurídico-legal da responsabilização pelos danos sofridos pela demandante – a demandante tinha baseado a responsabilidade pela indemnização na responsabilidade civil extracontratual – com a sequente argumentação (sic): “(…) Da factualidade dada como provada, é inequívoco, ter o 2.º R. assumido a obrigação de prestar cuidados médicos de saúde de tratamento cirúrgico da endometriose à Autora, em troca do pagamento de um montante pecuniário previamente acordado. Sobre esta factualidade não existe discussão, pelo menos entre A. e 2.º R., pois que aquela procurou este para lhe resolver a questão de saúde que padecia. Por força desse contrato, o 2.º R. obrigou-se a prestar à A. a assistência médica necessária, empregando os conhecimentos e técnicas disponíveis, respeitando as leges artis, tendo em vista tratar (curar) a doente e diminuir-lhe o sofrimento. Gera-se, assim, um contrato consensual (artigo 219.º do Código Civil), marcadamente pessoal (o elemento decisivo é a confiança que o médico inspira ao doente e que tem como correlativo o princípio de livre escolha), de execução continuada, em regra, sinalagmático e oneroso e sempre susceptível de rescisão. Hoje é, aliás, tendencialmente pacífica aquela posição doutrinária no sentido de que, estando em causa actos médicos contratados entre o médico e o paciente, pelos quais se prestam serviços clínicos, como ocorre no caso em análise, existe um contrato de prestação de serviços a que se aplicam as regras próprias do contrato de mandato, previstas nos artigos 1157.º e seguintes, por força dos artigos 1154.º e 1156.º, todos do Código Civil, já que a lei não regula a contratação da prestação de serviços médicos de modo especial. Esta primeira decisão – de se estar perante uma relação contratual – tem significado e consequências. Pois como se sabe, em matéria de responsabilidade civil contratual não está o paciente, se for Autor, dispensado de alegar a factualidade integrante da acção ou omissão médica, mas já terá facilitada a matéria relativa à culpa, posto que, como se sabe, neste domínio existe o princípio da inversão do ónus da prova da culpa consagrado, entre nós, no artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil, segundo o qual «incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento não provem de culpa sua». O ónus da prova da diligência recairá sobre o médico, caso o lesado faça prova da existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso. De facto, a responsabilidade contratual distingue-se da responsabilidade por actos ilícitos, sobretudo, pela natureza do acto ilícito que, naquela constitui a violação de uma obrigação, e pelas regras de distribuição do ónus da prova já que ali é imposta ao devedor a prova de que agiu sem culpa no incumprimento ou no cumprimento defeituoso da obrigação (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil), enquanto na responsabilidade aquiliana cabe a lesado a prova da culpa do lesante (artigo 487.º, n.º 1, do Código Civil), sendo a culpa, em qualquer caso, apurada com base num critério abstracto, pela “diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”. Deve considerar-se como responsabilidade contratual a violação de deveres impostos pela boa fé em consequência da constituição de uma relação jurídica derivada de entrada em negociações contratuais. A responsabilidade contratual em sentido restrito emerge da falta de cumprimento culposo da obrigação por parte do devedor, supondo o incumprimento do contrato que este seja um contrato válido, apto a produzir os correspondentes efeitos. Assim incumbe ao devedor a prova da falta de culpa pela verificação de danos resultantes do incumprimento. Segundo a alegação da A., os serviços médicos, prestados pelo 2.º R., em termos de “consequências” do acto cirúrgico e consequentemente causou danos de que pretende ser ressarcida.” – cfr. fls. A posição adoptada pelo tribunal recorrido, foi adoptada em aresto por nós subscrito na revista 209/06.3TVPRT.P1.S1, relatado pelo Conselheiro Gregório de Jesus, que a respeito da qualificação/enquadramento da responsabilização médica e hospitalar ponderou (sic): “No que toca à responsabilidade civil médica não prevê a nossa lei casos de responsabilidade objectiva ou de responsabilidade por factos lícitos danosos, tão só admite a responsabilidade contratual e a extracontratual ou aquiliana [[7]/[8]]. (…) estas duas espécies de responsabilidade civil (extracontratual e contratual) podem coexistir, pois que o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito. Existe um único dano, produzido por único facto, só que este, além de constituir violação de uma obrigação contratual, é também lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física [[9]/[10]]. Todavia, não se pode ignorar que hoje no comum das situações, como refere João Álvaro Dias, “a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso. Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se numa situação de proponente contratual. Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a tal proposta. Tal factualidade é, por si só, bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos aqui em face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene para a celebração de tal acordo de vontades “ [[11]]. Na mesma conformidade, Miguel Teixeira de Sousa escreve que a responsabilidade civil médica “é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais (…). Em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art. 483º, nº 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)” [[12]]. Distingue-se a responsabilidade civil em contratual, quando provém da “falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei”, e extracontratual, também designada de delitual ou aquiliana, quando resulta da “violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem” [[13]]. O Código Civil (são deste diploma legal todos os preceitos por diante mencionados sem alguma menção de origem) sistematiza estas duas formas de responsabilidade em lugares distintos. A responsabilidade contratual nos arts. 798º e segs., no capítulo atinente ao cumprimento e não cumprimento das obrigações, e a responsabilidade extracontratual nos arts. 483º e segs. no capítulo das fontes das obrigações. [[14] ]Porque versando um problema que lhes é comum, às duas formas de responsabilidade interessam ainda os arts. 562º e segs. que fixam o regime próprio da obrigação de indemnizar. São os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: o facto (controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Em qualquer dos casos, a responsabilidade civil assenta na culpa, a qual é apreciada in abstracto, ou seja, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, conforme preceitua o nº 2 do art. 487º, aplicável à responsabilidade contratual ex vi nº 2 do art. 799º [[15]]. Todavia, existe interesse na destrinça das duas espécies que reside essencialmente no facto de a tutela contratual ser a que, em regra, mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória face às regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (arts. 799º nº 1 e 487º nº 1) [[16]], o que será objecto de análise no ponto seguinte. Dúvidas não existem de que entre o autor, por um lado, e os médicos réus, pelo outro, foi ajustado um contrato. Não existindo essa relação contratual, a responsabilidade pelo acto médico, em princípio, assume exclusivamente natureza extracontratual [[17]]. (…) O regime de responsabilidade civil em hospitais públicos ou em clínicas ou consultórios privados é diverso [[18]] (…). Como se anota no acórdão recorrido, a questão da prestação de cuidados médicos em instituições de saúde privadas, continua a ser objecto de debate jurisprudencial e doutrinal. [[19]] Inexiste na lei portuguesa um regime unitário no que respeita à responsabilidade dos médicos quando os serviços são por si prestados em ambiente institucional privado, pois que depende do que forem os factos de cada caso concreto, sendo diferentes as modalidades contratuais em “função de combinações entre as diferentes qualificações das partes no contrato e das suas relações, directas ou indirectas, com a participação em actos médicos”. Neste contexto, igualmente se oferece como inquestionável que o autor nenhuma celebração contratual teve com o réu hospital, fosse do que se entende por “contrato total” ou por “contrato dividido” [[20]]. (…) Isto é, nenhuma relação contratual estabelecida por este hospital quer com o autor quer com a seguradora vem recortada, nem se mostra que as intervenções cirúrgicas realizadas sejam execução de prestação correspondente a acto médico contratualmente celebrado entre ele e os réus médicos, nem sequer estes se perfilam como seus comissários [[21]] (…). Deste modo, se o estabelecimento hospitalar não se comprometeu à prestação de cuidados de saúde propriamente ditos, não faz sentido responsabilizá-lo por um comportamento culposo dos médicos (arts. 500º, nºs 1 e 2 e 800º, nº 1, a contrario). A sua responsabilidade confina-se aos actos praticados pelo seu pessoal envolvido na execução do contrato de internamento e dos actos conexos com as intervenções a que se comprometeu[22]. Já, no referente aos réus médicos, a situação acima desenhada configura-se como susceptível da sua responsabilização civil suportada numa relação contratual triangular que se ajusta a um contrato a favor de terceiro, ou seja, como um “contrato misto em que a componente prestação de serviço (médico) é a mais relevante” [[23]]. Desnecessários se mostram, por isso, quaisquer elementos para avaliar e decidir de modo afirmativo se fora ou não celebrado um acordo directo entre o autor e os réus médicos, ou se fora ou não celebrado um acordo entre ele e o réu Hospital, lacuna que serviu de esteio à Relação para enveredar e concluir pela responsabilidade civil médica extracontratual. Nesta conformidade, tendo-se o autor apresentado aos réus médicos a coberto de um contrato de seguro celebrado pela sua entidade patronal e tendo eles actuado no âmbito de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos - previsto no art. 1154º do Código Civil [[24]] – que mantinham com a seguradora, o conteúdo da relação estabelecida entre o autor e os médicos está impressivamente contratualizado, e, contrariamente à conclusão a que chegou o Tribunal da Relação, estamos no domínio da responsabilidade civil contratual.” Numa perspectiva mais arrojada, pela novidade que encerra relativamente ao esmaecimento das raias entre responsabilidade civil contratual, escreveu-se no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Junho de 2015, relatado pela Conselheira Maria Clara Sottomayor, “A distinção entre a responsabilidade civil contratual e a extracontratual, relacionada com a dicotomia direito relativo/direito absoluto, tem vindo a ser questionada pela doutrina, que salienta as analogias e aproximações crescentes entre as duas modalidades de responsabilidade civil e o surgimento de tipos de responsabilidade civil autónomos em relação a esta dualidade tradicional como a responsabilidade pela confiança. Admite-se o cúmulo das duas responsabilidades, podendo o lesado escolher a que mais lhe convém ou aproveitar de cada regime as soluções mais vantajosas para os seus interesses [[25]]. Em regra, como a responsabilidade contratual é mais favorável ao lesado, a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual , solução mais ajustada aos interesses do lesado e a mais conforme ao princípio geral da autonomia privada [][26]. Foi esta a solução defendida pelo acórdão deste Supremo Tribunal, de 22-09-2011, relatado pelo Conselheiro Bettencourt de Faria, processo n.º 674/2001.PL.S1, onde se afirma que “estando em causa direitos absolutos, como de integridade básica, põe-se a questão de saber se não concorrem na negligência médica a responsabilidade contratual e a extracontratual. (…) [e]xiste, por isso, um concurso aparente de normas, que deve ser resolvido pela prevalência da responsabilidade contratual, por ser a mais adequada para a defesa dos interesses do lesado.” [[27]] Deve notar-se também que a compensação por danos não patrimoniais não é exclusiva da responsabilidade extracontratual, e tem sido aceite também na responsabilidade contratual [[28]], com base na violação dos deveres de proteção da esfera pessoal da outra parte. As instâncias enquadraram juridicamente o caso na responsabilidade civil contratual. Este regime é o mais favorável ao lesado, dada a presunção de culpa que onera o devedor (art. 799.º, n.º 1 do CC), devendo aplicar-se, assim, o princípio da consunção. Entre Autora e Réu estabeleceu-se uma relação contratual, caraterizada como contrato de prestação de serviço, tipificado no artigo 1154º do CC, que o define como «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição». O resultado a que alude esta norma não é a cura em si, mas os cuidados de saúde [[29]]. No âmbito de tal contrato, não recai sobre o médico o dever de promover a cura do doente com quem contrata ou a obrigação de lhe restituir a saúde, mas somente a obrigação de empreender todos os meios adequados à obtenção de tal resultado. Sobre o médico recai, pois, a obrigação de prestar ao doente os melhores cuidados, com vista a restituir-lhe a saúde e a suavizar o seu sofrimento. A obrigação contratual do médico constitui um exemplo clássico de uma obrigação de meios, na medida em que este não está vinculado à obtenção de determinado resultado. «Se por resultado se entendesse o efeito final, último, pretendido como consequência dos meios empregados, o contrato entre médicos e doente não podia acolher-se naquela qualificação, porquanto aquele não assegura, como se disse, um resultado; assume apenas uma obrigação de meios. Mas por resultado do seu trabalho, podem entender-se os próprios meios empregados, as tarefas executadas, com o intuito de (mas não necessariamente) alcançar certo efeito final, meios esses e tarefas essas que, em si mesmas, são já e imediatamente um certo resultado do trabalho manual ou intelectual despendido» [[30]]. O conceito de “resultado” no contrato de prestação de serviços que se estabelece entre o médico e o doente, enquanto obrigação de meios, como deve ser em regra qualificada, corresponde ao esforço na acção diligente do diagnóstico e do tratamento, e não à cura. A obrigação de meios (ou de pura diligência, como também é conhecida) existe quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza” [[31]]. Considerando-se que a obrigação do médico é uma obrigação de meios, sobre este recai o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, se se quiser eximir à sua responsabilidade, nos termos do art. 799.º, n.º 1 do CC, que consagra uma presunção de culpa do devedor [[32]/[33]]. Não sobram dúvidas de que entre a demandante e o demandado, BB, se firmou uma relação contratual mediante a qual este se comprometia, pela qualificação que lhe está conferida, de profissional clinico, se comprometia, mediante retribuição, a pagar pela demandante, ou por outra entidade para quem ela tivesse transferido essa responsabilidade (de pagamento), a tratar (cuidar) uma doença que lhe havia sido diagnosticada e que deveria ser debelada. Não resulta que provado que o profissional clinico contratado se tivesse comprometido a um resultado especifico – v. g. a proceder a um cura absoluta e definitiva do morbo a tratar – pelo que dever-se-á qualificar a obrigação assumida como uma obrigação de meios, como infra se explicita de forma mais detalhada e aprofundada. A relação assumida entre a demandante e os demandados deverão ser qualificadas com sendo uma relação em que se exalça a vontade privada dos indivíduos engolfados, a saber uma relação contratual típica. II.B.2.b) – Obrigações de meios e obrigação de resultado. A doutrina e a jurisprudência vem afirmando, nemine discrepante, que a relação obrigacional que se gera numa relação (contratual) assiumida entre umpaciente e um médico se reconduz a uma típica obrigação de meios. Afirmou-o o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 15-10-2009, relatado pelo Conselheiro Álvaro Rodrigues, onde se escreveu (sic): “Na relação médico-paciente e a propósito da prestação do médico, no exercício do acto médico, é usual distinguir-se aquela em obrigação de meios, de resultado e de garantia (Ver. Almeida Costa in Direito das Obrigações, 1968. pág.432). Das duas primeiras, a de meios é aquela em que o devedor se compromete a desenvolver prudentemente e com diligência certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza ( v.g. a obrigação do médico de empregar a sua ciência na cura da doença); a obrigação de resultado verifica-se quando se conclui da lei ou do negócio jurídico que o devedor está adstrito à obtenção de um certo efeito útil (v. g. a obrigação da entrega de uma quantia em dinheiro, ou uma obrigação de prestação de facto: um exemplo: a do mestre de obras em levantar um edifício de acordo com determinada planta). Acrescente-se, então, que, na obrigação de meios, o devedor fica exonerado no caso de o cumprimento demandar uma exigência maior que a que prometeu e que quer a impossibilidade subjectiva como a objectiva não imputáveis ao devedor o exonerem; e que, na obrigação de resultado, só a impossibilidade objectiva e não culposa libera o devedor Aceitamos, sem qualquer esforço que, na actividade médica como de resto em tantas outras situações da vida possa ou não haver um contrato prévio (mesmo sem forma escrita, ou, puramente, consensual) e que, por isso o acto médico seja exercido sob responsabilidade de natureza contratual ou extra contratual, institutos muito semelhantes, porém, com subsunção a algumas normas específicas, como é sabido Responsabilidade civil contratual e extracontratual são, então, duas modalidades que, em regra preenchem integralmente o campo da responsabilidade civil do médico no exercício da profissão, sendo irrelevante que o médico tenha a seu cargo uma obrigação de meios ou de resultado. A responsabilidade pelo risco (artigo 483º nº2 do CC) não tem cabimento nesta sede pela razão de que (...só existe obrigação de indemnizar independente de culpa nos casos especificados na lei) como reza o segmento da norma atrás referido; e lei não existe em tal sentido Em qualquer caso, não deverá perder-se de vista que a actividade médica é uma actividade demasiado técnica, demasiado relevante na sociedade (e dela estruturante), para que nela se não atente e se valorize essa especificidade. Apesar disso não se vislumbram razões para. que a efectivação da responsabilidade civil do médico não decorra ao abrigo de todas as regras normativas inerentes aos dois regimes de responsabilidade civil; contratual ou extra contratual, nomeadamente, no concernente à presunção de culpa do médico na contratual e ao acolhimento integral das regras do ónus da prova (artigos 342, 343 e 344 do CCivil (neste sentido, a posição adoptada pelo Conselheiro Álvaro Rodrigues - in Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos Revista Direito e Justiça 2000 ano XIV, nº3, pág. 183 182 e 138), Entende-se assim que se aplica à responsabilidade contratual médica a presunção de culpa contida no artigo 799º nº 1 do CC, dado não existirem nessa situação razões específicas que justifiquem o afastamento dessa regra. E isto é assim, quer se entenda estar-se perante uma obrigação de meios ou de resultado Mas, não se deverá olvidar que a presunção se refere, tão só à culpa. A prova da existência do vínculo contratual e da verificação dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso do médico competirá sempre ao Autor. O Prof. M Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1976 pág. 203) afirma que... quanto à existência de danos e à sua extensão e quanto ao nexo de causalidade, entre o ilícito contratual e os mesmos danos está claro que a prova recai sempre sobre o autor. Porém, o ilustre professor de Coimbra acrescenta que, perante a dificuldade natural da prova de um facto o mais que pode acontecer é fazer uso da máxima “iis quae dificcillioris sunt probationis, levioris probationes admittuntur”; o que significa: para maiores dificuldades na prova, menos ezigência na sua aceitação (ob. cit. pág 202). Ademais, alterar nessas circunstâncias, as regras de funcionamento dos institutos em causa, (responsabilidade civil contratual e extracontratual) representaria um dano considerável na confiança e na certeza do direito e mesmo a ofensa ao princípio da igualdade de armas. E teria ainda outra consequência; é que, como referem Luís A Guerreiro e Anabela Salvado (in Responsabilidade civil dos médicos - Revista da F M L Série III, vol.5 nº 5) o agravamento sistemático da responsabilidade civil dos médicos pode trazer efeitos perversos, ou seja o chamado exercício defensivo da medicina. Aliás será o caso concreto que, analisado em toda a sua envolvência, individualidade e singularidade, há-de ditar se, naquele caso se está perante uma relação contratual ou extra contratual, se a obrigação é de meios ou de resultado, se houve ou não incumprimento, se a actividade médica podia ou não ter sido classificada de perigosa. Adiante-se que a configurar-se a existência de um contrato ele pode ser meramente consensual, não exigindo forma escrita, designadamente. A realização de qualquer acto médico, mediante pagamento de um preço, integra, por norma, um contrato de prestação de serviços médicos -artigo 1154.° do Código Civil. Embora a execução de um contrato de prestação de serviços médicos possa implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado,(de acordo com a natureza e objectivo do acto médico), o certo é que, na esmagadora maioria dos casos, o que se pretende é que o acto médico seja bem sucedido e alcance o objectivo pretendido (seja o de simples mitigar a dor ou a intervenção cirúrgica mais complexa.). Com efeito, deve atentar-se, sempre ao caso concreto e todas as suas envolvências, pois só desse modo se conseguirá definir e rotular juridicamente a situação em presença. No caso de intervenções cirúrgicas. em que o estado da ciência não permite sequer, a cura mas atenuar o sofrimento do doente, é evidente que ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, mas se o acto médico não comporta, no estado actual da ciência, senão urna ínfima margem de risco, não podemos considerar que apenas está vinculado a actuar segundo as leges artis; ai, até por razões de justiça distributiva, haverá de considerar que assumiu um compromisso que implica a obtenção de um resultado A prestação do médico, tanto na responsabilidade contratual, como na extra contratual, sendo a obrigação de meios ou de resultado) projecta-se, sempre no cumprimento diligente da legis artis e com a prova desse cumprimento se exonerará (com a ressalva de o se comprometimento poder ter sido mais abrangente, o que terá de se alcançar do dito contrato.) . Ao paciente incumbirá a prova do contrato (tratando-se de responsabilidade contratual) e dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso das leges artis e da devida diligência por banda do médico. Não se olvidando em todo o caso, os deveres atrás referidos de colaboração e de informação, donde haverá de ter resultado o consentimento esclarecido do paciente. Recorde-se que a justiça e o direito do caso concreto vem já do direito romano e encontrava-se espelhado no brocardo alemão "Am Anfang war der Fall". No mesmo eito se conservou a jurisprudência deste Supremo Tribunal de justiça, no já citado acórdão de 2 de Junho de 2015, relatado pela Conselheira Maria Clara Sottomayor, em que se asseverou (sic): “No domínio da responsabilidade contratual, a menos que a obrigação assumida pelo médico seja precisamente de resultado, não seja a falta de obtenção do resultado – cura ou melhoramento do estado de saúde – pretendido que significa incumprimento e determina o recurso à presunção de culpa acima aludida. O que legitima o recurso a essa presunção é, antes, a prática de algum erro no que respeita aos meios e técnicas de tratamento adotados, o qual se verifica quando ocorra uma falha profissional, não intencional, no que se refere aos instrumentos ou técnicas de intervenção utilizados, por não se encontrarem de acordo com as leges artis. Ou seja, considerando-se a obrigação do médico uma obrigação de meios, sobre ele recai o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, e portanto sem culpa, se se quiser eximir à sua responsabilidade decorrente de incumprimento, o que pressupõe que se demonstre que, previamente ao funcionamento da presunção, tenha havido e ficado provado o incumprimento. A responsabilidade no âmbito do contrato de prestação de serviços depende da prova duma situação que traduza incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação. E, tratando-se, como é o caso, de prestação de serviços médicos, a responsabilidade médica, por negligência, por violação das leges artis, tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir: a violação do dever de cuidado pelo médico traduz-se precisamente na preterição das leges artis em matéria de execução da sua intervenção. Na sua maioria, os contratos de prestação de serviços médicos integram, como se referiu, uma obrigação de meios, não implicando, assim, a não obtenção do resultado final visado com os tratamentos e intervenções, a inadimplência contratual, cabendo por isso ao paciente provar a falta de diligência do médico, a falta de utilização de meios adequados de harmonia com as leges artis, o defeito do cumprimento, ou que o médico não praticou todos os atos normalmente considerados necessários para alcançar a finalidade desejada: é essa falta que integra erro médico e constitui incumprimento ou cumprimento defeituoso. E só depois dessa prova funcionará, no domínio da responsabilidade contratual, a dita presunção de culpa.” [[34]] II.B.3. – Erro Médico. Percorrendo a argumentação da decisão em sindicância no concernente ao eventual erro do médico que procedeu à intervenção cirúrgica na demandante, aí se escreveu (sic): “Nesta sede a questão debatida na doutrina e jurisprudência – quer em sede de mera responsabilidade civil, quer em sede de responsabilidade criminal – importa ter presente, o cumprimento das leges artis que acarretam a verificação ou não de erro médico. Para Germano de Sousa, erro médico é «a conduta profissional inadequada resultante de utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorrectas que se revelam lesivas para a saúde ou vida do doente» J. GERMANO DE SOUSA, Negligência e Erro Médico, Boletim da Ordem dos Advogados, nº 6, pg 12-14. E aqui temos, quer o erro de diagnóstico, quer o erro de execução. Com efeito pode ocorrer um erro de percepção ou cognitivo (ausência de conhecimentos técnico-científicos, da errada interpretação da sintomatologia do paciente ou de dados laboratoriais, imagiológicos ou clínicos, ou um erro de diagnóstico, de profilaxia ou de terapêutica) ou um erro de execução (como o manejo indevido de instrumentos na realização do acto clínico ou cirúrgico ou troca de produtos farmacológicos no tratamento do paciente). O ónus da prova da diligência recairá sobre o médico, aqui 2.º R., caso a A. lesada faça prova da existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso. Neste sentido, ponderando o entendimento jurisprudencial plasmado nos Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2016, relatado pela Conselheira Maria da Graça Trigo, in dgsi.pt, e Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2015, relatado pela Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, in dgsi.pt, aos quais se adere na integra, sempre se poderá afirmar que recai sobre 1.º R. e 2.º R. a responsabilidade pelas consequências decorrentes da cirurgia levada a cabo nas instalações do 1.º pelo 2.º. As citadas decisões do Supremo Tribunal de Justiça ponderaram semelhantes situações aos dos autos, tendo as mesmas procedido à opção pela aplicação do regime jurídico decorrente da responsabilidade contratual. “Verifica-se, afinal, uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, como ocorre frequentemente nas hipóteses de responsabilidade civil por actos médicos. A orientação da jurisprudência deste Supremo Tribunal (acórdãos de 1 de Outubro de 2015, proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, de 2 de Junho de 2015, proc. 1263/06.3TVPRT.P1.S1, de 11 de Junho de 2013, proc. nº 544/10.6TBSTS.P1.S1, de 15 de Dezembro de 2011, proc. nº 209/06.3TVPRT.P1.S1, de 15 de Setembro de 2011, proc. nº 674/2001.P1.S1, de 17 de Dezembro de 2009, proc. 544/09.9YFLSB, todos em www.dgsi.pt) é no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado.”, primeiro Acórdão citado. Em semelhante situação, decidiu-se no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22-10-2015, relatado pelo Desembargador Vaz Gomes, in dgsi.pt, aponta-se em igual sentido, da definição da causa pela regime da responsabilidade contratual. As citadas decisões dos tribunais superiores, apontam igualmente no sentido da responsabilização quer do médico quer da clínica/hospital. “A responsabilidade civil do hospital pela conduta dos auxiliares (médicos, enfermeiros, e outros) regula-se pelo regime do art. 800º, nº 1, do CC, eixo central da responsabilidade por facto de outrem no domínio contratual. Conforme dispõe esta norma “O devedor é responsável perante o credor pelos actos (…) das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor”. Deve salientar-se que, diversamente do que se passa no regime do art. 500º, do CC, que se aplica à responsabilidade extracontratual, no art. 800º do CC se abrange tanto a conduta de auxiliares dependentes como a conduta de auxiliares independentes (como desenvolvido pela relatora deste acórdão em Responsabilidade civil delitual por facto de terceiro, 2009, págs. 242 e segs.). Quer isto dizer que, no caso concreto, é indiferente determinar qual o vínculo existente entre o R. BB Hospital e cada um dos médicos envolvidos na operação – cirurgião e anestesista – porque, quer se trate de contratos de trabalho quer se trate de contratos de outra natureza, o regime de responsabilidade do R. BB Hospital é o mesmo. Nas palavras de André Dias Pereira, “no contrato de internamento com escolha de médico (contrato médico adicional), a clínica também assume a responsabilidade por todos os danos ocorridos, incluindo a assistência médica e os danos causados pelo médico escolhido” (cit., pág. 688). A responsabilização do R. BB Hospital funda-se na razão de ser do regime do art. 800º, nº 1, do CC, a qual, segundo Vaz Serra (“Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos responsáveis legais ou dos substitutos”, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 72, pág. 270) é a seguinte: “O devedor que se aproveite de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares alargaram-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles”., primeira decisão citada. Por fim, e sobre a questão de saber se estamos perante uma obrigação de meios ou de resultado – do 2.º R. – seguindo de perto e que aqui se transcreve extracto decisão do Tribunal da Relação do Porto de 05-03-2013, relatado pelo Des. Henrique Araújo, in dgsi.pt: “ (…) as obrigações do médico são consideradas, em regra, meras obrigações de meios, só excepcionalmente assumindo obrigações de resultado. No entanto, existem algumas áreas da medicina em que a menor influência de factores não controlados pelo profissional e o avançado grau de especialização técnica fazem reconduzir a obrigação do médico a uma obrigação de resultado, por ser quase nula a margem de incerteza deste. Pense-se, por exemplo, nas intervenções médico-dentárias com fins predominantemente estéticos, tais como colocação de próteses, restauração de dentes e até a realização de implantes. Aí, o resultado surge sempre como substrato imprescindível da obrigação. Há quem ainda distinga obrigações fragmentárias de resultado e obrigações fragmentárias de actividade a partir da individualização da álea inerente a cada passo da intervenção médica. (…)” Ora, nos autos, como resulta da factualidade provada, estamos perante um caso em que a obrigação assumida pelo 2.º R. é de meios. Deste modo, está encontrado o requisito da ilicitude do comportamento da R.. de facto, não logram os RR. fazer prova que a falta de cumprimento ou mesmo que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua (ie, imputando o resultado ao comportamento da A.) pelo que nos termos supra citado se presumo culposa a actuação da 2.ª R., médica – artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil. Em face da factualidade dada como provada, não há dúvidas que o 2.º R. com a sua actuação, execução da operação cirúrgica, afectou o corpo da A.. “No domínio do Direito Civil, (…), o erro médico releva, na medida em que tenha sido condição causal (a apurar mediante as conhecidas teorias da imputação objectiva do resultado à conduta do agente, designadamente a doutrina da causalidade adequada e de incremento de risco mitigada pela doutrina do âmbito da protecção da norma, esta última essencialmente para os casos do ilícito por omissão e imputáveis ao agente a título de negligência). O erro, como se disse, pressupõe desconhecimento da realidade (ignorantia) ou a deformação da imagem da realidade na consciência do agente (erro intelectual ou de percepção) ou, então, pode consistir numa aberratio ictus ou erro na execução, vulgarmente conhecido como acidente ou falha humana. Exemplos de tais erros são os seccionamentos ou perfurações vasculares ou de nervos durante a cirurgia, o rompimento de uma artéria friável, apesar de todos os cuidados do cirurgião, lesões de nervos que podem ocasionar perda definitiva da fala, queimaduras, engano no instrumento utilizado ou no produto químico aplicado, por confusão de rótulos, como há bem pouco tempo aconteceu conforme foi amplamente noticiado, com consequências dramáticas.” Álvaro da Cunha Rodrigues, Responsabilidade civil por erro médico, in Data Venia, revista Digital, Ano 0, n.º 1. Pergunta-se: nos autos existe factualidade provada da qual resulte ter o 2.º R. agido de acordo com as regras da arte médica? “ (…) por tais regras de arte médica se entende «um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. Em caso de não se ter em conta uma determinada situação individual, a designação apropriada será a de leges artis medicinae, não se vendo qualquer adequação na utilização da locução latina «ad hoc». Trata-se, enfim, na expressão anglo-americana tão em voga nos tempos hodiernos, das regras do know-how sobre o tratamento médico que devem estar ao alcance de qualquer clínico no âmbito da sua actividade profissional Regras de índole não exclusivamente técnico-científica, mas também deontológicas ou de ética profissional, pois não se vislumbra qualquer razão, antes pelo contrário, para a exclusão destas da arte médica». (…) A observância das leges artis exclui, em princípio, o chamado erro médico (ärztliche Kunstfehler), designadamente na sua modalidade, porventura a mais relevante, de “erro de tratamento” (Behandlungsfehler) definido por Schwalm como «o tratamento médico não indicado ou realizado de modo não conforme à técnica curativa adequada a uma determinada finalidade terapêutica, segundo os conhecimento da ciência médica, tendo em conta as circunstâncias cognoscíveis do caso concreto no momento do tratamento; e a omissão do tratamento curativo correcto, que se afigure como objectivamente indicado à obtenção de uma determinada finalidade terapêutica – segundo os conhecimentos da ciência médica – nas circunstâncias do caso concreto e no momento necessário, desde que seja possível a realização do omitido”, autor citado. Daí, segundo este autor, “erro médico que não tenha sido fruto de violação de dever de cuidado, e não obstante toda a diligência possível do médico, tenha ocorrido, não pode ser penal ou civilmente relevante, por inexistência dos respectivos pressupostos de responsabilidade” Os factos demonstram ter o 2.º R. ter empregue todo o saber da sua arte ao realizar o acto médico, de execução da cirurgia à endometriose que a A. padecia.” (…) Ainda que assim não fosse, como supra ficou dito, a A. deu o seu consentimento, pelo que se encontra excluída a ilicitude – artigo 340.º do Código Civil.” [[36]] Adentrando-nos na temática submetida a apreciação – erro médico – talvez não se mostre despiciendo, delinear, ou recortar o conceito com a iluminação de um dos médicos, há pouco desaparecido, e que exerceu durante um longo período o cargo de Presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, o Professor João Lobo Antunes. Numa palestra proferida na Faculdade de Medicina de Lisboa, a propósito do Erro em Medicina, perorava este insigne Professor que (sic): “(…) Diga-se desde já que há vários tipos de erros ou de condutas reprováveis, de natureza diversa e de variável repercussão - quanto a mim há erros que afectam a saúde do doente, e há outros que comprometem a saúde da profissão. Comecemos por estes. Ao longo destes anos os desvios que mais frequentemente tenho observado dizem respeito às normas de conduta mais elementares, simples quebras de regras de cortesia, ou dos princípios que regulam o comportamento em sociedades civilizadas e entre pessoas de bem. Outras ofensas, menos flagrantes, mas igualmente censuráveis, tocam as relações de ordem profissional. A mais frequente é a recusa ou simples indiferença em prestar informações clínicas adequadas a colegas. Este é talvez um dos nossos hábitos mais perniciosos, que atingem também as relações entre serviços de um mesmo hospital e entre instituições hospitalares, sob a forma por exemplo de recusar relatórios médicos, exames radiográficos, lâminas patológicas, etc. Chega-se ao paradoxo indignante de ceder exames se o doente se desloca a um centro estrangeira mas recusá-lo se por cá ficam. (…) Muito mais comuns são os erros na praxis médica, e são destes que surgem as consequências mais tangíveis para os doentes. No estudo já clássico de Harvard sobre os erros praticados na clínica hospitalar, a questão foi avaliada a partir da análise dos acontecimentos adversos que ocorrem durante a hospitalização. Definiram-se acontecimentos adversos como os causadores de lesão derivada, pelo menos em parte, de intervenção médica que produziu um defeito apreciável, prolongou a hospitalização ou afectou o estado funcional do doente na altura da alta. Excluíram-se os actos deliberados, obviamente de natureza criminosa. Alguns dos acontecimentos adversos não são evitáveis - por exemplo é impossível prevenir totalmente infecções operatórias, apesar de todas as precauções que se tomem, como não são previsíveis reacções anafiláticas que ocorrem durante um primeiro encontro com um medicamento. Outros acontecimentos são, no entanto, preveníveis e aqui fala-se em erro por negligência. A maior parte destes são erros por omissão - por exemplo não obter história correcta que indicaria a alergia a medicamentos, ou esquecer um teste diagnóstico fundamental. Mais raros são erros de comissão, por exemplo usar material não esterilizado no acto cirúrgico. De um modo geral, a definição de erro por negligência implica o desvio em relação a padrões de actuação, os quais nem sempre são claramente definidos, e que podem variar de hospital para hospital, ou de região para região. Assim por exemplo, pode considerar-se num hospital, que a radioculografia é exame essencial para o diagnóstico de hérnia discal (quanto a mim não o é), enquanto que noutro é a Tomografia Axial Computorizada o teste de escolha. Já não há discussão quanto ao facto de ser uma radiografia do tórax indispensável antes da operação de um doente adulto com anestesia geral. Questão mais complexa é a de quem, e como se definem padrões de prática clínica, sobretudo entre nós por, a meu ver, ser muito desigual o nível da qualidade da medicina que se pratica, havendo bolsas de qualidade ao lado de outras de pura indigência. Repare-se que os padrões são não só técnicos mas económicos, sociais e éticos. Em Inglaterra por exemplo o princípio que reina é basicamente The most for the most, and not everything for a few. (…) Por vezes para se definir se foi ou não cometido erro negligente recorre-se à opinião de peritos. Esta é também uma questão delicada pois a onda de processos particularmente nos Estados Unidos levou à criação de uma espécie de prostituta moderna o perito cuja actividade única é dar testemunho em processos de malpractice. É hoje geralmente aceite que um perito deve ser alguém que se mantém em actividade na área sobre a qual é chamado a pronunciar-se e que está bem familiarizado com os padrões locais de prática médica. É também fundamental que o ganho económico derivado da actividade pericial seja claramente explicitado. Kassirer et al. levaram a cabo uma análise muito curiosa sobre os mecanismos do erro diagnóstico partindo da análise dos processos cognitivos que constituem o raciocínio clínico. A colheita da história clínica e o exame físico activam uma hipótese diagnóstica, e este é o primeiro passo. O segundo, implica desenvolver uma representação cognitiva do problema, ou seja encontrar um contexto - uma doença, um síndrome - em que o problema pode ser resolvido. Passa-se depois a uma recolha de dados ou informações que permitam desenvolver a hipótese inicial ou gerar outras tendo em contra frequências, probabilidades, relações causais, por vezes, axiomas da prática clínica. Finalmente procura-se verificar a correcção do diagnóstico, com alto grau de probabilidade, comprovando assim que as relações casuais são apropriadas, que todas as manifestações clínicas são explicadas pelo diagnóstico final e outras são razoavelmente excluídas. Ao processo lógico junta-se muitas vezes um componente de convicção, menos objectivo, resultado provavelmente da experiência acumulada. Num processo desta complexidade os erros cognitivos podem surgir a vários níveis - por exemplo como resultado de uma génese defeituosa de hipóteses, por as manifestações da doença serem atípicas, por a doença estar a evoluir rapidamente, ou ser extremamente rara. Poderá ainda resultar de uma formulação deficiente, ou de falha na colheita de dados. Na prática, os erros decorrem mais frequentemente do conhecimento inadequado ou seja da ignorância, defeitos do processamento de dados, ou ambos*. Sir Wiltiam Osler dizia: é espantoso como é possível praticar medicina com tão pouca leitura, mas já não espanta que ela seja de tão má qualidade. É claro que os erros de procedimento surgem também por vezes por falta de diligência, persistência, simples indolência ou preguiça. Outros erros, mais subtis são erros de ego, em que o empenho do clínico em brilhar, em mostrar erudição, atraiçoa a trama lógica que elaborou. Se o erro é de consequências menores passa muitas vezes despercebido ao doente. Na maioria dos casos de erro de maior gravidade o doente não apresenta queixa porque não deu por ele, ou porque minimiza as suas consequências, ou porque gosta do seu médico ou, quem sabe, porque não aprecia particularmente os advogados. Outras formas de detectar erros na prática médica são o uso de auditorias aos hospitais, já que hoje a sofisticação das técnicas de informática permite facilmente descobrir desvios de qualidade através da análise de custos, tempo de internamento, perfis profissionais, etc. Por outro lado é indispensável que os vários serviços hospitalares conduzam conferências de morbilidade e mortalidade, se querem na realidade tomar pulso àquilo que fazem e detectar o que necessita de correcção. Mas quantos departamentos nacionais o praticam com isenção de espírito e largueza de vistas? Por não existirem dados referentes à realidade nacional, volto a citar o estudo de Harvard. Acontecimentos adversos ocorreram em 3,6% das hospitalizações e resultaram em morte do doente em 13,6% dos casos. Foram mais frequentes em situações cirúrgicas, mas curiosamente erros por negligência sucederam mais raramente em relação às especialidades cirúrgicas de mais alto risco como a Neurocirurgia, a Cirurgia Vascular, ou a Cirurgia Cardio-torácica. A negligência ocorreu sobretudo no diagnóstico (75%), foi mais frequentemente por omissão (77%) e feriu sobretudo os cuidados urgentes (70%). Isto é provavelmente devido sobretudo à inexperiência dos médicos envolvidos nesses departamentos. Foi ainda evidente que os doentes idosos eram mais frequentemente vítimas de cuidados menos atentos. Não creio que a realidade nacional seja substancialmente diferente. Ao aperceber-se do erro cometido a primeira reacção, eu diria que instintiva, é a de minimizar ou encobrir. Dois outros comportamentos incorrectos, que estão muitas vezes na origem de acções disciplinares ou legais, podem ainda ocorrer: a fuga e o abandono do doente, e a alteração do processo clínico. Quanto ao primeiro pouco há a comentar. No que se refere ao segundo, quero apenas dizer que qualquer advogado ou juiz com um mínimo de experiência nestas matérias facilmente reconhece notas ou observações clínicas introduzidas a posteriori, e que a certificação desse tipo de procedimento liquida qualquer defesa por mais convincente ou fundamentada que seja. Pelo contrário, nestas circunstâncias as únicas atitudes correctas, e que muitas vezes atenuam consequências médicas, económicas ou legais do erro são a revelação do sucedido, a preservação de uma boa relação com o doente e familiares, e a elaboração de um impecável processo clínico.” [[37]] Erro médico pode ser recortado, na sua conceptualização, como a realização de um acto adstrito e da competência funcional de um profissional de medicina que se revelou descaracterizado e desadequado aos fins que a ciência e a arte da medicina injungiam para a debelação/minoração de um padecimento previamente diagnosticado e reconhecido pela cognoscibilidade da ciência médica. Afastando os casos e situações em que a acção ou omissão de um profissional da medicina pode ser qualificada como intencional ou dolosa, o erro médico soe revelar-se numa tríptica perspectiva comportamental: imprudência, imperícia e negligência. Em traços muito pouco esforçados e rarefeitos, dir-se-ia que a negligência, consistiria em levar a efeito uma acção, ou abster-se de realização de uma conduta positiva, que, segundo as regras, metodologias e conhecimento da ciência médica (relativamente ao caso) deveriam ter sido encetadas, processadas e concretizadas na situação concretamente reconhecida e avaliada. Já no caso de uma acção ou omissão imprudente, o autor leva a efeito, ou omite, uma acção que, tendo presente a avaliação do caso concreto, não deveria, segundo a arte da medicina, ser levado a cabo ou omitido. No que concerne à perícia, ou ausência de um adestramento e manuseamento das técnicas da ciência médica, ajustadas e adequadas à situação diagnosticada e conhecida, a acção, ou omissão, de um profissional de medicina deve ser aferido pela inconveniente e inapropriada administração de meios de diagnóstico para avaliação do estado de morbidez do paciente e/ou, malgrado uma correcta avaliação e reconhecimento da doença uma intervenção desviada, descompassada e desconchavada do correcto e reconhecido meio para fazer cessar ou minorar o estado de doença do sujeito passivo. Naturalmente que, tratando-se a medicina de uma ciência tendencialmente exacta – ao que é possível constatar cada vez menos exacta – o erro médico não pode ser confundido com a imprevisibilidade – que pode resultar da acção médica, da deficiência ou incorrecta extensão da doença, da impossibilidade de terem sido detectadas elementos desconhecidos e não abrangidos, por exemplo pelos exames de diagnóstico, etc. – ou com factores estranhos e/ou desconhecidos da ciência da medicina. O erro médico resulta quase sempre de uma inadequado e incorrecto exercício, manuseamento de conhecimentos, teórico-práticos, da ciência médica e de que, naturalmente, resulta, na maior parte das situações em que se precipita, num dano para o corpo, para a saúde e para a vida das pessoas que o repercutem na sua esfera vivencial. A demandante esgrime a sua argumentação – cfr. conclusões sob os itens - na existência de um erro – que poderíamos qualificar de grosseiro – da acção do profissional clinico aquando procedeu à intervenção cirúrgica para remover a massa tumoral que havia sido confirmada pelos exames de diagnóstico realizados. Mais exactamente, refere a demandante que a intervenção cirúrgica se terá saldado por uma acção deficiente e invasiva de zonas (nervosas) que não estavam afectadas e não deveriam ter sido abrangidas pela intervenção o que resultou, ao tê-lo sido, numa lesão não querida e esperada para a intervenção que lhe tinha sido augurada. A acção do clinico não foi realizada em harmonia com a melhor arte da medicina, por não ser previsível – como aliás resultaria da informação que lhe foi prestada em momento anterior à decisão de realizar a intervenção cirúrgica – que viessem a sobrevir as situações irreversíveis de que se encontra a padecer. A demandante incide a sua convicção de que terá existido um erro médico quando no item 13º e 14º afirma que (sic): “(…) a autora que ficou nesse estado de total disfunção ano-rectal e genitourinária, definitivo e irreversível, porque durante a cirurgia ocorreu uma desenervação, isto é, um corte dos nervos responsáveis pelo funcionamento do intestino e da bexiga, encontrando tal alegação suporte em diversos documentos juntos aos autos, designadamente na videodefecografia (ManopH), na declaração médica do Senhor Dr. LL, no atestado médico de incapacidade multiuso (ARS …), no atestado médico do Senhor Dr. UU, na declaração médica VV, no relatório da perícia médico-legal datado de 7 de Março de 2014, no relatório da perícia médico-legal, datado de 9 de Julho de 2015 e na carta de recomendação subscrita pelo 2.º réu em papel timbrado da 1.ª ré, dirigida ao Dr. JJ, que o tribunal a quo valorou e que se encontra refletido nos factos provados nas alíneas 113), 114), 115), 116), 118), 119), 120), 123), 124), 128), 129) e 188), o que se extrai da facticidade não provada no item 14º que deu como não provado – em matéria (alegada para exculpação e exclusão da responsabilidade do clinico) - que “(…)"O comprometimento de nervos, já se registava em momento anterior a esta, o que foi constatado durante a sua realização (como resulta do Relatório Clínico do 2º R.), sendo por conseguinte uma consequência da própria doença da A. " e que "No acto cirúrgico praticado pelo 2.º R. não foram afectados os nervos, nem cortados os nervos responsáveis pelo funcionamento do intestino e da bexiga". Seja-nos permitido, num exercício de lógica formal, procurar demonstrar a forma como se constrói uma inferência tendo como premissas as proposições afirmativas, ou quase afirmativas, que se surpreendem no texto supra transcrito. A demandante opera na sua argumentação uma sorte de operação lógico-abdutiva, em que a premissa maior se poderá representar pela seguinte proposição/premissa: “se ocorre um estado de total disfunção ano-rectal e genitourinária, definitivo e irreversível, é porque ocorreu uma desenervação na intervenção cirúrgica a que a demandante foi submetida”; e a premissa menor pela sequente proposição: “ocorreu estado de total disfunção ano-rectal e genitourinária, definitivo e irreversível”; logo “ocorreu uma situação de desenervação na intervenção cirúrgica a que a demandante foi submetida.” [[38]] Transferindo a operação lógica ilustrada, para o campo do direito, em concreto, dir-se-á que para que se pudesse concluir, com um nível de consistência e de subsistência verídica para além de qualquer dúvida, pela existência de um grau de causação entre a acção (objectiva) do clinico, induzida na intervenção cirúrgica que dirigiu, e as deficiências físico-orgânicas apresentadas no período pós-operatório, teria que se demonstrar uma conexão (causal) entre essa acção cirúrgica (desempenhada pelo profissional clinico) e as patologias que a demandante patenteia. Em nosso juízo, como se procurará demonstrar infra, essa causação ou nexo causal, cevado por elementos e circunstâncias complementares adjacentes e inextrincáveis da intervenção cirúrgica, apontam para um nexo de iniludível causalidade. Importará, para apresentação/justificação da obrigação de indemnizar, com base na responsabilidade civil, por isonomia aplicável à responsabilidade decorrente da responsabilidade contratual (artigo 799.º, n.º 2 do Código Civil), tecer algumas considerações. Para o efeito socorremo-nos o que, adrede, escrevemos num outro aresto. A obrigação de indemnizar constitui-se como um modo de reparação de prejuízos ou danos que uma acção externa à esfera individual de um sujeito provoca no ambiente existente no momento em que a acção foi desencadeada. Na génese da obrigação de indemnizar induzida, ou fundada, na produção de um evento que altere/modifique ou transforme a realidade existente na esfera (patrimonial ou imaterial) de uma pessoa [[39]] está a ideia de procurar restabelecer o bem jurídico violado no estado em que se encontrava antes da consumação do evento danoso, e, caso o restabelecimento não seja possível in natura, deverá a reparação ser realizada economicamente, na medida da diferença entre o estado anterior aquele em que o bem jurídico violado ou lesado se encontrava se não tivesse ocorrido a produção do resultado danoso – teoria da diferença (artigo 562.º e 566.º do Código Civil). A vulneração de um direito ou de uma disposição legal protectora de interesses alheios, exige um conjunto de pressupostos de que a lei faz depender a obrigação de indemnizar - cfr. Artigo 483.º do Código Civil. A doutrina, como dá nota o Professor Pessoa Jorge [[40]], não se mostra unânime quanto à elencagem dos pressupostos de que a lei faz depender a ocorrência ou a verificação da responsabilidade civil por factos ou actos ilícitos. Pensamos, no entanto, colher melhor sufrágio a solução adoptada por Antunes Varela [[41]], de que para que se mostrem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil se torna necessário: a) a ocorrência de um facto; b) que esse facto deve ser considerado ilícito; c) que o facto ilícito possa ser imputado a um determinado sujeito; d) que por virtude desse facto ilícito praticado por uma pessoa ocorra um dano, patrimonial ou não patrimonial, na esfera jurídica de outrem; e) e que exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano. [[42]] Supõe e importa, portanto, a responsabilidade civil, a imposição de medidas reparadoras destinadas a compensar um dano, moral ou patrimonial, ocasionados pela prática por parte de alguém de um uma conduta, ilícita e culposa, susceptível de violar direitos alheios ou disposição legal destinada a proteger interesses de terceiros. A perfeição da instituto da responsabilidade pressupõe a prática de um facto humano e material – comissão por via de acção ou omissão -; que esse facto se revele e planteie como contrário à ordem jurídica; que se exponha como reprovável e censurável, no plano imputação subjectiva a um determinado sujeito; que esse facto seja imputável ao um sujeito determinado; que o resultado produzido por esse facto produza uma modificação, material-objectiva ou moral-subjectiva, na esfera jurídica do sujeito que sofre os efeitos da acção ou da omissão, e que seja possível imputar o facto ao resultado danoso ocasionado. Para que se configure o dever de indemnizar, com base na responsabilidade civil, deverá, portanto, ser possível conexionar a conduta do agente ao dano provocado por essa conduta, ou seja, deve existir um nexo de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e a conduta do agente. Em regra a responsabilidade civil e a obrigação de reparar o dano surge da conduta ilícita do agente que lhe deu causa, ou seja de uma conduta violadora de normas gerais e de direitos de outrem. [[43]] O primeiro dos pressupostos de que a lei faz derivar a obrigação de indemnizar, com base na responsabilidade civil, é a realização de um facto - acção ou conduta humana, que se traduz na modificação de um estado de coisas existente antes da acção – por alguém que está adstrito, por imposição legal ou convencional, a observar determinadas regras de comportamento, e a fazê-lo utilizando cuidados e regras técnicas e de perícia correspondentes á tarefa a realizar. Trata-se, assim, de um acto humano, comissivo ou omissivo - a comissão vem a ser a prática de um acto que se deveria efectivar, e a omissão, a não-observância de um dever de agir ou da prática de certo acto que deveria realizar-se -, de natureza voluntária e que deve, ou pode ser, objectivamente imputável, a uma determinada pessoa. Esse facto, pela sua feição ilícita, ou lícita [[44]], deve ter actuado e agido por forma a causar na esfera do lesado um prejuízo. Esta lesão de um direito de outrem ou de um interesse particular protegido por disposição legal, quando resultante da acção de um agente lesante, desencadeia a obrigação de indemnizar, a cargo do autor da lesão. O facto do agente, consubstanciado num comportamento ou numa conduta humana, deve assumir um carácter voluntário e poder ser dominável e controlável pela vontade. Revestindo o facto do agente uma atitude positiva denomina-se acção, sendo que revestindo uma atitude negativa se constitui numa omissão. Neste caso, a não prática do facto ou acto que o agente, por imposição de um dever jurídico, estava compelido a praticar, desencadeia a obrigação e indemnizar com base na responsabilidade civil. A culpa pode revestir as modalidades de dolo, ou mera culpa, ou negligência, que são, nas situações de responsabilidade civil, as mais frequentes. A par da negligência, consubstanciada na omissão de um dever de cuidado, que uma atenta consideração da situação poderia e deveria ter prevenido, ocorrem a imprudência ou imperícia, sendo que a primeira ocorrerá quando o agente age por precipitação, por falta de previdência, de atenção no cumprimento de determinado acto, e a imperícia quando o agente acredita estar apto e possuir conhecimentos suficientes pratica acto para o qual não está preparado por falta de conhecimento aptidão capacidade e competência. [[45]] A culpa (subjectiva, também designada “culpa penal”) revela-se e traduz-se numa imputação psicológica feita a uma pessoa e conleva um juízo de censura ético-jurídica dirigida a uma conduta humana portadora, ou a que se agrega, uma vontade livremente determinada e liberta de condicionalismos perturbadores da assumpção de um sentido querido e orientado da vontade individual. O juízo de culpabilidade geradora de responsabilidade civil assume uma feição objectiva, por referida a um padrão normativo eleito pela ordem jurídica, como mediador ou referência de imputação valorativa ético-normativa. A censura opera-se, para este fim, pela referência prudencial ou avisada que todo o individuo deve assumir, na gestão da sua vivência societária, onde o feixe de riscos e de situações passiveis de gerar perigos é constrangedor da assumpção de uma atitude de cautela, ponderação e razoabilidade. A previsão ou prognose de situações potenciadoras de um risco ou de factores exógenos que se perfilam como geradores de perigo devem ser cautelarmente avaliados e prefigurados, intelectivamente, de modo a que o agente assuma perante essa situação concreta um comportamento conducente a evitar a violação de direitos pessoais ou patrimoniais ou regras legais impostas para evitar a consumação de danos na esfera de outrem. [[46]] À míngua de o juiz poder, numa reconstrução/avaliação a posteriori dos actos submetidos à sua decisão, colocar-se na representação das coisas que sucederam durante o desenvolvimento do próprio comportamento “enjuiciado” na posição do agente, deverá, na avaliação do comportamento, eventualmente culposo ou violador de uma norma legal utilizar um critério comparativo abstracto, qual seja o comportamento de um “homem recto e seguro dos seus actos”, do “homem razoável e prudente”, em definitivo do “bom pai de família” (“sem que isso impeça a atenção às circunstâncias de cada caso enjuizado, que em muito casos incidem poderosamente na valoração da conduta”). [[47]] Na avaliação de um comportamento violador de regras ou comandos legais deverá ter-se como padrão aferidor um nível de diligência, prudência ou cautela que um indivíduo razoável, ponderado e prevenido colocado numa situação similar assumiria. [[48]] Para além da culpa, torna-se necessário que o facto possa/deva ser imputável ao agente e que possa/deva ser estabelecido um nexo causal, ou a relação de causalidade (adequada), entre o facto e o dano ocorrido. A relação de causalidade constitui-se, assim, como o elo de ligação entre o acto lesivo do agente e o dano ou prejuízo sofrido pela vítima. O conceito de nexo causal, ou relação de causalidade decorre de leis naturais. Apura-se pela conexão objectiva e subjectiva que é possível estabelecer entre a conduta do agente e o dano. A verificação da existência de nexo de causalidade é matéria que escapa à sindicância deste Supremo Tribunal de Justiça, [[53]/[54]] se perspectivada na sua feição naturalística. [[55]/[56]] Na verdade, se abordada no plano meramente naturalístico, o nexo de causalidade inclui matéria de direito probatório cuja sindicância escapa a este Supremo Tribunal, na afirmação do que vem disposto nos artigos 774.º e 682.º, n.º 2, ambos do Código Processo Civil. A ausência de prova quanto a este pressuposto e não a indagação de se “(…) o facto concreto apurado seja, em abstracto e em geral, apropriado para provar o dano”, como se escreveu no douto acórdão de 01-07-2003, não cabe dentro dos poderes de reapreciação deste Supremo Tribunal, pelo ao repristiná-lo neste sede importa o seu desmerecimento. Numa inovadora e aliciante perspectiva da categoria jurídica do nexo de causalidade – crismado de nexo de imputação ou nexo de ilicitude – Ana Mafalda Castanheira Neves, refere que o lesado tem de provar “a existência de uma tessitura que, uma vez desenhada, justifique a assimilação do seu âmbito de relevância pelo âmbito de relevância do sistema. Isto é, tem de provar a edificação de uma esfera de risco e a existência de um evento lesivo. O juízo acerca da pertença deste aquela esfera traduzir-se-á numa dimensão normativa da realização judicativo-decisória do direito que convocará o sentido último da pessoalidade e um ideia de risco lido à luz daquela. Pelo que, em última instância, ficamos libertos das dificuldades que tradicionalmente agrilhoam o decidente e o levam a procurar soluções que vão desde as presunções de causalidade, o alívio do ónus da prova dos caos de dolo e situações especialmente perigosas, as presunções prima facie, a regra id quo plerumque accidit, a regra res ipsa loquitur, o alívio das exigências em termos de probabilidades, o recurso a categorias como a perda de chance.” [[57]] Seja numa perspectiva de assimilação/assumpção do nexo de causalidade como imputação objectiva [[58]], defendida pela autora citada, seja numa perspectiva de nexo de causalidade assumida como dimensão normativa-positival, de causalidade adequada, [[59]/[60]] o estabelecimento do nexo de causalidade fundamentadora da responsabilidade, por banda do responsável de uma conduta que, por ser ético-axiologicamente censurável e reprovável, radica na imputação, objectiva e subjectiva, da acção viária do sujeito obrigado ao pagamento de uma indemnização. Vale dizer, que, neste caso, o nexo que tem de ser averiguado, determinado e estabelecido é entre uma conduta que está legalmente vedada ao sujeito que assume a responsabilidade de conduzir um veículo na via pública e a concreta produção de um evento lesivo, que não fora a desatenção e o sentido violador das normas de cuidado, prudência e sentido de diligência, não teria acaecido. [[61]] Numa perspectiva jurídico-processual, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Fevereiro de 2009, relatado pelo Conselheiro Santos Bernardino, “(…) tem sido entendido pela jurisprudência que o estabelecimento do nexo de causalidade entre a conduta ilícita e o dano consubstancia matéria de facto da competência das instâncias e, portanto, insindicável pelo STJ. Como se decidiu em recente acórdão deste Tribunal, “o nexo de causalidade apenas pode ser apreciado pelo Supremo na sua vertente jurídica – a questão da adequação, ou normalidade, desse nexo –”, logo se acrescentando que “o nexo material de causalidade, como questão respeitante aos factos que ainda é, escapa à sindicância do STJ. Por isso, afirmando as instâncias a falta de prova do nexo material, nada poderá este STJ fazer para modificar tal asserção” - Ac. de 15.11.2007, desta 2.ª Secção, no Proc. 07B2998, disponível em www.dgsi.pt. Cfr. ainda os Acs. de 23.01.2007, no Proc. 06A4417, também disponível em www.dgsi.pt, e de 20.06.2000, na revista n.º 1703/00, da 6ª Secção. (…) Na verdade, não estando provado, numa perspectiva naturalística ou fáctica, o nexo de causalidade, não há sequer suporte factual para avançar para a apreciação no plano jurídico, isto é, para a apreciação da adequação causal (entre o facto e o dano). Dizendo de outro modo: não estando provada, no plano fáctico, a existência do nexo de causalidade, não pode obviamente afirmar-se, no plano jurídico, que o facto é causa adequada do dano.” Não basta que ocorra um dano, é preciso que esta lesão passe a existir a partir do acto ou acção de um agente que tenha tido a intenção de lesar um direito ou interesse, pessoal ou real/patrimonial de outrem, para que surja o dever de reparação. É imprescindível o estabelecimento da entre o acto omissivo ou comissivo do agente e o dano de tal forma que o acto do agente seja considerado como causa do dano. Para que alguém fique constituído na obrigação de indemnizar é, pois, mister que tenha preenchido o condicionalismo, objectivo e subjectivo, que se deixou apontado. A jurisprudência dominante vai no sentido de que a imputação de um facto a um agente deve conter-se num plano de objectividade e, em nosso juízo, é a que deve ser assumida e acatada, por ser a que melhor se adequa, em nosso juízo, à doutrina da imputação (objectiva) [[63]/[64]] de uma conduta a um agente. [[65]] Para os casos em que a causa de um evento danoso se apresente como único, “o problema causal consistirá, fundamentalmente, em dilucidar se a conduta ou actividade do sujeito, eventualmente, responsável teve a suficiente entidade (idoneidade) para que o resultado danoso tivesse sido provocado, assim como decidir se todos os danos que foram consequência desse facto poderiam ser-lhe imputados. (…) Quer dizer, se de um determinado facto causal se seguem consequências lesivas, que por circunstâncias extraordinárias alcançam uma intensidade desproporcionada em relação com as que normalmente derivariam de factos idênticos ou análogos.” [[66]] A factualidade adquirida permite consolidar as sequentes premissas para razoamento: a) a demandante foi acompanhada por clínicos que lhe diagnosticaram uma endometriose; b) a demandante foi submetida a uma intervenção cirúrgica, nas instalações da demandada “HOSPITAL CC”, dirigida pelo clínico, BB; c) a intervenção cirúrgica envolve a bexiga e/ou os ureteres; d) três semanas após a intervenção cirúrgicas a demandante apresentava sinais de retenção urinária; e) um médico urologista confirmou que “foi operada em 19 de Junho de 2008por endometriose pélvica. Daí resultou um quadro de bexiga neurogénica atónica, pelo que passou a frequentar a consulta de urologia”; f) na sequência de uma videografia e manometria ano-rectal foi observado, na demandante, “uma cinética defecatória caracterizada por ausência de relaxamento do puborectal com esforço defecatório, não tendo ocorrido qualquer esvaziamento da ampola rectal.”; g) de um exame de endoscopia relevou-se “que a pressão anal de repouso é normal, pobre contracção voluntária, reflexos de distensão rectal normais e hipossensibilidade rectal muito acentuada”; g) auscultação médica refere “que as sequelas de que a Autora padece se devem à circunstância de os nervos localizados terem sido severamente danificados durante a cirurgia a que foi submetida no dia 19 de Junho de 2008”. O nexo causal que deve ser atendido para efeitos de imputação (objectiva) da conduta do agente da intervenção cirúrgica deverá configurar-se na sequente dimensão representativa: a autora não padecia ou evidenciava sinais, antes da intervenção cirúrgica, de possuir uma bexiga neurogénica atónica e teria, um desempenho defecatório normal (ou, pelo menos, não foi dado como provado que padecesse de alguns destes males fisiológicos); as deficiências evidenciadas sobrevieram à cirurgia a que foi submetida; a cirurgia a que foi submetida implicava, ou envolvia a bexiga (item 41); não vem provado que a autora se tenha submetido a outra intervenção cirúrgica. Com esta factualidade temos que admitir que a premissa menor que supra se indicou – “ocorreu intervenção cirúrgica em que se verificou uma desenervação” – parece ter-se convertido de provável a convincente, tais são os adjuvantes circunstanciais comprovados que alentam esta convicção. Na verdade, o conjunto de factores e elementos probatórios comprovados, e que se deixaram assinalados nos parágrafos antecedentes, conduzem à convicção de que o estado patológico em que a demandante se encontra só poderá ter ocorrido de uma intervenção não permitida pela arte médica na zona nervosa estimuladora das funções de micção e defecação. Conduz esta conclusão a um juízo de que ocorreu um nexo causal entre a intervenção e as sequelas que a demandante apresenta e outro sim uma actividade (comissiva) culposa traduzida numa imperícia na arte da técnica cirúrgica. Têm-se por judiciosas e passíveis de ser transplantadas para a situação em apreço, as considerações feitas no acórdão já citado de 28 de Janeiro de 2016, relatado pela Conselheira Maria da Graça Trigo, num caso em que ocorreram sequelas por virtude de uma intervenção cirúrgica ao nível da ortopedia de que resultaram sequelas não, naturalmente, previsíveis na sua antevisão normal. A demandante pede o ressarcimento por danos não patrimoniais que se mostram evidenciados nos itens 129) a 142). Constitui jurisprudência firme e doutrina inconcussa [[67]] que apenas são passiveis de ressarcimento ou compensação os aleijões morais ou espirituais-sentimentais que pela sua relevância, pertinência e repercussão na vida do lesado se tornem, espelhem e projectem num estado de ânimo depreciativo de um viver salutar e conforme a um padrão de vida ausente de compressão e angústia intelectual. A gravidade das lesões físico-psíquicas originadas pela deficiente acção do clínico demandado, resultam demonstradas pelos efeitos que a situação determinou na vivência pessoal e social da lesada. III. – DECISÃO. Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1ª secção cível, do Supremo Tribunal de Justiça, em: - Conceder parcialmente a revista e, julgando a acção parcialmente provada, condenar os demandados a pagar à demandante a quantia de cento e vinte mil euros (€ 120.000). - Condenar recorrentes e recorridos nas custas, na proporção do vencimento.
Lisboa, 7 de Março de 2017
Gabriel Catarino – Relator
Roque Nogueira
Alexandre Reis
_______________________________________________________ [28] A doutrina portuguesa tem defendido a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais causados ao credor pelo incumprimento, em sede de responsabilidade contratual. Cf. Almeida Costa, Direitos das Obrigações, ob. cit., p. 552; Vaz Serra, «Reparação do dano não patrimonial», BMJ, n.º 83, p. 102 e ss; Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 385-387; Pinto Monteiro, Cláusula penal e indemnização, Coimbra, 1990, pp. 31-34, nota 77. [29] Álvaro Rodrigues, «Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos», Direito e Justiça, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Volume XIV, 2000, Tomo 3, p. 182. |