Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3566/06.8TBVFX.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: CONTRATO PROMESSA
TRADIÇÃO DO IMÓVEL
COMPROPRIEDADE
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
MATÉRIA DE FACTO FIXADA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES /CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 830.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 665.º, 679.º.
LEI N.º 41/2013: - ARTIGO 7.º, N.º1.
Sumário :
1. As ilações – presunções judiciais ou naturais - baseadas nas regras da experiência e formuladas pelas instâncias no desenvolvimento e integração da matéria de facto atomisticamente apurada em julgamento não pode colidir ou contrariar os factos apurados em consequência da livre apreciação das provas efectivamente produzidas em audiência - não podendo, com base em meras considerações de normalidade, plausibilidade ou probabilidade alcançar-se um resultado probatório incompatível com a realidade factual emergente dos meios probatórios produzidos em audiência contraditória e concretamente valorados pelo juiz no momento em que fixou a matéria de facto decorrente da livre apreciação das provas.

2. Assim, fixada na acção matéria de facto de que resulta que a propriedade de certo imóvel pertence , em compropriedade, a dois sócios de sociedade irregular, e não ao património social desta, tendo um deles intervindo em contrato promessa de compra e venda desse bem em nome próprio, não pode na sentença decidir-se em frontal contradição com tais pressupostos de facto.

3. Só é possível decretar-se a execução específica da promessa quando os detentores de um poder de disposição sobre o imóvel prometido vender se possam ter por juridicamente vinculados à celebração do negócio prometido.

4. Age em abuso de direito, violando manifestamente os limites decorrentes da boa fé, o comproprietário do imóvel prometido vender, com tradição da coisa a favor do promitente comprador, que – não tendo embora subscrito o contrato promessa - se manteve durante prolongadíssimo período temporal ( cerca de 25 anos) em situação de inércia, gerando com esse comportamento a fundada confiança de que se conformara com o uso da fracção pela A.- apenas deduzindo, em sede reconvencional, pedido indemnizatório pelos pretensos danos que decorreriam da utilização do prédio durante todo esse período temporal.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA intentou acção de condenação, com processo comum, na forma ordinária, contra os réus, sócios de sociedade irregular, BB e CC, pedindo que se declare transmitida a seu favor a fracção autónoma referente ao R/C Dt° do prédio sito na Estrada ..., n.° …, ..., ..., descrito na 2.a Conservatória do Registo Predial de … sob o n.° ... e, em consequência, seja inscrito em nome da A., cancelando-se o registo dos anteriores proprietários; ou, subsidiariamente, declarar-se a aquisição originária do direito de propriedade daquele imóvel pela A. por via da usucapião e, consequentemente, serem os RR. condenados a reconhecer tal direito de propriedade.
   Para tanto, alegou que, os RR. constituíram uma sociedade irregular em 24.09.1981, a qual já vinha a laborar desde 1979 e tinha por objecto social a construção e reparação de edifícios, cabendo a gerência aos dois sócios, mas sendo exercida de facto e em regra pelo sócio CC, que a representava.

    Na qualidade de representante legal da sociedade em apreço, o R. CC celebrou com a A. um contrato promessa de compra e venda da referida fracção autónoma, sendo o preço da venda de 925.000$00, tendo a A. entregue naquela data a quantia de 600.000$00, a título de sinal e princípio de pagamento, sendo o remanescente a pagar na data da escritura. O sócio BB recusou-se, porém, a estar presente no acto e a assinar a escritura de compra e venda.

    Assim, desde a data da celebração do contrato promessa de compra e venda que a A. é possuidora daquela fracção autónoma, em consequência da tradição da mesma, feita com entrega da chave de entrada e uso e habitação da mesma.

    Os RR. foram notificados, mediante notificação judicial avulsa, realizada  em 06.01.2006 no Tribunal Judicial de Pombal, para marcarem a escritura de compra e venda, o que não aconteceu, não obstante a disponibilidade do R. CC.

    O R. BB contestou, por impugnação e por excepção, alegando que a acção carece de causa de pedir e que é nela parte ilegítima.

Na verdade, os proprietários da dita fracção seriam os RR., e não a sociedade irregular, que apenas foi constituída para a construção e reparação do edifício e se extinguiu logo após a construção, não sendo proprietária do mesmo

   O R. BB é comproprietário da fracção em apreço e não a prometeu vender à A., nem recebeu qualquer preço ou sinal, e não quis tal negócio, tanto mais que não assinou o contrato promessa.

    Não aceitou a ocupação que a A. fez da fracção, sendo que o uso da mesma foi feito em nome dos RR., e não em nome próprio, mantendo-se a A. na fracção ilegitimamente e sem qualquer contrapartida económica, sendo a sua posse precária, a que acresce que, desde 1997, a A. já  não reside no imóvel.

   O  R. BB   impugnou  ainda   o  valor  da  causa   e   deduziu reconvenção contra a A., peticionando a condenação desta a: reconhecê-lo como  legítimo dono  e  comproprietário  da fracção  em apreço; a indemnizá-lo na quantia de € 39.000,00, inerente à sua quota-parte a título de rendas; a restituir a fracção e a indemnizá-lo, em quantia a determinar na fase de liquidação, quanto aos prejuízos decorrentes da deterioração do imóvel.

   Para tanto, alegou que é comproprietário da fracção em apreço nos autos,

estando  a A.  a ocupar  abusiva  e  legitimamente  a mesma , sem qualquer

contrapartida económica e contra a vontade do R, o que lhe causou prejuízos , que se consubstanciam na impossibilidade de rentabilizar o espaço, nomeadamente dando-a de arrendamento.

   O R. CC também contestou, alegando que a petição inicial é inepta por falta de causa de pedir quanto ao primeiro pedido formulado pela A., sendo certo que a A. não tinha a posse da fracção, mas antes a mera detenção da mesma, pelo que não pode ocorrer a usucapião.


   Foi a A. que não quis celebrar de imediato a escritura de compra e venda, sendo mera detentora - e não possuidora - da fracção e , por isso,  somente titular de um direito de crédito, pelo que, para ser declarada proprietária, teria de pagar o remanescente do preço, devidamente actualizado, a que acresceria o valor do uso do prédio durante 25 anos, deduzidos os frutos civis pelo pagamento efectuado a título de sinal.

    A A. apresentou resposta às contestações dos réus BB, pugnando pela improcedência das excepções e do pedido reconvencional; e requereu a intervenção principal provocada dos cônjuges dos RR., como associados destes, que foi admitida, sendo que as intervenientes não apresentaram contestação.

Foi proferido despacho saneador, julgando  improcedentes as invocadas excepções de  ineptidão da petição inicial e de  ilegitimidade.

   Prosseguiram os autos para julgamento, sendo proferida sentença a julgar a acção procedente e em consequência:
a) A declarar transferida para a A. AA a fracção autónoma com a letra … correspondente ao rés do chão direito do prédio sito na estrada ..., n.° …, ..., ..., descrita na CRP sob o n.° ... e sob o artigo matricial urbano ... da freguesia de ..., produzindo esta sentença os efeitos de declaração negocial de venda dos réus BB e CC, tal como se tivesse sido outorgada no âmbito da escritura pública.

b) A determinar o cancelamento do registo de propriedade a favor dos RR. BB e CC, da fracçãoautónoma com a letra A correspondente ao rés do chão direito do prédio sito na estrada ..., n.° …, ..., ..., descrita na CRP sob o n.° ... e sob o artigo matricial urbano ... da freguesia de ...;

c) A determinar a inscrição no registo predial da propriedade em nome da A. AA da fracção autónoma com a letra A correspondente ao rés do chão direito do prédio sito na estrada ..., n.°.., ..., ..., descrita na CRP sob o n.° ... e sob o artigo matricial urbano ... da freguesia de ....
d) A determinar que a A. AA pague aos RR. BB e CC a quantia de € 1.621,09 (mil seiscentos e vinte e um euros e nove cêntimos), a título de remanescente do preço, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, desde a data do registo da acção, que ocorreu em 05.08.2008.
e) A julgar a reconvenção deduzida pelo R. BB
improcedente porque não provada, e, em consequência absolvendo a A./reconvinda AA do peticionado contra si pelo R./reconvinte

2. Inconformado, apelou o réu BB, tendo a Relação começado por fixar a matéria de facto nos seguintes termos:

1. O lote de terreno em causa - Lote 17 - foi comprado pelos réus e por escritura pública celebrada em 13.09.1979 no segundo cartório notarial de Vila Nova de Ourém (Alínea A) dos Factos Assentes);

2. Do registo predial constam os réus como sendo os proprietários da fracção A
-  rés do chão direito - do prédio sito na estrada ..., n.° .., ...,
..., descrita na CRP sob o n.° ... e sob o artigo matricial
urbano ... da freguesia de ... (Alínea B) dos Factos Assentes);

3. Desde 1979, data em que adquiriram o lote 17 no ..., em ..., que BB e CC acordaram entre si contribuir ambos com bens e serviços para o desenvolvimento em comum da actividade de construção civil visando daí retirar proveitos e reparti-los entre si (Resposta ao artigo 1.° da Base Instrutória);

4. Os réus constituíram uma sociedade para desenvolver a actividade descrita em 3. (Resposta ao artigo 15.° da Base instrutória);
5.    Na prossecução da sua actividade a sociedade constituída por ambos
construiu um prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, designado
por lote 17 descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira,
sob o n.° ... (Resposta ao artigo 2.° da Base Instrutória);

6. Os réus deram de empreitada àquela sociedade a construção do dito edifício que logo se extinguiu com a conclusão das obras (Resposta ao artigo 16.° da Base Instrutória).

7. A gerência da sociedade, da responsabilidade dos dois sócios, foi exercida pelo sócio CC quando o sócio BB esteve ausente em França, onde desenvolveu a actividade de pintor, com o esclarecimento de que este esteve ausente em França durante a construção do prédio referido em 5., pelo menos urna vez durante cerca cie um mês (Resposta ao artigo 3.° da Base Instrutória);

8. Quando o réu BB esteve ausente em França, referido em 7., o réu CC representava a sociedade, nomeadamente assinando osdocumentos necessários ao desenvolvimento da sua actividade (Resposta ao artigo 4.° da Base Instrutória);

9.  O prédio acima descrito foi posteriormente vendido por andares, tendo o R.
CC assinado em nome próprio os competentes contratos promessa de
compra e venda, recebido os competentes sinais e dado quitação dos montantes
recebidos (Resposta ao artigo 5.° da Base Instrutória);

10. Foi em nome próprio que o R. CC outorgou o acordo escrito a fls. 22 em que prometeu vender e a autora prometeu comprar a fracção autónoma constituída pelo rés-do-chão direito ao prédio urbano que vai ser constituído em propriedade horizontal situado no lote i 7, sito no ..., em ... (Resposta ao artigo 6.° da Base instrutória);
11. Nos termos desse acordo, o preço da venda seria de 925.000$00, tendo aquele recebido naquela data a importância de Esc. 6Q0.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento de que deu quitação (Resposta ao artigo 7.° da Base Instrutória);
12. Nos termos da cláusula terceira do contrato promessa o resto da importância seria pago no acto aa escritura a qual seria outorgada assim que os primeiros outorgantes tivessem a documentação em ordem para o fazer (Resposta ao artigo 8.° da Base instrutória);
13. O réu BB recusou-se a propósito de desavenças com o réu CC a estar presente e a assinar a escritura de compra e venda da autora, a qual esteve marcada (Resposta ao artigo 9.° da Base Instrutória);
14. Em 13.06.1980 foi entregue à A. a chave de entrada da referida fracção e desde essa data a A. começou a utilizar e a residir na mesma (Resposta ao artigo 10.° da Base Instrutória);
15.    A A. é tida por quem a conhece como dona da fracção em causa
(Resposta ao artigo 1!.° da Base Instrutória);

16.  A A. em 23.06. 1980 contratou com os serviços municipalizados de águas da
Câmara Municipal de Vila Franca de Xira o fornecimento de água para a
fracção e posteriormente com a EDP o fornecimento de energia (Resposta ao
artigo 12.° da Base instrutória);

17. Desde essa data vem procedendo à manutenção e reparação interiores (Resposta ao artigo 13.° na Base instrutória),

18. É à A. que são enviadas as notificações para as assembleias de condóminos e é a ela que são exigidas as quotas de condomínio, que tem pago, tal como tem pago as quotas extra para efeitos de reparação das partes comuns (Resposta ao artigo 14.° aa Base instrutória).

        3. Passando a apreciar o mérito do recurso, a Relação considerou inverificadas todas as nulidades da sentença, invocadas pelo apelante, julgando o recurso improcedente com a seguinte fundamentação:

Entende também o apelante, na sequência do raciocínio adoptado, que não sendo aquela sociedade dona ou proprietária da fracção autónoma objecto do contrato-promessa, não a podia validamente vencer, bem como, só o réu CC o assinou, sendo aquele nulo.

Ora, como dos autos consta, ambos os réus compraram o lote de terreno em 13.9.1979, tendo acordado entre si contribuir com bens e serviços para o desenvolvimento em comum da actividade de construção civil, daí visando retirar proveitos e reparti-los entre si.

Na prossecução da sua actividade, a sociedade constituída por ambos construiu

um  prédio  urbano,   em  regime  de  propriedade  horizontal,  posteriormente

vendido por andares, tendo sido um destes que foi prometido vender à autora.

A gerência da sociedade, da responsabilidade dos dois sócios, foi exercida pelo

sócio CC quando o ora apelante esteve ausente em França.

E, quando o réu CC esteve ausente em França, era o réu CC que representava a sociedade, nomeadamente assinando os documentos necessários ao desenvolvimento da sua actividade.

Ora, foi perante tal contexto que o réu CC assinou em nome próprio os competentes contratos promessa de compra e venda e recebeu os competentes sinais e dado quitação dos montantes recebidos.

Como acertadamente se diz na sentença recorrida, o réu CC não questionou nos autos a actuação do réu CC, não alegando factualidade que permitisse concluir que este actuava contra a sua vontade.

O problema só surgiu quando o réu CC a propósito de desavenças com o réu CC se recusou a estar presente a assinar a escritura de compra e venda da autora a qual foi efectivamente marcada.

Com efeito, é o próprio apelante, que no documento junto a fls. 26 dos autos, informa a autora que não lhe í possível realizar a escritura, porque o seu sócio, o réu CC terá recebido o sinal, além de outras razões afloradas que eram reveladoras de: desentendimentos entre ambos.

Porém, os desentendimentos entre os réus teriam de ser resolvidos entre os mesmos, sem que sai pudesse pôr em causa a boa fé negocial da autora, ou o contrato firmado.

Não é pelo facto do apelante não receber o valor correspondente do sinal, ou não ter assinado o contrato, que se gera a nulidade deste.

Ora, sendo os réus  sócios de  uma saciedade por ambos constituída para Desenvolvimento de uma actividade de construção, visando a obtenção de proventos para os repartir entre si e constando no registo predial os réus como proprietários da fracção prometida vender,  é de concluir que o contrato-promessa foi celebrado no interesse comum daqueles, vinculando a ambos nos seus efeitos, independentemente da assinatura aposta apenas por um deles.

Com efeito, não se tendo alegado nem. demonstrado que só ambos os réus pudessem representar a sociedade, a vinculação de um deles tanto bastava para validar o negócio, não sendo necessária na altura, a assinatura de ambos.

De igual modo, também não faz sentido o argumento do apelante quando invoca que o contrato-promessa padece de nulidade por falta de objecto, na medida em que o contrato promessa foi celebrado em 13 de Junho de 1980 e a propriedade horizontal constituída a 3 de Dezembro de 1981, pois, a celebração de um contrato promessa pode incidir sobre prédios construídos, a construir ou apenas projectados, em nada colidindo com o regime da propriedade horizontal. Assim, nenhum reparo merece a sentença recorrida quando julga válido o negócio e declara o direito da autora à execução específica da fracção autónoma prometida comprar, declarando a transmissão a favor da mesma e a inscrição no registo predial, cancelando o registo existente a favor dos réus, cuidando assim da realidade registral, em obediência ao CRP.
Assim, perante o desfecho da acção nos termos plasmados na sentença e que não mereceram censura, fica esvaziado o conteúdo do pedido reconvencional deduzido, o qual decairá inevitavelmente, improcedendo também nesta parte o recurso.

         4. É desta decisão que vem interposta a presente revista, que o recorrente encerra com as seguintes conclusões:

1 - A alegação e as conclusões do recorrente delimitam o objecto do recurso devendo o Juiz conhecer todas as questões que as partes hajam submetido à sua apreciação (cfr. artigo 660.°, nº 2, do CPC), o que não fez o Tribunal recorrido postergando e não conhecendo das questões relativas à propriedade da fracção e à legitimidade do recorrente para a presente acção, o que enferma o Acórdão da nulidade prevista na alínea d) do artigo 615º do CPC (na redacção da Lei n.° 41/2013, de 26 de Junho, vigente à data da prolação do Acórdão).

2 - O Tribunal a quo perfilha uma interpretação que extravasa todos os limites que são impostos pela decisão da matéria de facto e pelas próprias alegações das partes, pois que nos articulados nada foi alegado quanto à constituição de uma nova sociedade irregular e da matéria assente não resultam factos provados que possam integrar a figura do abuso de direito.

3 - O processo civil é comandado pelo princípio dispositivo, nos termos do qual o juiz só pode fundar a sua decisão nos factos alegados pelas partes e não de outros que não tenham sido articulados. É o chamado princípio ne eat judex extra vel ultra petita partium - cfr. artigo 264º e 664º do CPC na redacção aplicável e anterior à Lei n.° 41/2013, de 26 de Junho).

4 - O juiz só deve pronunciar-se sobre o pedido formulado, o que não aconteceu, pois a recorrida nunca alegou a constituição de uma suposta segunda sociedade irregular para venda das fracções do prédio, nem tão pouco alegou qualquer facto ou comportamento do recorrente que preenchesse os pressupostos do abuso do direito.

5 - A "actuação dos réus" e "todo o encadeamento das condutas atinentes a cada um dos réus" a que apela a Relação, tem que ser apreciada dentro dos limites postos pelo princípio dispositivo, não podendo por isso o Tribunal a quo interpretar a "actuação dos réus" considerando novos factos e questões que acabaram por ser decisivos para a decisão, o que desde logo, viola os basilares princípios do contraditório e da igualdade de armas, plasmados nos artigos 3º, nº 3, e 3º-A do CPC.

6 - O vício de oposição entre os fundamentos e a decisão ocorre sempre que exista oposição intrínseca da matéria de facto ou da própria fundamentação ou que, da decisão

e sobre a mesma questão, constem posições inconciliáveis e antagónicas que se excluam mutuamente. E dando como provado um facto (a constituição da sociedade somente para desenvolvimento da actividade da construção civil, na qual esgotou o seu objecto), o Tribunal a quo retirou conclusão que excede e contradiz com esse facto, considerando que os RR "continuaram a actuar em sociedade, irregular, quando decidiram vender as fracções do imóvel que aquela sociedade construiu"!

7 - E contradiz-se ainda, pois considera que o R. CC "actuou no interesse e por conta da sociedade" e que "toda a actuação do R. CC de celebração de contratos promessa de compra e venda das fracções foi tacitamente aceite pelo R. CC, bem como o recebimento dos sinais e a concessão da respectiva quitação por parte daquele", quando a decisão recorrida demonstra justamente o contrário, ou seja, que o R. CC outorgou "em nome próprio" o contrato-promessa e que só ele recebeu o seu sinal e princípio de pagamento.

8 - Nos fundamentos da decisão deve o juiz discriminar os factos que considera provados, de acordo com a análise crítica das provas (artº 659º e nº 2 do artigo 653º do CPC), existindo contradição na fundamentação da douta sentença, pois que dentro da mesma perspectiva e encadeamento lógico, a matéria dada como provada impunha decisão diversa.

9 - A douta sentença é nula, por falta de fundamentação e nos termos do artigo 668º nº 1, alíneas b), c) e d), do CPC, pois concluindo que "temos que da factualidade assente é possível concluir que para a venda das fracções se mantinha uma sociedade entre os RR., iniciada com a compra do terreno" e resultando da matéria assente apenas que a sociedade irregular se extinguiu com a conclusão da empreitada, não fundamenta como a sociedade se mantinha após a sua extinção, indicando os concretos factos ou meios probatórios que sustentaram a sua continuidade.

10 - Tendo sido demonstrado e provado que a sociedade irregular tinha por objecto a

construção e reparação de edifícios e que se extinguiu com a conclusão da obra, não pode o Venerando Tribunal da Relação retirar efeitos depois da sua extinção, ignorando o legítimo título de aquisição da propriedade pelos RR. em nome individual e bem assim a realidade registrai que, como é sabido, faz presumir a existência de direitos (art.º 7º do C. R. Predial).

11 - A Autora não adquiriu o prédio da sociedade irregular, porque este não lhe pertencia, nem esta era dona da fracção autónoma objecto do contrato-promessa.

12 - Os seus proprietários eram os RR., em compropriedade e em nome próprio e individual, por terem adquirido o respectivo lote de terreno por escritura pública celebrada em 13 de Setembro de 1979 (cfr. facto provado nº 1 e Doc. nº 1 junto com a contestação do Réu), tendo o contrato-promessa sido apenas outorgado e assinado pelo Réu CC.

13 - E a Autora alega, porém, que o contrato-promessa foi com ela celebrado e com a dita sociedade, peticionando "Ser declarado transmitida a favor da A. a fracção autónoma referente ao R/C Dtº do prédio...", sendo por isso demandado o aqui recorrente, como sócio da sociedade irregular, pelo que o mesmo é parte ilegítima para a presente condenação.

14 - O recorrente nunca se vinculou ao contrato-promessa de compra e venda, não o celebrou, não o quis, nem o assinou, antes decorreu da actuação isolada do R. CC, "em nome próprio", sendo o mesmo nulo, quer por falta de objecto e por a fracção autónoma nele descrita não existir à data da sua celebração, sendo antes do "prédio urbano que vai ser constituído em regime de propriedade horizontal...", quer ainda por vício de forma, pois de tal contrato de promessa tinham de constar também (e não constam) as assinaturas reconhecidas presencialmente dos outorgantes (cfr. artigos 220° e nº 2 e 3 do artigo 410º do Código Civil).

15 - Em consequência da procedência das questões supra alegadas no presente recurso de revista, deve ser conhecida e julgada procedente a reconvenção do ora recorrente.

16 - A restituição do preço actualizado ao aqui recorrente é o corolário necessário da privação do uso do imóvel durante todo o período em que a Autora ocupou a fracção, considerando o pagamento do preço mais de trinta anos depois, desde 1980 até aos dias de hoje, actualização essa que deve ser tida em conta na fixação do quantum a restituir aos proprietários pela fracção e em virtude das flutuações da moeda, segundo juízos de equidade (cfr. artigo 551º e 883º do mesmo Código).

17 - O justo preço devido pela privação do uso do imóvel, até ao presente, é muito diferente e supera o sobredito valor de 1.621,09 €, considerando-se desde logo as suas utilidades e capacidade de gerar rendimentos. Doutro modo, tudo fica para a Autora em prejuízo do recorrente que nunca recebeu qualquer preço.

18 - Sendo certo que não decorre da lei substantiva que a restituição do preço actualizado e correspondente à privação do seu uso se funde num pressuposto de culpa, antes por causa objectiva, em virtude das flutuações do valor da moeda e segundo juízos de equidade.

19 - Devendo ser considerado o preço (ou o seu remanescente) que efectivamente foi acordado à data do cumprimento da obrigação, correndo por conta da Autora o risco da desvalorização da moeda, o qual atendendo ao valor de mercado actualizado, nunca deverá ser inferior a 50.000,00€, apelando-se entre outros critérios, aos "índices de preços" e para se "manter o valor aquisitivo da prestação" (art.° 551º do CC - nesse sentido vd. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, p. 560).

20 - Doutro modo, a mera devolução da quantia de 1.621,09 €, configura um claro enriquecimento sem causa da Autora, locupletando-se a mesma sem causa justificativa e

premiando-se a detenção não titulada da fracção, à custa do património do recorrente

que empobreceu em igual medida, pelo que se impõe a restituição única e exclusivamente ao R. CC, aqui recorrente, da quantia devida pela privação do uso segundo juízos de equidade e de justiça correctiva.

21 - O Acórdão recorrido viola, entre outros, os artigos 220º, 410º nº 2 e 3, 437º, 551º e 883º do Código Civil e bem assim os artigos 3º, 3º-A, 264º, 653º, 659º, 664º, 660º, 684º e 690º do Código de Processo Civil.          

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, alterando-se a decisão recorrida conforme o supra exposto.

   A recorrida suscita a questão prévia da admissibilidade do recurso, com base na existência de dupla conforme, sustentando subsidiariamente que deve ser mantido integralmente o decidido pelas instâncias.

   Como se refere no despacho de admissão do recurso, é manifesta a improcedência de tal questão prévia, já que – tratando-se de acção instaurada antes da reforma de 2008 – não se aplica, por força das disposições especiais de direito transitório, a limitação do acesso ao STJ decorrente da existência de dupla conformidade entre as decisões das instâncias ( art.7º, nº1, da Lei 41/2013).

5. Para dirimir adequadamente o presente litígio, é necessário definir com clareza quem figura como parte no contrato promessa de compra e venda do imóvel , bem como determinar em que qualidade jurídica nele outorgou , ao assiná-lo, o 2º R, e a quem pertence efectivamente a propriedade do imóvel prometido vender ( à sociedade irregular existente ou aos respectivos sócios) - de modo a fixar, de modo inequívoco, que sujeito ou sujeitos se podem considerar juridicamente vinculados à celebração do contrato prometido: é que, como é evidente, deste ponto fulcral depende decisivamente a possibilidade de decretamento da execução específica peticionada pela A. – a qual pressupõe que os sujeitos juridicamente vinculados à obrigação de celebrar o contrato prometido detenham o poder de disposição sobre o bem prometido vender.

    Mais do que determinar se o acórdão recorrido padece das nulidades procedimentais invocadas pelo recorrente, importa essencialmente apreciar a solidez e consistência jurídicas da argumentação em que se consubstanciou  a ratio decidendi do acórdão da Relação, confirmatório da sentença apelada: é que uma possível inconsistência ou inconcludência jurídica, a verificarem-se efectivamente, constituem erro de julgamento, no plano jurídico, determinante da respectiva revogação do nele decidido, no plano do mérito - e não meros vícios formais ou adjectivos que inquinem a sentença proferida.

   A versão factual apresentada na petição inicial – e mantida integralmente na réplica, apesar de ser patente que os demandados impugnaram na contestação pontos estruturais da versão dos factos apresentada pela A.–  e que define, assim, o núcleo essencial da causa de pedir em que a A. estrutura a sua pretensão à execução específica do contrato promessa traduz-se fundamentalmente no quadro seguinte: os RR são demandados na qualidade de sócios da sociedade irregular constituída para a construção do imóvel de que faz parte a fracção prometida vender à A., tendo o 2º R. assinado o contrato promessa em nome da referida sociedade ( que seria, deste modo, o verdadeiro promitente vendedor), o qual deteria poderes bastantes, como único gerente de facto ( na ausência do outro sócio) para a respectiva representação nos actos relativos à actividade social ( outorgando em nome da sociedade no contrato promessa, recebendo o sinal respectivo e conferindo nessa qualidade à promitente vendedora a tradição da coisa prometida vender); sucede que a promessa, vinculativa da dita sociedade irregular e dos respectivos sócios ( na veste de responsáveis pelas obrigações assumidas, com repercussão na esfera da sociedade irregular), não foi ulteriormente cumprida, por recusa do outro sócio, não subscritor do contrato promessa, em comparecer e outorgar na escritura de venda – arrastando-se esta situação desde 1980.

    Ora, esta versão factual da A. - delineada na petição inicial e inteiramente mantida na réplica, apesar de, na presente acção, ser ainda perfeitamente possível alterar, nesta peça processual, o pedido ou a causa de pedir – não logrou obter confirmação na fase de instrução e discussão da causa, já que  da matéria de facto fixada em 1ª instância resulta inexoravelmente que:

- o direito de propriedade da fracção em litígio pertence, não à referida

sociedade irregular, mas pessoalmente a ambos os RR., face, desde logo,  ao teor do registo predial ( não se mostrando minimamente ilidida a presunção de propriedade dele emergente e não resultando dos autos qualquer elemento que permita considerar a sociedade irregular como proprietária da fracção prometida vender ( pontos 1 e 2 da matéria de facto);

- o R. CC outorgou no referido contrato promessa, não em nome da sociedade ou em representação do outro sócio, mas  em nome próprio ( ponto 10 da matéria de facto);

- a dita sociedade irregular, destinada ao desenvolvimento em comum da actividade de construção civil, assumiu a qualidade de empreiteira da construção do edifício em que se situa a fracção em litígio, extinguindo-se com a conclusão das obras ( ponto 6 da matéria de facto).

    Como é evidente, as ilações – presunções judiciais ou naturais - baseadas nas regras da experiência e formuladas pelas instâncias no desenvolvimento e integração da matéria de facto atomisticamente apurada em julgamento e plasmada no despacho que, antes de proferida sentença, a fixou , não pode colidir ou contrariar os factos apurados através  da livre apreciação das provas efectivamente produzidas em audiência; ou seja, não pode, com base em meras considerações de normalidade, plausibilidade ou probabilidade, alcançar-se um resultado probatório incompatível com a realidade factual apurada em julgamento, emergente dos meios probatórios efectivamente produzidos em audiência contraditória e concretamente valorados pelo juiz no momento em que fixou a matéria de facto decorrente da livre apreciação das provas.

   No caso dos autos, verifica-se que a construção jurídica delineada na sentença – e no essencial, mantida no acórdão recorrido – assenta em alguns pressupostos manifestamente  inconciliáveis com os factos apurados:

- por um lado, o de que a sociedade irregular era a efectiva proprietária do imóvel, pelo que teria, através dos actos dos respectivos gerentes, um poder de disposição de tal bem( cfr. fls 451);

- por outro, o de que o R. CC, ao subscrever o contrato promessa,

representava sozinho a sociedade irregular em apreço, actuando no interesse e em  representação desta  – cfr. fls. 450/452.

   Na verdade, não encontra qualquer suporte na matéria apurada nos autos – e na indispensável consideração da presunção legal de propriedade emergente da inscrição no registo predial, feita a favor dos RR/pessoas singulares -  a asserção segundo a qual a dita sociedade irregular – empreiteira da obra de construção do prédio - fosse ou tivesse sido alguma vez a proprietária do imóvel ou da fracção predial em litígio.

   Por outro lado, é frontalmente inconciliável com a fixação, na matéria de facto provada, de que o R. CC actuou, ao outorgar o contrato promessa, em nome próprio, a afirmação, feita ulteriormente na sentença, de que afinal aquele teria agido no interesse e em representação da sociedade irregular: é que a referida expressão, consignada no despacho que fixou os factos provados, não pode deixar razoavelmente de ser interpretada com o sentido de que o referido R., ao outorgar no contrato promessa, não actuou na qualidade de gerente/representante da sociedade, mas exclusivamente em seu próprio nome.

   Saliente-se ainda que a circunstância de a sociedade irregular não ser titular do direito de propriedade sobre a fracção prometida vender acaba por retirar interesse substancial à questão do âmbito dos fins sociais daquele ente colectivo – ou seja: se a função e finalidade por ela prosseguida se restringia apenas à construção, como empreiteira, do imóvel em litígio, ou se – como parecem antes entender as instâncias – tal fim social abrangeria também a venda e comercialização dos imóveis construídos: é que, mesmo a entender-se que se justificava esta maior abrangência do fim social (dificilmente conciliável, aliás, com o teor do ponto 6 da matéria de facto), de modo a alcançar também a comercialização das fracções construídas, é evidente que uma promessa de venda, outorgada em nome da sociedade por um dos gerentes, e reportada a bem imóvel não incluído no património social não poderia, sem mais, ter virtualidades para vincular ao cumprimento da promessa a pessoa física que, afinal, era comproprietária do imóvel prometido vender…

   A matéria de facto apurada nos autos reconduz-nos, deste modo, a um quadro factual substancialmente diverso do alegado pela A. como suporte

da sua pretensão de obter a execução específica da promessa – consubstanciando-se o contrato promessa em litígio no assumir de uma obrigação de vender apenas, em nome próprio, por um dos dois comproprietários da fracção em causa. Poderá – e em que termos – considerar-se vinculado ou obrigado pela promessa de venda o comproprietário que não outorgou no respectivo contrato promessa?

   É que, como é manifesto, a decisão a proferir sobre a admissibilidade da execução específica depende decisivamente da resposta que se der a esta questão – pressupondo o típico efeito constitutivo da sentença que defere a pretendida execução específica da promessa que todos os titulares do poder de disposição sobre o bem prometido vender estejam obrigados ou vinculados pelo teor do contrato promessa celebrado.

    Note-se que esta questão não se reconduz à temática da nulidade do contrato promessa, celebrado apenas por um dos comproprietários do bem prometido vender: na realidade, situando-se o contrato dos autos num plano meramente obrigacional, nada impedia o 2º R. de prometer vender um bem relativamente ao qual não tinha, nesse momento, integrais poderes de disposição – significando apenas tal acto que o outorgante se comprometia a obter o consentimento do outro proprietário para a celebração ulterior do negócio translativo da propriedade; tal como não procede a alegação de nulidade do contrato promessa com base na inexistência, à data da promessa, da fracção prometida vender, por não ter sido ainda concluída a construção e constituída a propriedade horizontal: é que nada obsta à  promessa de venda de bens alheios ou de bens futuros …

   O problema que se suscita na hipótese dos autos não se coloca, pois, no plano da validade de um contrato promessa meramente obrigacional, mas antes no da  eficácia deste no confronto do comproprietário que nele não outorgou – ou seja, da vinculatividade da promessa relativamente a quem, detendo poderes cumulativos de disposição sobre o bem prometido vender, não figurou como parte no contrato promessa celebrado.

   Ora, quanto a este ponto, afastada a via que decorreria da imputação do negócio à sociedade irregular, se esta fosse naturalmente proprietária do imóvel ( decorrendo, neste caso, a vinculação ao negócio do exercício legítimo dos poderes de gerência por parte do 2ª R.), só seria eventualmente possível vincular o comproprietário que não outorgou expressamente no contrato promessa através do apelo à figura da aceitação

tácita, considerando-se, porventura, comportamento concludente no sentido da aceitação da obrigação de contratar a prolongadíssima inércia do 1º R., que se conformou com a utilização do prédio, ao longo de cerca de 25 anos, pela promitente compradora, que obtivera originariamente a tradição da coisa ( esta via argumentativa é aflorada, embora de modo vago e pouco consistente, na sentença, ao afirmar-se, a fls. 449, que a celebração dos contratos promessa  de compra e venda das fracções teria sido tacitamente aceite pelo R. CC).

   Não é, porém, possível operar tal convolação , passando da via jurídica efectivamente invocada e delineada pela A. na petição inicial e na réplica. – ou seja, tratar-se de um negócio celebrado por um dos sócios da sociedade irregular, proprietária do imóvel, competente singularmente para a respectiva gerência – para uma perspectiva jurídica substancialmente diversa, convertendo agora o referido contrato promessa em negócio pessoal de um dos comproprietários, repercutido na esfera jurídica do outro comproprietário ( que nele não outorgou pessoalmente de modo explícito) através do recurso à figura da aceitação tácita: é que, para além de tal traduzir uma verdadeira alteração do núcleo fundamental da causa de pedir ( a qual só teria sido possível, por iniciativa da A., no momento da apresentação da réplica), não se mostram provados, nem sequer alegados, de forma consistente, os factos em que se pudesse traduzir esse comportamento concludente do  1ºR..

   Não pode, deste modo, subsistir, pelas razões apontadas, a decisão que decretou, como efeito constitutivo, a execução específica do contrato promessa, por não se verificar um pressuposto essencial desta figura ou instituto jurídico, tal como se mostra delineada no art. 830º do CC.

  A improcedência do pedido de execução específica implica a inutilidade da questão suscitada quanto à pretendida actualização ou correcção monetária do remanescente do preço, convencionado em 1980 para a fracção em litígio : é que a condenação neste valor - e nos respectivos juros de mora, a partir do momento tido como relevante para a constituição na situação de mora no cumprimento da prestação devida – surgia como meramente consequencial da procedência do pedido principal, visando a execução específica da promessa, implicando esta o pagamento, como

contrapartida do efeito constitutivo agora obtido, do remanescente do preço convencionado pelas partes – ficando naturalmente esvaziado no momento

em que se julgou improcedente tal pedido principal.

  E, tendo sido deduzido pela A. pedido subsidiário, fundado em invocada aquisição originária por usucapião, cabe naturalmente passar a  apreciá-lo, para o que carece de competência o STJ, por não funcionar, no âmbito da revista, a regra da substituição ( arts. 665º e 679º do CPC) .

         6. O R., ora recorrente, deduziu oportunamente pedido reconvencional, peticionando, por um lado, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a fracção em litígio e, por outro, a obtenção da A. de uma indemnização no montante de €39.000 pela utilização indevida do andar pela A., desde que lhe foi conferida a tradição da coisa, bem como pela deterioração desta em consequência do uso prolongado.

   Tais pedidos reconvencionais foram julgados improcedentes pelas instâncias.

   Como é evidente, o pedido de reconhecimento da propriedade e restituição da fracção ao reconvinte está inteiramente dependente do que se vier a decidir em sede de procedência ou improcedência do pedido subsidiário da A:, formulado com base na usucapião .

   Relativamente aos pedidos indemnizatórios deduzidos, entende-se, porém, que os elementos constantes dos autos são – mesmo antes de ser apreciado e independentemente da sorte que vier a ter o pedido subsidiário da A.- perfeitamente suficientes para confirmar o juízo de improcedência, formulado pelas instâncias: na verdade, tais pedidos de indemnização, decorrentes do uso da fracção prometida vender durante cerca de 25 anos, em consequência da tradição da coisa, obtida no momento da celebração do contrato promessa, representam manifesto abuso de direito por parte do comproprietário do imóvel prometido vender que – não tendo embora subscrito o contrato promessa - se manteve durante esse prolongadíssimo período temporal  em situação de inércia, gerando com esse comportamento a fundada confiança de que se conformara com o uso da fracção pela A.

   Desde logo, importa realçar que a indefinição existente acerca do exacto

âmbito e duração da sociedade irregular, constituída pelos RR. para o exercício da actividade e construção civil – bem expressa no sentido decisório que as instâncias  deram ao litígio – era de molde a poder criar dúvidas razoáveis no espírito dos promitentes compradores quanto à exacta

qualidade jurídica em que o sócio/ 2ºR. outorgara no contrato promessa – estando, pois de boa fé ao suporem que o negócio celebrado assentava em poderes de disposição bastantes do imóvel prometido vender: na verdade, é neste plano que se impõe analisar e tirar consequências dos comportamentos e actuação dos RR., do encadeado de condutas e dos equívocos que originaram em torno da separação das suas actividades e interesses pessoais e da actividade e fins da sociedade irregular que informalmente constituíram para a prossecução de interesses económicos comuns.

   Na realidade, tais dúvidas fundadas só foram ultrapassadas pelo Tribunal em consequência e no termo de uma actividade de indagação, produção e valoração de provas, pelo que se impõe a conclusão de que a A., no momento em que outorgou no contrato promessa, ligado à actividade de construção civil prosseguida também pela sociedade irregular de que eram sócios os RR. ( em cujo cabeçalho figuravam , aliás, como promitentes vendedores ambos os RR.) estivesse inteiramente de boa fé, ignorando sem culpa que podia lesar direitos próprios do interessado que não subscrevera o documento que titulava o negócio.

   Por outro lado, a prolongadíssima inércia e aparente desinteresse do ora recorrente em – durante quase 25 anos – assegurar os direitos que só em sede de pedido reconvencional se aprestou a defender não podem deixar de ser interpretadas como comportamento susceptível de ter criado na promitente compradora a fundada confiança de que se não contestava a licitude do uso que tinha por título a tradição do imóvel.

   Ora, tal confiança, legítima e fundada, é manifestamente abalada com a intempestiva exigência de pretensos direitos indemnizatórios, formulados no termo de um prolongadíssimo período de uso não contestado e de boa fé da fracção prometida vender – sendo, pois, ilegítimo o exercício de tais direitos, por extravasar manifestamente os limites impostos pela boa fé no exercício dos direitos, necessariamente compatibilizado com o respeito pelas fundadas e legítimas expectativas, assentes em acções ou comportamentos omissivos do interessado.

         7. Nestes termos e pelos fundamentos apontados:

- concede-se em parte, provimento à revista, revogando o acórdão recorrido na parte em que julgou procedente o pedido principal da A.; e, em consequência, julga-se improcedente o pedido de execução específica do contrato promessa formulado prioritariamente pela A.;

- confirma-se o acórdão recorrido no segmento em que negou provimento aos pedidos indemnizatórios formulados pelo 1º R. em sede reconvencional;

- determina-se a remessa dos autos à Relação para apreciar o pedido subsidiário, formulado pela A. com base na figura da usucapião e, bem assim, do pedido de reconhecimento da propriedade, deduzido pelo R. em reconvenção.

   Custas da presente revista a cargo de recorrente e recorrida, em idêntica proporção.

Lisboa, 29 de Maio de 2014

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor