Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
296/07.7TBMCN.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RESPONSABILIDADE HOSPITALAR
RESPONSABILIDADE MÉDICA
ACTO MÉDICO
ATO MÉDICO
ACTOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
ATOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
PRESUNÇÃO DE CULPA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
MÉDICO
LEGES ARTIS
ÓNUS DA PROVA
DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/23/2017
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DA RÉ SANTA CASA. CONCEDIDA A REVISTA DO RÉU BB. CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA DA AUTORA
Área Temática:
DIREITO BIOMÉDICO - RESPONSABILIDADE MÉDICA.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / RESPONSABILIDADE CIVIL / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª Edição, Almedina, 1039 e ss..
- André Gonçalo Dias Pereira, «Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica», Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 1.ª Edição, 2015, 667-674, 684, 708 e ss. (717).
- André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 670-673, 684.
- António Henriques Gaspar, «A responsabilidade civil do médico», CJ Ano III (1979), Tomo 1, 335 e ss. (340-342), 543.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. 1.º, Almedina, 10.ª Edição, 2006, 584 e 585; Das Obrigações em Geral, Vol .2.º, Almedina, 7.ª Edição, 101.
- Carlos Ferreira de Almeida, «Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico», in Direito de Saúde e da Bioética, A.A.F.D.L., Lisboa, 1996, 75 e seguintes (88).
- Carneiro da Frada, Direito Civil/Responsabilidade Civil – O Método do Caso, Almedina, 2006, 81-82.
- Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, «Responsabilidade Médica …», Scientia Iurida, XXXIII, Janeiro-Abril 1984, 107.
- Nuno Manuel Pinto Oliveira, «Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde, in Responsabilidade Civil dos Médicos», Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 11, 1.ª Edição, 2005, 132, 214-215.
- Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 1990, 410-411.
- Vaz Serra, «Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Representantes Legais ou dos Substitutos», in B.M.J. n.º 72, 286.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 8.º, N.º 3, 70.º, N.º 1, 342.º, N.º 1, 405.º, 494.º, 496.º, N.ºS 1 E 3, 798.º, 799.º, 800.º, N.º 1, 1154.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 11/07/2006, PROCESSO N.º 06A1503, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 07/10/2010, PROCESSO N.º 1364/05. 5TBBCL.G1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 07/06/2011, PROCESSO N.º 160/2002.P1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 15/12/2011, PROCESSO N.º 209/06.3TVPRT.P1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 05/02/2013, PROCESSO N.º 2035/05.8TVLSB.L1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 04/06/2015, PROCESSO N.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 21/01/2016, PROCESSO N.º 1021/11.3TBABT.E1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 28/01/2016, PROCESSO N.º 136/12.5TVLSB.L1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 26/04/2016, PROCESSO N.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :   
I. No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC.   

  II. Porém, o médico poderá também responder perante o paciente a título de responsabilidade civil extracontratual concomitante ou, eventualmente, no âmbito de alguma obrigação negocial que tenha assumido com aquele.

  III. A responsabilidade contratual da instituição prestadora dos cuidados de saúde perante o paciente, ao abrigo do artigo 800.º do CC, será aferida em função dos ditames que o médico “auxiliar” do cumprimento deva observar na execução da prestação ao serviço daquela instituição.

  IV. De um modo geral, tem-se entendido que o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não se reconduz a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente, mas a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis).

  V. Porém, casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir a natureza de obrigação de resultado.

VI. Para efeitos dessa qualificação, não se mostra curial adotar critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de forma casuística centrada no contexto e contornos de cada situação.

VII. Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado (paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC.

VIII. No âmbito da execução do ato médico correspondente ao cumprimento do dever de prestar, importa ainda atentar no dever de proteção na salvaguarda da integridade física do paciente, coberta pela tutela da personalidade, nos termos previstos no artigo 70.º, n.º 1, do CC, na medida em que se mostre estreitamente conexionado com esse cumprimento.

IX. Nessa medida, o reforço daquele dever de prestar por virtude do referido dever de proteção permitirá configurar a ilicitude do ato médico violador da integridade física do paciente, ocorrido em sede da própria execução do cumprimento da obrigação contratual.

X. Assim, num caso como o dos autos em que, no decurso de uma intervenção cirúrgica destinada a colher tecido necrosado na zona da cabeça femoral para permitir a sua revascularização, foi atingido o tronco externo do nervo ciático adjacente pelo manuseamento do instrumento de colheita, ante a emergência de dificuldade de acesso à zona a intervencionar, resultando daí a paralisia daquele nervo, é de considerar verificada a prática de um ato ilícito violador da integridade física do paciente.

XI. Nessas circunstâncias, presumindo-se a culpa do médico operador, incumbirá ao devedor da prestação provar que tal ocorrência não lhe é imputável por falta de cuidado ou de imperícia, nos termos do artigo 799.º do CC. 

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA (A.), beneficiando de apoio judiciário (fls. 10), instaurou, em 08/03/2007, junto do então designado Tribunal Judicial de …, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB (1.º R.), entretanto falecido e ora representado pelas habilitadas CC, DD, EE e FF, e contra a Santa Casa da Misericórdia do …. (2.ª R), alegando, no essencial, que:

. Em meados de 2001, foi detetada à A. uma lesão na cabeça femoral direita, tendo sido encaminhada para os serviços de ortopedia da 2.ª R., onde foi consultada várias vezes pelo 1.º R. Dr. BB, médico ortopedista, contra o pagamento de honorários à 2.ª R., quase sempre de 6.500$00;

. Foi-lhe detetada uma “osteonecrose” numa fase precoce da cabeça femoral direita, tendo, em consequência e por ordem e sugestão do Dr. BB, sido sujeita a intervenção cirúrgica em 03/09/2001, num ato cirúrgico que é tido em meios médicos como muito simples e sem riscos.

. O mau uso das técnicas cirúrgicas empregues - uma técnica denominada “mielectomia”, muito pouco usada já ao tempo por os resultados não serem muito eficazes – teve como consequência a paralisia do ciático da A., à direita, em virtude da qual passou a ter dores intensas;

. Sem aparente solução, foi a A. assistida, ao longo dos três anos subsequentes ao ato cirúrgico pelo 1.º R. e pelos serviços clínicos da 2.ª R.;

. Ao fim de três anos de total sofrimento, a A. foi aconselhada a submeter-se a nova intervenção cirúrgica destinada a corrigir todas as consequências do ato cirúrgico anterior;

. Em 22/03/2004, a A. foi sujeita a outra intervenção cirúrgica, agora com implantação de prótese total da anca direita, tendo tido alta hospitalar em 27/03/2004;

. Em consequência desse ato, a A. ficou totalmente incapacitada, andando agora com extrema dificuldade, só de canadianas, e ficando totalmente incapacitada para o trabalho, sem nada pode executar, não conseguindo fazer o que quer que seja na vida de casa, como cozinhar, brunir, lavar ou fazer as camas;

. O limite da perna intervencionada ficou com mais 3,5 cm, apresentando um atrofiamento do membro inferior direito, à custa da prótese da anca, de 3,5 cm, tendo o pé direito ficado sem movimentos, não conseguindo levantar a perna direita, não podendo dormir para o lado direito, não conseguindo sair de casa sozinha, não sendo capaz de se calçar sozinha, nem podendo nada ou quase nada fazer, passando a vida de casa a ser feita pelo marido e filho;

. A A., em 2004, tinha 48 anos de idade e executava todas as tarefas da casa e ainda prestava o trabalho como empregada doméstica, auferindo então € 2,49 à hora, trabalhando por mês 80 horas, auferindo € 199,20 por mês;

. Por ter sofrido incapacidade total para o trabalho, deve ser indemnizada na importância de € 150.000,00 e compensada, a título de danos não patrimoniais, no valor de € 75.000,00;

. Em consultas médicas a A. pagou à 2.ª R. € 545,00 e em fisioterapia despendeu € 250,00.

. O 1.º R. não usou os conhecimentos científicos então existentes, mas antes técnicas cirúrgicas erradas, sendo os serviços prestados nas instalações da 2.ª R. contra o pagamento de um preço, pelo que são ambos responsáveis solidariamente pelos prejuízos causados à A..

Concluiu a A. a pedir que os R.R. fossem condenados a pagar-lhe uma indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, no total de € 225.795,00, acrescido de juros de mora desde a citação.


2. O 1.º R. apresentou contestação-reconvenção, em que, além de arguir a sua ilegitimidade, a incompatibilidade entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual que lhe foram imputadas e a prescrição do direito peticionado, impugnou os factos aduzidos pela A. e sustentou, no que aqui releva, que:

. Observou, no caso, as leges artis a que estava obrigado;

. Explicou à A. os riscos associados à sua particular situação, antes de cada uma das operações, tendo aquela dado o seu consentimento informado para ambas as operações, assinando os correspondentes termos de responsabilidade;

. Só devido a fatores pessoais atinentes à própria A. é que “os resultados não foram tão excelentes, por se tratar de uma pessoa marcadamente obesa, hipertensa e com tendência para artroses;

Concluiu pela sua absolvição da instância ou pela improcedência da ação e pede, por sua vez, que a A. seja condenada a pagar-lhe uma indemnização, a título de danos patrimoniais, no que se vier a liquidar ulteriormente e ainda como litigante de má-fé.

3. A 2.ª R., Santa Casa da Misericórdia do …, também apresentou contestação, na qual invocou quer a sua ilegitimidade quer a prescrição do direito peticionado e impugnou os factos alegados pela A., sustentando que foram observadas leges artis e que quem agiu culposamente foi a demandante e concluindo pela sua absolvição da instância e, subsidiariamente do pedido.

4. A 2.ª R. requereu ainda a intervenção principal da Companhia de Seguros GG, S.A., para quem tinha transferida a responsabilidade civil decorrente da sua atividade de prestação de serviços médico-cirúrgicos, intervenção que foi admitida, conforme despacho de fls. 102-103, do qual a chamada interpôs agravo que foi recebido com subida diferida.

5. A mesma Interveniente apresentou contestação, em que sustentou que a sua intervenção adequada seria a título acessório, invocando ainda a prescrição do direito peticionado e concluindo pela sua absolvição do pedido. 

6. A A. deduziu réplicas, separadamente em relação a cada uma das contestações, reiterando o petitório e pugnando pela improcedência da pretensão reconvencional do 1.º R..

7. Por seu lado, a 2.ª R. veio sustentar que a prescrição não se verificava quanto à Interveniente, na medida em que respondesse pela segurada.

8. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, em que foram julgadas improcedentes as exceções de ilegitimidade invocadas pelos 1.º e 2.ª R.R., inadmissível a reconvenção deduzida pelo 1.º R., bem como a exceção de incompatibilidade entre responsabilidade contratual e extracontratual pelo mesmo suscitada, e ainda as exceções de prescrição, sendo depois selecionada a matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória.

9. Tendo falecido o 1.º R. em 30/11/2012, foram habilitadas a representá-lo o cônjuge sobrevivo CC e as suas filhas DD, EE e FF.

10. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 852-961 (Vol. 3.º), em 12/11/2015, na qual foi inserida a decisão de facto e respetiva motivação, a julgar a ação parcialmente procedente, decidindo:

a) – Condenar a Interveniente HH - Companhia de Seguros, S.A., a pagar à A. a quantia de € 186.849,40, acrescida de juros de mora a contar daquela data e de juros de mora sobre a quantia de € 795,00, desde a citação;

b) - Absolver a mesma Interveniente do mais contra ela peticionado;

c) – Considerar, em consequência do decidido em a), prejudicado o pedido relativamente aos 1.º R. e 2.ª R..

11. Inconformada com tal decisão, a Interveniente HH, S.A., interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, com impugnação em sede de facto e de direito, no âmbito do qual foi proferido o acórdão de fls. 1119-1182, datado de 30/05/2016, em que se decidiu:

a) - Dar provimento ao agravo retido, interposto do despacho que admitiu a intervenção principal provocada da Interveniente, revogando tal decisão e admitindo esta Interveniente como parte acessória;

b) – Julgar parcialmente procedente a apelação e, nessa medida, também parcialmente procedente a ação, condenando-se as “Rés habilitadas EE, FF e DD” e a Santa Casa da Misericórdia de … a pagarem à A. a quantia de € 126.849,40, acrescida de juros legais de mora sobre a quantia de € 126.054,40”, desde aquela data, e sobre a parcela de € 795,00 desde a citação.

12. Desta feita, tanto a A. como as habilitadas em representação do 1.º R. e a 2.ª R. vieram pedir revista, em que:

 12.1. A A. AA formulou as seguintes conclusões:  

1.ª - Atenta a matéria dada como provada e definitivamente fixada, a A., era jovem e saudável, sendo que hoje não trabalha nem o pode fazer, ou seja tem total incapacidade para o trabalho;

2.ª - A A. não consegue calçar-se, não consegue andar que não seja com o apoio de canadianas, não consegue brunir, não consegue sair de casa sozinha, é e considera-se uma inválida;

3.ª - Perante este quadro, será mais equilibrada a quantia fixada em 1.ª Instância de € 100.000,00, por justa, equitativa e proporcional;

4.ª - Tal o exige a jurisprudência para casos similares e também o art.º 496.º do CC;

5.ª – O acórdão recorrido não valorou nem a jurisprudência, quanto a casos similares, não atendeu aos valores em causa e à gravidade dos mesmos e assim também violou o que dispõe o art.º 496.º do CC;

6.ª - Deve ser revogado aquele acórdão e, no que concerne à fixação de € 40.000,00 para indemnização dos danos não patrimoniais, mantendo-se o fixado na sentença da 1.ª  instância.

  12.2. Por seu turno, as habilitadas em representação do 1.º R. formularam as seguintes conclusões:

1.ª – Por contrato verbal, celebrado entre a A. e a 2.ª R. esta obrigou-se a fazer àquela, pelo preço entre ambas acordado, as duas intervenções cirúrgicas que foram precedidas de consultas da especialidade de ortopedia;

2.ª – A A. pagou à 2.ª R. ambas as cirurgias, tal como as referidas consultas;

3.ª – A 2.ª R., por causa de tais cirurgias, procedeu ao internamento da A. no seu hospital, disponibilizando-lhe a sala de operações, toda uma equipa chefiada pelo Dr. BB, instrumentos e produtos cirúrgicos;

4.ª – A A. nada pagou pelas aludidas consultas e cirurgias ao 1.º R., o qual sempre foi pago, por essas prestações, pela 2.º R.;

5.ª – Alegando ter havido erro médico em ambas as cirurgias, a A. veio a demandar aquele 1.º R., entretanto falecido e ora representado pelas habilitadas, e a 2.ª R.;

6.ª – A 1.ª instância absolveu as habilitadas do pedido, condenando, em substituição da 2.ª R. a respetiva seguradora Interveniente;

7.ª - Esta, entendendo ser apenas parte acessória, recorreu daquela condenação e ainda por entender ser exagerado o montante de € 40.000,00 arbitrado à A. a título de danos não patrimoniais;

8.ª – A Relação, dando razão à Seguradora, absolveu-a do pedido e limitou a indemnização pelos danos não patrimoniais àquela quantia, condenando as 3 filhas do 1.º R. e a 2.ª R. na quantia de € 126.849,40 e nas custas da ação;

9.ª – Por se tratar de manifesto lapso, as Recorrentes dão por corrigido que tal condenação não se limita àquelas três habilitadas mas às quatro;

10.ª – Também entendem as Recorrentes que a condenação das R.R. será na proporção de metade para as habilitadas e metade para a 2.ª R.;

11.ª – Considerando o invocado contrato, devia então a 2.ª R., como devedora, responder – ela e só ela – para com a A. pelos atos dos seus auxiliares ou serventuários, entre os quais se encontrava o 1.º R., em obediência ao disposto no artigo 800.º do CC;

12.ª – Assim, devia a Relação ter absolvido as quatro habilitadas do pedido, até porque quem cobrou os preços à A. foi a 2.ª R.;

13.ª – A condenação das habilitadas, além de violar o disposto, designadamente no artigo 800.º do CC, é ainda mais chocante, quanto é certo que se trata de uma lide desigual, pelo fato de o óbito do 1.º R. ter impedido de melhor se explicar e defender a discussão da causa, sendo que as habilitadas desconhecem as cirurgias em causa, ocorridas há mais de uma década;

14.ª – Ao condenar as habilitadas, o acórdão recorrido fez incorreta interpretação e aplicação do artigo 800.º do CC.

    Pedem assim as Recorrentes que se revogue o acórdão recorrido na parte em que as condenou, absolvendo-as do pedido.

    12.3. A 2.ª R., Santa Casa da Misericórdia do …, formulou as seguintes conclusões:

1.ª - A definição de um quadro de responsabilidade contratual médica exige a verificação dos elementos típicos do contrato, com a exigência e o pagamento de um preço contratual livremente estabelecido pelas partes:

2.ª - Não estamos perante responsabilidade contratual, pois não foram demonstrados pela A. os pressupostos da existência de uma relação contratual com o hospital da recorrente - Santa Casa da Misericórdia de … -, designadamente não foi nem alegada nem demonstrada a existência de um preço, mas antes de uma «comparticipação» no pagamento do preço, que ficou a encargo do Serviço Nacional de Saúde e projeta a relação para a responsabilidade civil extracontratual;

3.ª - Essa «comparticipação» está confessada pela A., pois integra o objeto da própria causa de pedir, tal como a A. o modelou deste o início da instância;

4.ª - Sem prescindir mesmo em contexto de responsabilidade contratual médica, não pode operar nem opera mecanicamente a norma do artigo 799.º/1 do CC, a chamada «culpa presumida» por estarmos no domínio de adoção de obrigações de meios, onde a «culpa» se desloca do “incumprimento” da lei geral para a eventual não adoção com a diligência devida das corretas “leges artis”, incumbindo ao lesado o ónus de fazer a contraprova da invocação da atuação médica;

5.ª - Estando-se fora de eventual responsabilidade contratual, não pode operar qualquer “culpa presumida”, a qual foi apenas instituída pela reforma operada pela Lei n.º 67/2007, de 31-12 antes se exigiria a demonstração da culpa médica, do cirurgião ortopedista que realizou as cirurgias, o que a A. não logrou demonstrar;

6.ª - A ilicitude da ação médica nunca se presume, incumbindo ao lesado o ónus de realizar a sua demonstração através de meios de prova idónea, vg pela fixação das “leges artis”, para se confrontar as seguidas no caso dos autos com as legalmente exigíveis

7.ª - A culpa médica não pode ser estabelecida senão na falta de cuidado geral e de diligência na ação, sendo de afastar qualquer sentido culposo quando ocorrem efeitos inesperados, adversos mas inelutáveis para os agentes médicos;

8.ª - Ainda sem prescindir, a fixação do montante do dano patrimonial de uma cidadã trabalhadora auferindo uma remuneração mensal de € 199,20 não pode razoavelmente atingir o montante estabelecido no acórdão recorrido, o qual corresponde ao montante que a A. auferiria até ao seu 108 anos de vida (por corresponderem, sem redução financeira, a mais 60 anos de vida) o que se mostra irrazoável e desproporcionado;

9.ª – Em relação aos danos patrimoniais, deve o valor fixado pelo acórdão recorrido ser reduzido de € 86.054,40 para € 40.000,00, valor que se deve reputar mais do que razoável atenta a situação concreta da A.

10.ª - Relativamente aos danos não patrimoniais fixados no acórdão recorrido de € 40 000,00, deve o mesmo ser reduzido para € 30.000,00, valor que se entende em consonância com a jurisprudência dominante, atenta a condição da A. reduções essas que devem atender à contribuição culposa da A. para o agravamento do dano.

11.ª - Ao julgar como o fez, violou o acórdão recorrido as normas dos artigos 799.º/1 e ainda as normas dos artigos 341.º e segs. e 388.º e 389.º todos do CC;

12.ª - Violações essas que constituem fundamento do presente recurso, a que aludem as normas do invocado art.º 674.º do CPC.

13. As habilitadas em representação do 1.º R. responderam à revista interposta pela A., rematando com o seguinte quadro conclusivo:

1.ª – O acórdão recorrido reduziu de € 100.000,00 para € 40,000,00 o “quantum” a prestar à A., a título de danos não patrimoniais, que foi submetida (aos 40 anos) a duas cirurgias - uma mielectomia e 4 anos depois a 1 PTA -, de que, como complicação, lhe resultou lesão do ciático com necessidade de duas canadianas: para se deslocar, em marcha claudicante, com os inerentes desgosto e dor (fixada esta em 3/7);

2.ª - Pela presente Revista, pretende a A. que lhe seja, de novo, atribuídos aqueles € 100.000,00, porque sofrera um dano existencial...;

3.ª - Mas igual ou maior dano existencial sofreram os jovens acima referidos, a quem as indicadas Relação e Supremo atribuíram quantias inferiores aos € 40.000,00;

4.ª - Impõe a justiça que as compensações, por tais danos se situem, tendo em atenção os danos, mas também o país em que vive-mos e o tratamento de casos análogos (equidade);

5.ª - No caso está provado que a A., aos 40 anos, era obesa, pesando 80 kg e medindo 1,50 m de altura, hipertensa e com tendência para artroses;

6.ª - De tais limitações ou “handycaps”, atinentes à pessoa da A., que lhe dificultam a mobilidade e lhe aumentam o peso, agravando a imobilidade e esta o peso, nenhuma culpa ou responsabilidade cabe ao cirurgião: não decorrem adequadamente daquelas intervenções;

7.ª - Pelo que tal redução para € 40.000,00 está mais que justificada, mostrando-se até, comparativamente, generosa;

8.ª - Considerando, neste tocante, intangível o acórdão em revista, é de manter em não mais de € 40.000,00 o “quantum compensatório” a pagar à A. pelos danos não patrimoniais, por aplicação do disposto no art.º 496.º CC.

14. O Exm.º Relator da Relação, no despacho exarado a fls. 1295, declarou retificar o dispositivo do acórdão recorrido, no sentido de nele passar a constar também como ré habilitada CC. 

 

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Delimitação do objeto dos recursos


Antes de mais, importa reter que, tratando-se de ação proposta em 2007, na qual as decisões impugnadas foram proferidas em 12/11/2015 (na 1.ª instância) e em 30/05/2016 (na Relação), é aplicável o regime recursal do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, nos termos do art.º 7.º, n.º 1, desta Lei, ressalvados o regime da dupla conforme.  

Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Dentro desses parâmetros, o objeto dos presentes recursos incide sobre as seguintes questões:


A - No âmbito da revista interposta pela A., a questão do valor indemnizatório a título de danos não patrimoniais, pretendendo a Recorrente que seja elevado para € 100.000,00;


B – No âmbito da revista interposta pelas habilitadas em representação do 1.º R., a questão da responsabilidade imputada ao 1.º R., fundada em erro de interpretação e aplicação do art.º 800.º do CC;


C – Em sede de revista interposta pela 2.ª R.:

a) - A questão da natureza da responsabilidade civil pelos atos médicos em causa, relativamente à qual a Recorrente sustenta que não deve ser qualificada como relação jusprivatista, já que se trata de responsabilidade civil extracontratual segundo o regime então previsto no Dec-Lei n.º 48.051, de 21-11-1967;  

b) – Subsidiariamente, para o caso de se considerar que a responsabilidade é de natureza contratual, a questão de saber se estamos perante uma obrigação de meios e se, por isso, incumbia à A. provar a ilicitude dos atos médicos praticados pelo 1.º R., entendendo a Recorrente que tal prova não foi feita; 

c) – Ainda subsidiariamente, a questão do montante indemnizatório a título de dano patrimonial decorrente da incapacidade da A., com a pretensão de que seja reduzido para € 40.000,00;

d) – E também a questão do montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais, com a pretensão de que seja reduzido para € 30.000,00. 

    

      Por razões metodológicas, tais questões serão apreciadas pela seguinte ordem:

i) – Em primeira linha, a questão da natureza pública ou privada da relação jurídica em que se inscrevem os atos médicos em referência;

ii) – Em segundo lugar, as questões respeitantes à natureza da obrigação em causa e ao ónus de prova da ilicitude e da culpa quanto aos atos médicos praticados pelo 1.º R., bem como a questão da sua imputação ao 1.º R. e/ou à 2.ª R.;

iii) – Por fim, as questões relativas aos montantes indemnizatórios, quer a título de dano patrimonial decorrente da incapacidade sofrida pela A., quer em sede de danos não patrimoniais.


III - Fundamentação   


1. Factualidade dada como provada


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. O hospital da 2.ª Ré tem atendimento permanente, com serviço de urgência e de múltiplas valências médico-cirúrgicas – alínea G) dos factos assentes;

1.2. O pessoal médico e de enfermagem que labora no hospital da 2.ª R. fá-lo em regime liberal de prestação de serviços, como profissionais liberais, sendo tecnicamente autónomo e independente no exercício das suas funções – resposta ao art.º 43.º da base instrutória;

1.3. A 2.ª R. não superintende na atividade técnica dos médicos e enfermeiros que prestam serviço no hospital, não interferindo no seu aspeto técnico-profissional – resposta ao art.º 44.º da base instrutória;

1.4. A Santa Casa da Misericórdia Hospital celebrou com a Companhia de Seguros II, S.A., Sociedade Aberta, um contrato de seguro, transferindo para esta o risco de serviços médico-cirúrgicos relativo aos prestadores de tais serviços pelos danos decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a clientes e terceiros até ao valor de € 500.000,00, nos termos da respetiva apólice n.º 82… e que se encontrava em vigor – alínea E) dos factos assentes;

1.5. Em meados de 2001, à A. foi detetada uma lesão da cabeça femoral direita e encaminhada por outro médico, para o 1.º R., para os Serviços de Ortopedia do Hospital da Santa Casa da Misericórdia com um problema de “necrose asséptica”, mais concretamente: sofria de “necrose avascular” da cabeça femoral – alínea G) dos factos assentes e resposta ao art.º 50.º da base instrutória;

1.6. Tal situação é geradora de dores intensas, do tipo esquémico, causadoras de grande incapacidade – resposta ao art.º 51.º da base instrutória;

1.7. A A. foi encaminhada por um médico que propunha uma “cirurgia descompressiva da anca” – resposta ao art.º 52.º da base instrutória;

1.8. Apesar do referido em 1.6, a A. executava todas as tarefas da casa, como cozinhar, lavar, brunir e limpar – resposta ao art.º 21.º da base instrutória;

1.9. Ainda prestava serviço como empregada doméstica, auferindo € 2,49 à hora – resposta ao art.º 22.º da base instrutória;

1.10. E trabalhava por mês oitenta horas – resposta ao art.º 23.º da base instrutória;

1.11. A A. efetuou diversas consultas onerosas com o Dr. BB, pagas ao Hospital da 2.ª Ré – alínea B) dos factos assentes;

1.12. No âmbito das consultas referidas foi à A. diagnosticada uma “osteonecrose” numa fase precoce da cabeça femoral direita – resposta ao art.º 1.º da base instrutória;

1.13. Em consequência do diagnóstico efetuado, foi sujeita a intervenção cirúrgica, em 03/09/2001, executada e orientada pelo Senhor Dr. BB, aqui 1.º R. – alínea C) dos factos assentes e fls. 754;

1.14. Foi utilizada uma técnica denominada “mielectomia”, que era pouco usada na altura – resposta ao art.º 3.º da base instrutória;

1.15. Tal cirurgia permitiria revascularizar a zona da cabeça femoral necrosada – resposta ao art.º 55.º da base instrutória;

1.16. E adiaria a necessidade de uma “prótese da anca” – resposta ao art.º 56.º da base instrutória;

1.17. A operação referida em 1.13 e em 1.14 é referida como uma das técnicas cirúrgicas conservadoras da anca, alternativas à artroplastia total da anca, que deve ser realizada nos primeiros estádios da necrose avascular, desde que a cabeça femoral não tenha perdido a sua esfericidade e morfologia, visando a preservação dessa estrutura anatómica e tentar melhorar a sua vascularização – resposta ao art.º 2.º da base instrutória;

1.18. Durante a aludida técnica cirúrgica de revascularização endomedular referida em 1.13, 1.14 e 1.17, devido ao instrumento de colheita ter lesionado parcialmente o tronco externo do ciático, em consequência da dificuldade de acesso, e como consequência desse ato a A. sofreu paralisia do ciático à direita – resposta ao art.º 4.º da base instrutória;

1.19. Na intervenção cirúrgica referida em 1.13, é atingido o nervo ciático e ocorre uma lesão do tronco externo do referido nervo – fls.754.

1.20. E a A. passou a ter dores intensas – resposta ao art.º 5.º da base instrutória;

1.21. Ao longo dos três anos subsequentes ao ato referido em 1.13, a A. foi assistida pelo 1.º R. e pelos serviços da 2.ª R. – resposta ao art.º 6.º da base instrutória;

1.22. Após três anos, como o problema da anca (necrose) da A. não estava solucionado, esta foi aconselhada a submeter-se a nova intervenção cirúrgica para aplicação duma prótese total da anca – resposta aos artigos 7.º e 59.º da base instrutória;

1.23. Em 22/03/2004, foi a A. sujeita a nova intervenção cirúrgica no mesmo Hospital de prótese total da anca, também executada e orientada pelo Senhor Dr. BB – alínea D) dos factos assentes e fls. 754;

1.24. Na intervenção referida em 1.23 foi efetuada prótese total da anca direita – resposta ao art.º 8.º da base instrutória;  

1.25. Nesta última cirurgia, o Senhor Dr. BB provocou um alongamento de + - 24 mm do membro operado para compensar o desequilíbrio mecânico proporcionado pela paralisia do nervo ciático, tendo o aludido membro operado ficado com um alongamento de cerca de 24 mm – resposta ao art.º 14.º da base instrutória e fls. 754;

1.26. E teve alta hospitalar em 27/03/2004 – resposta ao art.º 9.º da base instrutória;

1.27. A A. assinou os termos de responsabilidade médica para ambas as operações – alínea H) dos factos assentes e resposta ao art.º 45.º da base instrutória;

1.28. O 1.º R. prestou os serviços referidos, tendo chefiado as equipas cirúrgicas em ambas as operações, nas instalações da 2.ª R., com o conhecimento e consentimento desta, mediante pagamento da A. – alínea F) dos factos assentes;

1.29. Todos os atos médicos foram executados sob ordem e direção do 1.º R. – alínea I) dos factos assentes;

1.30. A A., em 2004, tinha 48 anos – resposta ao art.º 20.º da base instrutória;

1.31. Atualmente, pelo menos, desde julho de 2010, apresenta uma dismetria positiva de 1,5 cms do MID e tem uma prótese total da anca direita sem aparentes reações – resposta ao art.º 15.º da base instrutória;

1.32. O pé direito ficou pendente, que a A. não consegue levantar – resposta ao art.º 16.º da base instrutória;

1.33. Em consequência do referido em 1.25 e do referido em 1.18 a A. ficou com grande dificuldade em deslocar-se de um local para o outro, carecendo sempre de ajuda de duas canadianas, apresentando marcha claudicante, com recurso a canadianas – resposta aos artigos 10.º e 12.º da base instrutória;

1.34. Ficou incapacitada para o trabalho, nada conseguindo executar – resposta ao art.º 11.º da base instrutória;

1.35. Não consegue cozinhar, brunir, lavar ou fazer as camas – resposta ao art.º 13.º da base instrutória;

1.36. Não consegue sair de casa sozinha – resposta ao art.º 17.º da base instrutória;

1.37. Não consegue calçar-se sozinha – resposta ao art.º 18.º da base instrutória;

1.38. A vida de casa passou a ser efetuada pelo marido e filho – resposta ao art.º 19.º da base instrutória;

1.39. Nunca mais trabalhou, nem pode – resposta ao art.º 24.º da base instrutória;

1.40. Deixou de fazer as camas e arrumar a casa – resposta ao art.º 25.º da base instrutória;

1.41. Viu-se obrigada a não ter mais animais em casa – resposta ao art.º 26.º da base instrutória;

1.42. A A. sente-se uma inválida – resposta ao art.º 27.º da base instrutória;

1.43. Sofre por não poder caminhar, nem deslocar-se sozinha – resposta ao art.º 30.º da base instrutória;

1.44. Sofre por saber que será uma inválida para o resto da vida – resposta ao art.º 31.º da base instrutória;

1.45. A A. trabalhava de sol a sol todos os dias – resposta ao art.º 32.º da base instrutória;

1.46. Era uma mulher cheia de vida e força e demonstrava alegria em viver – resposta ao art.º 33.º da base instrutória;

1.47. Em consultas médicas pagou a A. ao Hospital € 545,00 – resposta ao art.º 34.º da base instrutória;

1.48. Em fisioterapia despendeu € 250,00 – resposta ao art.º 35.º da base instrutória;

1.49. As lesões que a A. padece resultaram do referido em 1.18 e 1.25 – resposta aos artigos 36.º e 37.º da base instrutória;

1.50. Na colocação de qualquer prótese, não deve haver dismetrias nem positivas nem negativas, tendo a estabilidade da mesma mais a ver com problemas de colocação dos componentes do que com eventuais dismetrias de compensação; em casos de instabilidade potencial é sempre preferível deixar uma dismetria positiva, a qual não se destina a compensar o desequilíbrio mecânico proporcionado pela paralisia do ciático – resposta aos artigos 38.º e 41.º da base instrutória;

1.51. A A. é pessoa obesa, pesando, na altura, mais de 80 Kgs, e medindo metro e meio de altura – resposta ao art.º 48.º da base instrutória;

1.52. Era hipertensa e com tendências para artroses – resposta ao art.º 49.º da base instrutória;

1.53. Os estudos mais recentes prevêem que, em 5% de casos de avascularização/necrose da anca e no respetivo "replacement" (aplicação de prótese), não se consegue êxito total – resposta ao art.º 67.º da base instrutória;

1.54. O 1.º R. deixou à A. a perna operada com mais 2,4 cms – resposta ao art.º 69.º da base instrutória;

1.55. São os dois atos cirúrgicos referidos em 1.13 e 1.23 a causa da incapacidade de que a A. padece - fls. 755.


2. Factos dados como não provados


Vem dado como não provado o seguinte:

2.1. A operação referida em 1.13 (correspondente à alínea C dos Factos Assentes) seja referida como muito simples e sem riscos;

2.2. A técnica denominada mielectomia fosse pouco usada na altura, por não ser eficaz;

2.3. A intervenção cirúrgica a que, após três anos a A. foi aconselhada a submeter-se, fosse a intervenção medicamente adequada a corrigir as consequências do ato cirúrgico referido em 1.13 (correspondente à alínea C dos Factos Assentes);

2.4. O limite da perna intervencionada tenha ficado com mais 3,5 cm;

2.5. Apresente um atrofiamento do membro inferior direito, à custa da prótese da anca de 3,5 cm;

2.6. A A. não possa dormir para o lado direito;

2.7. A vida sexual da A. tenha desaparecido;

2.8. A A. sofra por ver que o marido e o filho têm que a substituir na vida da casa;

2.9. Não tenham sido usadas as cirurgias aconselháveis;

2.10. A prótese de uma anca fosse ao tempo e seja hoje um processo simples e quase sem risco;

2.11. Não seja possível que gere a incapacidade total de uma pessoa;

2.12. A A. tenha sido tratada com pleno conhecimento dos riscos que corria;

2.13. Em ambas as operações, o 1.º R. tenha usado as técnicas cirúrgicas mais adequadas;

2.14. Os resultados das intervenções se tenham devido, exclusivamente, a fatores pessoais, atinentes à pessoa da A.;

2.15. O exame radiológico e o estádio de evolução da doença, a par da sua obesidade mórbida, com a consequente sobrecarga mecânica, impusesse uma urgente “mielectomia”;

2.16. Inviabilizasse qualquer outra alternativa disponível na ocasião, nomeadamente, o recurso a osteotomias;

2.17. Tenha sido explicado pelo 1.º R. à A., os riscos associados à sua particular situação, antes de cada uma das operações;

2.18. Feita a 1.ª cirurgia, a A. tenha verificado um alívio sintomático;

2.19. A 2.ª intervenção tenha sido bem sucedida e sem complicações pós-operatórias;

2.20. A A. tem sido monitorizada, revelando uma evolução favorável, estando controladas as eventuais complicações de médio prazo, sobretudo, de natureza mecânica;

2.21. Estas se prendam com a sobrecarga ponderal violenta, a que a prótese está a ser submetida (estimada em cerca de 250 Kg por cada ciclo de marcha), o que impõe uma regular vigilância imagiológica, sobretudo nos primeiros 5 anos pós-operatórios;

2.22. Atualmente, a A. apresente uma evolução lenta, mas favorável, da sua lesão;

2.23. Tenha sido conseguido uma percentagem de êxito em ambas as intervenções, e que a mesma esteja dentro do previsto nos parâmetros internacionais;

2.24. No caso da A., era impossível, para qualquer cirurgião, devolver-lhe a plena capacidade de trabalho, ou a completa ausência de limitações e sofrimento;

2.25. Estaria mais incapacitada e sofredora se não tivesse sido submetida às operações;

2.26. Se continuar a ser monitorizada e a seguir a terapêutica adequada, o seu estado, melhorará;

2.27. As boas técnicas ditem que em casos, como o da A., de obesidade mórbida, o operador deve deixar a perna operada (c/ prótese) levemente mais comprida;

2.28. A A. se ficasse sem aquele “alongamento” de 2,4 cm, com a sua obesidade acentuada, ficaria com a mesma perna mais curta que a outra.


3. Do mérito do recurso


3.1. Enquadramento preliminar


Com a presente ação, a A. pretende ser indemnizada por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de sequelas por ela sofridas em consequência, em síntese, de duas operações cirúrgicas realizadas pelo 1.º R., na qualidade de médico ortopedista ao serviço da 2.ª R., imputando tal responsabilidade, a título de culpa, àquele R..

Nessa base, pediu a condenação solidária dos referidos R.R. na indemnização global € 225.795,00, acrescido de juros de mora desde a citação, compreendendo as parcelas de € 150.000,00, por dano patrimonial decorrente da incapacidade sofrida, de € 75.000,00, a título de danos não patrimoniais, de € 545,00 por despesas com consultas médicas e de € 250,00 com tratamentos de fisioterapia.

A 2.ª R. provocou a intervenção principal da Companhia de Seguros GG, S.A., por ter transferido para esta a responsabilidade civil emergente da sua atividade de prestação de serviços médico-cirúrgicos, o que foi assim admitido, embora impugnado pela chamada.


Em 1.ª instância, a ação foi julgada parcialmente procedente, sendo condenada a Seguradora, como interveniente principal, a pagar à A. a indemnização total de € 186.849,40, compreendendo, além do mais, a parcela de € 86.054,40 por dano patrimonial decorrente da incapacidade sofrida pela A. e de € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora a contar da data da sentença. E foi considerado, por consequência disso, prejudicado o pedido formulado contra o 1.º R. e a 2.ª R..


No âmbitos dos recursos interpostos pela Seguradora Interveniente, o Tribunal da Relação revogou a decisão que admitiu aquela como interveniente principal considerando-a antes como parte acessória e, julgando a ação parcialmente procedente, condenou as habilitadas, em representação do 1.º R., e a 2.ª R. a pagar à A. a indemnização total de € 126.849,40, compreendendo, além do mais, a parcela de € 86.045,40 por dano patrimonial decorrente da incapacidade sofrida pela A. – tal como fora arbitrada em 1.ª instância – e a parcela de € 40.000,00 – em vez dos € 100.000,00 fixados pela 1.ª instância -, a título de danos não patrimoniais.


Todavia, vem a 2.ª R. questionar, no respetivo recurso de revista, a natureza da responsabilidade civil pelo atos médicos praticados pelo 1.º R. e a prova da sua ilicitude e culpa para efeitos de responsabilizar a 2.ª R. nos termos do art.º 800.º, n.º 1, do CC, bem como os montantes indemnizatórios arbitrados quer a título do dano patrimonial decorrente da incapacidade sofrida pela A. quer a título de danos não patrimoniais, pugnando, em primeira linha, pela sua absolvição do pedido e, subsidiariamente, pela redução dos montantes indemnizatórios para € 40.000,00 pelo dano patrimonial relativo à incapacidade e para € 30.000,00 pelos danos não patrimoniais.

Também as habilitadas em representação do 1.º R. pedem revista no sentido de, em face ao contrato de prestação de serviço médico celebrado entre a A. e a 2.ª R., só esta ser responsabilizada nos termos do artigo 800.º do CC ou então tal responsabilidade ser repartida na proporção de metade para cada uma das partes rés.    

Por seu lado, a A. pede revista no sentido de ser elevado de € 40.000,00 para € 100.000,00 o valor indemnizatório a título de danos não patrimoniais. 


3.2. Quanto à qualificação da relação jurídica em que se inscrevem os atos médicos em causa


A Recorrente/2.ª R., Santa Casa da Misericórdia do …, começou por questionar a natureza da relação jurídica em que se integram os atos médico-cirúrgicos de que resultaram as sequelas da A., sustentando que se reconduzem ao domínio da responsabilidade civil extracontratual regulado pelo Dec.-Lei n.º 48.051, de 21-11-1967, hoje substituído pela Lei n.º 67/2007, de 31-12, porquanto:

- A Recorrente é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) a atuar na área da saúde, tanto desenvolvendo atividade privada como intervindo no perímetro do Serviço Nacional de Saúde (SNS), realizando atividade cirúrgica que este Serviço lhe defere por não estar dotado de toda a capacidade logística e de recursos humanos para o efeito;

- É assim que a R. intervém atualmente através dos mecanismos do denominado SIGIC como era ainda ao tempo dos factos aqui em causa, conjuntura em que os doentes se dirigiam ao hospital da Recorrente munidos de um documento de referência designado P1 que lhes concedia a possibilidade de se submeterem a cirurgia pagando uma “comparticipação do preço” que o SNS abonava ao hospital;

- No hospital público e naqueles do perímetro da Administração da Saúde, como no chamado sector social, dos hospitais detidos por IPSS, se prestam cuidados de saúde por atribuição pública e por dever jurídico em sentido restrito, não havendo preço nem qualquer componente económica nessa relação, em que os intervenientes não se conhecem senão no momento da prestação de cuidados de saúde;

- Tanto nos hospitais públicos ou do sector social como nos hospitais privados, há pagamentos, com a diferença de que naqueles o pagamento se traduz numa taxa - à época, uma comparticipação -, enquanto que nos hospitais privados o pagamento constitui um pré-ço;       

- Assim, dos documentos da “comparticipação” da A. em cada uma das cirurgias em referência e demais prova documental e testemunhal apresentada (Dr. JJ) se pode concluir não estarmos perante um contrato de prestação de serviço de natureza privada civil, não tendo sido demonstrado qualquer outro elemento de facto em contrário;

- A relação em causa foi, pois, de intervenção do Hospital da 2.ª R./Recorrente, a benefício da A., com pagamento por parte do SNS;

- Daí resulta, portanto, a aplicabilidade daquele domínio de responsabilidade civil extracontratual, para cujo contencioso é, de resto, competente a jurisdição administrativa, e não o regime do contrato de prestação de serviço civil em que se estribou o acórdão recorrido.

Em suma, pretende aquela Recorrente que a relação jurídica firmada entre a A. e a 2.ª R., no âmbito da qual se inscrevem os atos médicos em causa - tida pelas instâncias como relação emergente de um contrato de prestação de serviço médico de natureza privatistico-civil -, seja reconduzida ao quadro da responsabilidade civil extracontratual previsto e regulado no indicado Dec.-Lei n.º 48.051, por considerar que, no caso, a 2.ª R. interveio no perímetro da sua articulação com o SNS. E chega mesmo ao ponto de considerar que seria a jurisdição administrativa a materialmente competente para julgar o presente litígio.


Sucede que a 2.ª R. nem tão pouco suscitou tal questão na sua contestação, na qual, sob os respetivos artigos 1.º a 10.º, neste particular, se limitou a referir que “o seu hospital tem atendimento permanente com serviços de urgência e de múltiplas valências” e que o pessoal médico e de enfermagem labora ali em regime liberal de prestação de serviço, como profissionais liberais.

No entanto, a mesma R. refere agora que, em sede de alegações orais, teria sublinhado perante o tribunal da 1.ª instância “que o relevo não se encontra na circunstância de um hospital ser da administração indireta do Estado, mas da qualidade da relação estabelecida, de estar ou não sob a interferência e encargos do SNS (…)”.

Porém, face à qualificação dada pela 1.ª instância, aquela R. não apresentou contra-alegações no recurso de apelação interposto pela Interveniente de Seguros GG, S.A., através das quais lhe seria porventura lícito suscitar a ampliação do objeto do recurso, a título subsidiário, nos ter-mos do artigo 636.º, n.º 2, do CPC, nomeadamente sobre a matéria de facto pertinente. 


Ora, da matéria de facto fixada pelas instâncias, no respeitante à referida questão, apenas consta o seguinte:  

i) - O hospital da 2.ª Ré tem atendimento permanente, com serviço de urgência e de múltiplas valências médico-cirúrgicas – ponto 1.1. da factualidade provada;  

ii) - O pessoal médico e de enfermagem que labora no hospital da 2.ª R. fá-lo em regime liberal de prestação de serviços, como profissionais liberais, sendo tecnicamente autónomo e independente no exercício das suas funções – ponto 1.2 da factualidade provada;

iii) - A 2.ª R. não superintende na atividade técnica dos médicos e enfermeiros que prestam serviço no hospital, não interferindo no seu aspeto técnico-profissional – ponto 1.3. da factualidade provada;  

iv) - A Santa Casa da Misericórdia Hospital celebrou com a Companhia de Seguros II, S.A., Sociedade Aberta, um contrato de seguro, transferindo para esta o risco de serviços médico-cirúrgicos relativo aos prestadores de tais serviços pelos danos decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a clientes e terceiros até ao valor de € 500.000,00, nos termos da respetiva apólice n.º 8249586 e que se encontrava em vigor – ponto 1.4 da factualidade provada;  

v) - Em meados de 2001, à A. foi detetada uma lesão da cabeça femoral direita e encaminhada por outro médico, para o 1.º R., para os serviços de Ortopedia do Hospital da Santa Casa da Misericórdia com um problema de “necrose asséptica”, mais concretamente: sofria de “necrose avascular” da cabeça femoral – ponto 1.5 da factualidade provada;

vi) - A A. foi encaminhada por um médico que propunha uma “cirurgia descompressiva da anca” – ponto 1.7 da factualidade provada;  

vii) - A A. efetuou diversas consultas onerosas com o Dr. BB, pagas ao Hospital da 2.ª Ré – – ponto 1.11 da factualidade provada;

viii) - No âmbito das consultas referidas, foi à A. diagnosticada uma “osteonecrose” numa fase precoce da cabeça femoral direita – ponto 1.12 da factualidade provada;

ix) - Em consequência do diagnóstico efetuado, foi sujeita a intervenção cirúrgica, em 03/09/2001, executada e orientada pelo Senhor Dr. BB, aqui 1.º R. – ponto 1.13 da factualidade provada;  

x) - Ao longo dos três anos subsequentes ao ato referido em 1.13, a A. foi assistida pelo 1.º R. e pelos serviços da 2.ª R. – ponto 1.21 da factualidade provada;  

xi) - O 1.º R. prestou os serviços referidos, tendo chefiado as equipas cirúrgicas em ambas as operações, nas instalações da 2.ª R., com o conhecimento e consentimento desta, mediante pagamento da A. – ponto 1.28 da factualidade provada;

xii) - Todos os atos médicos foram executados sob ordem e direção do 1.º R. – – ponto 1.29 da factualidade provada;  

xiii) - Em consultas médicas pagou a A. ao Hospital € 545,00 – ponto 1.47 da factualidade provada;  

      Significa isto que a 2.ª R. não alegou, oportunamente, nem muito menos logrou provar factos tendentes a demonstrar que os atos médicos em causa foram realizados no quadro da sua articulação com o SNS, sendo que, segundo ela própria afirma, como instituição particular de solidariedade social, atua na área da saúde, tanto desenvolvendo atividade privada como intervindo no perímetro daquele SNS.

      Nestas circunstâncias, além de estarmos perante uma questão nova, não colocada em termos formalmente regulares e oportunos perante as instâncias, nem sequer da factualidade provada consta matéria que permita a este tribunal de revista equacionar a qualificação jurídica ora pretendida pela 2.ª R. ou questionar, oficiosamente, a competência material dos tribunais judiciais para conhecer do presente pleito. Para tal, mostra-se manifestamente insuficiente a pretendida caracterização dos pagamentos da A. à 2.ª R. como “comparticipações” ao SNS.

       Termos em que se tem como adquirida a qualificação dada pelas instâncias no sentido de que os atos médicos em causa foram realizados no quadro de uma relação jurídica de prestação de serviços de saúde de natureza privatístico-civil entre a A e a 2.ª R..

        

3.3. Quanto ao título de responsabilidade civil imputada à 2.ª R. e às habilitadas em representação do 1.º R.

         

     Em face da factualidade provada, a 1.ª instância considerou, em síntese, que os atos médicos em causa foram prestados no âmbito de um contrato privado civil de prestação de serviços médicos, celebrado entre a A. e a 2.ª R., tendo concluído pela imputação dos danos, a título de culpa efetiva, por erro médico do 1.º R., pelos quais seria responsável a 2.ª R. ao abrigo do art.º 800.º, n.º 1, do CC, mas que, tendo ela transferido a sua responsabilidade para a Interveniente Seguradora, só se impunha a condenação desta nas indemnizações devidas à A., julgando, por isso, prejudicado o pedido formulado contra o 1.º R. e 2.ª R..

     Por sua vez, o Tribunal da Relação, nos recursos interpostos pela referida Seguradora, considerou esta apenas como interveniente acessória e, nessa decorrência, reapreciando as responsabilidades imputadas ao 1.º R. e à 2.ª R., concluiu que as sequelas sofridas pela A. eram imputáveis, a título de culpa presumida, a ambos aqueles R.R., na base do que condenou as habilitadas do 1.º R. e a 2.ª R. a pagar à A. as respetivas indemnizações.

     

Perante tal condenação, a 2.ª R. pede revista, além do já referido no ponto precedente, sustentando, no essencial, que:

- estamos perante uma obrigação de meios, em relação à qual a ilicitude da ação médica nunca se presume, incumbindo ao lesado o ónus de realizar a sua demonstração através de meios de prova idónea, v.g. pela fixação das leges artis, para se confrontar as seguidas no caso dos autos com as legalmente exigíveis;

- A culpa médica não pode ser estabelecida senão na falta de cuidado geral e de diligência na ação, sendo de afastar qualquer sentido culposo quando ocorrem efeitos inesperados, adversos mas inelutáveis para os agentes médicos.

       Por seu lado, as habilitadas em representação do 1.º R. pedem também revista, sustentando que só a 2.ª R. deverá responder nos termos do artigo 800.º do CC ou, quando muito, ser a responsabilidade repartida na proporção de metade para aquelas habilitadas e metade para a 2.ª R..

       Não vem, pois, aqui posta em causa a eliminação da condenação da Interveniente Seguradora.   


       Vejamos.


      Assente que está a natureza jus-privatística da relação jurídica em que se inscrevem os atos médicos em causa, importa ainda proceder à sua caracterização em termos de determinar quais os institutos de responsabilidade civil aplicável.

     Na linha do enquadramento jurídico avançado pelas instâncias, convém reter que a prestação de serviços de saúde, no sector privado, se pode reconduzir a uma diversificada tipologia de fontes jurídicas, consoante o perfil de cada caso concreto.  

      Assim, há casos em que as prestações dos cuidados de saúde são realizadas sem a prévia ou concomitante negociação entre o prestador do serviço e o paciente, não se gerando, por isso, qualquer vínculo negocial. Daí que a ocorrência de lesão do paciente, no quadro da realização dessa prestação, deva ser equacionada em sede de responsabilidade civil extracontratual ou delitual, nos termos dos artigos 483.º e seguintes do CC.

      Já quando a prestação do serviço de saúde tiver sido objeto, de algum modo, de negociação entre o prestador de serviço (médico ou instituição prestadora de cuidados de saúde) e o paciente, impõe-se reconduzir o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação assumida pelo prestador ao instituto da responsabilidade contratual, nos termos dos artigos 798.º e seguintes do CC, sem prejuízo de eventual concurso deste título de responsabilidade com a responsabilidade delitual.

      Com efeito, é hoje pacificamente aceite, na doutrina e na jurisprudência, que a prestação de cuidados de saúde, mormente de serviços médicos, pode ser objeto de regulação por via contratual, entre o paciente e o profissional de saúde (v.g. médico) ou uma instituição prestadora de serviços de saúde, na esfera do princípio da autonomia privada proclamado no artigo 405.º do CC, ainda que com as limitações e imposições à liberdade de celebração e de estipulação decorrentes das normas legais imperativas, das normas deontológicas e de certos costumes e usos respeitantes ao exercício das profissões de saúde, ou inerentes à natureza indisponível do bem jurídico envolvido, como é o complexo psico-somático do paciente, tutelado pelos direitos de personalidade[1].

      Nessa base, a relação jurídica de matriz convencional entre o médico e o paciente tem vindo a ser configurada, à luz do nosso ordenamento legal, como um contrato social e nominalmente típico, de natureza civil, consensual, subsumível ao tipo de contrato de prestação de serviço previsto no artigo 1154.º do CC, em regra oneroso, podendo ainda ser perspetivado como contrato de consumo[2].

       E no âmbito mais complexo das variadas prestações de serviços de saúde, no domínio do sector privado, como se destaca no acórdão do STJ, de 28/01/2016, proferido no processo n.º 136/12.5TVLSB.L1.S1,[3], a doutrina mais recente[4] tem vindo a avançar com a seguinte tipologia:

 i) – a modalidade de contrato total, traduzido num misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos);

 ii) – a variante de contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional), consistente num contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações);

 iii) – a modalidade de contrato dividido, nos termos do qual a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto que o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos).     

 

   Pode ainda, noutra variante, a instituição prestadora dos serviços de saúde só assumir as obrigações correspondentes ao contrato de prestação de serviços médicos, portanto sem internamento.[5]       

     Nesse quadro, enquanto que, tanto no dito contrato total como nesta última variante, é a instituição prestadora do serviço quem responde integralmente perante o paciente credor, na variante com escolha de médico, este poderá também responder em sede do contrato médico adicional e, na modalidade de contrato dividido, responderão, em princípio, a instituição prestadora e o médico, na órbita das respetivas obrigações assim assumidas.     

        

      No caso dos autos, no que aqui releva, dos factos provados colhe-se o quadro já transcrito no ponto precedente, de que se respiga o seguinte:

i) - O hospital da 2.ª Ré tem atendimento permanente, com serviço de urgência e de múltiplas valências médico-cirúrgicas – ponto 1.1 da factualidade provada;

ii) - O pessoal médico e de enfermagem que labora no hospital da 2.ª R. fá-lo em regime liberal de prestação de serviços, como profissionais liberais, sendo tecnicamente autónomo e independente no exercício das suas funções – ponto 1.2 da factualidade provada;  

iii) - A 2.ª R. não superintende na atividade técnica dos médicos e enfermeiros que prestam serviço no hospital, não interferindo no seu aspeto técnico-profissional – ponto 1.3 da factualidade provada;  

iv) - A Santa Casa da Misericórdia Hospital celebrou com a Companhia de Seguros II, S.A., Sociedade Aberta, um contrato de seguro, transferindo para esta o risco de serviços médico-cirúrgicos relativo aos prestadores de tais serviços pelos danos decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a clientes e terceiros até ao valor de € 500.000,00, nos termos da respetiva apólice n.º 82… e que se encontrava em vigor – ponto 1.4 da factualidade provada;

v) - A A. foi encaminhada por um médico que propunha uma “cirurgia descompressiva da anca” – ponto 1.7 da factualidade provada;

vi) - A A. efetuou diversas consultas onerosas com o Dr. BB, pagas ao Hospital da 2.ª Ré – ponto 1.11 da factualidade provada;  

vii) - Em consequência do diagnóstico efetuado, foi sujeita a intervenção cirúrgica, em 03/09/2001, executada e orientada pelo Senhor Dr. BB, aqui 1.º R. – ponto 1.13 da factualidade provada;

viii) - Ao longo dos três anos subsequentes ao ato referido em 1.13, a A. foi assistida pelo 1.º R. e pelos serviços da 2.ª R. – ponto 1.21 da factualidade provada;

ix) - O 1.º R. prestou os serviços referidos, tendo chefiado as equipas cirúrgicas em ambas as operações, nas instalações da 2.ª R., com o conhecimento e consentimento desta, mediante pagamento da A. – ponto 1.28 da factualidade provada;

x) - Todos os atos médicos foram executados sob ordem e direção do 1.º R. – ponto 1.29 da factualidade provada;  

xi) - Em consultas médicas pagou a A. ao Hospital € 545,00 – ponto 1.47 da factualidade provada.


       Em face deste acervo factual, como concluíram as instâncias, os serviços médicos-cirúrgicos prestados pelo 1.º R. à A. ocorreram no âmbito de uma relação contratual, de natureza privatística, firmada entre a mesma A. e a 2.ª R., nos termos da qual o 1.º R. interveio como médico ortopedista enquanto “auxiliar” no cumprimento da obrigação, em regime de prestação liberal, ao serviço da 2.ª R.. Desse acervo não se divisa, porém, qualquer elemento que permita configurar uma réstia de vinculação contratual entre a A. e o 1.º R. a título de escolha de médico nem muito menos de contrato dividido. O que se constata é que o 1.º R. interveio dentro da sua esfera de autonomia e direção técnico-profissional, no quadro das funções que lhe estavam atribuídas pela 2.ª R., cujo desempenho esta disponibilizou, por via contratual, à A.. Estamos, pois, perante um contrato de prestação de serviços de saúde total, que integrava os serviços médicos de assistência e de cirurgia e os serviços de internamento conexos, mediante o correspetivo pagamento pela A. à 2.ª R.

Nessa conformidade, a 2.ª R. é responsável perante a A., nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC, pelos atos do 1.º R. na execução das prestações médicas convencionadas, como se tais atos fossem praticados por aquela devedora.    

Assim sendo, a responsabilidade da 2.ª R. por esses atos deve ser aferida em função dos ditames que ao 1.º R. cumpria observar na realização da prestação médica à A. ao serviço daquela R..

Por outro lado, não existindo, como não existia, qualquer vinculação contratual entre a A. e o 1.º R., não é lícito àquela reclamar deste, enquanto auxiliar no cumprimento da 2.ª R., indemnização pelos prejuízos causados na realização das prestações em referência, só sendo lícito fazê-lo perante a 2.ª R. como devedora[6].

Só lhe será lícito reclamar indemnização do 1.º R., se tiver ocorrido, concomitantemente, por parte dele, facto ilícito relevante a título de responsabilidade extracontratual. E, neste caso, nem sequer a 2.ª R. responderia pelos danos decorrentes do facto ilícito imputável ao 1.º R. nos termos do art.º 500.º do CC, uma vez que dos factos provados não resulta qualquer relação de comissão entre ambos.


Vejamos então em que termos responderá a 2.ª R. pelas sequelas causadas à A. no âmbito das duas intervenções cirúrgicas efetuadas pelo 1.º R..

A propósito da problemática envolvente, muito se tem discutido sobre a natureza das obrigações inerentes à prática de atos médicos.

De um modo geral, tem-se entendido que o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não deve ser considerado como a cura da patologia que estiver em causa, mas sim como o tratamento adequado dessa patologia mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis), posto que a prática da medicina encerra, em regra, uma natureza complexa e aleatória derivada da própria complexidade dos sistemas psico-somáticos humanos, a par do estado e desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos disponíveis[7]. Nessa medida, a obrigação de prestação do ato médico configura-se como uma obrigação de meios, por parte do médico, na obtenção do tratamento adequado.

Ora, no campo da responsabilidade contratual emergente de uma obrigação de meios, coloca-se a questão da distinção entre a vertente da ilicitude e a vertente da culpa, mormente para efeitos de repartição do ónus de prova, à luz das regras constantes dos artigos 342.º, n.º 1, 798.º e 799.º do CC.

Assim, é comumente entendido pela doutrina e jurisprudência que, no quadro de uma típica obrigação de resultado, incumbe ao credor lesado provar a ocorrência desse resultado como facto constitutivo que é da obrigação de indemnizar (art.º 342.º, n.º 1, e 798.º do CPC), face ao que se presume a culpa do devedor lesante, sobre quem recai o ónus de ilidir tal presunção legal, nos termos do artigo 799.º do CC.

Já no domínio das obrigações de meios, tem-se entendido que impende sobre o credor lesado (o paciente) provar não só a falta de verificação do resultado pretendido, mas também a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, incumbindo, por seu turno, ao devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa[8].

Segundo o ensinamento de Almeida Costa[9], as obrigações de meios, que ocorrem com mais frequência no domínio das obrigações de prestação de facto positivo, em particular nas que se prendem com atividades profissionais liberais:

“(…) são aquelas em que o devedor apenas se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa atividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza” …. “Daí que o devedor fique exonerado na hipótese de o cumprimento requerer uma diligência maior do que a prometida, e que tanto a impossibilidade objectiva como a subjectiva não imputáveis ao devedor o liberem (artigos 790.º e 791.º)”.

E, conforme observa Carneiro da Frada, nas obrigações de meios, há que fazer a distinção entre a finalidade da obrigação, dirigida ao resultado pretendido, e o conteúdo estruturante do próprio dever objetivo de diligência ou de cuidado, sendo que a falta de cumprimento da obrigação ou o seu cumprimento defeituoso se aferem não pelo respetivo escopo, mas sim em função do teor daquele dever[10]. Tal distinção torna-se, pois, essencial para equacionar a distribuição do ónus probatório sobre os pressupostos da responsabilidade civil emergente da falta de cumprimento ou do cumprimento defeituoso no quadro de uma obrigação de meios, nomeadamente em sede do disposto no artigo 799.º, n.º 1, do CC.

Quando a obrigação é de meios ou de diligência, segundo Carneiro da Frada[11]:

“… é então ao devedor que compete identificar e fazer provar a exigibilidade de tais meios ou da diligência (objectivamente) devida. A presunção de culpa tende portanto a confinar-se à mera censurabilidade pessoal do devedor. Por outras palavras, se a falta de cumprimento carece de ser positivamente demonstrada pelo credor lesado, esta exigência traduz-se aqui, em termos práticos, na demonstração da ilicitude da conduta do devedor.

Tudo isso comporta a formulação do art.º 799.º, n.º 1, do CC. Nas obrigações de meios, (…) dada a ausência de um resultado devido, não é suficiente que o credor demonstre a falta de verificação do resultado. Ele tem sempre de individualizar uma concreta falta de cumprimento (ilícita). Dada a índole da obrigação, carece de demonstrar que os meios não foram empregues pelo devedor ou que a diligência prometida com vista a um resultado não foi observada.”   

     Por sua vez, Antunes Varela, embora critique a tese que de que a violação do dever objectivo de cuidado exigível se coloque no plano da ilicitude, considerando que “não é essa, manifestamente, a concepção de ilicitude no direito civil português”[12], o certo é que, ao tratar do tema da “presunção de culpa”, na órbita da responsabilidade contratual, acaba por considerar que “nas obrigações de meios não bastará (…) a prova da não obtenção do resultado previsto com a prestação, para se considerar provado o não cumprimento.” E, tomando como exemplos as profissões de médico e de advogado, acrescenta que “é necessário provar que o médico ou o advogado não realizaram os actos em que normalmente se traduziria uma assistência ou um patrocínio diligente, de acordo com as normas deontológicas aplicáveis ao exercício da profissão”[13].

    De acordo com esta orientação doutrinária, por exemplo, o acórdão do STJ, de 11/07/2006, proferido no processo n.º 06A1503[14], considerou que:

“É de meios, não de resultado, a obrigação a que o cirurgião se vincula perante a doente com quem contrata a realização duma cirurgia à glande tiróide (tiroidectomia) em determinado hospital”.

     Todavia, ante a frequente onerosidade da prova para o paciente sobre a inobservância das leges artis, por parte do médico, têm vindo a ser consideradas outras soluções, entre as quais a que tem procurado distinguir a atividade médica de carácter mais geral, aleatório ou complexo, e as atividades médicas especializadas em que a margem de risco seja ínfima. Nessa base, tem sido considerado que, nestes tipos de atividade, a obrigação do médico se poderá traduzir numa obrigação de resultado, fazendo recair sobre ele o ónus de provar, no plano da culpa, que a ocorrência desse resultado não decorre de falta de cuidado ou imperícia, nomeadamente por inobservância das leges artis.

     Nesta linha, podemos citar os seguintes acórdãos do STJ:

 - o acórdão de 15/12/2011, proferido no processo n.º 209/06. 3TVPRT.P1.S1[15], no qual se observa que “(…) casos há em que  o médico está vinculado a obter um resultado concreto, constituindo exemplo de escola a cirurgia estética de embelezamento (mas já não a cirurgia estética reconstrutiva geralmente considerada como exemplo cirúrgico de obrigação de meios), a par da execução das manobras próprias de parto, no campo da odontologia, por exemplo, a simples extracção de um dente ou colocação de um implante, a ainda nas áreas de vasectomia e exames laboratoriais”;

 - o acórdão de 07/10/2010, proferido no processo n.º 1364/05. 5TBBCL.G1[16], em que se considerou que:

“Em regra, a obrigação do médico é uma obrigação de meios (ou de pura diligência), cabendo, assim, ao lesado fazer a demonstração em juízo de que a conduta (acto ou omissão) do prestador obrigado não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem propiciar a produção do almejado resultado.

   Já se se tratar de médico especialista (v.g. um médico obstetra) sobre o qual recai um específico dever do emprego da técnica adequada, se torna compreensível a inversão do ónus da prova, por se tratar de uma obrigação de resultado – devendo o mesmo ser civilmente responsabilizado pela simples constatação de que a finalidade proposta não foi alcançada (prova do incumprimento), o que tem por base uma presunção da censurabilidade ético-jurídica da sua conduta.”

  - mais recentemente, o acórdão de 26/04/2016, proferido no processo n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1[17], em que se considerou que “(…) no contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos com colocação de prótese, o médico assume uma obrigação de resultado quanto à elaboração da prótese adequada à anatomia do paciente, e uma obrigação de meios quanto à aplicação da mesma no organismo do paciente segundo as leges artis.”

          

Seja como for, afigura-se que uma tal ponderação – obrigação de meios / obrigação de resultado - não deve ser feita de forma apriorística em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de forma casuística centrada no exato contexto e contornos de cada situação, sem prejuízo do apelo a alguns factores indiciários, sabido como é que o carácter aleatório e complexo dos atos médicos dependem de diversas condicionantes que nem sempre se revelam na tipologia de determinada especialidade.[18]     


No caso vertente, no que aqui releva, do universo factual constante dos pontos 1.5 a 1.7, 1.11 a 1.26, 1.29 a 1.34, 1.49, 1.50 e 1.53 a 1.55 da factualidade provada decorre, desde logo, que as lesões que a A. padece, mormente a sua situação de incapacidade, resultaram das duas intervenções cirúrgicas referidas nos pontos 1.18 e 1.25, mais precisamente:

i) - da intervenção cirúrgica realizada em 03/09/2001, no decurso da qual ocorreu a lesão parcial do tronco externo do ciático pelo instrumento de colheita, em virtude da dificuldade de acesso à zona a intervencionar, e de que resultou a paralisia daquele nervo à direita;

ii) - da intervenção cirúrgica realizada, cerca de três anos depois, em 22/03/2004, através da qual foi implantada uma prótese total da anca direita da A., com um alongamento de mais ou menos 24 mm do membro operado para compensar o desequilíbrio mecânico proporcionado pela paralisia do nervo ciático resultante daquela primeira intervenção.

Relativamente à primeira intervenção, apura-se que o 1.º R., depois de ter diagnosticado à A. “osteonecrose”, numa fase precoce, da cabeça femoral direita, orientou a execução daquela intervenção cirúrgica para permitir revascularizar a zona da cabeça femoral necrosada, de modo a adiar a necessidade de uma “prótese da anca”. Nessa intervenção, foi utilizada uma técnica denominada “mielectomia”, que era pouco usada na altura mas que era referida como uma das técnicas cirúrgicas conservadoras da anca, alternativas à artroplastia total da anca, a ser realizada nos primeiros estádios da necrose avascular, desde que a cabeça femoral não tivesse perdido a sua esfericidade e morfologia. Desse modo, visava-se preservar essa estrutura anatómica e tentar melhorar a sua vascularização.

Todavia, no decurso da referida intervenção cirúrgica, foi atingido o nervo ciático com lesão parcial do tronco externo do referido nervo, provocada pelo instrumento de colheita, ante a emergência de dificuldade de acesso à zona a intervencionar, resultando daí a paralisia do ciático da A., à direita.

Ora, no quadro da execução normal daquela intervenção cirúrgica, não era de esperar que fosse atingido o nervo ciático, uma vez que este se localiza numa zona distinta da cabeça femoral onde iria incidir a colheita de tecido necrosado, embora se situasse em zona adjacente. Ou seja, não estamos numa situação em que esteja em causa o adequado tratamento da própria zona intervencionada, melhor dizendo, no plano da execução da obrigação de meios tendente à revascularização da zona da cabeça femoral necrosada. O que se verificou foi que, perante a emergência de dificuldade de acesso a essa zona, ocorreu um dano colateral sobre um tecido adjacente que não era suposto ser atingido numa execução normal daquela intervenção e que derivou do manuseamento do instrumento de colheita. Foi, pois, essa lesão que provocou a paralisia do nervo ciático, originando a incapacidade sofrida pela A..

A este propósito, importa ter presente que o 1.º R., na execução do cumprimento da obrigação ao serviço da 2.ª R., estava, além do mais, também adstrito ao dever de proteção na salvaguarda da integridade física da paciente, coberta pela tutela da personalidade nos termos previstos no artigo 70.º, n.º 1, do CC, dever esse que aqui se encontra estreitamente conexionado com o cumprimento da obrigação contratual da 2.ª R. por via da execução do ato médico-cirúrgico empreendido pelo 1.º R..

Nessa medida, o reforço daquele dever de prestar por virtude do referido dever de proteção permite configurar a indicada lesão do nervo ciático como ato ilícito, violador da integridade física da A., ocorrido em sede da própria execução do cumprimento da obrigação contratual assumida pela 2.ª R., o que constitui base jurídica suficiente para concluir, face aos factos provados, pela prova da ilicitude do ato médico-cirúrgico em foco em ter-mos de responsabilidade contratual. Não se trata, portanto, de uma presunção de ilicitude como sustenta a 2.ª R./Recorrente.

Porém, não obstante isso, não se provou que, no quadro da dificuldade de acesso então surgida, o erro médico em referência se devesse a negligência ou imperícia do 1.º R..

Não se ignora que a 1.ª instância concluiu pela culpa efetiva daquele R., considerando que a intervenção cirúrgica fora levada a cabo sem que o mesmo R. tivesse “valorado devidamente a dificuldade de acesso, insistindo temerariamente na utilização do instrumento de colheita”, quando seria recomendável que, em caso de frustração da primeira tentativa, se procedesse, quando muito, a mais uma tentativa, mudando depois o ponto de introdução do instrumento de colheita.

Todavia, tal como bem ajuizou a Relação, dos factos provados não se colhem elementos que suportem uma tal conclusão. Com efeito, da factualidade provada não consta a mínima caracterização do tipo de dificuldade de acesso ocorrida, nem sequer se a lesão teve lugar no decurso de sucessivas insistências por parte do 1.º R., o que significa que tais conjeturas não têm base factual que permita emitir, sem mais, um juízo de censura sobre eventual descuido ou imperícia daquele R..


Quanto à 2.ª intervenção relativa à implantação da prótese, o que se verifica é que o alongamento em mais ou menos 24 mm do membro operado se destinou a compensar o desequilíbrio mecânico proporcionado pela paralisia do nervo ciático atingido na primeira intervenção.

Assim, muito embora não se tenha provado que a 2.ª intervenção cirúrgica - implantação da prótese -, fosse medicamente adequada a corrigir as consequências da primeira intervenção, nem que as boas técnicas ditem que em casos, como o da A., de obesidade mórbida, o operador deva deixar a perna operada (c/ prótese) levemente mais comprida, o certo é que o alongamento do membro operado no âmbito da 2.ª intervenção, visou precisamente compensar o desequilíbrio mecânico decorrente da paralisia do nervo ciático provocada pela lesão ocorrida na primeira intervenção. Significa isto que tal alongamento é ainda um efeito derivado daquela lesão imputável ao facto ilícito em que se traduziu o sobredito erro médico, em relação ao qual, como foi dito, não se apura a culpa efetiva do 1.º R..


De igual modo, não se poderá concluir pela culpa presumida do mesmo R. em sede de responsabilidade extracontratual, nos termos do n.º 2 do artigo 493.º do CC, já que não existem elementos para reputar, sem mais, as referidas intervenções cirúrgicas como atividade perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados.

Com efeito, provou-se que foi utilizada uma técnica denominada “mielectomia” que era pouco usada na altura (ponto 1.14 dos factos provados), mas não se provou essa técnica fosse então pouco usada por não ser eficaz (ponto 22. dos factos não provados). Por outro lado, ficou provado que, segundo os estudos mais recentes, em 5% de casos de avascularização/ necrose da anca e no respetivo "replacement" (aplicação de prótese), não se consegue êxito total (ponto 1.53), embora não se tenha provado que a operação seja referida como simples e sem riscos (ponto 2.1 dos factos não provados).

De qualquer modo, em face destes elementos e do que demais não foi provado, não se mostra lícito inferir um grau de aleatoriedade ou de complexidade das intervenções em causa, em particular da primeira, que indicie atividade perigosa, na perspetiva da lesão ocorrida, para os efeitos de aplicação do citado normativo. 

 

Em suma, diversamente do considerado pela Relação, conclui-se pela responsabilidade apenas da 2.ª R. quanto às lesões sofridas pela A. pelas intervenções cirúrgicas do 1.º R., a título de culpa presumida, nos termos conjugados dos artigos 799.º, n.º 1, e 800.º, n.º 1, do CC.          

        

3.4. Quanto ao montante indemnizatório a título de dano patrimonial decorrente da incapacidade sofrida pela A.


    Neste capítulo, a A. pediu que lhe fosse fixada, pela incapacidade total sofrida, uma indemnização no valor de € 150.000,00.

    A 1.ª instância fixou essa indemnização em € 86.054,40, no que foi confirmada pelo Tribunal da Relação com base nas seguintes considerações:

«Pensamos ser entendimento pacífico que na fixação do montante indemnizatório pela perda da capacidade de ganho resultante da Incapacidade, se deve ter em consideração, para além do grau de incapacidade, o salário do lesado, o tempo provável de vida activa do lesado, a sua idade bem como as suas despesas pessoais e no caso concreto o esforço suplementar que lhe vai ser exigido, com as inerentes dores, contrariedades e pior qualidade de vida.

A Autora viu os seus rendimentos diminuídos em função e na proporção daquela incapacidade pelo que a indemnização a atribuir deve representar um capital produtor de rendimentos que consiga cobrir a diferença entre a situação anterior e a actual, sendo certo que o mesmo deve estar esgotado no final da vida activa da lesada por forma a evitar-se um injusto enriquecimento da lesada à custa do lesante.

Nesta hipótese, para alcançar aquela justa indemnização o tribunal não deve estar limitado pelo uso de fórmulas matemáticas, sendo certo que existem várias fórmulas, igualmente válidas para a determinação do justo montante.

As fórmulas matemáticas devem servir essencialmente como instrumento de trabalho e não como critérios de determinação rígidos, pois teremos sempre de nos socorrer das regras da equidade.

Pensamos ser entendimento pacífico que se na fixação deste montante indemnizatório, para alcançar esta justa indemnização o tribunal não deve estar limitado pelo uso de fórmulas matemáticas, também não pode nem deve estar limitado por quaisquer tabelas.

As fórmulas matemáticas e as tabelas devem servir essencialmente como instrumento de trabalho e não como critérios de determinação rígidos, pois teremos sempre de nos socorrer das regras da equidade.

No caso concreto a autora ficou incapacitada para o trabalho sendo certo que auferia por mês 199,20 euros.

Ponderando que a Autora tinha, em 2004, 48 anos, tendo portanto ainda vários e longos anos de actividade pela frente, anos estes de trabalho que serão de maior penosidade numa fase da vida em que a capacidade física já é menor.

Atendendo a que as dores a vão acompanhar durante toda a vida, o que se reflecte num esforço acrescido.

Ponderando ainda que o autor era saudável, e que certamente esta diminuição de capacidades também se reflecte na sua vida diária, entendemos que a quantia de € 86.054,40 para a indemnização dos danos patrimoniais futuros/dano biológico sofridos pela autora alcançada pela decisão recorrida se mostra muito mais equilibrada e justa do que o montante de 60.000 Euros defendido pela Recorrente.

Lembre-se que a taxa de juro bancário se encontra a níveis muito baixos (e não se perspectiva a sua subida), sendo difícil encontrar taxas de juro superior a 1,5% para os depósitos a prazo.»

Em contraponto, sustenta a 2.ª R./Recorrente, no essencial, que o dano patrimonial de uma cidadã trabalhadora auferindo uma remuneração mensal de € 199,20 não pode razoavelmente atingir o montante estabelecido no acórdão recorrido, o qual corresponde ao montante que a A. auferiria até ao seu 108 anos de vida (por corresponderem, sem redução financeira, a mais 60 anos de vida) o que se mostra irrazoável e desproporcionado. E conclui que o valor fixado deverá ser reduzido de € 86.054,40 para € 40.000,00.

Antes de mais, importa ter presente que a determinação de indemnizações, mesmo em sede de danos patrimoniais, quando se baseia em juízos de equidade assentes numa ponderação casuística, à luz das regras da experiência comum, não se reconduzem, rigorosamente, a questões de direito ou à aplicação de critérios normativos estritos para que está vocacionado o tribunal de revista[19]. No entanto, ainda assim, caberá a este tribunal sindicar os limites de discricionariedade das instâncias, no recurso à equidade, mormente na busca da uniformização possível dos critérios jurisprudenciais, de modo a garantir o respeito pelo princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, nos termos proclamados no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição e conforme o disposto no n.º 3 do artigo 8.º do CC.

Como se assumiu no acórdão do STJ, de 21/01/2016, proferido no processo n.º 1021/11.3TBABT.E1.S1[20]:

«Não poderá deixar se ter-se em consideração que tal juízo de equidade das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade.»       


   Ora, a indemnização aqui em foco visa reparar a perda de rendimento da A. decorrente da incapacidade sofrida, a qual não se circunscreve à perda do rendimento obtido no seu desempenho profissional, compreendendo ainda o leque dos danos patrimoniais resultantes das sequelas sofridas, incluindo outras perdas ou diminuição da capacidade do lesado para o exercício de atividades económicas, como tal suscetíveis de avaliação pecuniária, na esfera do que tem vindo a ser designado como vertente patrimonial do “dano biológico”.

Como é sabido, os nossos tribunais, em particular a jurisprudência do STJ, têm vindo a reconhecer o dano biológico como dano patrimonial, na vertente de lucros cessantes, na medida em que respeita a incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, uma vez que a força de trabalho humano sempre é fonte de rendimentos, sendo que tal incapacidade obriga a um maior esforço para manter o nível de rendimento anteriormente produzido. E que, em sede de rendimentos frustrados, a indemnização deverá ser arbitrada equitativamente, de modo a corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado deixou de poder produzir, atenta a sua expetativa média de vida[21].    

Portanto, mesmo nos casos em que o lesado não exerça uma atividade profissional remunerada, em sede do dito dano biológico, deverá atender-se à atividade que ele desempenhava ou podia desempenhar com tarefas de índole económica propiciadoras de rendimento, no quadro do seu modo de vida, e que fique afetada em virtude das sequelas derivadas das lesões sofridas.


No caso vertente, dos factos provados resulta que a A., então com 48 anos de idade, não só ficou totalmente incapacitada para o exercício da atividade profissional que desempenhava antes das lesões sofridas, como também igualmente incapacitada para o exercício de atividades similares e até para a execução quotidiana das lides domésticas, num quadro expetável de vida ativa que se poderá prolongar para além dos 70 anos de idade.

Sucede que as instâncias, fixaram a indemnização em apreço no valor de € 86.054,40, atendendo a fatores objetivos respeitantes ao rendimento que a A. auferia, a título profissional, antes da lesão, ao nível de incapacidade verificada (incapacidade total) e à expetativa da vida ativa, ponderando ainda tal valor em termos de equidade.  

Ora, o rendimento anual proporcionado por aquele capital, às módicas taxas de juro hoje praticadas ou mesmo a taxas de capitalização da ordem dos 2% ou 3%, não se mostra, de modo algum, desconforme com o o rendimento que a A. auferia no seu exercício profissional, para além de ter ainda de cobrir a perda de rendimento na execução das demais tarefas, mormente as domésticas, que também deixou de poder desempenhar.

 

Em suma, tem-se tal indemnização por conforme aos parâmetros que vêm sendo adotados pela jurisprudência e, no que toca à equidade, não se revela que destoe dos critérios de ponderação em relação a situações de similar gravidade.             

Termos em que o acórdão recorrido não merece censura neste particular.


3.5. Quanto ao montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais


Nesta parte, a A. estimou, inicialmente, uma compensação no valor de € 75.000,00, a título de danos não patrimoniais.

No entanto, a 1.ª instância arbitrou essa indemnização em € 100.000,00, que o Tribunal da Relação reduziu para € 40.000,00.

Sustenta agora a 2.ª R. que tal indemnização se deve ficar pelos € 30.000,00, enquanto que a A. pede que seja elevada para € 100.000,00.

Como é hoje reconhecido pela larga maioria da doutrina e da jurisprudência, a responsabilidade civil contratual compreende também a compensação por danos não patrimoniais, nos termos subsidiariamente, aplicáveis do artigo 496º, nº 1, do CC, segundo o qual:

  Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Por sua vez, o n.º 3 do mesmo normativo determina que o montante de indemnização seja fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, nos termos estatuídos no art.º 494.° do referido Código. Nessa ponderação há que seguir um juízo de equidade pautado pelas regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de uma criteriosa ponderação das realidades da vida.

Com efeito, ante a imaterialidade dos interesses em jogo, a indemnização dos danos não patrimoniais não pode ter por escopo a sua reparação eco­nómica. Visa, fundamentalmente, compensar o lesado pelo dano sofrido, em termos de lhes proporcionar uma quantia pecuniária que permita satisfazer interesses que apaguem ou atenuem o sofrimento causado pela lesão.

Nessa perspetiva, tal indemnização não deverá confinar-se a uma di­mensão puramente simbólica, mas assumir uma expressão significativa com relevo no quadro de vida do lesado.

Todavia, no critério a adotar, não se devem perder de vista os padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, procurando - até por uma questão de justiça relativa - uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8.º do CC, por forma a evitar exacerbações subjetivas.


No caso concreto, dos factos provados colhe-se que, em virtude das lesões sofridas, a A., que então contava cerca de 48 anos e que dantes era uma mulher cheia de vida e força e demonstrava alegria em viver:

 i) - A A., com a lesão do tronco externo do nervo ciático ocorrida na 1.ª intervenção, passou a ter dores intensas – pontos 1.19 e 1.20 dos factos provados;

ii) - Atualmente, pelo menos, desde julho de 2010, apresenta uma dismetria positiva de 1,5 cms do MID e tem uma prótese total da anca direita sem aparentes reações – ponto 1.31;

iii) - O pé direito ficou pendente, que a A. não consegue levantar – ponto 1.32;  

iv) - Fiou com grande dificuldade em deslocar-se de um local para o outro, carecendo sempre de ajuda de duas canadianas, apresentando marcha claudicante, com recurso a canadianas – ponto 1.33;

v) - Ficou incapacitada para o trabalho, nada conseguindo executar – ponto 1.34;

vi) - Não consegue cozinhar, brunir, lavar ou fazer as camas – ponto 1.35;  

vii) - Não consegue sair de casa sozinha – ponto 1.36;

viii) - Não consegue calçar-se sozinha – ponto 1.37;

ix) - A vida de casa passou a ser efetuada pelo marido e filho – ponto 1.38;

x) - Nunca mais trabalhou, nem pode – ponto 1.39;  

xi) - Deixou de fazer as camas e arrumar a casa – ponto 1.40;

xii) - Viu-se obrigada a não ter mais animais em casa – ponto 1.41;

xiii) - A A. sente-se uma inválida – ponto 1.42;  

xiv) - Sofre por não poder caminhar, nem deslocar-se sozinha – ponto 1.43;

xv) - Sofre por saber que será uma inválida para o resto da vida –  ponto 1.44.

Torna-se sempre difícil comparar casos concretos, dada a grande variedade de fatores, podendo, quando muito, apelar-se a padrões de gravidade.

No caso dos autos, não se afigura que a situação da A. atinja, globalmente, o patamar adotado pela 1.ª instância, mesmo atendendo à exemplificação de casos ali dada. Mas também parece baixo o nível tido em conta pelo Tribunal da Relação.

Assim, tendo em conta a idade com que a A. sofreu a lesão, a natureza física das sequelas persistentes, a sua incapacidade total para o exercicio da atividade profissional ou de qualquer outra atividade similar, bem como para as tarefas domésticas, a sua reduzida mobilidade e o efeito psicológico que tudo isso acarreta para a sua auto-estima e qualidade de vida, tem-se por ajustada uma indemnização no valor de € 60.000,00 (sessenta mil euros). O facto de se tratar de pessoa obesa e com tendência para hipertensão não deve ser tido como atenuante; bem pelo contrário, tais predisposições podem ainda ser agravadas pelo quadro psico-somático em referência.


     Uma nota final para referir que os juros de mora devidos sobre o montante indemnizatório agora fixado contar-se-ão desde a data do acórdão recorrido, uma vez que se trata de mera correção do valor ali arbitrado.   

IV - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em: 

A – Conceder a revista às habilitadas em representação do 1.º réu, revogando o acórdão recorrido nessa parte e, em sua substituição, absolvendo aquelas do pedido; 

B – Negar a revista à 2.ª ré Santa Casa da Misericórdia do …;

C – Conceder parcialmente revista à autora AA, alterando a decisão recorrida no sentido de condenar a 2.ª ré a pagar àquela, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), mantendo-se as demais quantias indemnizatórias já arbitradas pelas instâncias, ficando aquela ré condenada no pagamento do total de € 146.849,40 (cento e quarenta e seis mil, oitocentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos), acrescido dos juros de mora, à taxa anual de 4%, a contar das datas determinadas no acórdão recorrido.     

    As custas da ação e do recurso, ficam a cargo da A. na proporção do respetivo decaimento, sem prejuízo da dispensa do seu pagamento em virtude do apoio judiciário de que beneficia. A 2.ª R. está isenta de custas nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do anterior CCJ, em vigor à data da propositura da ação, correspondente ao atual artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do RCP.

Lisboa, 23 de março de 2017

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

                                      

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria 


___________________


[1] A este propósito, vide, entre muitos outros, António Henriques Gaspar, A responsabilidade civil do médico, CJ Ano III (1979), Tomo 1, pp. 335 e segs. (340-342); André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 1.ª Edição, 2015, pp. 667-674.
[2] Vide, António Henriques Gaspar, A responsabilidade civil do médico, CJ Ano III (1979), Tomo 1, p. 543; Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica …, Scientia Iurida, XXXIII, Janeiro-Abril 1984, p. 107; Carlos Ferreira de Almeida, Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, in Direito de Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, p. 88; André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, pp. 670-673.  
[3] Relatado pela aqui 1.ª adjunta Juíza Cons. Maria da Graça Trigo, acessível ma Imternet, http://www. dgsi.pt/jstj.
[4] Vide André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, pp. 684, no desenvolvimento da proposta de Carlos Ferreira de Almeida, in Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, in Direito de Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, pp 75 e seguintes.  

[5] Vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde, in Responsabilidade Civil dos Médicos, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 11, 1.ª Edição, 2005, pp. 132.

[6] A este propósito, vide Vaz Serra, Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Representantes Legais ou dos Substitutos, in BMJ n.º 72, pag. 286; Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 1990, pp. 410-411.
[7] Vide, entre outros, António Henriques Gaspar, A responsabilidade civil do médico, CJ Ano III (1979), Tomo 1, p. 543; André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 1.ª Edição, 2015, p.p  708 e seguintes.
[8] Vide, a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 05-02-2013, relatado pelo Juiz Conselheiro Alves Velho, no processo 2035/05.8TVLSB.L1.S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[9] Direito das Obrigações, 11ª Edição, Almedina, pags. 1039 e seguintes.
[10] In Direito Civil/Responsabilidade Civil – O Método do Caso, Almedina, 2006, pag. 81/82.
[11] Ob. cit. pag. 81.
[12] Das Obrigações em Geral, Vol. 1.º, Almedina, 10.ª Edição, 2006, pag. 584 e 585.
[13] Das Obrigações em Geral, Vol .2.º, Almedina, 7.ª Edição, pag. 101.
[14] Relatado pelo Juiz Cons. Nuno Cameira, disponível na Internet – http://www.dsgi.pt/jstj.
[15] Relatado pelo Juiz Cons. Gregório Silva Jesus, disponível na Internet – http://www.dsgi.pt/jstj. 
[16] Relatado pelo Juiz Cons. Ferreira de Almeida, disponível na Internet – http://www.dsgi.pt/jstj. 
[17] Relatado pelo Juiz Cons. Silva Salazar, disponível na Internet – http://www.dsgi.pt/jstj. 

[18] A este propósito, vide André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 1.ª Edição, 2015, p.p 717 e segs.; Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde, ob. cit., pp.214-215.

[19] Veja-se, a este propósito, a título exemplificativo, o acórdão do STJ, de 04/06/2015, relatado por Maria dos Prazeres Beleza, no processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, em que outros acórdãos anteriores do mesmo Tribunal, acessível na Internet http://www.dgsi.pt/jstj
[20] Relatado por Lopes do Rego, acessível na Internet http://www.dgsi.pt/jstj
[21] Entre muitos outros, vide, a título de exemplo, o ac. do STJ, de 7-6-2011, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Granja da Fonseca, no âmbito do processo 160/2002.P1.S1, publicado na Internet, http://www.dgsi.pt/jstj.