Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2104/05.4TBPVZ.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
DIREITO À VIDA
DANO MORTE
RECURSO DE REVISTA
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
PRESUNÇÃO DE CULPA
NEGLIGÊNCIA
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
Data do Acordão: 06/08/2017
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª ed., Coimbra, 2000, 900.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 344.º, N.ºS 1 E 2, 494.º, 496.º, 563.º, 798.º, 799.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALS. D) E B), 666.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 19 DE JUNHO DE 2001, PROC. N.º 01A1008, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 25 DE JUNHO DE 2002, PROC. N.º 02A1321, WWW.DGSI.PT ; DE 31 DE JANEIRO DE 2012, WWW.DGSI.PT , PROC. N.º 875/05.7TBILH.C1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 22 DE MAIO DE 2003, PROC. N.º 03P912, WWW.DGSI.PT
-DE 11 DE JULHO DE 2006, PROC. N.º 06A1503, WWW.DGSI.PT
-DE 5 DE JULHO DE 2007, PROC. N.º 07A1734, WWW.DGSI.PT
-DE 28 DE FEVEREIRO DE 2008, DE 25 DE JUNHO DE 2009 E DE 7 DE OUTUBRO DE 2010, RESPECTIVAMENTE PROCS. N.ºS 08B388, 08B3234 E 839/07.6TBPFR.P1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 4 DE MARÇO DE 2008, WWW.DGSI.PT, PROC. N.º 08A183
-DE 23 DE OUTUBRO DE 2008, PROC. Nº 08B2318 OU DE 7/10/2010, PROC. N.º 839/07.6TBPFR.P1.S1, WWW.DGSI.PT
-DE 24 DE SETEMBRO DE 2009, PROC. N.º 09B0368, , WWW.DGSI.PT
-DE 17 DE JANEIRO DE 2013, WWW.DGSI.PT, PROC. N.º 9434/06.6TBMTS.P1.S1
-DE 1 DE JULHO DE 2010, PROC. N.º 623/09.2YFLSB, EM WWW.DGSI.PT
-DE 7 DE JULHO DE 2010, PROC. N.º 1399/06.OTVPRT.P1.S1, WWW.DGSI.PT
-DE 28 DE OUTUBRO DE 2010, WWW.DGSI.PT ; PROC. N.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, DE 5 DE NOVEMBRO DE 2009, PROC. N.º 381-2002.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 7 DE JUNHO DE 2011, PROC. N.º 3042/06.9TBPNF.P1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 23 DE NOVEMBRO DE 2011, PROC. N.º 90/06.2TBPTL.G1.S1, CITADO NO ACÓRDÃO DE 31 DE MAIO DE 2012, PROC. N.º 14143/07.6TBVNG.P1.S1, WWW.DGSI.PT .
Sumário : I - O fundamento e o objectivo da indemnização pela perda do direito à vida não é o mesmo que preside à indemnização por danos não patrimoniais de que beneficia o próprio lesado.

II - Embora seja exacto que o direito à vida é o mais valioso de todos os direitos, os valores indemnizatórios que os tribunais vêm atribuindo por morte – que, na maioria dos casos, oscilam entre os € 50 000 e os € 80 000 – não são limitativos das indemnizações fixadas por danos não patrimoniais, nomeadamente, em casos em que os lesados sobreviveram com lesões de extrema gravidade e fortemente incapacitantes.

II - O recurso à equidade para a determinação da indemnização a atribuir por danos não patrimoniais nos termos do art. 496.º, n.os 1 e 3, do CC, não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso.

III - Tratando-se de uma indemnização fixada pelas instâncias segundo a equidade, mais do que discutir a aplicação de puros juízos de equidade que, em rigor, não se traduzem na resolução de uma “questão de direito”, num recurso de revista importa essencialmente verificar se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados e se se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis.

IV - Resultando da factualidade provada que como consequência de perfuração do intestino ocorrida no decurso da execução de uma colonoscopia, a autora teve um sofrimento significativo, apercebeu-se do perigo da perda da vida, foi submetida a diversas intervenções cirúrgicas subsequentes, passou a sofrer de limitações na sua vida em face da visibilidade das cicatrizes, ficou com uma incapacidade geral permanente de 16 pontos, e sendo certo que o grau de culpa do lesante se situa no campo da negligência legalmente presumida, considera-se adequado confirmar o montante de € 80 000 fixado pela Relação a título de danos não patrimoniais.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 



I. Em 1 de Outubro de 2015, a fls. 2043, foi proferido neste Supremo Tribunal o seguinte acórdão, que se transcreve parcialmente, por comodidade, no que agora releva:


1. « AA propôs uma acção contra BB, Hospor – Hospitais Portugueses, SA – CC, Hospital da ... de V… e Hospital de S. ..., pedindo a sua condenação solidária no pagamento de uma indemnização de € 304.711,55 (€ 200.000,00 por danos não patrimoniais, o restante por danos patrimoniais), com juros de mora, contados à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento; e ainda no “valor relativo a danos futuros e que se vier a liquidar em execução de sentença”.

Como fundamento, invocou ter realizado um exame de colonoscopia nas instalações da CC, efectuado pelo médico BB, do qual resultou uma perfuração do intestino com as graves consequências que descreve e que a colocaram em perigo de vida, obrigaram a várias intervenções cirúrgicas e a internamento hospitalar prolongado, no Hospital de S… A…, e a tratamentos, cuidados e sofrimentos posteriores à alta hospitalar.

Disse ainda que, após o exame, e por causa das dores e mal estar agudo que sentiu, se deslocou aos serviços de urgência do Hospital da Nossa Senhora da Conceição de V… e do Hospital de S. ..., no qual procurou o primeiro réu, sem que tivesse sido detectada a perfuração e realizado o tratamento devido.

Contestaram:

– O Hospital da ... de V…, sustentando a incompetência do tribunal e a competência da jurisdição administrativa, por se tratar de uma “acção de responsabilidade civil extracontratual” e de “um estabelecimento público dotado de personalidade jurídica e autonomia administrativa, financeira e patrimonial [com] natureza empresarial (…) integrado no Serviço Nacional de Saúde”. Impugnou matéria de facto e disse que os factos alegados eram insuficientes para determinar qualquer responsabilidade da sua parte, não existindo nexo de causalidade entre os que lhe são atribuídos e os danos invocados;

– O Hospital de S. ..., impugnando diversos factos e dando a sua versão de outros, nomeadamente quanto ao abandono dos seus serviços pela autora, quando já tinha realizado alguns exames e ainda havia que realizar mais, “impedindo, assim, a conclusão definitiva do diagnóstico e a terapêutica adequada à sua situação clínica”. Sustentou ainda que, quer o serviço de urgência, quer os médicos que a atenderam, actuaram de acordo com as leges artis “e com o zelo e a diligência que lhe eram exigidos no caso concreto” e que, de qualquer forma, o montante indemnizatório pedido era exagerado. Disse ainda que as despesas hospitalares foram suportadas pela ADSE e que nunca poderia ser condenado solidariamente com os demais réus, “já que a sua responsabilidade – a existir – sempre seria limitada”;

– Hospor – Hospitais Portugueses, SA, “sociedade anónima que se dedica à prestação de serviços médicos na Clínica que possui e explora (…) denominada CC”, dizendo que o exame realizado por BB, auxiliado por uma enfermeira, decorreu com toda a normalidade e com respeito escrupuloso “das regras e técnicas da ciência e prática médicas”, que a autora nunca mais se dirigiu às suas instalações, que a perfuração do intestino “é uma complicação possível à realização de um exame de colonoscopia”, que a que ocorreu não resultou de qualquer incúria ou negligência; e impugnando muitos factos alegados pela autora.

Requereu a intervenção provocada da Companhia de Seguros DD, S.A., invocando um contrato de seguro;

– BB defendeu-se por impugnação e contrapôs que o exame “foi feito com respeito pelas leges artis do ofício, e com o zelo e cuidado exigíveis por tal procedimento (acto médico)”; que, durante o exame, a autora – a quem tinha sido ministrado um sedativo – reagiu normalmente; que, quando a mesma recorreu à urgência do Hospital de S. ..., actuou de acordo com as regras, “pelo que a realização de um diagnóstico completo e definitivo apenas foi impedida, única e exclusivamente, pela atitude da autora de puro e simples abandono da urgência”; que a perfuração pode resultar de outras causas, que não da colonoscopia; que “é um médico gastroenterologista com uma vasta experiência, altamente prestigiado e de grande competência”; que a autora exagera na indemnização pedida e apresenta traços de “mentalidade obsessiva” e de fragilidade psicológica, em consideração dos quais o réu optou por “não proceder criminalmente contra aquela” quando o insultou, “nas instalações da CC”.

Disse ainda que a autora tinha apresentado queixa-crime contra ele, o que preclude a possibilidade de pedir uma indemnização em acção civil, devendo a instância ser suspensa “até que o tribunal competente (o tribunal criminal) se pronuncie”, citando o nº 1 do (então) artigo 97º do Código de Processo Civil (artigo 71º Código de Processo Penal); e sustentou a inexistência de solidariedade entre os réus, devendo qualificar-se a situação dos autos como um caso de coligação passiva (e não de litisconsórcio).

A autora replicou.

A Companhia de Seguros DD, S.A. veio contestar (fls. 285).

BB requereu a intervenção da Companhia de Seguros EE, o que foi deferido a fls. 418; a interveniente contestou, a fls. 428.

Na audiência preliminar, os réus Hospital de S. ... e Hospital ..., de V…, foram absolvidos da instância, por incompetência do tribunal (fls. 489).


2. A acção foi julgada parcialmente procedente pela sentença de fls. 1303, nestes termos:

– BB e EE – Portugal, Companhia de Seguros, SA foram condenados a pagar à autora uma indemnização de € 150.000,00 por danos não patrimoniais, “sendo que, deste valor, o de € 85.156,77 será pago pela seguradora e o remanescente pelo réu”, com juros de mora contados à taxa legal de 4% desde a sentença até efectivo pagamento;

– BB e EE – Portugal, Companhia de Seguros, SA foram condenados a pagar à autora uma indemnização de € 4.594,13 por danos patrimoniais, com juros de mora, vencidos e vincendos, contados à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo pagamento;

– Quanto ao mais, estes réus foram absolvidos do pedido;

– Hospor – Hospitais Portugueses, SA – CC e a Companhia de Seguros DD, S.A., foram absolvidas do pedido.

Em síntese, o tribunal entendeu que, porque “durante a realização da colonoscopia veio a autora a sofrer de perfuração do intestino”, se verificou “a violação ilícita de um direito de personalidade (mais concretamente a integridade física da autora), estranho à realização do contrato”, estando provados factos que preenchem os pressupostos da obrigação de indemnizar: o facto ilícito (violação da integridade física da autora), os danos, o nexo de causalidade e a culpa. Segundo o tribunal, “perante a matéria em causa, há que concluir que o réu actuou culposamente, não logrando provar que efectuou a colonoscopia cumprindo todas as exigências técnicas e todos os deveres de cuidado que conhecia e que podia observar (…), sendo a sua conduta profissional tanto mais censurável, quanto é certo que o réu se trata, não apenas de um especialista, mas de um gastroenterologista experiente, reputado e, logo, há que concluir-se, com conhecimentos e capacidades acima da média”.

Mas a sentença foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 1813, que absolveu do pedido os réus BB e EE – Portugal, Companhia de Seguros, SA. O Tribunal da Relação considerou que o litígio se situava no âmbito da responsabilidade civil contratual, mas que não estava provada “a ilicitude da conduta” do réu, uma vez que se não demonstrou nenhum erro médico que estivesse na origem da perfuração do intestino.


3. A autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça.

(…)

Os réus contra-alegaram, sustentando que o acórdão recorrido deve ser confirmado.

(…)

O recurso foi admitido como revista, com efeito devolutivo.


4. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):-


1. A Ré e a Companhia de Seguros DD, no dia 27 de Fevereiro de 2002, celebraram entre si um contrato de Responsabilidade Civil – Clínica Médica e Lar de Idosos, titulado pela Apólice n.º 000…., pelo qual aquela transferiu para esta a responsabilidade civil extracontratual por danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros, incluindo clientes, em consequência de lesões corporais e ou materiais, que ocorram durante o período de vigência da apólice, decorrente da actividade Clínica Médica e Lar de Idosos, utilizando para o efeito instalações, equipamentos e pessoas.

 2. A Interveniente EE Portugal - Companhia de Seguros, SA celebrou, em 19-02-1990, com o Réu BB um acordo de seguro do ramo responsabilidade civil garantindo os riscos inerentes ao exercício da profissão – Gastrenterologia – acordo esse titulado pela apólice nº 8…-0… que à data dos factos em causa nos autos, vigorava com o capital máximo por anuidade e por sinistro de 85.156,77 € em danos corporais e de 17.654,45 €, em danos materiais, estando sujeito a uma franquia a cargo do segurado de 49,88 € em danos materiais.

3. No dia 22 de Junho de 2002, a autora foi submetida a um exame de colonoscopia, nas instalações da segunda ré, CC, sita nesta cidade da P… de V….

4. Tal exame foi efectuado pelo primeiro réu, Dr. BB, que ali exercia, e exerce actualmente, a sua actividade profissional de gastroenterologista.

5. Sendo que, tal exame, foi realizado a requisição do mesmo réu, Dr. BB.

 6. No decurso do exame e aquando da passagem do aparelho pelos intestinos, a autora sentiu dores.

7. Facto que, de imediato, comunicou ao primeiro réu.

8. A autora soltou gritos, demonstrando, desta forma, ao primeiro réu as dores que sentia.

 9. Concluído o exame, o primeiro réu, Dr. BB, comunicou à autora que estava tudo bem.

 10. Segundo referiu, a autora não apresentava quaisquer lesões nos intestinos.

 11. Durante os dois dias que se seguiram à realização daquele exame, colonoscopia, a autora foi acometida de obstipação intestinal.

12. Em face dessa situação, no dia 24 de Junho, a autora ingeriu dois comprimidos Dulcolax.

 13. Não obstante a ingestão dos mesmos, a situação manteve-se inalterada.

 14. No dia 25 de Junho, da parte da manhã, a autora sentiu intensas dores abdominais, concretamente no fundo da barriga, e vómitos alimentares.

 15. Tendo, de imediato, sido chamada uma ambulância que a transportou ao Hospital de …, aqui terceira ré.

 16. Onde deu entrada no Serviço de Urgência, cerca das 10h13m.

 17. Nesse Estabelecimento de Saúde esteve a autora em observações por um período de cerca de 3h.

 18. Durante o qual lhe foi efectuado um teste sumário de urina que revelou corpos cetónicos e leucócitos.

 19. Diagnosticada uma infecção urinária, tendo sido medicada para o efeito.

 20. Cerca das 13h foi-lhe concedida alta médica tendo a autora regressado a casa.

 21. Nesse mesmo dia, dado o mau estar que persistia em não terminar, e o agravar das dores, que cada vez eram mais fortes e insuportáveis, a autora telefonou ao réu, Dr. BB, a quem pôs ao corrente do seu estado.

 22. E referiu que sentia muitas dores no abdómen e um mau estar geral.

 23. Bem como, referiu que havia recorrido à Urgência do Hospital de V….

 24. Tendo-lhe sido diagnosticada uma infecção urinária e ministrada medicação para o efeito.

 25. Em face desse telefonema, o réu, Dr. BB, disse à autora para, caso a situação agravasse, comparecer no dia seguinte, no Hospital de S. …, altura em que o mesmo estava de serviço na urgência.

 26. De acordo com as indicações do primeiro réu, e também porque o estado de saúde da autora apresentava-se cada vez mais grave, no dia 26 de Junho, cerca das 11h08m a autora deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital de S. ….

 27. De imediato, o marido da autora tentou contactar o primeiro réu, Dr. BB, o que conseguiu, no serviço de gastrenterologia.

28. O réu referiu que iria ao serviço de urgência consultar a autora.

29. Decorridas que foram cerca de cinco horas, depois de disponíveis os exames complementares é que o réu se deslocou ao serviço de urgência para analisar a autora.

30. Nesse Hospital, e no período de tempo em referência, a autora foi submetida a diversas análises clínicas, efectuou raio-x e uma ecografia abdominal.

31. Para além de que, durante várias horas, foi injectada com soro fisiológico.

32. Sem que lhe fosse diagnosticada qual a origem das dores abdominais que sentia.

33. Cuja intensidade não diminuía.

34. Não obstante ter sido submetida aos exames referidos, a autora permaneceu neste Serviço de Urgência cerca de 11h sem que tenha sido elaborado um diagnóstico da situação ou definida a terapêutica a seguir.

35. A sua situação clínica piorava de minuto a minuto, e uma vez que a situação não se resolvia, a autora deslocou-se para o Hospital de S… A…, no P..., onde deu entrada no Serviço de Urgência, cerca das 22h49m.

36. Nesse Hospital foi-lhe diagnosticado quadro de abdómen agudo que se verificou estar relacionado com peritonite fecal secundária a perfuração com cerca de 2 cms de diâmetro, no cólon sigmóide distal e peritonite generalizada.

37. Durante a realização da colonoscopia a que a autora foi submetida em 22 de Junho de 2002, realizado pelo primeiro réu, a autora sofreu perfuração do intestino, junto ao colo sigmóide, o que veio a determinar o que consta do n.º anterior.

38. Em face do diagnóstico, e nessa mesma noite, foi a autora submetida a uma intervenção cirúrgica de urgência, designada por "operação de Hartmann".

 39. O estado pré-operatório era o de sépsis com disfunção multiorgânica dominada pela falência respiratória, cardio-circulatória, digestiva, hematológica e renal.

 40. Cerca de vinte e quatro horas do pós-operatório a autora foi relaparotomizada por isquemia segmentar do território dependente da artéria mesentérica inferior.

 41. É sujeita a colectomia segmentar esquerda.

 42. A persistência do quadro séptico intra-abdominal determinou que fosse necessária relaparotomização.

 43. Nos dias 3, 12 e 16 de Julho de 2002, a autora foi relaparotomizada de novo.

 44. A evolução do quadro clínico foi lenta e difícil, complicando-se com sucessivas bacteriemias, e agravamento da sépsis no contexto da peritonite e infecção da ferida operatória.

 45. No dia 24 de Julho de 2002, a autora foi traqueostomizada para protecção da via aérea.

 46. No dia 4 de Agosto passou a ventilação espontânea, suficiente do ponto de vista respiratório e hemodinâmico.

47. Com função renal e hematológica recuperadas.

 48. Sendo que, nessa data, a autora já era capaz de se alimentar por via oral.

49. A autora esteve internada na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de S… A… cerca de 43 dias, por referência à data de entrada na urgência daquele Hospital.

50. No dia 8 de Agosto de 2002, a autora foi transferida para o UCPO, tendo em 21 de Agosto de 2002 sido transferida para os Serviços de Cirurgia I do mesmo Hospital, até ao dia 29 de Agosto de 2002, data em que lhe foi concedida alta hospitalar.

51. Durante o período de tempo que esteve nos cuidados intensivos do Hospital de S… A…, a autora esteve em permanente perigo de perder a vida.

52. Esteve ligada a um ventilador durante vários dias, completamente inanimada.

53. Sem reconhecer os próprios familiares mais próximos.

54. A sobreviver à custa de máquinas artificiais, que lhe mantinham os órgãos essenciais e vitais em funcionamento.

55. Após a alta Hospitalar, a autora regressou a sua casa, em situação de total dependência de terceiras pessoas.

56. Foi transportada numa ambulância, deitada numa maca, uma vez que apenas mexia a cabeça e as mãos.

57. Na data da alta hospitalar, a autora regressou para casa com colostomia (saco que armazena as fezes, dado que o recto estava fechado em consequência das cincos intervenções cirúrgicas a que foi submetida).

58. Durante os cerca de dois meses e meio que esteve completamente imobilizada na cama do Hospital, a autora perdeu massa muscular.

59. O que originou a situação de tetraparésia em que se manteve por cerca de três meses.

60. E determinou que, durante cerca de três meses após a alta hospitalar, a autora se visse na necessidade de se deslocar numa cadeira de rodas, pois não se conseguia deslocar pelos seus próprios meios.

61. Nesse período de tempo, e dado o facto de não se poder movimentar, a autora necessitava permanentemente que lhe efectuassem os cuidados diários de higiene.

62. Que providenciassem pela sua alimentação.

63. E a acompanhassem, à casa de banho, para urinar.

64. O que, nos primeiros dias se revelava necessário sensivelmente de duas em duas horas.

65. A autora esteve algaliada bastante tempo.

66. Durante esse período de tempo em que esteve em casa sem se poder movimentar, a autora precisou da ajuda permanente de uma terceira pessoa, para lhe dar a medicação prescrita, proceder à desinfecção diária da pequena incisão resultante da traqueostomia e proceder ao tratamento diário da sutura.

67. A sutura tinha cerca de 25 cm de cumprimento e não se encontrava cicatrizada.

68. A colostomia encontrava-se muito próximo da incisão.

69. Era frequente o saco da colostomia deslocar-se este deslocar-se, e verificar-se o resvalamento das fezes para a zona da sutura.

70. O que determinava a necessidade de lavagem cuidadosa da zona da ferida para evitar perigo de infecção.

71. Após a alta hospitalar a autora continuou a ser acompanhada pelo Hospital de S… A… em regime de consulta externa.

72. Por indicação do mesmo Hospital, a autora recorreu ao Centro de Saúde de E… para lhe prestar assistência, designadamente, no tratamento diário da incisão no abdómen, resultante das intervenções cirúrgicas a que foi sujeita, bem como, no tratamento diário da colostomia.

73. Recebeu diariamente em sua casa, e durante cerca de quatro meses, a assistência de uma enfermeira que efectuava a limpeza da ferida e procedia à mudança do saco de que era portadora.

74. Como a sutura não cicatrizava, no dia 22 de Janeiro de 2003, a autora foi internada no Hospital de S… A…, onde foi observada por um cirurgião.

75. No dia 4 de Fevereiro de 2003, foi a autora submetida a nova intervenção cirúrgica, para reconstrução do trânsito intestinal com coloproctostomia termino terminal e correcção de eventração.

76. No dia 10 de Fevereiro de 2003, em face de seroma da ferida operatória, foi efectuada drenagem da mesma com abertura parcial da ferida.

77. Em face de supuração da ferida operatória foi efectuado abertura da mesma em quase toda a sua extensão.

78. No dia 3 de Novembro de 2003 foi concedida à autora alta médica.

79. Depois do internamento referido em 74. a autora regressou a casa.

80. Após o que, continuou a receber assistência da enfermeira do Centro de Saúde e dos seus familiares.

81. E a ser consultada no Hospital de S... A... em regime ambulatório.

82. Onde efectuou tratamentos de medicina física de reabilitação (fisioterapia).

83. Após ter recuperado a consciência a autora apercebeu-se da gravidade da situação, tendo plena consciência de que correra perigo de vida.

84. Como consequência directa e necessária dos factos supra descritos e do que consta de 37., a autora apresenta, como sequelas com carácter permanente:

 - cicatriz no abdómen, com 34 cm de cumprimento e com 1 centímetro de largura, máxima, estendendo-se ao hipogastro, facilmente visível;

  - cansaço frequente;

  - diminuição de auto-estima;

  - mal-estar no abdómen.

85. Como consequência dos mesmos factos, e do que consta de 37., a autora sofreu muitas dores.

86. Sofreu de grande angústia, ansiedade e revolta, que ainda hoje sente.

87. Não fosse a rápida intervenção dos técnicos do Hospital de S… A…, a autora não teria sobrevivido e teria perdido a vida naquele dia.

88. A autora ainda hoje sofre com as sequelas resultantes da lesão de que foi vítima.

89. Sequelas estas que jamais desaparecerão e a acompanharão até ao resto da sua vida.

90. Após a ocorrência dos factos supra descritos, a autora padeceu de angústias e sofrimentos múltiplos e receou pela própria vida.

91. Toda a evolução das lesões sofridas foi para a autora um tormento, na medida em que durante cerca de um ano, não viu muitas melhoras do seu estado de saúde.

92. A sutura permaneceu cerca de 13 meses até à cicatrização completa.

93. Ao longo desse tempo teve muitas complicações de saúde relacionadas com as lesões de que foi vítima, e que originaram as várias intervenções cirúrgicas a que foi submetida.

94. Foram imensas as noites em que não dormiu, devido às dores que sentia.

95. Foram imensos os dias em que chorou.

96. Durante um período de vários meses após a alta hospitalar, a autora foi portadora de colostomia (portadora de saco que armazena as fezes).

97. O que a envergonhava bastante.

98. Sempre que saía à rua, a autora passava imensos tormentos, tendo sempre a sensação de que exalava um mau cheiro e que as outras pessoas se apercebiam do mesmo, sofrendo muito com isso.

99. Achava sempre que as pessoas se afastavam dela, devido ao mau cheiro que exalava.

100. A autora sentia-se pois envergonhada e humilhada pela situação em que se encontrava e para a qual em nada contribuiu.

101. Toda esta situação gerou na autora um sentimento de tristeza profundo.

102. Como consequência dos factos descritos, a autora apresenta actualmente um agravamento de doença depressiva.

103. O que acarreta uma limitação da sua autonomia pessoal.

104. À data do incidente, a autora era uma mulher completamente independente.

105. Exercia a profissão de enfermeira e estava profissionalmente activa.

106. Era uma mulher habitualmente alegre e bem-disposta.

107. Após a lesão de que foi vítima, a autora não mais voltou a trabalhar.

108. A autora é actualmente uma mulher triste.

109. Como consequência dos factos descritos a autora apresenta uma incapacidade permanente geral de 16 pontos.

110. A execução das tarefas diária implica, para a autora, esforços suplementares.

111. A autora jamais esquecerá todo o sofrimento, dor e tormentos por que passou.

112. Como consequência directa e necessária das lesões sofridas, a autora é actualmente portadora de cicatrizes que resultaram na sequência das intervenções cirúrgicas a que foi sujeita.

112. A autora é portadora de uma cicatriz na base da face anterior do pescoço resultante da traqueostomia a que foi sujeita, com 5 cm de comprimento e 3 mesmo de largura.

113. As referidas cicatrizes são facilmente visíveis.

114. O que suscita na autora um sentimento de vergonha e desgosto.

115. Que é determinante no tipo de roupas que veste.

116. Após a ocorrência dos factos descritos nos presentes autos, a autora nunca mais foi à praia.

117. Sente imensa vergonha e desconforto em expor a todos os olhares, as referidas cicatrizes que lhe cobrem o corpo.

118. Em data anterior, a autora não era portadora de qualquer cicatriz.

119. Em consultas médicas realizadas na sequência da lesão sofrida, a autora despendeu, pelo menos, a quantia de € 618,98.

120. Na sequência da lesão sofrida, na compra de medicamentos, despendeu a autora quantia não concretamente apurada, mas que ascendeu, pelo menos, a quantia de € 2.000,00.

121. Em exames e tratamentos efectuados na sequência e por via da lesão sofrida, despendeu a autora, pelo menos, a quantia de € 147,90.

122. Na compra de uma cadeira de rodas despendeu a autora a quantia de € 199,00.

123. O exame em apreço nestes autos foi realizado nas instalações da segunda ré, com aparelhos médicos pertencentes à mesma.

124. E com o seu acordo e autorização.

125. À data dos factos, o primeiro réu prestava serviços à segunda ré, sendo remunerado por esta, tendo efectuado o exame em questão no âmbito dos serviços que lhe estava a prestar na altura.

126. A autora pagou o valor em que orçou o dito exame, à segunda ré.

127. A perfuração do intestino é uma complicação rara que pode ocorrer na realização de um exame de colonoscopia, mesmo cumprindo-se com as regras de boa prática da medicina.

128. O resultado da ecografia abdominal a que a ré foi submetida, revelou a existência de uma pequena quantidade de líquido intraperitonal.

129. A Autora, depois de aberta a respectiva ficha de urgência, foi observada pelas 12.15 horas por um dos médicos que se encontrava nos serviços de urgência do Hospital de S. … do Porto, o qual trocou impressões, depois, com o Réu BB sobre os exames que haviam de ser realizados à Autora.

130. Tais exames, análises ao sangue, raio x abdominal simples e ecografia abdominal foram realizados cerca das 14 horas.

131. À Autora foram administrados analgésicos.

132. A autora abandonou, cerca das 22 horas, os serviços de urgência do Hospital de S. ….

133. Tal facto impediu os respectivos serviços médicos de realizarem o respectivo diagnóstico e de adoptarem as medidas adequadas ao mesmo.

 134. A Autora quando contactou o primeiro réu apresentava já um quadro abdominal de dor e obstipação.

135. Daí a marcação de consulta com o 1º Réu.

136. E daí também a realização do exame de diagnóstico em análise (colonoscopia) concretamente realizado.

136. Antes da realização do exame em causa à Autora foi administrado à mesma sedativo (sedação consciente).

137. O exame em questão (colonoscopia) não constitui um exame rotineiro, nem tem, na situação em causa, qualquer função curativa.

138. O 1.º réu não teve qualquer participação no serviço de urgência dos hospitais de V… e de S… A….

139. Desconhecendo todo o procedimento e actuação médicas.

140. O 1.º réu é um gastrenterologista com uma vasta experiência, altamente prestigiado e de grande competência, aliás por todos reconhecida.

141. A autora já vinha tendo acompanhamento psiquiátrico antes dos factos a que se refere na sua petição inicial.»


5. A recorrente coloca as seguintes questões (nº 4 do artigo 635º do Código de Processo Civil):


– Eliminação do quesito 180º da base instrutória e da respectiva resposta;

– Qualificação da responsabilidade civil em causa no presente processo;

– Verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e consequente dever de indemnizar.

O recorrido requer subsidiariamente a ampliação do objecto do recurso, no que toca à determinação do montante indemnizatório, apreciando “a questão formulada (relativamente ao ‘quantum indemnizatório’) no recurso apresentado da decisão de 1ª instância”, ou remetendo o processo à Relação para que a aprecie.

EE – Portugal, Companhia de Seguros, SA também questiona o montante da indemnização fixada em 1º Instância.

6. O quesito 180º tinha a seguinte redacção (fls. 512): “O exame (colonoscopia) foi feito com respeito LEGIS ARTIS do ofício?”

No julgamento da matéria de facto, de fls.1282 e segs., respondeu-se a este quesito “Não provado” (fls. 1292), com a seguinte justificação (fls. 1299): “Quanto aos factos constantes do quesito 180º, julgados não provados, cumprirá ainda mencionar que de nenhum dos meios de prova produzidos poderá concluir-se com segurança pela sua realidade, inexistindo qualquer meio de prova contundente e inequívoco susceptível de os confirmar, não permitindo assim a formação de uma convicção positiva quanto a eles”.

No recurso de apelação, este julgamento foi impugnado. Mas o tribunal da Relação entendeu que tal quesito tinha uma “manifesta formulação conclusiva”, correspondendo no fundo ao «“thema decidendum” da acção», sendo insusceptível de resposta; por esta razão, considerou não escrita a resposta que lhe foi dada.

É incontestável que, tendo em conta o regime processual então vigente, com as regras que se conhecem no que respeita à construção da base instrutória e ao formalismo relativo à produção da prova, não podia servir de base a essa prova um quesito assim redigido, sem identificação das concretas regras ou procedimentos cuja observância estava em causa; e é igualmente incontestável que, a ser aceitável e admissível, uma resposta positiva equivaleria ao julgamento de uma questão de direito da maior relevância na acção.

No entanto, a verdade é que a resposta negativa torna irrelevante o modo como o quesito foi formulado, pois nada acrescenta à prova.

Como é evidente, o julgamento de não provado que determinadas regras foram cumpridas não equivale a um julgamento de que essas mesmas regras não foram cumpridas; regras essas, aliás, cujo conteúdo também carecia de ser provado. Apenas significa que não há prova, havendo então que aplicar, para decidir de direito, as regras que repartem o ónus da prova entre as partes da acção, quanto aos factos que ficaram por provar.

Mas, seja como for, trata-se de um quesito construído de uma forma que o inutiliza; razão pela se não altera a decisão da Relação, quanto a este ponto; para além do mais, o que o recorrente pretende é inútil, como se disse.

7. A recorrente discorda da qualificação como contratual da responsabilidade civil em que baseia o pedido de indemnização, pugnando pela recuperação da qualificação escolhida em 1ª Instância, de responsabilidade extra-contratual. Subsidiariamente, sustenta que o seu pedido também seria procedente à luz das regras da responsabilidade contratual.

Como todos sabemos, no tratamento jurisprudencial e doutrinal da responsabilidade civil por acto médico tem sido repetidamente apontada a necessidade de ultrapassar essa distinção e as diferenças de regime que, pelo menos num ponto central – o ónus da prova da culpa do lesante –, se encontram na regulamentação genérica de uma e outra modalidades de responsabilidade civil (cfr., a título de exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 19 de Junho de 2001, www.dgsi.pt, proc. nº 01A1008).

O caso concreto, porém, tendo em conta a prova feita, reveste-se de uma relativa simplicidade, quer do ponto de vista dos factos, quer na perspectiva do direito.

Com efeito, vem provado que, por acordo entre a autora e o réu BB, foi celebrado um contrato, destinado à realização de um exame médico – colonoscopia –, que efectivamente foi efectuado; e não se questiona na acção o resultado do exame (cfr. em especial os pontos 3, 4, 5, 135 e 136, 9 e 10, dos factos provados).

Sabe-se que se trata de um exame que não é rotineiro e que não teve, no caso concreto, “qualquer função curativa” (ponto 137).

Vem provado que, no decurso do exame – na execução do exame contratado – ocorreu uma perfuração do intestino da autora e que a causa dessa perfuração foi a execução da colonoscopia (pontos 36 e 37); e ainda que se trata de uma “complicação rara que pode ocorrer na realização de um exame de colonoscopia, mesmo cumprindo-se com as regras de boa prática da medicina” (127).

Finalmente, sabe-se ainda que o réu BB é um médico gastroenterologista reconhecidamente de “vasta experiência, altamente prestigiado e de grande competência” (140).

A prova não revela – não interessando agora apurar se a alegação das partes permitira ou não saber –, nomeadamente, que procedimentos foram efectivamente seguidos por BB na execução da colonoscopia, de forma a formar um juízo sobre se correspondem (ou não) às boas práticas da medicina, ou sobre se BB usou (ou não) da diligência exigível no caso, no plano dos factos e do direito.

Finalmente, sabe-se que, em consequência da perfuração intestinal, a ré sofreu diversos danos, com relevância para os danos não patrimoniais, como consta de inúmeros pontos da matéria de facto provada; e sabe-se também que, depois da realização da colonoscopia, houve intervenção de terceiras entidades (Hospital da Nossa Senhora da Conceição de V…, Hospital de S. … e Hospital de S… A…) no diagnóstico e tratamento da perfuração. Desconhece-se, todavia, em que medida essas intervenções (aqui incluindo eventuais omissões) poderão ter contribuído para o agravamento dos danos. Sabe-se que não foram a causa dos danos – a causa foi a perfuração –; mas ignora-se se ou em que medida poderão tê-los agravado.

8. Trata-se de um contrato destinado à realização de um exame médico – um contrato de prestação de serviços médicos (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 08A183) , sem função curativa; e não se questiona a correcção do resultado do exame (diferentemente do caso que se apreciou no acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de Janeiro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 9434/06.6TBMTS.P1.S1). Não tem pois utilidade procurar determinar, no caso concreto, se a obrigação que o médico assumiu perante a autora deve ser havida como uma obrigação de meios ou de resultado, para o efeito de definir o conteúdo da obrigação contraída e, assim, apurar o seu cumprimento ou incumprimento (cfr. o citado acórdão de 4 de Março de 2008). Vem assente que o réu BB assumiu e executou a obrigação de realizar a colonoscopia e deu a conhecer à autora o correspondente resultado.

Na execução da obrigação contratualmente assumida, BB perfurou o intestino da autora.

Ora, poder-se-á questionar se essa perfuração deve ser considerada como que desligada do contrato em execução (estranha à execução do contrato, escreve-se na sentença), e tratá-la como uma agressão à integridade física da autora e, por esse facto, como geradora de responsabilidade civil extra-contratual. Foi a via seguida em 1ª Instância, que considerou assim preenchido o pressuposto do acto ilícito, deu como verificados o nexo de causalidade e o dano e, quanto à culpa, baseou-a, no fundo, numa presunção natural, retirada dos factos provados, concluindo que incumbiria ao médico o “ónus de alegação e prova de que as lesões provocadas não tiveram nada a ver com uma actuação deficiente” da sua parte: “perante a matéria em causa, há que conclui que o réu actuou culposamente, não logrando provar que efectuou a colonoscopia cumprindo todas as exigência técnicas e todos os deveres de cuidado que conhecia e que podia observar (como, aliás, alegou), sendo a sua conduta profissional tanto mais censurável quanto é certo que o réu se trata, não apenas de um especialista, mas de um gastroenterologista experiente, reputado e, logo, há que concluir-se, com conhecimentos e capacidades acima da média”.

Mas a Relação deslocou a questão para o cumprimento imperfeito do contrato de serviços médicos e veio a concluir que, no caso, não estava preenchido o pressuposto da ilicitude (“não se apurou que no decurso do exame tivesse havido por parte do réu qualquer afastamento das boas práticas da medicina”), não cabendo curar dos demais. Referiu, no entanto, que, a ter-se provado a ilicitude, a autora beneficiaria de uma presunção de culpa do réu.

No entanto, a justificação da Relação, no que toca à não verificação da ilicitude, não se afigura adequada à obrigação concretamente assumida no caso dos autos, que se não pode analisar como se de uma obrigação de meios se tratasse; numa situação dessas – como ocorrerá, por exemplo, com a realização de uma intervenção cirúrgica ou com a definição de um tratamento, em ambos os casos com função curativa (não vem agora ao caso analisar a especificidade das intervenções ou tratamentos com finalidade estética) – é que se poderia ponderar se o médico estaria apenas vinculado a actuar segundo as regras da arte, utilizando o seu melhor saber, e não a obter a cura, ou a melhoria pretendida.

Mas a inadequação da conclusão de que não se demonstrou a prática de um acto ilícito não significa que se deva desconsiderar o enquadramento contratual da actuação do réu e dos danos dela resultantes.

Na verdade, a perfuração do intestino ocorreu durante e por causa da execução do contrato destinado à realização de um exame médico; independentemente de encontrar a construção juridicamente mais correcta, a verdade é que objectivamente ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada.

Com esta afirmação quer-se dizer que, em si mesmo, o exame foi uma intromissão na integridade física, natural e necessariamente consentida e pretendida pela autora; assim sucederá, em regra, com os exames médicos. Mas esse consentimento ou pretensão da autora não abrange a lesão em discussão neste processo.

Poder-se-á sustentar que se não se tratará (ou não se tratará apenas) de um cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos, mas da lesão do direito à integridade física da autora, ocorrido no âmbito e por causa da execução do contrato; no entanto, esta ligação intrínseca significa que o regime aplicável às consequências dessa execução deve ser o regime da responsabilidade contratual. Aliás, dificilmente se poderá sustentar que a protecção da integridade física do paciente não integra o âmbito de protecção de um contrato de prestação de serviços médicos.

9. Sabe-se que a realização da colonoscopia implica a utilização de métodos dos quais pode resultar a perfuração do intestino, ainda que raramente (cfr. ponto 127 da matéria de facto); o que significa que o profissional que a executa há-de adoptar os procedimentos próprios do exame com a específica preocupação de tentar evitar que haja perfuração.

Pode assim entender-se que está em causa um “dever imposto pela regra de que, no cumprimento dos contratos, cada contraente deve ter na devida conta os interesses da contraparte (nº 2 do artigo 762º do Código Civil); e que, sendo violado”, acarreta a responsabilidade do médico, nos termos próprios da responsabilidade contratual (artigo 798º do Código Civil). A frase que se transcreveu consta do acórdão deste Supremo Tribunal de 1 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 623/09.2YFLSB, que não versou sobre um caso de responsabilidade médica, como agora sucede, mas no qual também se tratava da lesão de um direito absoluto (então o direito de propriedade) ocorrida na execução de um contrato, no caso, de empreitada.

O apelo a este acórdão destina-se a mostrar o ponto comum às duas situações em apreciação. Também está em causa no caso presente a “violação” de “deveres de protecção, de conduta ou laterais (para referir algumas das designações que têm sido utilizadas) caracterizados “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”, resultantes da sua “conexão com o contrato” (Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, reimp, Coimbra, 1982, pág.337 e segs.)”.

Como ali se dá nota e todos sabemos, há divergências quanto ao enquadramento da violação de tais deveres no âmbito da responsabilidade contratual ou extra-contratual. E “sabe-se igualmente que, embora unificados pela função desempenhada, têm conteúdos muito diversos, englobando deveres tão distintos como “deveres de informação e conselho, de cooperação, de segredo e não concorrência, de custódia e de vigilância, de lealdade, etc” (a exemplificação é de Manuel Carneiro da Frada, Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, pág. 40), que Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil, I, Coimbra, 1984, pág. 604) agrupa em “deveres de protecção, de esclarecimento e de lealdade”.

Aqui como ali, no entanto, entende-se que não vem ao caso “optar, em tese geral, pela aplicação do regime da responsabilidade contratual (por exemplo, Mota Pinto, op. cit, pág. 342) ou extra-contratual (por exemplo, Pedro Romano Martínez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 2001, pág. 253) a todas as situações (realmente diversificadas) que podem reconduzir-se à sua violação”; mas que, também aqui, a apontada ligação entre a realização da prestação principal e o risco de perfuração do intestino torna especialmente desadequado analisar o dever do médico «à luz do “dever geral de cuidado da área delitual” (expressão de Manuel Carneiro da Frada, op.cit., pág. 275)».

10. Como resulta da prova (o mesmo ponto 127), em abstracto, a perfuração do intestino pode ocorrer ainda que sejam adoptados os procedimentos devidos na realização de uma colonoscopia.

Não vem provado, nem que esses procedimentos tenham sido (ou não) seguidos, nem que tenha ocorrido qualquer facto que, apesar de o réu ter actuado em conformidade com as boas práticas e com toda a diligência e cuidado a o exame exigiam, possa justificar a perfuração – força maior, facto do lesado, qualquer outro facto explicativo.

Na dúvida, e porque aquela ligação intrínseca atrás referida o justifica, deve aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual (nº 2 do artigo 799º do Código Civil), presumindo-se a culpa do réu. Caberia ao réu ilidir essa presunção (nº 1 do artigo 344º do Código Civil), demonstrando que procedimentos adoptou, a adequação desses procedimentos e os actos que concretamente praticou para evitar a perfuração.

Na dúvida, presume-se a culpa; e, estando provados os demais pressupostos da responsabilidade civil, como estão, o pedido de indemnização tem de proceder. Recordem-se os danos que constam da lista de factos provados e a prova do nexo naturalístico de causalidade entre a colonoscopia e a perfuração, e entre esta e aqueles danos, o que preenche o pressuposto da causalidade adequada, tal como definida no artigo 563º do Código Civil.

Como se sabe, no âmbito da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual), a lei portuguesa consagra a teoria da causalidade adequada, neste artigo 563º do Código Civil. Significa isto que, para além de fáctica ou naturalisticamente se ter de apurar se uma determinada actuação (acção ou omissão) provocou o dano (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. 1399/06.OTVPRT.P1.S1), cumpre ainda averiguar, tendo em conta as regras da experiência, se era ou não provável que da acção ou omissão resultasse o prejuízo sofrido, ou seja, se aquela não realização é causa adequada do prejuízo verificado. É necessário que, em concreto, a acção (ou omissão) tenha sido condição do dano; e que, em abstracto, dele seja causa adequada (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ªed., Coimbra, 2000, pág. 900). O que, no caso presente, manifestamente ocorre.

Finalmente, recorde-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem adoptado a orientação de que os danos não patrimoniais podem ser indemnizados, no âmbito da responsabilidade contratual. Como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 24 de Setembro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 09B0368, «o Código Civil português, embora trate em conjunto da obrigação de indemnizar (artigos 562º e segs.), regula separadamente a responsabilidade extra-contratual (artigo 483º e segs.) e a responsabilidade contratual (artigo 798º e segs.); e inclui naquela o regime da indemnização por “danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. É no entanto igualmente certo que não exclui do âmbito possível da responsabilidade contratual a responsabilidade por danos desta natureza; como se observa por exemplo no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Abril de 2003 (www.dgsi.pt, proc. nº 03B809), “as mencionadas normas dos artº798º, e segs., não o prevendo, também o não excluem”».

Não se levanta, no caso, nenhuma dúvida de que estão provados danos com gravidade suficiente para serem indemnizáveis (nº 2 do artigo 496º do Código Civil).

11. A conclusão a que se chegou quanto ao ónus da prova da culpa, no caso concreto, não significa, nem o desrespeito das regras legais de repartição do ónus da prova, nem a adopção de um método semelhante ao que é defendido pelos defensores de uma repartição dinâmica do ónus da prova, que o direito português não consente. A lei portuguesa reserva a si própria essa repartição e apenas permite que o juiz a modifique nos termos apertados do nº 2 do artigo 344º do Código Civil (“quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado”)

Significa, apenas, a aplicação de um bloco de normas definidas para a responsabilidade contratual, formalmente justificada pela conexão descrita, e materialmente fundada na manifesta maior dificuldade que a autora tem em provar, pela positiva, que a perfuração do intestino ocorreu apesar de o réu ter adoptado todos os procedimentos devidos e agido com a diligência e o cuidado exigíveis, em comparação com a dificuldade que recairá sobre o réu; afinal de contas, estão em causa actos que o réu praticou, próprios da sua profissão, a que especificamente se obrigou por contrato com a autora (cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Maio de 2003, www.dgsi.pt, proc. nº 03P912)..


12. O recorrido BB alega que “não se vislumbra como é que o Réu Médico pode ser acusado de determinados consequências e danos, quando, de permeio, existe a intervenção de inúmeros profissionais da medicina que fizeram análises e diagnósticos à Recorrente, sem qualquer intervenção do Réu Médico”, concluindo que não pode ser responsabilizado pelos danos alegados, já que “no concreto e específico enquadramento factual em causa nos autos, nunca se verificaria igualmente o nexo de causalidade (indispensável e necessário) à alegada ofensa (colonoscopia) e dano verificado”.

Mas não tem manifestamente razão. Como se deixou já dito, está provado que a causa da perfuração foi a realização da colonoscopia; e não quaisquer actos ou omissões desses intervenientes, que não são manifestamente causa adequada da perfuração. Admite-se, todavia, que possam ter concorrido como causa causas complementares, provocando o agravamento dos danos subsequentes.

Sucede, no entanto, que os réus Hospital de S. João e Hospital ..., de V..., foram absolvidos da instância; e que o Hospital de S... A... nem sequer foi demandado nesta acção.

Não há, pois, nem alegação, nem prova que possibilite, nesta acção, apurar eventuais responsabilidades de tais entidades. A situação é, assim, diferente da que foi objecto de apreciação no acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de Julho de 2006, www.dgsi.pt, proc. nº 06A1503, na qual se excluiu qualquer responsabilidade do médico por complicações posteriores à intervenção que realizou: “III - O médico cirurgião e o hospital não respondem civilmente se os danos morais cuja reparação a doente exige se traduzirem na angústia originada por uma complicação pós-operatória para cujo surgimento não concorreu qualquer erro cometido no decurso da operação”

13. O acórdão recorrido não se pronunciou sobre o montante indemnizatório a atribuir à autora. Tendo concluído pela não verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar, ficou naturalmente prejudicada a apreciação dessa questão.

Contrariamente ao que ocorria no domínio do Código de Processo Civil anterior, o Código de 2013 não permite que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie questões das quais a Relação não conheceu, designadamente por as considerar prejudicadas; compare-se o resultado da conjugação entre os actuais artigos 679º e 665º, com aquele que decorria da conjugação entre os anteriores artigos 726º e 715º, preceito do qual apenas se excluía a aplicação do respectivo nº 1.

Assim sendo, há que julgar procedente o recurso, quanto ao preenchimento dos pressupostos da obrigação de indemnizar; mas que remeter o processo ao Tribunal da Relação do Porto para que se pronuncie sobre o montante da indemnização, como, aliás, requereu, subsidiariamente, o réu BB.


14. Nestes termos, determina-se o envio do processo ao Tribunal da Relação do Porto para que aprecie o montante indemnizatório a atribuir à autora, pelos mesmos juízes que proferiram o acórdão recorrido, se for possível.


Custas de acordo com o vencimento que se apurar a final.»


II. BB arguiu a nulidade do acórdão, indeferida pelo acórdão de fls. 2154; e, após o trânsito em julgado do acórdão de fls. 2043, interpôs recurso para uniformização de jurisprudência, indeferido pelo despacho de fls. 491 do apenso, despacho confirmado pelo acórdão de fls. 520.

III. Foi então proferido pelo Tribunal da Relação do Porto o acórdão de fls. 2381, que, “na sequência do determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça”, veio a fixar a indemnização a pagar à autora em € 80.000,000 por danos não patrimoniais e em € 2.965,88 por danos patrimoniais, assim condenando os réus EE Portugal – Companhia de Seguros, SA e BB e esclarecendo que as referidas quantias “se encontram cobertas pelo seguro efectuado pelo réu” e que, quanto ao mais, se mantinha o decidido em 1ª Instância.

AA recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, defendendo a manutenção do que havia sido decidido em 1ª instância no que toca à indemnização por danos não patrimoniais (€ 150.000,00), pelos motivos seguintes (transcrevem-se das conclusões das alegações):


«(…)

7 - Desde logo porque o ÚNICO CRITÉRIO que o Tribunal da Relação levou em conta para apreciar o montante indemnizatório atribuído à autora era se este era maior do que a Jurisprudência tem entendido para o dano pela perda do direito a vida, cujo montante situa-se nos €80.000,00.

8o - E assim, porque a indemnização era maior, o Douto Tribunal da Relação logo tratou de a reduzir para os €80.000,00 e NÃO LEVOU EM CONTA os concretos danos sofridos pela autora explanados na matéria de facto dada como provada

(…)

11° - Ou seja o Douto Tribunal de Primeira Instancia de forma extensa, minuciosa e lúcida percorreu e ponderou os concretos danos sofridos pela autora, para de forma adequada fundamentar e fixar o montante indemnizatório de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a título de danos não patrimoniais.

12° - Exigia-se que o Douto Tribunal da Relação, para apreciar se o montante fixado à autora é justo e adequado deveria apreciar em concreto os danos sofridos por esta e sindicar a convicção formada pelo Tribunal de Primeira Instancia, e formar sobre tais pontos a sua própria convicção.

13° - O Douto Tribunal da Relação não apreciou os concretos danos sofridos pela autora, não apreciou o julgamento realizado pela Primeira Instancia e resumiu a sua actuação a diminuir a indemnização atribuída à autora por esta ser superior ao que a Jurisprudência tem entendido fixar pelo dano de perda de vida.

14° - O Douto Tribunal da Relação não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificassem a sua decisão e omitiu a sua pronúncia sobre o julgamento realizado pelo Tribunal da 1a Instancia.

15° - Fica-se por saber se os danos sofridos pela autora, ao contrário do que foi devidamente fundamentado pelo Douto Tribunal de Primeira Instancia, são ou não suficientemente graves.

(…) 16° - O que sabemos é – porque a indemnização é superior ao fixado para a reparação do direito à vida, esta deve ser diminuída.

17° - Por isso, impõe-se a revogação do douto acórdão, com as devidas e legais consequências, suprindo as nulidades e concedendo a revista.

18° - Pois, conforme foi devidamente fundamentado pelo Douto Tribunal de Primeira Instância, os sofrimentos e transtornos sofridos pela a autora merecem a tutela do direito e de acordo com o artigo 496° do CCivil são indemnizáveis.

19° - O chamado "quantum doloris" não é mensurável, mas há na listagem da matéria de facto dados bastantes para concluir que foi elevado. (…)

(…) 21° - A lei - artigos 562.° e 496.° CC – manda atender sempre a um critério de equidade, com base na ponderação dos factores previstos no art. 494.° – grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso.

22° - O juízo equitativo não pode deixar de ter em consideração o sistema económico – poder aquisitivo da moeda e características e condições gerais da economia – em que a compensação vai operar, sem esquecer que nos movemos em campo do maior relativismo e subjectividade.

23° - Ora, foi fixado a este título a quantia de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) pelo Douto Tribunal de Primeira Instancia.

24° - Entendeu-se e ponderou-se nessa Douta Decisão (...) o considerável período de convalescença, as 5 intervenções cirúrgicas, tratamentos e fisioterapia, o facto de ter sofrido dores intensas e durante muito tempo, tudo inserido no contexto da relativa gravidade das sequelas que apresenta a autora, com, além do mais, cicatrizes visíveis, permanentes e extensas, perda de alguma autonomia, angústia, vergonha, perigo de vida, de que se apercebeu, repercussões das sequelas ao nível da auto-estima da autora, que deixou de ir à praia e vê condicionada a sua escolha de roupas, o período de dependência de terceiros (...).

25° - O Douto Tribunal da Relação NÃO FEZ, uma adequada ponderação deste quadro, aliás, não fez qualquer ponderação a esse título.

26° - Apenas chamou à colação os valores que actualmente se atribuem pela perda do direito à vida, não reconhecendo que além dos danos supra descritos sofridos pela autora, esta continuará a sofrer, a suportar as dores, a sensação de dependência e a sua incapacidade.

27° - O Douto Tribunal da Relação não levou em conta que os factos em discussão nos presentes autos ocorreram em Junho de 2002, ou seja há 14 ANOS!!!

 28° - O Douto Tribunal da Relação não levou em conta que à data dos factos a Autora era uma mulher activa profissionalmente, exercia a profissão de enfermeira, era uma mulher habitualmente alegre e bem-disposta e que após a lesão de que foi vítima, a autora não mais voltou a trabalhar e é, actualmente, uma mulher triste.

29° - O quadro apresentado pela matéria de facto dada como assente justifica o valor atribuído pela Primeira Instância de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a título de danos patrimoniais, que por ser justo, se deve manter.

30° - O Douto Tribunal da Relação estava obrigado a realizar um juízo equitativo, analisando os danos sofridos pela autora, e apresentar qual o critério que define que as sequelas apresentadas pela autora não são justificativas de uma indemnização superior aos valores fixados para a reparação do direito à vida.

31° - O Douto Tribunal da Relação omite essa informação, e de uma forma puramente conclusiva, justifica a diminuição do valor atribuído à autora por ser superior aos valores fixados para a reparação do direito à vida.

Sem prescindir,

32° - A autora, aqui recorrente, não pode também concordar, com o entendimento que os danos não patrimoniais sofridos pela autora devem ter como BALIZA os valores atribuídos pela reparação do direito à vida.

33° - Se é certo que o direito à vida é o direito absoluto de que emergem todos os outros direitos, também é certo que o valor atribuído pela perda desse direito tem como objectivo ressarcir apenas esse mesmo direito.

34° - Ou seja, em caso de morte do lesado, e de acordo com os n° 2 e 3 do Código Civil resultam três danos não patrimoniais indemnizáveis: o dano da perda do direito à vida (ou dano da morte); o dano sofrido pela vítima antes de morrer; e o dano sofrido pelos familiares em consequência da morte da vítima.

35° - Ou seja, os €80.000,00, é o valor que a Jurisprudência tem fixado pelo dano da morte, ao qual acresce, caso seja aplicável a indemnização pelos danos sofridos pela vítima antes de morrer, e os danos sofridos pelos familiares.

36° - Ou seja, o valor de €80.000,00 seria porventura justo e equitativo se fosse esse o valor fixado à autora pelo dano da sua morte, ao qual acresceria sempre os danos sofridos por esta antes de morrer, e que estão explanados na matéria de facto dada como provada.

(…) 40° - A indemnização atribuída pelos danos não patrimoniais sofridos pela autora tem que ter apenas em conta (...)<? considerável período de convalescença, as 5 intervenções cirúrgicas, tratamentos e fisioterapia, o facto de ter sofrido dores intensas e durante muito tempo, tudo inserido no contexto da relativa gravidade das sequelas que apresenta a autora, com, além do mais, cicatrizes visíveis, permanentes e extensas, perda de alguma autonomia, angústia, vergonha, perigo de vida, de que se apercebeu, repercussões das sequelas ao nível dá auto-estima da autora, que deixou de ir à praia é vê condicionada a sua escolha de roupas, o período de dependência de terceiros (...) conforme bem ponderou o Douto Tribunal de Ia Instancia.

41° - Limitar o valor da indemnização ao limite do dano morte, é, com o devido respeito uma sonegação da JUSTIÇA! Pelo que deve ser mantida a Douta Decisão proferida em Ia Instancia.

42° - O Douto Acórdão recorrido violou entre outras as normas dos art°s 494°, 496° e 562° do Código Civil; e os art°s 615° do Código de Processo Civil.

43° - O Douto Acórdão recorrido violou entre outras as normas dos art°s 496° do Código Civil; e os art°s 615° do Código de Processo Civil.


Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogar-se o douto acórdão recorrido por nulo, substituindo-o por outro que julgue totalmente improcedente os recursos interpostos pelos réus BB e EE Portugal – Companhia de Seguros S.A., e consequentemente mantenha a Douta Sentença proferida em Primeira Instância.»


Os réus BB e FF – COMPANHIA DE SEGUROS, SA, anteriormente EE PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, SA contra-alegaram, sustentando que se deve negar provimento ao recurso.

Em síntese, os recorridos refutaram pormenorizadamente as objecções apontadas ao acórdão recorrido, recordando os factos que ficaram provados e que, em seu entender, a recorrente não pondera na alegação de recurso, e referindo jurisprudência com a qual o caso deve ser confrontado, no sentido de que o acórdão recorrido “fixou a indemnização mais adequada a ressarcir os danos sofridos pela recorrente” (alegações da recorrida Companhia de Seguros).

IV. A matéria de facto que vem provada consta da transcrição acima efectuada.

Estão em causa neste recurso as seguintes questões:

– Nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação;

– Montante da indemnização por danos não patrimoniais.

V. Antes de as apreciar, cumpre todavia observar que não são manifestamente fundadas as observações dirigidas ao acórdão recorrido, imputando-lhe falta de análise da sentença, fixação num único critério de cálculo da indemnização ou desconsideração dos “danos não patrimoniais, no presente caso de evidente gravidade” (pág. 45 do acórdão recorrido), sofridos pela recorrente. Assim:

– Da leitura do acórdão recorrido resulta com clareza que não é exacto que “o único critério que (…) levou em conta para apreciar o montante indemnizatório (…) era se este era maior do que a jurisprudência tem entendido para o dano pela perda do direito à vida” (cfr. concl. 7ª), tendo logo tratado (sic) de reduzir a indemnização, sem considerar os danos concretos (concl. 8ª), sem formar “a sua própria convicção” (concl. 12ª);

– De forma alguma se pode dizer que resulte do acórdão recorrido que se fica sem saber “se os danos sofridos pela autora (…) são ou não suficientemente graves” (concl. 15ª);

– É ostensivamente desconforme com a fundamentação do acórdão recorrido sequer sugerir que se pode “afirmar que ao limitar a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos lesados ao montante atribuído ao dano da morte, o lesado é CASTIGADO por ter sobrevivido” (conl. 39º), inserindo tal afirmação no contexto das conclusões 32ª e segs., como se tal afirmação pudesse resultar da mesma fundamentação;

– A Relação não alterou a condenação no pagamento de juros de mora feita com referência ao momento da sentença; aliás, afirma-se expressamente no acórdão recorrido que se altera o montante da indemnização mas que, “no mais, mantém-se o decidido”.

 Não é portanto exacto que a Relação não tenha levado “em conta que os factos em discussão nos presentes autos” tenham ocorrido “em Junho de 2002, ou seja há 14 anos”.

Ao que acresce que os recursos interpostos da sentença pelos agora recorridos foram admitidos com efeito meramente devolutivo;

– A recorrente discorda de que, do confronto com os valores indemnizatórios que vêm sendo atribuídos pela perda do direito à vida – que, como o acórdão recorrido observa, têm na maioria dos casos oscilado entre os € 50.000,00 e os € 80.000,00 – (cfr. acórdãos de 31 de Janeiro de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, ou de 29 de Outubro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 62/10.TBVZL.C1.S1), se deva concluir que não pode ser conferida à autora uma indemnização superior a € 80.000,00.

É exacto que já por diversas vezes o Supremo Tribunal de Justiça observou que, em casos de lesados que sobreviveram, por exemplo, a acidentes de viação, com lesões de extrema gravidade, fortemente incapacitantes, esse valor não é limitativo; o mesmo diz o acórdão recorrido, aliás. E, na verdade, o fundamento e o objectivo da indemnização pela perda do direito à vida não é realmente o mesmo que preside à indemnização por danos não patrimoniais de que beneficia o próprio lesado; embora seja exacto que o direito à vida é o mais valioso de todos os direitos pessoais (“representa o bem mais valioso da pessoa e simultaneamente o direito de que todos os outros dependem”, escreveu-se no acórdão de 31 de Janeiro de 2012), não é limitativo o valor habitualmente atribuído por morte, como se observa, por exemplo, no acórdão de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc. nº 07A1734:  “Nada obriga, aliás, a que essa fronteira nunca seja ultrapassada, certo que o artº 496º, nº 1, elege como único critério de aferição a gravidade do dano, conceito eminentemente indeterminado que cabe ao tribunal preencher valorativamente caso a caso No sentido exposto, cfr. os acórdãos deste STJ de 13.5.04 (Revª 1185/04-2ª) e de 13.11.03 (Revª 2961/03-7ª) . E se a vida é o bem jurídico mais valioso, devendo valorar-se a sua perda, obviamente, em termos proporcionados a tal importância, a mesma ordem de razões justifica que se conceda a compensação devida àqueles que, não a perdendo embora, por inteira culpa alheia ficam de um momento para o outro, e até ao final dos seus dias, privados da qualidade mínima a que qualquer pessoa, pelos simples facto de o ser, tem pleno direito. Com maior ou menor dificuldade, consoante os casos, a perda da vida é sempre passível de avaliação em concreto para o efeito prático de se atribuir uma indemnização, fazendo-se corresponder a esse dano um certo e determinado valor em concreto – um valor máximo, se nos é lícito exprimir assim. Já a perda da sua qualidade, quando são graves ou muito graves as lesões sofridas no corpo e no espírito do lesado que sobrevive, torna tudo muito mais difícil, delicado e contingente, pois há a noção de que nenhum dinheiro, por muito que seja, é capaz de compensar certas dores físicas e morais irreversíveis”. Cfr. ainda, por exemplo, os acórdãos de 23 de Outubro de 2018, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2318 ou de 7/10/2010, proc. nº 839/07.6TBPFR.P1.S1;

– Interpreta-se a parte final das alegações corrigindo a referência aos “recursos interpostos pelos réus BB e EE Portugal -–Companhia de Seguros S.A.” como contendo um lapso: neste momento, o que está em causa é, obviamente, o recurso interposto pela autora.

VI. Depreende-se da concl. 14ª e do corpo das alegações que a recorrente vem arguir a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia e por falta de fundamentação de facto e de direito (artigos 615º, nº 1, d) e b) e 666º do Código de Processo Civil).

No entanto, da análise atenta do mesmo acórdão resulta que a arguição é infundada.

VI. a) Ocorre omissão de pronúncia quando a decisão deixa de conhecer de questões sobre as quais tinha que se pronunciar; num recurso, esse âmbito corresponde às questões suscitadas nas alegações, que delimitam o respectivo objecto (nº 4 do artigo 635º do Código de Processo Civil), desde que essas questões não correspondam a questões novas, não colocadas ao tribunal a quo. No caso, e como o acórdão recorrido recorda expressamente, só podia estar em causa o montante indemnizatório a atribuir à autora, uma vez que foi proferido na sequência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 2042.

Ora a recorrente não identifica qualquer questão que o acórdão recorrido tenha deixado de apreciar; antes afirma, aliás sem fundamento, que o mesmo acórdão recorrido “não apreciou os concretos danos sofridos pela autora, não apreciou o julgamento realizado pela primeira instância e resumiu a sua actuação a diminuir a indemnização atribuída à autora por esta ser superior ao que a jurisprudência tem entendido fixar pelo dano de perda de vida” (págs. 7 e 8 das alegações e concl. 13ª).

Ainda que estas afirmações traduzissem com fidelidade o conteúdo do acórdão recorrido, a verdade é que não se enquadram em nenhum motivo de nulidade; apenas espelham a discordância da recorrente relativamente ao modo como nele se decidiu. Improcede a arguição de nulidade.

VI. b) Diz ainda a recorrente que o acórdão recorrido “não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificassem a sua decisão e omitiu a sua pronúncia sobre o julgamento realizado pelo Tribunal da 1ª Instância” (pág. 8 das alegações e concl. 14ª). Mas esta afirmação não corresponde ao julgamento feito no acórdão recorrido, que indica os fundamentos de facto e de direito da decisão; pelo que, sem mais, se indefere também esta arguição de nulidade.

VII. Está em causa neste recurso, apenas, o montante da indemnização por danos não patrimoniais.

Como por diversas vezes se recordou neste Supremo Tribunal (acompanha-se de perto o que se escreveu, por exemplo, no acórdão de 23 de Novembro de 2011 (www.dgsi.pt, proc. nº 90/06.2TBPTL.G1.S1), citado nomeadamente no acórdão de 31 de Maio de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 14143/07.6TBVNG.P1.S1, para a determinação da indemnização a atribuir por danos não patrimoniais, ressarcíveis desde “que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” (nº 1 do artigo 496º do Código Civil), o tribunal há-de decidir segundo a equidade, tomando em consideração “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso” (nº 3 do mesmo artigo 496º e artigo 494º).

Este recurso à equidade não afasta, no entanto, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso. Cumpre “não nos afastarmos do equilíbrio e do valor relativo das decisões jurisprudenciais mais recentes” acórdão de 25 de Junho de 2002 (www.dgsi.pt, proc. nº 02A1321); nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal, de 31 de Janeiro de 2012 (www.dgsi.pt, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1), “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição.”

Tratando-se de uma indemnização fixada segundo a equidade, e como o Supremo Tribunal da Justiça também observou em outras ocasiões (cfr., por exemplo, o acórdão de 28 de Outubro de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº272/06.7TBMTR.P1.S1, em parte por remissão para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 381-2002.S1), “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se o Supremo Tribunal da Justiça é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”.

De modo mais impressivo, escreveu-se no acórdão de 7 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 3042/06.9TBPNF.P1.S1: “Mais do que discutir a substância do casuístico juízo de equidade que esteve na base da fixação pela Relação do valor indemnizatório arbitrado, em articulação incindível com a especificidade irrepetível do caso concreto, importa essencialmente verificar, num recurso de revista, se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados para todos os casos análogos – muito em particular, se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis (…)”.

No caso concreto, ambas as instâncias atenderam às gravosas consequências sofridas pela autora, e que se encontram patentes na lista dos factos provados, acima transcrita.

Encontramos a transcrição na sentença, a fls. 1328-1331 e, a fls. 1332, a respectiva ponderação:

“Assim, tendo presente, o considerável período de convalescença, as 5 intervenções cirúrgicas, tratamentos e fisioterapia, o facto de ter sofrido dores intensas e durante muito tempo, tudo inserido no contexto da relativa gravidade das sequelas que apresenta a autora, com, além do mais, cicatrizes visíveis, permanentes e extensas, perda de alguma autonomia, angústia, vergonha, perigo de vida, de que se apercebeu, repercussões das sequelas ao nível da auto-estima da autora, que deixou de ir à praia e vê e vê condicionada a sua escolha de roupas, o período de dependência de terceiros, julgamos, nesta matéria ajustada à real dimensão e importância dos danos que a autora sofreu, de ordem física, moral e psicológica, aqui se incluindo, o respectivo dano estético, dano biológico – que a autora não incluiu nos danos de natureza não patrimonial, como é suposto – e prejuízo de afirmação pessoal e exposição pública, consubstanciado, na natureza, sede, gravidade das lesões que sofreu e das sequelas com que ficou e tendo ainda presente, o natural desgosto – angústia, vergonha, tristeza – derivado, das sequelas (…)”.

Recorde-se que a 1ª Instância considerou positivamente provada a culpa do réu BB: “o réu actuou culposamente, não logrando provar que efectuou a colonoscopia cumprindo todas as exigências técnicas e todos os deveres de cuidado que conhecia e podia observar (como, aliás, alegou), sendo a sua conduta profissional tanto mais censurável quanto é certo que o réu se trata, não apenas de um especialista, mas de um gastroenterologista experiente, reputado e, logo, há-de concluir-se, com conhecimentos e capacidades acima da média”; e que, a propósito, recordou a “natureza acentuadamente mista” da “indemnização por danos não patrimoniais (…): por um lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civil e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente (…)” e , por outro, a função de proporcionar uma “compensação doloris” ao lesado.

Diferentemente, e em conformidade com o acórdão deste Supremo Tribunal de fls. 2043, o acórdão recorrido partiu de uma situação de falta de prova da culpa atribuída ao réu, e de uma presunção de culpa, como se sabe. Situação essa que o acórdão recorrido recorda, e que, necessariamente, se reflecte na fixação do montante indemnizatório (cfr. artigo 494º do Código Civil) – cfr. pág. 46 respectiva.

Com efeito, o acórdão recorrido, para alcançar o montante de € 80.000,00, após recordar os danos sofridos e a ponderação da 1ª instância, ponderou o seguinte:

“Dispõe o art. 496 nº 1 do Cód. Civil que na fixação da indemnização se deverá atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

  A gravidade desses danos deverá medir-se por padrões objectivos em face das circunstâncias de cada caso, tendo presente que eles emergem directa e principalmente da violação da personalidade humana, não integrando propriamente o património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom nome e a beleza, abrangendo vários danos como os derivados de receios, perturbações e inseguranças, causados pela ameaça em si mesma, e que o seu ressarcimento resulta directamente da lei, assumindo uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória (cfr. Rabindranath Capelo de Sousa in “O Direito Geral de Personalidade”, págs. 458 e 459 e acórdão do STJ de 22.9.2005, proferido no processo n.º 05B2470, disponível em www.dgsi.pt).

   A quantificação dos danos não patrimoniais, no presente caso de evidente gravidade, será feita, tal como preceitua o art. 496º, nº 4 do Cód. Civil, com recurso à equidade, tendo-se em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º, que são o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e as demais circunstâncias do caso que se justifiquem.

   Ou seja, a equidade no que concerne à indemnização por danos não patrimoniais será o critério determinante para a fixação do seu montante, sendo que na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição” (Cfr. Menezes Cordeiro, “O Direito”, 122º/272).

   Porém, a fixação deste montante indemnizatório não pode cair num puro arbítrio judicial nem ser fruto da ponderação aleatória de fatores, devendo-se ter em atenção critérios que se mostrem sedimentados na nossa jurisprudência.

   Neste sentido, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.1.2012 (proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt), que “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição.”

   Ora, no que toca ao dano “morte” no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.6.2015 (proc. 2567/09.0 TBABF.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) referiu-se que se vem consolidando na jurisprudência o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, deve situar-se, com algumas oscilações, entre os €50.000,00 e os €80.000,00.

  Deste modo, em consonância com o que foi entendido em situação muito similar no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.1.2016 desta mesma secção (proc. 5152/10.9 TBVNG.P1, disponível in www.dgsi.pt), tomando em atenção os padrões jurisprudenciais, designadamente no que concerne aos valores fixados pelo bem vida, é de considerar que a indemnização por danos não patrimoniais fixada pela 1ª instância em 150.000,00€ deverá ser reduzida.

   Os elementos factuais já atrás foram referidos, e entre estes avultam o muito significativo sofrimento da autora, o perigo de perda da vida de que se apercebeu, as intervenções cirúrgicas a que foi submetida, a diminuição da auto-estima, o período de dependência de terceiros, as limitações que advieram para a sua vida em face da visibilidade das cicatrizes (deixou de ir à praia e mostra-se condicionada na escolha de roupas). Mas não pode, por outro lado, ignorar-se que a incapacidade geral permanente de que ficou portadora não é muito elevada (16 pontos) e que o grau de culpa do lesante, elemento igualmente a ter em conta, se situa no campo da negligência legalmente presumida.  

  Assim, atendendo àqueles que são os critérios da nossa jurisprudência, nomeadamente para o ressarcimento do bem vida, que no presente caso não devem ser ultrapassados[1], entendemos como justa e adequada à compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela autora a verba de 80.000,00€, pelo que, nesta parte, os recursos interpostos obterão parcial procedência.[2]“.

Esta extensa transcrição destina-se a mostrar que, diversamente do que sustenta a recorrente, o acórdão recorrido ponderou os graves danos sofridos pela autora, quer na sequência imediata da realização do exame médico de colonoscopia, quer quanto às sequelas que a acompanharão ao longo da vida, teve em conta a jurisprudência para casos semelhantes e concluiu com um valor que não merece qualquer censura por parte deste Supremo Tribunal, por ser conforme com a concreta situação dos autos.

VIII. Sempre se acrescenta o confronto com casos objecto de jurisprudência deste Supremo Tribunal que se afigura ser particularmente relevante para o caso concreto.

– No acórdão de 7 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 3042/06.9TBPNF.P1.S1, vinha fixado da 2ª Instância uma indemnização de € 60.000,00 por danos não patrimoniais; na revista, a seguradora pretendia o abaixamento para € 40.000,00 e o lesado sustentava que a indemnização devia ser aumentada para € 150.000,00, tal como pretende a recorrente no recurso agora em apreciação.

O Supremo Tribunal de Justiça, considerando os “traços fundamentais” identificativos do caso (“acidente que envolveu lesões múltiplas, de particular extensão e gravidade, cumulando-se as sempre problemáticas lesões neurológicas, ao nível de traumatismos e contusões crâneo-encefálicas (geradoras de perturbações ao nível cognitivo e psicológico) com extensas e gravosas lesões ortopédicas, insuficientemente consolidadas e ultrapassadas; - afectação relevante e irremediável do futuro padrão de vida de sinistrado ainda jovem, associada, desde logo, ao grau de incapacidade fixado (susceptível de, em prazo não muito dilatado, alcançar praticamente os 40%) - com repercussões gravosas, não apenas ao nível da actividade profissional, mas também ao nível da vida pessoal do lesado.- múltiplas cicatrizes, geradoras do consequente dano estético;- internamentos e tratamentos médico-cirúrgicos muito prolongados, com imobilização do doente e envolvendo dores e sofrimentos intensos”) – e confrontando-o com as “situações-limite de numerosas lesões físicas, de elevada gravidade e sofrimento para o lesado, acarretando profundíssimos sofrimentos e sequelas”  tratadas nos acórdãos de 28 de Fevereiro de 2008, de 25 de Junho de 2009 e de 7 de Outubro de 2010, respectivamente em www.dgsi.pt como procs. nºs 08B388, 08B3234 e 839/07.6TBPFR.P1.S1), considerou adequado o montante indemnizatório de € 90.000,00;

– No proc. nº  08B388, fixou-se em € 125.000,00 a indemnização a um lesado que
esteve em coma profundo durante vários dias,(…); esteve internado em diferentes instituições hospitalares e foi submetido a diversas e delicadas intervenções cirúrgicas e sessões de tratamento e recuperação;
quer durante o internamento quer posteriormente, sofreu muitas dores, intensas privações, aborrecimento e desconforto; continuará a sentir tais dores, privações e aborrecimento, bem como a ter necessidade de tratamentos, nomeadamente fisioterapia, por toda a vida; ficou com limitações físicas graves, com elevado índice de incapacidade, que é total em relação à actividade profissional que exercia; que sente, em consequência das dores, aborrecimentos e privações, depressões, infelicidade, sentimento de inferioridade e de diminuição das suas capacidades, bem como profundo desgosto pela sua total dependência de terceiros, quer para se mover quer para tratar de outros assuntos; ficou com cicatrizes extensas e notórias; está condicionado na mobilidade do seu próprio corpo; há manifestamente um dano decorrente de limitação da sua capacidade de afirmação pessoal; há um decréscimo de qualidade de vida, que mais se acentuará com o decurso do tempo, face às limitações de mobilidade e a um previsível acréscimo do grau de dependência em relação a terceiros”;

– No proc. nº  08B2318, fixou-se em € 180.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais a uma lesada que sofreu ferimentos, dores, tratamentos e demais consequências (…) gravíssimos”, descritos no acórdão, com sequelas permanentes dolorosas e incapacitantes, nomeadamente quanto à mobilidade, também relatadas no acórdão. Note-se que ficou a sofrer de uma IPP de 65%, com incapacidade total para o exercício da profissão habitual, limitação pessoal que também deve ser considerada, no âmbito dos danos não patrimoniais;

– No proc. nº 839/07.6TBPFR.P1.S1, considerou-se não ser “excessiva uma indemnização de €150.000,00, calculada como compensação dos danos não patrimoniais, decorrentes de lesões físicas gravosas e absolutamente incapacitantes, envolvendo uma IPG de 80% e a incapacidade definitiva para qualquer trabalho, com absoluta dependência de terceiros para a realização das actividades diárias e necessidades de permanente assistência clínica, envolvendo degradação plena e irremediável do padrão de vida do lesado.”

No caso concreto, é incontestável que a recorrente sofreu gravemente, na sequência do exame efectuado; basta atentar na lista dos factos provados. Mas é também incontestável que existe uma diferença sobretudo na gravidade das sequelas de que ficou afectada, que desde logo justifica o menor montante indemnizatório atribuído e a confirmação do que foi decidido no acórdão recorrido.


XIX. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 08 de Junho de 2017

Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego

_________________
  [1] Assinala-se, porém, que em situações em que não sobreveio a morte, mas em que as sequelas para o lesado foram muito significativas e determinaram um elevado grau de incapacidade permanente [naturalmente superior ao dos presentes autos], se poderá justificar que a indemnização por danos não patrimoniais ultrapasse os valores normalmente fixados para a reparação do direito à vida. 
  [2] No referido Ac. da Rel. do Porto de 16.1.2016, num caso de contornos bastante próximos em que o grau de incapacidade se situou em patamar inferior (14 pontos) fixou-se a indemnização por danos não patrimoniais em 70.000,00€ (a 1ª instância fixara-a em 144.000,00€).