Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7053/12.7TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONSENTIMENTO
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO
ÓNUS DA PROVA
ILICITUDE
MÉDICO
HOSPITAL
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DO RÉU CC E DA GG, S.A.. CONCEDIDA A REVISTA DO HOSPITAL BB E DA SEGURADORA EE, S.A.
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA.
Doutrina:
-André Gonçalo Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra Editora, 2015, p. 459, 465 e 684 e ss. ; Responsabilidade civil dos médicos, Coimbra Editora, 2005, p. 435 e ss, 459 e 496;
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª Edição, Coimbra, 2000, p. 900;
-Carlos Ferreira de Almeida, Direito da Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, ps. 75 e ss.;
-Manuel Carneiro da Frada, Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, p. 40 e 275;
-Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, I, Coimbra, 1984, p. 604;
-Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, reimp, Coimbra, 1982, p. 342, 337 e ss.;
-Pedro Romano Martínez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 2001, p. 253;
-Rui Cardona Ferreira, A perda de chance na responsabilidade civil por acto médico, sep. da Revista de Direito Civil, II (2017), 1, p. 131 a 155.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 340.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 615.º, N.º 1, ALÍNEA B).
ESTATUTO DA ORDEM DOS MÉDICOS, APROVADO PELO DECRETO-LEI Nº 282/77, DE 5 DE JULHO, REPUBLICADO EM ANEXO À LEI Nº 117/2015, DE 31 DE AGOSTO.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DO HOMEM E A BIOMEDICINA, CONVENÇÃO DE OVIEDO: - ARTIGO 5.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 04-03-2008, PROCESSO N.º 08A183, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-11-2009, PROCESSO N.º 381/2002.S1;
- DE 17-12-2009, PROCESSO N.º 544/09.9YFLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-07-2010, PROCESSO N.º 623/09.2YFLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-07-2010, PROCESSO N.º 1399/06.OTVPRT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-10-2010, PROCESSO N.º 272/06.7TBMTR.P1.S1;
- DE 15-09-2011, PROCESSO N.º 674/2001.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 209/06.3TVPRT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 31-01-2012, PROCESSO N.º 875/05.7TBILH.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-01-2013, PROCESSO N.º 9434/06.6TBMTS.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-03-2013, PROCESSO N.º 78/09.1TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-06-2013, PROCESSO N.º 544/10.6TBSTS.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-04-2015, PROCESSO N.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1;
- DE 02-06-2015, PROCESSO N.º 1206.3TVPRT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-06-2015, PROCESSO N.º 308/09.0TBCBR.C1.S1. IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-10-2015, PROCESSO N.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 7793/09.8T2SNT.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 136/12.5TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 24-06-2016, PROCESSO N.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 23-03-2017, PROCESSO N.º 296/07.7TBMCN.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-11-2017, PROCESSO N.º 23592/11.4T2SNT.L1.S1.
Sumário :
I - Em sede de responsabilidade civil por actos médicos ocorre frequentemente uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo orientação reiterada da jurisprudência do STJ a opção pelo regime da responsabilidade contratual tanto por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efectiva do lesado.

II - Tanto o direito nacional, como instrumentos internacionais, impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência e que esse consentimento seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica.

III - O consentimento do paciente prestado de forma genérica não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado, sendo, além disso, necessário, em caso de repetição de intervenções, que tais esclarecimentos sejam actualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo.

IV - Estando em causa a realização de um exame de colonoscopia, sem função curativa, do qual nasce uma obrigação de resultado (obtenção dos dados clínicos do exame), ocorrendo uma perfuração do colon do paciente, sem que esteja em discussão o cumprimento do dever primário de prestação do médico mas o cumprimento do dever acessório de, na realização do exame clinico, ser respeitada a integridade física daquele, duas construções dogmáticas podem ser perfilhadas:

(i) a ocorrência da perfuração do colon basta para configurar a ilicitude, uma vez que uma lesão da integridade física do paciente, não exigida pelo cumprimento do contrato, implica a sua verificação(ilicitude do resultado), caso em que haverá que ponderar da exclusão da ilicitude pelo consentimento informado daquele quanto aos riscos próprios daquela colonoscopia (cfr. art. 340º, nº 1, do CC);

(ii) incumbe ao paciente lesado provar a ilicitude da conduta do médico, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física daquele (ilicitude da conduta), caso em que, mesmo não se provando a violação desse dever, ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar o paciente dos riscos inerentes à intervenção médica e se este os aceitou.

V - A circunstância de se ter provado que a A., paciente, antes da realização do exame feito pelo R. médico assinou um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», contendo uma declaração em que afirma estar “perfeitamente informada e consciente dos riscos, complicações ou sequelas que possam surgir”, e ainda que conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, não é suficiente para preencher as exigências do consentimento devidamente informado uma vez que, no caso, sendo os riscos de perfuração superiores ao normal devido à idade e aos antecedentes clínicos da A., era imperativo que o R. fizesse prova de que a A. fora informada de tais riscos acrescidos.

VI - Tendo havido violação do dever de esclarecimento do paciente, com consequências laterais desvantajosas, isto é, a perfuração do colon, e com agravamento do estado de saúde, os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a integridade física e moral, e os danos ressarcíveis tanto são os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais.

VII - Por conseguinte, quer se siga a concepção da ilicitude do resultado quer a concepção da ilicitude da conduta, o R. médico e a respectiva seguradora encontram-se solidariamente obrigados a reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela A. com fundamento em falta de consentimento devidamente informado para a realização da colonoscopia.

VIII - Identificando-se, da matéria de facto, uma relação contratual entre a A. e o R. médico, que tem como objecto a prestação dos serviços especificamente médicos e uma outra relação contratual entre a A. e a R. Hospital, que não envolve a prestação de serviços médicos em sentido estrito, estamos perante uma situação, denominada pela doutrina, como “contrato dividido” ou autónomo, pelo que tendo-se concluído pela responsabilidade do R. médico com fundamento na falta de consentimento devidamente informado da A., não pode responsabilizar-se a R. Hospital pela conduta do mesmo médico.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra Hospital BB, S.A., e CC, peticionando a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de € 100.000,00, acrescida de juros de mora a contar da data da citação.

Para tanto, e em síntese, invocou que, em 17/03/2011, foi submetida a intervenção médica levada a cabo pelo 2º R., que exerce profissionalmente na 1ª R., que consistiu num exame de colonoscopia, intervenção da qual resultou perfuração do colon, o que a obrigou a submeter-se a sucessivas intervenções cirúrgicas. Fruto da actuação do 2º R. na execução do exame de colonoscopia, assim como da falta de acompanhamento por ambos os RR. na fase de recuperação do mesmo exame (tanto antes como após a alta clínica), a A. sofreu danos patrimoniais, descritos nos autos, no valor de € 11.258,42, e ainda danos não patrimoniais, que também descreve, e pelos quais peticiona uma compensação no montante de € 90.000,00.

Os RR. contestaram, negando a sua responsabilidade no evento; requerendo a R. Hospital BB, S.A.. a intervenção principal da seguradora Companhia de Seguros DD, S.A. (actual Seguradoras EE, S.A.) e requerendo o R. CC a intervenção principal da seguradora FF - Companhia de Seguros, S.A. (actual GG, Companhia de Seguros, S.A.).

Por despacho de fls. 197 ambos os requerimentos foram deferidos nos exactos termos.

As intervenientes contestaram, impugnando a factualidade alegada e concluindo, a final, pela improcedência da pretensão da A.

Realizado o julgamento foi proferida sentença de fls. 383, que julgou improcedente a causa, absolvendo os RR. do pedido.

Por decisão proferida a fls. 444 foram declarados habilitados como herdeiros da A., entretanto falecida, os seus filhos HH, II, JJ e KK.

Inconformados com a decisão da sentença, vieram os habilitados, na posição da originária autora, interpor recurso de apelação, pedindo a modificação da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

O R. CC juntou parecer, que consiste em texto doutrinal relativo à responsabilidade médica em geral, não se referindo especificamente ao caso dos autos.

Por acórdão de fls. 631 foi considerada prejudicada a questão da impugnação da matéria de facto, e, a final, proferida a seguinte decisão:

“Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e condenando os RR. e as Intervenientes a pagarem, solidariamente, à Autora, ora representada pelos seus herdeiros legais,

i). a título de danos patrimoniais, a quantia de € 8. 746, 98, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sucessivamente aplicável, desde 6.09.2012 e até efectivo e integral pagamento;

ii). a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 28. 000, 00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sucessivamente aplicável, desde a data deste acórdão e até efectivo e integral pagamento”


2. Vêm os RR. e as intervenientes recorrer, autonomamente, para o Supremo Tribunal de Justiça.

O R. Hospital BB, S.A. formula as seguintes conclusões:

1. O douto Acórdão fez errada interpretação e aplicação do Direito no caso concreto, por manifesta desconsideração da factualidade assente, incorrendo em erro de julgamento.

2. A par deste, a decisão é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam vários segmentos da sua argumentação e por contradição entre os seus fundamentos e a decisão (cfr. artigo 615º, nº 1 alíneas d) e c) do CPC).

3. A asserção de que o ato médico de cariz diagnóstico em causa é, independentemente das circunstâncias concretas, uma obrigação de resultado e, como tal, a ocorrência de uma perfuração configura per si um ato ilícito (desconsiderando o consentimento informado prestado e o risco específico do mesmo), traduz uma perversão dos princípios básicos do direito tradicional da responsabilidade civil aquiliana e contratual, transformando-a em responsabilidade pelo risco ou por factos lícitos danosos.

4. A configuração da concreta prestação em discussão como obrigação de resultado, porque fundada em ausência de fins curativos ou terapêuticos, é errada na medida em que desconsiderou o âmbito terapêutico em que o exame (colonoscopia) foi realizado e, bem assim, não levou em conta e aliás está em contradição com a matéria provada dos pontos 2, 4, 5, 6,7, 24, 25, 37 e 40 dos Factos Provados.

5. Atendendo ao seu concreto contexto, o exame realizado à Autora não pode ser considerado um vulgar exame de rotina realizado em condições de normalidade (contrariamente à situação discutida no Acórdão do STJ de 01/10/2015 no qual o presente Acórdão se baseia).

6. Pese embora se trate de um exame de diagnóstico, não resulta da factualidade provada que o Réu Médico tenha assegurado que seria possível a observação correta, integral e nítida do intestino da Autora e bem sucedida no diagnóstico de eventuais alterações, o que não é sequer compatível com qualquer procedimento diagnóstico invasivo, como é o caso da colonoscopia.

7. Para configurar o ato médico como obrigação de resultado, não basta concluir pela ausência de "fins curativos ou terapêuticos" (como se bastou o Tribunal a quo a considerar), já que em contrapartida nem todas as obrigações de meios têm "fins curativos ou terapêuticos" e nem por isso deixam de o ser.

8. Importa ter em conta que a atividade médica comporta quase sempre uma certa álea que resulta da existência de um conjunto de fatores externos imprevisíveis ou incontroláveis que impossibilita o médico de assegurar ao doente um resultado certo da intervenção proposta, a saber: circunstâncias inerentes ao doente que condicionam a maior ou menor dificuldade do procedimento, equipamento utilizado e os riscos próprios do procedimento [cfr. pontos 7., 25., 40., 53., 54. e 55. dos Factos Provados].

9. Por isso é incontestável que a prestação em causa, nas concretas circunstâncias que resultaram provadas, não pode senão haver-se como uma mera obrigação de meios, no sentido da jurisprudência maioritária. Assim, o Réu Médico vinculou-se tão-somente a empregar o seu saber, experiência, perícia, cuidado e diligência no sentido de atingir o melhor "resultado" possível em termos de diagnóstico, com os meios técnicos que tinha ao seu dispor e o estado atual da ciência médica.

10. Ainda que se assumisse a prestação realizada como obrigação de resultado, é essencial identificar o "resultado" visado pela concreta prestação para aferir o cumprimento ou incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação.

11. Inexiste fundamento para responsabilizar os Réus com base em responsabilidade contratual quando resulta demonstrado ter sido cumprida a obrigação subjacente, já que a este respeito o douto Acórdão considerou que um exame se "esgota em si mesmo enquanto meio de diagnóstico" e tomou como certo que o mesmo foi realizado e o resultado entregue à Autora. Pelo que se impunha que tivesse concluído, por coerência, ter sido cumprida a prestação contratada.

12. Ao concluir em sentido divergente, incorreu o douto Acórdão em manifesta contradição entre os fundamentos apresentados e a conclusão deles extraída que fere de nulidade a decisão neste segmento (cfr. artigo 615º, n.º 1 alínea c) do CPC).

13. O douto Acórdão configurou a perfuração do cólon como "facto voluntário", porém nenhum dos factos em que o Tribunal a quo se baseou para tal, nem a restante matéria assente permitem extrair tal conclusão, já que ficou demonstrado que a perfuração é um risco do procedimento que pode ocorrer por causas involuntárias ou alheias à atuação concreta do médico e pode mesmo sobrevir ao procedimento, sem ser sequer percecionável no momento [cfr. pontos 53, 54 e 55 dos Factos Provados].

14. Não é admissível a conclusão pela verificação do "facto voluntário", na medida em que a factualidade provada não evidencia que a perfuração do cólon tenha acontecido durante o exame, por causa da atuação do Réu Médico, já que a Autora não só não apresentava quaisquer indícios objetivos de perfuração do cólon durante e após o exame, como ainda revelava sinais objetivos de normalidade [cfr. pontos 10, 22, 23,42,45, 46,47,48, 49, 50 e 51 dos Factos Provados].

15. Para poder concluir pela verificação do "facto voluntário" como pressuposto da responsabilidade civil, impunha-se que o douto Acórdão especificasse os fundamentos de facto que justificam a evidência de que a perfuração do cólon resultou de uma conduta comissiva ou omissiva do Réu Médico, dominável ou controlável pela sua vontade: não o fez, pelo que a decisão está ferida de nulidade nesta parte (cfr. artigo 615º, n,º 1 alínea b) do CPC).

16. Quanto ao pressuposto do "facto ilícito", andou bem a Sentença revogada que concluiu pela improcedência da ação por não provada a ilicitude, na medida em que não resultou demonstrado que tivesse havido um ato médico errado ou que tivesse sido violado, por parte do Réu Médico ou da ora Recorrente, um dever jurídico ou qualquer dos deveres principais ou acessórios que se impunham, considerando, em contrapartida, que a perfuração do cólon se tratou de um risco próprio do exame.

17. Já o douto Tribunal da Relação divergiu desta posição julgando verificado o pressuposto da ilicitude com fundamento na perceção de a perfuração ser em altíssimo grau estranha ao cumprimento do fim do contrato (probabilidade inferior a 1%) e a sua gravidade resultar desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela concreta intervenção ou ato médico.

18. Ficou, porém, provado que não só a Autora consentiu expressa e formalmente na realização daquele exame invasivo, ciente da sua situação clínica e dos riscos associados àquele ato médico (especificamente sobre o risco de perfuração), como também que a colonoscopia, enquanto procedimento invasivo, comporta necessariamente riscos (vg. o risco de perfuração) que ocorre num 1 a 8 casos em cada 1.000 exames realizados [cfr. pontos 37, 38 e 53 dos Factos Provados].

19. O consentimento informado assenta nos pressupostos de auto-responsabilização e liberdade de escolha, pelo que o exercício pelo doente da sua liberdade de escolha é correlativo da sua auto-responsabilização. Nessa medida, o doente que consente na realização de determinado procedimento médico ciente, porque previamente informado, dos riscos inerentes ao mesmo, assume por essa via o risco da sua eventual verificação.

20. O consentimento da Autora é causa de exclusão da responsabilidade dos Réus a partir do momento em que a lesão física (perfuração do cólon), pela sua natureza e gravidade, se contém dentro do risco próprio do ato médico que foi previamente conhecido e aceite pela Autora (cfr. artigo 340.º, n.º 1 do Código Civil).

21. De outra forma, impunha-se que o Tribunal da Relação tivesse considerado nulo o consentimento prestado (cfr. artigo 8º, n.º 1 do Código Civil), o que não foi suscitado, nem discutido.

22. Por outro lado, a incidência de risco de perfuração inferior a 1% em colonoscopias de cariz diagnóstico não pode redundar em ausência de risco, mormente quando resultou demonstrado que a Autora foi dele prévia e especificamente informada [pontos 37. e 38. dos factos provados].

23. Se o concreto procedimento diagnóstico envolve riscos e se a Autora os assumiu ao aceitar submeter-se ao exame informada dos riscos, é inaceitável a conclusão de que a sua ocorrência seja totalmente estranha à execução do procedimento contratado.

24. A prevalência do risco de perfuração não pode deixar de ser aferido[a] em função das circunstâncias concretas do doente, em especial as condições do campo de intervenção, sendo que no caso resultou demonstrado que a anterior operação oncológica que a Autora realizara propicia a formação de processos aderenciais que não só podem ser causa direta de perfuração no cólon, como agravam o risco de perfuração por aumento da pressão intracólica, decorrente da maior quantidade de ar que é necessário insuflar para realizar o exame [cfr. pontos 40. e 54. dos factos provados].

25. Nas concretas circunstâncias que resultaram provadas não é plausível a conclusão de que a perfuração ocorrida seja desproporcionada face aos riscos normais para o lesado inerentes à concreta intervenção, pelo que a conclusão vertida no ponto IV. do sumário do douto Acórdão é nula, por ininteligível e infundada (cfr. artigo 615º, n.º 1 alíneas a) e c) do CPC).

26. O consentimento da Autora só não releva se a lesão provier de ato ilícito (cfr. artigo 340º, n.º 2 do Código Civil) que no caso não se verificou.

27. Apesar de ter julgado verificado o pressuposto da ilicitude, o douto Acórdão não só não identificou quaisquer factos que permitissem concluir ter existido uma atuação voluntária, por ação ou omissão, especificamente inadequada, incorreta, imprudente, imperita ou negligente, diretamente imputável aos Réus, como também não revelou quais as regras da arte médica ou os específicos deveres que resultam do contrato ou da deontologia profissional que tenham sido infringidos pelos Réus, o que fere de nulidade a decisão (cfr. artigo 615º, n.º 1 alínea b) do CPC).

28. Da factualidade assente também não resulta qualquer evidência de conduta errada, descuidada, impudente ou negligente por parte de qualquer dos Réus de molde a conformar ato ilícito, tal como justamente constatou a sentença da primeira instância que, por isso, julgou improcedente a ação.

29. Competindo à Autora o ónus de prova da ilicitude como facto constitutivo do direito de indemnização dela emergente (cfr. artigo 342º, 483º e 798º do Código Civil), só assistiria aos herdeiros legais da Autora direito à indemnização mediante prova de que a perfuração cólica fora causada por violação por parte dos Réus das «leges artis», de algum dever jurídico ou de deveres principais ou acessórios contratados.

30. Face à falta de evidência, com base na matéria de facto provada, quer do cumprimento pela Autora (pelos seus herdeiros legais) do respetivo ónus probatório da ilicitude, quer da conduta voluntária do médico objetivamente ilícita por referência à atuação que pelas «leges artis» lhe seria em concreto exigível, o Tribunal da Relação nunca poderia ter julgado verificada a ilicitude.

31. Ao concluir nos termos do ponto IV. do seu sumário e fundar a decisão com base nesse pressuposto, o Tribunal da Relação redundou numa condenação dos Réus em responsabilidade objetiva (pelo risco ou por facto lícitos) num caso imprevisto pela lei.

32. Por conseguinte, a decisão está ferida de erro de Direito (error in judicando), já que a matéria assente não demonstra qualquer ato ilícito que tenha sido praticado pelos Réus e a lei não prevê responsabilidade médica objetiva ou por factos lícitos danosos.

33. A factualidade assente demonstra, ao invés, de ter sido empregue pelo Réu Médico um razoável grau de perícia e competência na execução do exame e terem sido cumpridos pela Ré Hospital os deveres de vigilância e cuidado no recobro posterior ao exame [cfr. pontos 6,7, 8, 22,40,43,45,46, 51 dos Factos Assentes].

34. Resulta ainda demonstrado que a perfuração que sobreveio ao exame realizado à Autora pelo Réu Médico, na Ré Hospital não decorreu de má prática ou falta de cuidado destes, mas tratou-se de um risco próprio do exame que, com razoável probabilidade, pode ter tido origem em circunstâncias excecionais, anormais ou extraordinárias relacionadas com o aparelho intestinal da Autora, fragilizado por tratamento cirúrgico anterior, e até ter sucedido em momento posterior ao exame a partir de uma microfissura comprovadamente desapercebida e assintomática [cfr. pontos 42, 49, 50, 53, 54 e 55 dos Factos Assentes].

35. Assim, os Réus lograram ilidir a presunção de culpa que seria seu ónus, se porventura se verificasse o pressuposto prévio da ilicitude, o que não sucedeu.

36. O douto Acórdão também não concretizou, estribando-se na factualidade assente, o que os Réus podiam ou deveriam ter feito e não fizeram, ou o que não podiam, nem deviam ter feito e fizeram, de molde a dar como demonstrado o pressuposto da culpa configurado nos termos citados, pelo que a decisão está ferida de nulidade (cfr. artigo 615º, nº 1, alínea b) do CPC).

37. Sendo certo que a discussão do pressuposto da culpa é espúrio, a partir do momento em que não se encontra verificado sequer o pressuposto prévio da ilicitude.

38. Em face de todo o exposto, e salvo o devido respeito, não é possível censurar a conduta dos Réus à luz da responsabilidade civil contratual ou extracontratual, o que impõe a sua absolvição do pedido, com a consequente repristinação da sentença da primeira instância que bem decidiu nesse sentido.

39. Ao entender em sentido diferente, o douto Acórdão incorreu em erro notório no juízo de subsunção das normas jurídicas aos factos assentes na decisão da primeira instância, violando o disposto nos artigos 342º,483º, 798º e 799º do Código Civil.

40. Inexiste ainda fundamento de facto e de direito que justifiquem a decisão de condenação da Ré Hospital com base em responsabilidade objetiva prevista no artigo 800.º do Código Civil, já que não ficou provado que a Autora tivesse contratado diretamente com a Ré Hospital a prestação de quaisquer serviços.

41. A factualidade assente não evidencia que o Réu Médico tivesse atuado como auxiliar no cumprimento dos serviços contratados entre a Autora e a Ré Hospital, mas sim o inverso: a Ré Hospital cedeu ao Réu Médico os seus meios e instalações para que este executasse o exame que lhe foi solicitado pela Autora, em regime de consulta de acompanhamento, o que é incompatível com o sentido da norma prevista no artigo 800º do Código Civil.

42. A escolha da Autora nesta concreta prestação de serviços recaiu sobre o Réu Médico, intuitu personae, e não sobre a Ré Hospital, a qual interveio na mesma como auxiliar do seu cumprimento. Donde, é forçoso concluir que a relação contratual foi estabelecida pela Autora com o Réu Médico, a quem solicitou diretamente a prestação de serviços de saúde.

43. A factualidade provada apenas permite concluir que a Autora estabeleceu relação contratual com o Réu Médico ou, quanto muito, duas relações contratuais conexas com sujeitos e âmbitos distintos: a primeira com o Réu Médico para prestação de cuidados de saúde, a segunda com a Ré Hospital para fornecimento de instalações e meios necessários à prestação daqueles cuidados.

44. De uma forma ou de outra, não tem aplicação o disposto no artigo 800º do Código Civil, nem o douto Acórdão especificou razões de facto que sustentam a aplicação desta norma.

45. Na modalidade de contrato dividido que está presente in casu, a Ré Hospital assume contratualmente apenas a parte relativa aos meios para a prestação do serviço, sendo o Réu Médico contratualmente responsável pelos seus atos e pelos atos das pessoas que utilize no cumprimento da prestação acordada com a Autora.

46. Uma vez que não resultou provando que a realização do exame em apreço tenha sido contratada pela Autora diretamente com a Ré Hospital, esta não pode ser responsabilizada por (eventual) incumprimento ou cumprimento defeituoso de uma prestação não contratada (ou pelo menos não provado que o tivesse sido) entre a Autora e a Ré Hospital.

47. E bem assim, também não resultaram provados factos que apontem no sentido da prática de ato ilícito por parte da Ré Hospital, nem do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso de qualquer obrigação a que estivesse concretamente vinculada, decorrente de contrato celebrado (a ter sido) com a Autora.

48. Inexistem fundamentos de facto e de direito para condenar solidariamente a Ré Hospital já que, nos termos do disposto no artigo 513º do Código Civil, a solidariedade de devedores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.

49. Pelo que, mesmo que se considere a existência de um contrato com pluralidade de devedores - como parece ser o que resulta da fundamentação do douto Acórdão (cfr. pág. 25) - impõe-se aplicar o regime geral das obrigações conjuntas ou parciárias (cfr. 796º, n.º 3 do Código Civil).

50. No âmbito da responsabilidade contratual - que o douto Tribunal considerou ser o regime aplicável no caso concreto - não tem aplicabilidade a regra da solidariedade estabelecida na responsabilidade extracontratual (cfr. artigo 497º do Código Civil), já que a mesma não resulta da lei, nem resultou provado que tivesse havido acordo das partes a esse respeito.

51. Assim, a concluída verificação de responsabilidade objetiva da Ré Hospital fundada no artigo 800º do Código Civil está inquinada de erro de julgamento, em resultado de uma inexata qualificação jurídica da intervenção da Ré Hospital nos factos em discussão que não encontra fundamento na matéria de facto provada.

52. A par deste a decisão de condenação solidária da Ré Hospital é igualmente inadmissível por ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão, no âmbito da responsabilidade contratual, donde a decisão está ferida de nulidade (cfr. artigo 615º, n.º 1 alínea b) do CPC).

53. Caso assim não se entenda, discute-se, por mera cautela e dever de patrocínio, o quantum indemnizatório arbitrado pelo Tribunal a quo para compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela Autora e atribuído aos seus herdeiros legais, já que o mesmo se mostra desajustado, face aos danos provados, e excessivo, face à prática jurisprudencial.

54. Neste contexto, ponderando comparativamente os valores fixadas na jurisprudência e as circunstâncias concretas provadas, parece resultar, salvo o devido respeito, que o valor atribuído a título de indemnização por danos não patrimoniais pelo Tribunal da Relação se mostra desajustado.

Termina pedindo que seja declarada a nulidade do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que absolva os RR. do pedido.


Por sua vez, o R. CC formulou as seguintes conclusões:

1º Vem o presente recurso de revista interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, antes identificado, que, revogando a decisão de 1ª instância, considerou a ação parcialmente procedente.

2º Para tanto, considerou que: (I) Que o contrato de prestação de serviços em causa não traduz uma obrigação de meios, mas sim de resultado (ou que tal distinção é irrelevante, o que, no fundo, é a mesma coisa); (II) Em resultado disso mesmo, que existe ilicitude porque a lesão da integridade física da Autora não era exigida pelo contrato e não foi abrangida pelo consentimento ou pretensão da mesma; (III) Que, podendo da colonoscopia resultar a perfuração, se impunha um especial dever de cuidado (art.º 762 nº 2 CC), a ter em conta os interesses da Autora e a gerar responsabilidade contratual art.º 798 CC; Ainda, (IV) Que, na dúvida, presume-se a culpa (art.º 799 nº 2 CC), presunção não ilidida (art.º 344 nº 1 CC).

3° Salvo o devido respeito por melhor opinião, sem razão.

3º Na verdade, entendeu que, demonstrada (na sua tese) a ilicitude, não se encontra provada matéria de fato que afaste a presunção de culpa que foi adotada.

4º Salvo o devido respeito por melhor opinião, não é verdade.

5º Pois que foi efetuada prova no sentido de que o réu CC agiu com toda a correção profissional, com cuidado e de acordo com a leges artis do ramo - Cfr. Os pontos 37, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45,46, 47, 48, 49, 50, 51, 53, 54, 55 e 56 da matéria de fato dada como provada.

6º Os fatos antes referidos - ignorados pelo douto acórdão recorrido - operam (se necessário fosse - que não é) a elisão da dita presunção (iuris tantum), com a prova do contrário.

7º Provam que o ora recorrente e os restantes intervenientes nos atos em causa, usaram de toda a diligência, se esforçaram por cumprir, usando as cautelas e zelo que utilizaria um «bom pai de família» nas concretas circunstâncias do caso, decorrendo as lesões verificadas de fatores e circunstâncias que, escapando inteiramente ao seu domínio, não foi possível controlar adequadamente (nesse sentido, de que tal poderia ocorrer, o conhecimento dos riscos e consentimento devidamente esclarecido da paciente).

8º Tais factos são impeditivos do funcionamento da presunção de culpa em causa, dado o seu inquestionável relevo substantivo ou material para o preenchimento, atuação e aplicação das normas que condicionam a decisão do mérito da causa.

Acresce que,

9° O douto acórdão fundamenta também a sua decisão no sentido de que o consentimento informado "não abrange a lesão física que, em termos de normalidade ou previsibilidade, não é exigida para a realização do aludido exame e cumprimento do contratado e que, assim, se apresenta como ilícita" (segundo parágrafo de fls. 41).

10° Mais uma vez, ignora (e contraria) a matéria de fato dada como provada e que invocou como fundamento da sua decisão.

11° Pois que resulta dos pontos 37 e 38 da matéria de fato provada que a paciente foi devidamente informada dos riscos que uma colonoscopia implicava, incluindo as eventuais perfurações do intestino que pudessem ocorrer - riscos que aceitou correr.

12° Impunha-se, sob pena de nulidade, que a douta decisão recorrida observasse, na sua elaboração, toda a realidade objetiva e processual dos autos - o que não aconteceu.

13° Pelo que, o douto acórdão recorrido é nulo e como tal deve ser declarado, por contradição entre os seus fundamentos, a matéria dada como provada e o decidido, nos termos do disposto no art. 615 NCPC (antigo art 668).

Sem prescindir e subsidiariamente,

14° Os presentes autos consubstanciam uma ação de responsabilidade médica, na qual a originária Autora solicitou uma indemnização em virtude dos danos materiais e morais sofridos em consequência da realização de um exame de colonoscopia do qual resultou uma perfuração do seu intestino, indemnização essa que lhe foi parcialmente concedida (no entender do recorrente, sem qualquer fundamento).

15° Em primeiro lugar, a possibilidade de uma eventual perfuração foi consentida e o seu eventual risco assumido (Cfr. Os pontos 37 e 38 da matéria dada como provada).

16° Tal consentimento constituiu um facto impeditivo do direito invocado (causa de exclusão da ilicitude - art°s 342, 483 e 800 CC), tendo sido realizada a sua prova (art. 342°, n° 2 CC): (I) A paciente foi informada do "risco mais grave" que pode ocorrer numa colonoscopia (perfuração do intestino); (II) Pois que, apesar de ser "raro" é específico daquela concreta intervenção; (III) Colocando nas mãos daquela toda a informação necessária para que a mesma se determinasse responsavelmente, assumindo aquele risco; (IV) Como aconteceu.

17° Em segundo lugar, ainda que fosse necessário ilidir qualquer presunção de culpa (e como infra se verá, tal não era necessário) foi efetuada prova no sentido de que o réu CC agiu com toda a correção profissional, com cuidado e de acordo com a leges artis do ramo - Cfr. os pontos 37, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45,46, 47, 48, 49, 50, 51, 53, 54, 55  e  56  da  matéria de fato dada como provada (e o antes referido acerca da nulidade do douto acórdão recorrido)

Ainda subsidiariamente,

18° Mesmo que se entendesse não ter ficado provado que o réu CC agiu de acordo com a leges artis do ramo (o que apenas se admite por mero efeito de raciocínio), a douta decisão recorrida não poderia ter um sentido diferente daquele que foi assumido pelo Dig.° Tribunal de 1ª instância.

19° Na verdade, a charneira das duas diferentes posições escalpelizadas no douto acórdão recorrido, encontra-se nos diferentes conceitos de "obrigação de meios" e de "resultado" e da sua subsunção ao caso dos autos.

20° Os critérios de distinção não excluem figuras mistas (v. g. os casos de dupla definição da prestação).

21°A diferença está naquilo a que o devedor se obriga: nas de resultado, obriga-se a causá-lo; nas de meios, obriga-se a tentar adequadamente causá-lo.

22° Só há cumprimento das primeiras quando o resultado definidor da prestação ocorra causado pelo devedor; nas de meios, há cumprimento quando o resultado é adequadamente tentado.

23° Nas obrigações de meios, o devedor está vinculado a todo o ato necessário - necessário, não suficiente -, pois todos os atos indispensáveis ao resultado definidor (i.e., necessários) se incluem forçosamente nos atos a ele adequados.

24° Os atos adequados englobam todos os atos necessários, embora insuficientes, e ainda, nos termos gerais, as cautelas próprias do bonus pater à face da situação (salvo estipulação adicional, que, aliás, neste caso existiu sobre a forma de risco consentido).

25° O douto acórdão recorrido não atendeu ao conceito-chave de resultado definidor da prestação, que se contrapõe aos resultados exteriores - por vezes chamados «fim da prestação», e, ainda, aos resultados subalternos (a perfuração, de que aquele exame médico é exemplo - risco esse inerente a qualquer exame de colonoscopia que a originária Autora expressamente assumiu: pontos n°s 37, 38, 53, 54 e 55 dos factos provados.

26° No âmbito da responsabilidade contratual, tendo conjugadamente em conta o disposto nos artigos 398, 762 n°2, 763, 798, 799 n° 2, 487 n° 2 e 342, todos do Código Civil, um exame de colonoscopia, inserido num âmbito alargado de acompanhamento e tratamento de um doente, consubstancia uma obrigação de meios cabendo a prova da ilicitude ao doente.

27° Ilicitude liminarmente excluída face ao consentimento informado prestado.

28° Aliás, haverá que ressaltar que, no caso de uma colonoscopia, existem riscos evidentes (aliás, dados como provados) em virtude de se tratar de um exame invasivo.

29° Não se trata de um mero exame de diagnóstico (de que se pretende apenas o "relatório"), mas sim um exame que ofende a integridade física do paciente, com os riscos inerentes a tal fato, sendo que, e havendo essa necessidade, tal exame será complementado com objetivos curativos (v. g. extração de pólipos).

30° A atuação do médico é unitária e toda ela se esgota no mesmo procedimento, o qual está na origem, seja do exame médico, seja da perfuração do intestino enquanto evento adverso

31° Quando se defende (erradamente) a irrelevância da distinção entre obrigação de meios e de resultado, o que se está a defender é que se trata - sempre - de uma obrigação de resultado...;

32° E, então, na realização de uma colonoscopia, o médico não estaria obrigado, a contrario sensu, a atuar segundo as regras da arte, utilizando o seu melhor saber, uma vez que, naquela tese, só interessaria "o resultado" (poderia violar as leges artis desde que não houvesse perfuração).

33° Trata-se de um conclusão absurda, que não se pode manter na ordem jurídica!

34° O presente caso, é diferente e diverso do que estava em causa no citado acórdão do STJ de 01/10/2015 (invocado pelo douto acórdão recorrido), que não tem aplicação no presente caso: (I) porque no caso aí julgado, não tinha havido (prova) de um consentimento expresso de risco consentido - e, aqui, tal consentimento existiu; (ii) porque, nesse mesmo processo, a prova do "processamento" da colonoscopia (digamos assim) tinha sido praticamente inexistente - e, aqui, ficou provada toda a atenta, cuidadosa e profissionalmente correta atuação do recorrido CC.

35° A "visão" do douto acórdão recorrido ("vendo em tudo" obrigações de resultado ou considerando que, na responsabilidade contratual, se impõe sempre a inversão do ónus da prova por força do disposto no art.° 799 n° 1 do C.C. - o que, na prática acaba por ser a mesma coisa), se adotada pelos nossos Tribunais, levaria, na realidade, a uma constante e injusta suscitação do regime de presunção da ilicitude do profissional de saúde: (I) teria de ser o profissional de saúde a provar - sempre - que não praticou qualquer ato ilícito e, na hipótese negativa (de não conseguir efetuar tal prova, ainda que o contrário também não fique provado) a responder por força de tal presunção; (II) tanto mais que a ilicitude não é o único pressuposto da responsabilidade subjetiva e a prova do nexo de causalidade entre o facto e o dano é muito mais fácil e simples se estiver em causa uma obrigação de resultado e não de meio.

36° O douto acórdão recorrido é nulo e como tal deve ser declarado.

Caso assim se não entenda e subsidiariamente, deve ele ser revogado, por erro de interpretação do disposto nos citados preceitos e diplomas legais, e substituído por outro que decida no sentido defendido (decisão de 1ª instância)


A interveniente Seguradoras EE, S.A. (seguradora da R. Hospital, S.A.) concluiu da seguinte forma:

1. A aqui recorrente não pode aceitar o entendimento perfilhado pelo Acórdão recorrido nos termos do qual se verifica objectivamente o preenchimento inevitável do requisito da ilicitude sempre que de um acto médico, mesmo quando este é autorizado e os respectivos riscos explicados ao paciente, decorre uma ofensa à integridade física do doente, tida como não querida ou não exigida pelo cumprimento do contrato.

2. Considerando que na maior parte dos actos médicos - como acontece no caso das colonoscopias - por via de regra, existe sempre uma ofensa à integridade física do paciente, para se aferir da existência da eventual verificação do requisito da ilicitude, importa proceder sempre a uma avaliação concreta do grau, da natureza e da extensão dessa ofensa em função do acto médico realizado e da finalidade da intervenção médica em causa.

3. A análise levada a cabo pelo Tribunal recorrido na apreciação do caso dos autos configura, ressalvando sempre o devido respeito por opinião diversa, um estímulo a uma prática médica defensiva, sem assunção dos riscos próprios e moderados da actividade médica, com manifesto prejuízo da saúde pública, dos doentes e da evolução das técnicas médicas.

4. De todo o modo, sempre se dirá que mesmo segundo a perspectiva do Tribunal a quo, o pressuposto da ilicitude nunca estaria seria verificado na hipótese dos autos, pois a lesão sofrida pela primitiva autora não é nem completamente estranha ao cumprimento do contrato (era, aliás, um risco conhecido da primitiva autora, que esta mesmo assim assumiu), nem, em concreto, se pode considerar desproporcionada relativamente aos riscos normais inerentes aquela intervenção (realização de uma colonoscopia).

5. Na análise que levou a cabo, o Tribunal a quo não atendeu à circunstância de o cólon da autora se encontrar fragilizado, por virtude de aquela ter sido anteriormente submetida a uma intervenção cirúrgica para remoção de tumor maligno, diagnosticado pelo segundo réu num exame idêntico.

6. De todo o modo, face à factualidade que vem dada como demonstrada, não se divisa, na actuação dos réus qualquer conduta errada ou negligente que indicie a prática por parte de qualquer um deles de algum ilícito.

7. Pelo contrário, a factualidade que vem dada como provada indicia que o segundo réu actuou com todo o cuidado na execução do exame aqui em apreço, agindo mais lentamente do que é habitual, visto estar perante um colón mais fragilizado e insuflando uma quantidade maior de ar, para mais facilmente permitir avanço do colonoscópio.

8. Resulta bem assim da factualidade provada que nada fazia suspeitar ao segundo réu, ou à enfermeira e ao anestesista que acompanharam a primitiva autora, durante o período em que esta esteve no recobro, que teria ocorrido uma perfuração do cólon durante o exame a que a mesma fora submetida.

9. Em suma, na conduta do segundo réu não se vislumbra qualquer desvio do dito padrão de comportamento diligente e competente, designadamente uma desconformidade entre a actuação e as "leges artis", seja por ter realizado o exame de modo deficiente, seja por ter omitido actos necessários e adequados à identificação e tratamento da sobredita perfuração.

10. O mesmo diz relativamente à primeira ré, já que não se vislumbra no seu comportamento qualquer acto, ou omissão susceptível de poder ser configurada como contrária às "leges artis".

11. Daí que, salvo o devido respeito, não seja possível censurar civilmente a conduta dos réus, os quais deverão ser absolvidos do pedido, com a consequente absolvição da ora recorrente.

12. Ainda que assim se não entenda, o que apenas se admite para efeitos do presente raciocínio, sempre se dirá que, face à factualidade que vem dada como demonstrada, não há fundamento que justifique a condenação da primeira ré e, consequentemente, da aqui recorrente, tal como estabelecida pelo Tribunal a quo.

13. Na verdade, não resultou demonstrado que tipo de contrato foi celebrado (se é que o foi) entre a mencionada AA e a primeira ré, não se sabendo nomeadamente se aquela foi internada nas instalações desta última como doente particular do segundo réu, ou se contratou os serviços directamente com o hospital e em que termos.

14. A decisão proferida pelo Acórdão recorrido quanto à primeira ré e à aqui recorrente é inaceitável, dado que nada se provou nos autos relativamente ao comportamento interventivo daquela no acto médico realizado à primitiva autora, inexistindo, por isso, a verificação dos pressupostos da responsabilidade contratual da primeira ré, nomeadamente qualquer ilicitude que tenha sido por si praticada e muito menos a sua culpa.

15. Daí que a primeira ré deva ser absolvida do pedido, o que desde já se requer, com a consequente absolvição da ora recorrente.

16. Mas mesmo que assim se não entendesse, o que apenas se equaciona para efeitos do presente raciocínio, sempre importa referir que Acórdão recorrido peca também nos termos em que condenou a recorrente, sem atender ao contrato de seguro que a legitima para os termos da presente acção.

17. A este propósito importa ter presente que relativamente à cobertura de "Responsabilidade Civil Profissional" o contrato de seguro aqui em apreço apenas garante a Responsabilidade Civil "...profissional de médicos que pertençam aos quadros efectivos do hospital", tal como consta da al. h) do n°. 2 das Condições Particulares da Apólice, isto é do documento de fls. 221 a 234 dos autos, junto com a contestação da aqui recorrente e cujo teor foi dado por reproduzido na matéria de Facto Provada (vide respectivo Ponto 57).

18. Ora, não consta dos autos e, muito menos, está dado como provado que o segundo réu Dr. CC alguma vez tenha integrado os quadros efectivos do Hospital BB, ou que os integrasse, aquando da realização do exame médico aqui em discussão.

19. Não estando a actividade exercida pelo médico Dr. CC nas instalações da primeira ré abrangida pelo contrato de seguro celebrado com a ora recorrente, deverá o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva a ora recorrente do pedido.

20. Ainda que assim não fosse - o que apenas se admite para efeitos do presente raciocínio - cumpre salientar que, apesar de ser ter demonstrado que a cobertura de "Responsabilidade Civil Profissional" prevista no contrato de seguro celebrado com a ora recorrente, tem estabelecida uma franquia de 10%, sobre o valor do sinistro, com o mínimo de 1.000,00€ (vide ponto 57 da Fundamentação de Facto e documento de fls 221 a 234 dos autos), o Acórdão recorrido não procedeu à sua dedução no momento da atribuição da indemnização que arbitrou aos recorridos.

21. Em face do exposto, importa proceder à dedução à indemnização que venha a ser fixada aos recorridos um montante equivalente a 10% do valor dessa indemnização, o qual não poderá ser inferior a 1.000,00€.

22. Quando assim se não entenda, sempre se dirá que o montante arbitrado pelo Tribunal a quo a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela primitiva autora se mostra excessivo e desajustado, se tivermos em conta não apenas os factos dados como provados, mas também a orientação que vem sendo seguida pela nossa Jurisprudência em situações análogas e até mais gravosas.

23. Importa salientar a este propósito que a estabilização [a estabilização] total da lesão sofrida pela mencionada AA, em consequência da perfuração cólica ocorrida, deu-se cerca de 8 meses depois, não havendo notícia nos autos que aponte no sentido de esta ter ficado a padecer de qualquer sequela permanente decorrente dos factos aqui em apreço.

24. Por outro lado, também não se demonstrou que, após 07.011.2011, a indicada AA tivesse sofrido quaisquer dores, incómodos, ou outros padecimentos, relacionados com os factos aqui em discussão, ou mesmo que aquela se visse na necessidade de se submeter a qualquer consulta, ou tratamento que a obrigasse a alterar as suas rotinas diárias.

25. Importa, bem assim, salientar que, a perfuração do cólon que veio a ocorrer e, consequentemente, todos os efeitos e constrangimentos a ela inerentes, foram, de certo modo, consentidos pela primitiva autora, que, conhecendo a possibilidade da verificação desse risco, ainda assim o aceitou, face aos benefícios que o aludido exame lhe poderia trazer.

26. Note-se que o segundo réu tinha já anteriormente diagnosticado à primitiva autora um tumor maligno, por via de um exame complementar de diagnóstico idêntico que realizou, o que permitiu que, tal tumor, lhe viesse a ser mais tarde removido.

27. Acresce que no caso aqui em apreço sabemos que a compensação que venha a ser atribuída por danos morais sofridos pela indicada AA jamais cumprirá, por força das circunstâncias conhecidas, a sua função reparadora, uma vez que será atribuída aos seus herdeiros e não à própria.

28. Atento o supra exposto, considerando a factualidade que vem dada como provada e a orientação que vem sendo seguida pela nossa Jurisprudência em situações análogas (nomeadamente as que se citam no corpo destas alegações), é a recorrente da opinião de que se mostra mais adequada a quantia de 15.000,00 € como indemnização pelos danos morais sofridos pela primitiva autora.

29. A este montante sempre haverá de ser deduzida a franquia de 10%, com um mínimo de 1.000,00€, tal como estabelecido no contrato de seguro celebrado entre a ora recorrente e a primeira ré

30. O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 342.°, 483.°, 800.°, 496.°, 562.° e 566.° do Código Civil.

Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso.


A interveniente GG, S.A. (seguradora do R. CC) concluiu da seguinte forma:

1. Os autos versam a questão da responsabilidade civil médica, visando os recorridos a fixação de indemnização por alegados danos patrimoniais e não patrimoniais, causados à malograda AA e que atribuem à realização de endoscopia digestiva baixa levada a cabo pelo R. médico nas instalações do R, HOSPITAL.

2. Aos recorridos assistirá o direito à indemnização mediante a prova de que os danos foram causados pela falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação.

3. No caso concreto, e de acordo com o alegado, o dano traduz-se na alteração das condições de saúde da falecida AA.

4. Tal como resulta do douto acórdão em apreciação no presente recurso a páginas 31, quando o médico privado ou a entidade privada prestadora de cuidados de saúde, por causa que lhe seja imputável não efetue, ou efetue defeituosamente, a prestação de cuidados de saúde a que se obrigou, causando danos ao doente, credor dessa prestação, por regra, constituísse na obrigação de reparar o prejuízo causado - artigos 798° e 562°, ambos do Código Civil.

Como assim, é preciso que o facto do não cumprimento (ação ou omissão) se revista de ilicitude, a qual, no domínio da responsabilidade contratual, se traduz numa relação de desconformidade entre o comportamento devido, que seria necessário para a realização da prestação devida, e o comportamento tido pelo agente (artigo 762° do Código Civil).

5. A responsabilidade extracontratual surge como consequência da violação de direitos absolutos, que se encontram desligados de qualquer relação pré-existente entre o lesante e o lesado (obrigação de indemnizar em consequência de um acidente de viação, por exemplo), a responsabilidade contratual pressupõe a existência de uma relação intersubjetiva, que atribuía ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa mesma relação (caso típico de um contrato).

6. Nesta conformidade, aceita-se que a responsabilidade civil médica admite ambas as formas de responsabilidade referidas. É que o mesmo facto poderá, ao mesmo tempo, representar a violação de um contrato e um facto ilícito extracontratual. Mas, no domínio da responsabilidade aquiliana, apenas a responsabilidade civil fundada em factos ilícitos é admissível (e não pelo risco ou por facto lícitos).

7. Em situações de concurso entre uma e outra das responsabilidades, e não olvidando que em última análise toda a responsabilidade civil radica num princípio geral de "neminem laedere", surgindo a responsabilidade contratual como uma das aplicações possíveis deste princípio, a resposta deve encontrar-se no regime da responsabilidade contratual, entendendo-se que esta subsume a responsabilidade extracontratual (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de setembro de 2012, processo n.° 512/10.8TCFUN.L1-2, sendo relatora TERESA ALBUQUERQUE).

8. Os autos versam a questão da responsabilidade civil pela prática de ato médico, entendido o conceito como ato executado por um profissional de saúde que consiste numa avaliação diagnostica, prognóstica ou de prescrição e execução de medidas terapêuticas.

9. Com efeito, a autora mediante o pagamento de um preço solicitou ao réu, enquanto médico gastrenterologista, a realização de um exame médico da sua especialidade, o que exprime vinculação contratual.

10. A atuação do médico perante o doente/paciente pode, nuns casos, reconduzir-se às obrigações de meios e, noutros, às obrigações de resultado, dependendo o enquadramento numa ou noutra da ponderação casuística da natureza e do objetivo do ato médico (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de junho de 2014, processo nº 11279/09.2TBVNG.P1, sendo relator M. PINTO DOS SANTOS).

11. No caso em apreço, provou-se que a autora foi submetida a um exame de endoscopia digestiva baixa em regime de acompanhamento; o exame em causa demorou cerca de 50 minutos; uma colonoscopia, em média, num paciente cuja execução da mesma não comporte especial dificuldade, demora cerca de 15-20 minutos; a duração do exame deveu-se à circunstância de se tratar de cólon anteriormente sujeito a uma operação de retirada de um tumor com necessidade de insuflar mais ar do que em outras situações para facilitar a progressão do colonoscópio; a taxa de perfuração cólica para colonoscopias está descrita como sendo da ordem dos 0,1 a 0,8%; a causa de uma perfuração do colon durante uma colonoscopia pode não derivar de incorreta introdução ou manuseamento do aparelho ou excessiva introdução de ar, podendo ter origem em cólon com certos locais com processos aderenciais derivados de anteriores operações, a configuração do próprio cólon (sua angulação) ou a existirem segmentos eólicos isolados que podem conduzir a um aumento de pressão intracólica durante a colonoscopia.

12. A Autora foi submetida à colonoscopia com vista a verificar da evolução da sua doença, porquanto em 15 de janeiro de 2010 tinha-se realizado um outro exame de colonoscopia digestiva baixa e detetado um tumor maligno.

13. «É de considerar que em especialidade como medicina interna, cirurgia geral, cardiologia, gastroenterologia, o especialista compromete-se com uma obrigação de meios – o contrato que o vincula ao paciente respeita apenas às leges artis na execução do ato médico; a um comportamento de acordo com a prudência, o cuidado, a perícia e atuação diligentes, não estando obrigado a curar o doente. Mas especialidades há que visam não uma atuação direta sobre o corpo do doente, mas antes auxiliar na cura ou tentativa dela, como sejam os exames médicos realizados, por exemplo, nas áreas da bioquímica, radiologia e, sobretudo, nas análises clínicas» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de junho de 2014, processo 1279/09.2TBVNG.P1, sendo relator M. PINTO DOS SANTOS).

14. Independentemente do facto de a endoscopia a realizar ter ou não fins terapêuticos ou curativos, este exame traduz-se numa intervenção de natureza invasiva, implica a introdução e manuseamento do colonoscópio no organismo do paciente, possibilitando a observação do intestino com vista ao diagnóstico e terapêutica, tais como, a recolha de fragmentos da mucosa (biópsia), a remoção de pólipos (polipectomia) ou outros.

15. Na situação dos autos o médico, ora réu, ao aceitar fazer a colonoscopia apenas se obrigou a desenvolver e desempenhar a sua atividade colocando o seu saber à disposição da autora para assim alcançar o fim pretendido, o diagnóstico e eventual definição de terapêutica.

16. Pretendia-se averiguar se existia qualquer anomalia, o que impunha a introdução do colonoscópio o organismo da autora para observação direta do intestino, o médico comprometeu-se a desenvolver prudente e diligentemente esta intervenção, mas sem assegurar que efetivamente seria possível a observação correta do intestino, a recolha de fragmentos da mucosa (biópsia) ou a remoção de pólipos (polipectomia) (v. g. a obrigação do médico de empregar o seu saber tendente à cura do doente, mas não se comprometendo à cura efetiva).

17. O médico não pode assegurar o resultado, nem tal lhe pode ser exigido, a falta de obtenção do resultado almejado com o exame pode resultar de factos que lhe são alheios. Alguns doentes apresentam angulações muito acentuadas do intestino, algumas congénitas, outras adquiridas após processos inflamatórios, o que inviabiliza ou dificulta a progressão do endoscópio.

18. A presença de lesões que obstruem significativamente o interior do intestino, também inviabiliza a progressão do aparelho, impedindo a exploração intestinal acima dessa lesão.

19. A realização da colonoscopia à autora não era uma intervenção rotineira, conforme resulta demonstrado nos autos, o seu historial clínico obrigou o médico a redobrados cuidados.

20. Constatando-se a perfuração cólica, mas não provado, como alegado pela autora, que tal se deveu a violação grave das leges artis, fica por determinar a sua causa, tanto mais que o exame comporta alguns riscos e a perfuração cólica podia ter resultado de a autora ter sido sujeita a uma operação prévia de retirada de tumor e existirem no local processos aderenciais derivados dessa intervenção cirúrgica, o que pode ter conduzido a um aumento de pressão intracólica durante a colonoscopia e ter dado causa à perfuração.

21. O réu médico não pode ser responsabilizado civilmente com base em incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso.

22. Para a procedência da ação impunha-se a demonstração de algum comportamento do médico que, objetivamente considerado, se mostrasse contrário ao Direito, com desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado.

23. Na opinião da ora recorrente, da matéria assente não se consegue descortinar o que o médico fez e não deveria ter feito ou o que não fez e deveria ter feito.

24. Não é suficiente a alegação e prova da não obtenção de um dado resultado. É necessário provar a desconformidade objetiva entre os atos praticados pelo médico e os que lhe são exigíveis, atendendo à situação concreta do paciente. No campo da medicina, essa desconformidade objetiva que é a ilicitude, afere-se pela violação das leges artis. Significa portanto, que a ilicitude na atuação do médico traduz-se no comportamento que aquele tenha tomado que contrarie as guide lines e standards de atuação clínicos, atendendo à situação concreta.

25. Não resulta da matéria de facto provada nenhum comportamento que o R. devesse ter tomado em obediência às boas práticas médicas atendendo ao caso concreto. O que vale por dizer que não existe nenhum facto ilícito gerador do dever de indemnizar.

26. «Na responsabilidade contratual por negligência em ato médico, compete ao lesante provar a não culpa, mas a ilicitude da atuação deve ser provada pelo lesado. Ilicitude e culpa no ato médico danoso são conceitos diferentes, indicando o primeiro o que houve de errado na atuação do médico e o segundo se esse erro deve ser-lhe assacado a título de negligência» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de setembro de 2011, processo 674/2001 P.L.S1, sendo relator BETTENCOURT DE FARIA).

27. Ao decidir diferentemente o douto acórdão sob recurso violou as disposições dos artigos 483.°, 798.°, 799.° e 342.°, do Código Civil.

28. Se se entender não assistir razão à recorrente, contrariamente ao que aqui se defende e que se admite por mero dever de patrocínio, o presente recurso destina-se ainda à reapreciação por este Tribunal do douto acórdão que decidiu arbitrar uma indemnização por dados não patrimoniais no valor de €28.000,00.

29. Existem danos não patrimoniais sempre que é ofendido objetivamente um bem imaterial, cujo valor é insuscetível de ser avaliado pecuniariamente.

30. E o montante da indemnização, nos termos dos artigos 496.°, n.° 3 e 494.° do Código Civil, será fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, bem como aos critérios geralmente aditados pela jurisprudência e às flutuações do valor da moeda (ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 5a edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485).

30. Na situação em apreciação provou-se que a recorrida em virtude da perfuração cólica sofreu três intervenções cirúrgicas, vários período de internamento hospitalar, sofreu dores, teve de usar um saco de colostomia (para armazenar as fezes), carecendo durante cerca de oito meses de ajuda de terceiras pessoas para se vestir e despir, assim como para cuidar da sua higiene pessoal, sentiu-se diminuída, sofreu incómodos e mal-estar e abalo moral.

31. Sem embargo destas lesões e do sofrimento intrínseco, o dano sofrido não assume a gravidade que é traduzida pelo valor compensatório fixado, isto atendendo às situações apreciadas e valorizadas pela jurisprudência mais recente.

32. As circunstâncias específicas do caso concreto demandam uma ponderação do montante equivalente a uma compensação digna de todo o sofrimento, sem olvidar que a mesma se dirige, primordialmente, para satisfação do próprio lesado, na perspetiva de minimizar a sua dor e as suas perdas, por isso se impõe que seja séria e que corresponda à dignidade dos valores lesados mas, por outro lado, levando em consideração a relatividade de cada caso e as circunstâncias da vida que evidenciam, quotidianamente, que valores mais elevados são infringidos.

33. Para alcançarmos esta harmonia importa considerar os critérios jurisprudenciais como forma de evitar desigualdade, apelando à dimensão e abrangência dos valores imateriais efetivamente tutelados.

34. Assim sendo, à luz dos critérios jurisprudenciais mais recentes (atente-se nos acórdão citados no corpo destas alegações) crê-se que a indemnização arbitrada em primeira instância é excessiva, tendo o tribunal feito errada aplicação e interpretação do disposto no artigo 496.°, do Código Civil.

Termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que absolva os RR. e as intervenientes do pedido.

Subsidiariamente, pede que seja reduzido o montante fixado para compensação por danos não patrimoniais.


A Recorrida herdeira habilitada AA contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

A) Como decidido e sumariado no douto Acórdão recorrido, "se a prestação de serviços médicos se reconduz à realização de um exame-colonoscopia-, sem fins curativos ou terapêuticos, é de considerar verificado o pressuposto da ilicitude quando a lesão sofrida (perfuração cólica) seja em altíssimo grau estranha ao cumprimento do fim do contrato (probabilidade inferior a 1%) e a sua gravidade resulte desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela intervenção ou acto médico."

B) Na verdade, "nas sobreditas circunstâncias, o consentimento informado do doente (o conhecimento de risco de perfuração cólica) não exclui a ilicitude do acto médico, pois que o consentimento não abrange a lesão física perpetrada."

C) Posto que "verificada a ilicitude, por força do preceituado no art. 799°, n° 1 do Código Civil incumbe ao médico afastar a presunção de culpa, comprovando que os procedimentos adoptados eram os exigidos pelas "leges artis" aplicáveis ao caso ou que a lesão sobreveio por causa de força maior e/ou facto imputável ao lesado".

D) Ao contrário do que pretende o recorrente CC, da matéria de facto dada como provada na sentença de 1ª Instância não é possível de forma alguma dar por ilidida a referida presunção de culpa.

E) Aliás, ainda que o douto Acórdão "a quo" tivesse errado na apreciação da prova, o que de todo não se verifica, tal facto não poderia ser objecto do presente recurso de revista, como decorre do disposto no art.° 674°, n° 3, do C.P.C

F) Inexiste, ao contrário do que pretende o recorrente CC, qualquer contradição entre os fundamentos da decisão, os factos provados e o decidido, susceptível de gerar a pretendida nulidade do Acórdão recorrido.

G) O Acórdão em questão destrinçou de forma detalhada e profunda no domínio da responsabilidade civil médica, a obrigação de meios da obrigação de resultado, não procedendo a alegação segundo a qual dele resultaria a irrelevância da distinção entre obrigação de meios e de resultado, acabando por considerar que se trataria sempre de uma obrigação do resultado, tese que não encontra qualquer sustentação no douto Acórdão "a quo".

H) Ao contrário do que sustenta o recorrente Hospital BB, no douto Acórdão não existe qualquer contradição entre os fundamentos apresentados e a conclusão deles extraída, inexistindo a invocada nulidade nos termos do art. 615°, n° 1, c), do C.P.C.

I) Posto que como resultou clara e inequivocamente provado nos autos, do exame em causa resultou a perfuração cólica que era em altíssimo grau estranha ao cumprimento do fim do contrato (probabilidade inferior a 1%) e a sua gravidade desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela concreta intervenção ou acto médico.

J) De resto, uma coisa é o facto ilícito resultante de ter havido a referida perfuração cólica, outra coisa bem distinta é, uma vez verificada a ilicitude, incumbir aos RR afastar a presunção de culpa por força do disposto no art. 799°, n° 1, do Código Civil, o que, atendendo aos factos dados como provados, não ocorreu.

K) Improcede a alegação do recorrente Hospital BB, segundo a qual caberia à Autora o ónus da prova da ilicitude como facto constitutivo do direito da indemnização quando aquela decorre "ipso facto" da perfuração do cólon verificada, no que o Acórdão recorrido acolhe e subscreve o entendimento sufragado pelo douto Acórdão desse Supremo Tribunal (cfr. Acórdão de 1 de Outubro de 2015, 7ª Secção, Relatora Cons.ª Maria dos Prazeres Beleza, tirado no Recurso n.° 2104/05.4TBPVZ.P.S1, disponível in www.dgsi.pt), em situação análoga à dos autos.

L) O Acórdão "a quo" considerou, com total congruência, que havendo facto ilícito caberia ao R. médico afastar a presunção de culpa por força do disposto no art. 799°, n° 1, do Código Civil, comprovando que os procedimentos adoptados eram os exigidos pelas «leges artis» ou que a lesão sobreveio por causa de força maior ou facto imputável ao lesado, o que não provou.

M) Improcede, pois, a tese do Hospital segundo a qual a decisão recorrida estaria ferida de nulidade por não especificar os fundamentos de facto e de direito que a justificam.

N) Não se mostra igualmente procedente a alegação do recorrente Hospital segundo a qual a factualidade assente não evidencia que o Réu médico tivesse actuado como auxiliar no cumprimento dos serviços contratados entre a Autora e o Réu Hospital, concluindo não ter aplicação o disposto no art. 800° do Código Civil, uma vez que a tese agora defendida pelo Recorrente Hospital contradiz o teor da contestação que apresentou na 1ª Instância.

O) A questão suscitada ex novo pela recorrente seguradora segundo a qual não estaria provado que o réu Dr. CC alguma vez tivesse integrado os quadros efectivos do Hospital BB, ou que os integrasse, aquando da realização do exame médico, não foi suscitada oportunamente nem foi considerada na decisão de 1ª Instância, pelo que é intempestiva, não podendo constituir fundamento da presente Revista.

P) Com efeito, não pode agora em sede de recurso de Revista suscitar tal dúvida sobre a integração, ou não, do Réu Dr. CC nos quadros efectivos do Hospital BB, matéria que notoriamente está em contradição com os factos singelos dados como provados na 1ª Instância e que oportunamente não impugnou.

Q) Quanto ao carácter pretensamente excessivo da quantia atribuída por danos não patrimoniais (de € 28.000,00) - e atento o extenso rol de danos sofridos pela A. e dados como provados - não se afigura passível da menor crítica a indemnização fixada pelo Acórdão recorrido.


Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):

1 - A Autora nasceu a 19.01.1928.

2 - A Autora foi paciente do Réu CC que exerce as funções de médico gastrenterologista no Réu Hospital [BB, SA] desde 1.03.1999.

3 - O Réu Hospital tem por objecto a prestação de cuidados de saúde.

4 - No dia 15.03.2011, pelas 17 horas, a Autora foi submetida a um exame de endoscopia digestiva baixa nas instalações do Réu Hospital pelo Réu CC em regime de consulta de acompanhamento.

5 - O Réu CC conhecia a situação clínica anterior da Autora.

6 - O exame em causa demorou cerca de 50 minutos.

7 - Uma colonoscopia, em média, num paciente cuja execução da mesma não comporte especial dificuldade, demora cerca de 15-20 minutos.

8 - A Autora, depois da realização do exame, foi para o recobro, de onde saiu pelas 20:00 horas.

9 - Não foram dadas à Autora, ao ser-lhe dada alta, recomendações médicas em concreto, nomeadamente quanto ao que deveria comer.

10 - Quando saiu do Réu Hospital, a Autora sentia desconforto na zona da barriga caminhando com a ajuda primeiro de uma enfermeira e depois da sua filha.

11 - No dia 16.03.2011, a Autora sentia desconforto na zona da barriga, com dores e mal-estar tendo, depois de ter telefonado de manhã para o Dr. LL e à tarde para o Réu Hospital, por volta das 23 horas deu entrada no então denominado Hospital Privado …., actual Hospital MM onde realizou radiografia abdominal e toráxica, tomografia axial computorizada (TAC) ao abdómen e zona pélvica bem como exames hematológicos.

12 - Nesse Hospital Privado … foi concluído que a Autora apresentava exuberante quantidade de ar livre intra-abdominal (intra e retro peritoneal) sugerindo perfuração de víscera oca, tinha pequena quantidade de líquido livre na cavidade pélvica, aspectos imagiológicos compatíveis com cirurgia cólica prévia.

Foi igualmente concluído que a Autora apresentava distensão abdominal e dor localizada nos quadrantes inferiores e que a radiografia abdominal não foi possível de interpretar mas que com a TAC se confirmou pneumoperitoeu.

13 - A pedido da Autora, esta foi encaminhada para o Hospital NN, onde foi internada no dia 17.03.2011, às 01h e 25 m, apresentando no serviço de urgência abdómen distendido, timpanizado, com dores à palpação difusa sem sinais de irritação peritoneal, tendo sido submetida a laparotomia, constatando-se perfuração cólica e realizou colostomia lateral sobre bagette.

14 - A Autora teve alta do Hospital NN, em 30.03.2011.

15 - Com o consentimento da Autora, esta foi admitida no Hospital OO no mesmo dia 30.03.2011 para realização de medidas de suporte e tratamento, por motivo de infecção e deiscência de ferida operatória (com evisceração contida), desnutrição e cuidados de manuseamento e colostomia derivativa, tendo alta a 9.04.2011, em condição estável, apirética, a tolerar dieta com reforço proteico e vitamínico, com necessidade de suporte de terceira pessoa para algumas actividades da vida diária e para a realização de pensos.

16 - Foi prevista na data da alta pelo Hospital OO um novo internamento de curto prazo para desbridamento cirúrgico da ferida operatória e enxerto de pele sendo considerada futura candidata a reconstrução do trânsito cólico e reparação da hérnia incisional.

17 - Em 12.04.2011, a Autora foi sujeita a cirurgia plástica pelo Dr. PP para fechamento da deiscência da pele mediante enxerto em rede tendo ficado internada depois dessa cirurgia até 18.04.2011.

18 - Em 2.11.2011, a Autora foi internada na Ordem QQ para encerramento da colostomia, tendo aí ficado internada até 17.11.2011.

19 - As operações cirúrgicas referidas em 13., 15., 17. e 18. tiveram como causa directa a perfuração referida em 13. ocorrida no exame de colonoscopia de 15.03.2011.

20 - O Réu não referiu à Autora nem à filha que tinha ocorrido perfuração do cólon na realização do exame do dia 15.03.2011.

21 - A Autora, depois do exame, sentia desconforto e mal-estar abdominal, com a sensação de ter «duas barrigas» e sentir a barriga como «um tambor».

22 - No recobro, foi colocada uma sonda na Autora para a aliviar retirando o ar que tinha sido colocado no intestino, tendo a Autora passado a sentir-se melhor.

23 - Pessoal de enfermagem do Réu Hospital informou a filha da Autora que esta se encontrava no recobro em bom estado de saúde.

24 - O Réu CC realizou a 25.01.2010 um outro exame de colonoscopia digestiva baixa à Autora tendo-lhe detectado um tumor maligno.

25 - Antes dessa colonoscopia realizada em 2010, a 29.12.2009 o mesmo CC iniciou colonoscopia à Autora interrompendo-a por falta de preparação adequada do colon.

26 - Desde o fim do exame realizado pelo Réu CC a 15.03.2011 e até Abril de 2011 a Autora sentiu dores.

27 - Na operação realizada a 17.03.2011 no Hospital NN, Porto, ocorreu abertura do abdómen da Autora por uma anterior abertura cicatrizada.

28 - Com essa abertura, depois de cicatrizada, a Autora sentiu mais cansaço.

29 - Por força dessa abertura, a Autora passou a usar cinta que lhe causava desconforto e a nível estético a perturbou não usando roupas que permitissem que fosse vista a cicatriz, nomeadamente na praia.

30 - A Autora sentia-se desconfortável com o saco de colostomia que não aplicava sozinha, necessitando de ajuda de terceiros para o mudar, tendo mesmo rebentado por algumas vezes, incluindo de noite, implicando a toma de banho e mudança de roupa pessoal e de cama.

31 - Depois da intervenção cirúrgica do dia 17.03.2011 e até Novembro de 2011, a Autora ficou dependente de terceiros para se vestir e despir, tratar da sua higiene.

32 - O filho da Autora, que vive com a mesma, auxiliou-a, incluindo na mudança de saco, tomas de banho, mudança de roupa, dormindo inclusive a Autora no seu quarto durante algum tempo.

33 - Por usar saco de colostomia, a Autora sentiu-se diminuída, com perda de auto-estima e vergonha da sua situação, reduziu as suas saídas de casa e convivência com amigas.

34 - Antes da colocação de tal saco, a Autora era uma pessoa alegre, autónoma, que gostava de sair sozinha ou com amigas, fazia «Pilates», que se destinava também à melhora da sua escoliose.

35 - Depois da colocação do referido saco, a Autora deixou de praticar «Pilates».

36 - Por força da acima referida perfuração do colon, a Autora teve as seguintes despesas:

» 1. 275, 00 € – operação realizada a 12.04.2011;

» 300 € - serviços médicos prestados durante o internamento da operação realizada em 12.04.2011 pelo Dr. RR;

» 400 € - assistência hospitalar e realização de pensos à Autora no internamento ocorrido a 30.03.2011;

» 1. 830, 09 € - internamento na Ordem QQ pelo internamento de 12.04 a 18.04.2011;

» 60 € - consulta de cirurgia geral na Ordem QQ;

» 2. 753, 25 € – internamento na Ordem QQ de 2.11. a 7.11.2011;

» 2. 000, 00 € - pagamentos de actos médicos da cirurgia de 2.02.2011;

» 1 € em paracetamol, 12, 60 € em vitaminas, 1, 18 € em sabão, 0, 61 € em compressas, 41, 45 € (um saco de colostomia), 0, 90 € em ligadura, 2, 75 € em adesivo, 1, 71 € em soro fisiológico, 3, 40 € em compressas, 2, 25 € em compressas, 2, 25 € em compressas, 1, 70 € em compressas, 15, 82 € em medicamentos, 41, 11 € em material ortopédico e/ou fisiátrico.

37 - A Autora conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, tendo-lhe sido transmitido em 29.12.2009, 25.01.2010 e 15.03.2011, informação relativa à realização dos exames.

38 - A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos.

39 - Antes da realização do exame, foi enviado pelo Réu Hospital um e-mail à filha da Autora com as recomendações para a realização da colonoscopia.

40 - A duração do exame referida em 6. deveu-se à circunstância de se tratar de um colon anteriormente sujeito a uma operação de retirada de um tumor com necessidade de se insuflar mais ar do que em outras situações para facilitar a progressão do clonoscópio.

41 - O exame foi realizado com sedação geral da Autora.

42 - No decurso do exame não foi detectada a perfuração do colon, sem sinais de sangue no mesmo.

43 - O Réu CC tentou retirar a maior quantidade de ar possível na fase final do exame.

44 - Parte do ar que foi insuflado para o intestino delgado, aumentando a distensão do abdómen da Autora.

45 - Depois do exame, na sala de recobro, a Autora esteve sempre vigiada pelo anestesista e enfermeira.

46 - No recobro, o Réu CC analisou a Autora, apalpou-lhe o abdómen e referiu-lhe que tinha muito ar.

47 - No recobro, a Autora foi à casa de banho evacuar ar e revelou melhorias.

48 - A Autora comeu bolachas e bebeu chá no recobro e andou a pé ainda que com auxílio de terceiros.

49 - No recobro não foram detectados sinais de perfuração cólica, estando a tensão arterial da Autora estável e em valores adequados à idade desta, sem febre e sempre consciente.

50 - Tais sinais de perfuração cólica podem ser a presença de sangue na realização do exame, contratura abdominal, dor aguda, vómitos, febre, incapacidade de o doente se alimentar, levantar ou andar.

51 - Se o Réu CC tivesse detectado indícios de perfuração do cólon da Autora, não teria permitido a sua saída e determinava a realização de exames para o aferir e se fosse confirmada seria, em princípio, sujeita a intervenção cirúrgica.

52 - Depois da alta, a Autora não conseguiu falar com o Réu CC por telefone.

53 - A taxa de perfuração cólica para colonoscopias diagnóstica está descrita como sendo da ordem dos 0,1 a 0,8%.

54 - A causa de uma perfuração do colon durante uma colonoscopia pode não derivar de incorrecta introdução ou manuseamento do aparelho ou excessiva introdução de ar, podendo ter origem em cólon estar em certos locais com processos aderenciais derivados de anteriores operações, a configuração do próprio colon (sua angulação) ou existirem segmentos cólicos isolados que podem conduzir a um aumento de pressão intracólica durante a colonoscopia.

55 - A perfuração do colon durante a colonoscopia pode iniciar-se com uma microfissura, pode a perfuração estar oculta nomeadamente por uma prega do intestino ou pela parede do mesmo.

56 - O Réu CC é um gastroenterologista conceituado, com mais de 30 anos de experiência, tendo realizado inúmeros exames como o realizado à Autora.

57 - Por contrato titulado pela apólice n.º 0001…2 foi transferida para a interveniente “ Companhia de Seguros DD, SA “ a responsabilidade civil imputável ao Réu Hospital por lesões materiais ou corporais causadas involuntariamente a pacientes ou terceiros em geral sendo os capitais contratados de 1. 250. 000, 00 para «Responsabilidade Civil Exploração», com franquia de 10 %, sobre o valor do sinistro, com um mínimo de € 250, 00, 1. 250. 000, 00 para «Responsabilidade Civil Profissional», com franquia de 10% sobre o valor do sinistro, com um mínimo de € 1. 000, 00, conforme documento a fls. 221 a 234 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

58 - Por contrato titulado pela apólice n.º 0084…6 foi transferida para a interveniente “FF - Companhia de Seguros, S.A.” a responsabilidade civil imputável ao Réu CC por danos causados a terceiros no exercício da sua profissão de gastroenterologista de € 300. 000, 00 para «Responsabilidade Civil Exploração» e € 600. 000, 00 para «Responsabilidade Civil Profissional», conforme documento a fls. 246 a 265 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.


Foram dados como não provados os seguintes factos:

1) O Réu CC exerça funções no «Gabinete de Endoscopia Digestiva-Doutor CC & Doutor SS, Lda.», Ordem do TT.

2) O exame referido em 4), dos factos provados tenha durado até às 20.30 horas.

3) A Autora levasse consigo o seu processo clínico.

4) Quando a Autora saiu do Réu «Hospital.,.» estivesse com dores intensas na barriga.

5) O Réu CC tenha dito à Autora e filha que o exame de 15/03/2011 tinha sido difícil.

6) A Autora tenha sido incapaz de realizar movimentos incluindo abdominais para o seu alívio.

7) A Autora tenha repetido várias vezes ao Réu CC «entrei bem e saio daqui muito mal».

8) O pessoal do Réu «Hospital, .. » tenha ignorado as queixas da Autora . .... "

9) Quando a Autora saiu do Réu «Hospital, .. » o seu abdómen estivesse anormalmente inchado e estivesse incapaz de andar sozinha.

10) À Autora tenha sido unicamente recomendado pelo Réu CC que tinha de «ficar a chá» no dia 16/03/2011.

11) A Autora tenha sentido dores duramente meses após 15/03/2011.

12) A cicatriz no abdómen da Autora referida em 27) tenha 15 cms. por 3,5 cms. e exista por causa da perfuração no colon causada pelo exame realizado pelo Réu CC.

13) A Autora por causa da perfuração no colon ocorrida no dia 15/03/2011 gaste 1 073,93 EUR em medicamentos, 152 EUR em cintas, 137,65 EUR em exames médicos, 228,50 EUR em tratamentos de fisioterapia, 200 EUR em deslocações, 1 000 EUR com assistência no domicílio.

14) À Autora tenha sido expressamente referido pelo Réu CC ou por algum profissional do Réu «Hospital, .. » que por estar em causa um cólon operado e o estado geral do mesmo cólon estar mais debilitado face à operação ao tumor, o exame consubstanciava um maior risco.

15) Tenha sido dito à Autora que o exame ia demorar mais tempo por que tinham de se adotar cuidados acrescidos.

16) À Autora, no fim do recobro, tenha sido aconselhado a comer mais bolachas e beber chá.

17) Depois da alta, a Autora não tenha contactado o Réu «Hospital. .. ».

18) Os anos concretos de experiência do Réu CC e o número de colonoscopias que já realizou.

19) O Réu «Hospital... » tenha entregue à Autora ou à sua filha a denominada nota informativa 302 cuja cópia consta a fls. 162 164, seja em dezembro de 2001, janeiro de 2010 ou março de 2011, previamente aos exames referidos nos factos provados.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos delimita-se pelas conclusões dos mesmos. Assim, nos presentes recursos, estão em causa as seguintes questões:

Recurso da R. Hospital BB, S.A.:

- Nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto (art. 615º, nº 1, alínea b), do CPC);

- Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC);

- Não verificação do pressuposto da ilicitude da conduta do R. CC;

- Não verificação do pressuposto da culpa da conduta do R. CC;

- Inexistência de relação contratual entre a A. e a R. Hospital. S.A. ou existência de duas relações contratuais (uma entre a A. e o médico CC, e outra entre a A. e o Hospital);

- Inexistência de solidariedade entre a responsabilidade da R. Hospital e a responsabilidade do R. CC;

- Subsidiariamente, redução da indemnização por danos não patrimoniais.


Recurso da interveniente Seguradoras EE (seguradora da R. Hospital, S.A.):

- Não verificação do pressuposto da ilicitude da conduta do R. médico;

- Subsidiariamente, inexistência de relação contratual entre a A. e a R. Hospital. S.A. ou, se existiu, falta de prova da sua natureza;

- Subsidiariamente, exclusão do evento lesivo da cobertura do contrato de seguro celebrado entre a R. Hospital, S.A. e a interveniente Tranquilidade (actual Seguradoras EE);

- Subsidiariamente, dedução do valor da franquia, prevista no mesmo contrato de seguro;

- Subsidiariamente, redução do montante da indemnização por danos não patrimoniais para € 15.000.


Recurso do R. CC:

- Nulidade por contradição entre os fundamentos, a matéria dada como provada, e o decidido;

- Não responsabilização do médico por não verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa.


Recurso da interveniente GG, S.A. (seguradora do R. CC):

- Ausência de responsabilidade do R. CC por não verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa;

- Subsidiariamente, redução da indemnização por danos não patrimoniais.


As questões serão apreciadas pela seguinte ordem de precedência:

- Nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto (art. 615º, nº 1, alínea b), do CPC) [recurso da R. Hospital, S.A.];

- Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC) [recursos da R. Hospital, S.A. e do R. CC];

- Não verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa na conduta do médico (o R. CC) [todos os recursos];

- Subsidiariamente, redução da indemnização por danos não patrimoniais [recursos da R. Hospital, S.A. e de ambas as intervenientes];

- Inexistência de relação contratual entre a A. e a R. Hospital, S.A. ou existência de duas relações contratuais (uma entre a A. e o médico CC; e outra entre a A. e o Hospital, S.A.) [recurso da R. Hospital, S.A. e da interveniente Seguradoras EE];

- Inexistência de solidariedade entre a responsabilidade da R. Hospital, S.A. e a responsabilidade do R. CC; [recurso da R. Hospital, S.A.];

Apenas em relação à responsabilidade da interveniente Seguradoras EE (seguradora da R. Hospital, S.A.):

- Subsidiariamente, exclusão do evento lesivo da cobertura do contrato de seguro celebrado entre a R. Hospital, S.A. e a interveniente DD (actual Seguradoras EE);

- Subsidiariamente, dedução do valor da franquia, prevista no mesmo contrato de seguro.


5. Relativamente à questão da alegada nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão (art. 615º, nº 1, alínea b), do CPC), suscitada pela Recorrente Hospital, S.A. de forma repetida ao longo das conclusões recursórias, a resposta não pode deixar de ser negativa. Não apenas a factualidade dada como provada consta do acórdão recorrido, como a decisão de direito resulta da interpretação das normas legais e sua aplicação aos factos. Tal decisão poderá padecer de erro de julgamento, mas este não se confunde com o vício de falta de fundamentação de facto que justifique a decisão, concluindo-se pela inexistência da alegada nulidade.


6. Quanto à questão da alegada nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC), constata-se que a Recorrente Hospital, S.A. e o Recorrente CC pretendem que existe contradição entre os fundamentos de facto e a decisão de direito. Mais uma vez, incorrem num equívoco. A nulidade prevista na primeira parte da alínea c), do nº 1 do art. 615º, do CPC, refere-se à contradição entre a fundamentação de direito e a decisão final; o que qualificam como contradição entre os fundamentos de facto e a decisão de direito poderá configurar erro de julgamento, mas não vício que comine o acórdão recorrido com a sanção de nulidade.


7. Antes de iniciar a apreciação das questões substantivas, afigura-se conveniente considerar os termos em que as instâncias decidiram.

Quer a 1ª instância, quer a Relação qualificaram a relação jurídica da A. com os RR. como uma relação contratual de prestação de serviços médicos (no caso, um exame de colonoscopia), estando em causa o alegado cumprimento defeituoso do mesmo contrato.

A 1ª instância concluiu pela não verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa da conduta do médico (o aqui R. CC), tanto porque não foi provada a violação das leges artis no decurso da colonoscopia ou na fase de recuperação da paciente, como porque se deu como provado que o exame em causa comporta um certo grau de risco de perfuração do colon e se provou também que a A. tomou antecipadamente conhecimento desse risco, aceitando-o.

Tendo a A. vindo a falecer (sem relação causal com o evento lesivo dos autos), os herdeiros habilitados interpuseram recurso da sentença: (i) impugnando a decisão da matéria de facto, pretendendo que se dê como provados factos que poderão revelar cumprimento defeituoso do contrato na fase de recuperação (tanto antes como após a alta médica), quer pelo R. médico quer pela R. hospital; (ii) e pedindo a reapreciação da decisão de direito.

A Relação decidiu considerar prejudicada a questão da impugnação da matéria de facto e, reapreciando a decisão de direito, apoiou-se no teor do acórdão deste Supremo Tribunal de 01/10/2015 (proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt) para concluir pela verificação da ilicitude e consequente culpa presumida do R. médico. Não se pronunciando especificamente sobre a relevância da declaração de consentimento e/ou dos esclarecimentos prestados à A. sobre os riscos inerentes ao exame médico, decidiu, a final, em sentido favorável à apelante, condenando os RR. e as intervenientes no pagamento de indemnização por danos patrimoniais, no montante de € 8.746,98, e, por danos não patrimoniais, no montante de € 28.000.

Deste modo, deve ter-se presente que, se no presente recurso se vier a concluir pela ausência de responsabilidade de um ou de ambos os RR. pelos factos ocorridos no decurso do exame de colonoscopia, sempre se terá de considerar a necessidade de mandar baixar o processo ao Tribunal de Relação para apreciar a questão da impugnação da matéria de facto quanto aos factos relativos à fase de recuperação do exame de colonoscopia (tanto antes como após a alta médica), questão que foi julgada prejudicada pelo acórdão recorrido, desde que se conclua que a eventual procedência daquela impugnação poderá alterar a decisão de mérito.


8. A questão essencial a apreciar é a da verificação ou não dos pressupostos da ilicitude e da culpa na conduta do médico (o R. CC) na execução do exame médico de colonoscopia e na fase de recuperação (com base na factualidade dada como provada).


8.1. Estamos perante uma situação típica de alegado cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos. Sem prejuízo de ser também convocável a responsabilidade extracontratual, uma vez que foi violado o direito à integridade física da A., direito absoluto tutelado pelo princípio geral da responsabilidade civil delitual do art. 483º, nº 1, do Código Civil.

Trata-se, afinal, de uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, como ocorre frequentemente nas hipóteses de responsabilidade civil por actos médicos. A orientação reiterada da jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. por exemplo, os acórdãos de 17/12/2009 (proc. 544/09.9YFLSB), de 15/09/2011 (proc. nº 674/2001.P1.S1), de 15/12/2011 (proc. nº 209/06.3TVPRT.P1.S1), de 11/06/2013 (proc. nº 544/10.6TBSTS.P1.S1), de 02/06/2015 (proc. nº 1263/06.3TVPRT.P1.S1), de 01/10/2015 (proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1), de 28/01/2016 (proc. nº 136/12.5TVLSB.L1.S1) e de 23-03-2017 (proc. nº 296/07.7TBMCN.P1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt) é no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual tanto por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efectiva do lesado.

No caso dos autos, relevam os seguintes factos provados:


5 - O Réu CC conhecia a situação clínica anterior da Autora.

6 - O exame em causa demorou cerca de 50 minutos.

7 - Uma colonoscopia, em média, num paciente cuja execução da mesma não comporte especial dificuldade, demora cerca de 15-20 minutos.

11 - No dia 16.03.2011, a Autora sentia desconforto na zona da barriga, com dores e mal-estar tendo, depois de ter telefonado de manhã para o Dr. LL e à tarde para o Réu Hospital, por volta das 23 horas deu entrada no então denominado Hospital Privado …, actual Hospital MM onde realizou radiografia abdominal e toráxica, tomografia axial computorizada (TAC) ao abdómen e zona pélvica bem como exames hematológicos.

12 - Nesse Hospital Privado … foi concluído que a Autora apresentava exuberante quantidade de ar livre intra-abdominal (intra e retro peritoneal) sugerindo perfuração de víscera oca, tinha pequena quantidade de líquido livre na cavidade pélvica, aspectos imagiológicos compatíveis com cirurgia cólica prévia.

Foi igualmente concluído que a Autora apresentava distensão abdominal e dor localizada nos quadrantes inferiores e que a radiografia abdominal não foi possível de interpretar mas que com a TAC se confirmou pneumoperitoeu.

13 - A pedido da Autora, esta foi encaminhada para o Hospital NN, onde foi internada no dia 17.03.2011, às 01h e 25 m, apresentando no serviço de urgência abdómen distendido, timpanizado, com dores à palpação difusa sem sinais de irritação peritoneal, tendo sido submetida a laparotomia, constatando-se perfuração cólica e realizou colostomia lateral sobre bagette.

19 - As operações cirúrgicas referidas em 13., 15., 17. e 18. tiveram como causa directa a perfuração referida em 13. ocorrida no exame de colonoscopia de 15.03.2011.

24 - O Réu CC realizou a 25.01.2010 um outro exame de colonoscopia digestiva baixa à Autora tendo-lhe detectado um tumor maligno.

37 - A Autora conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, tendo-lhe sido transmitido em 29.12.2009, 25.01.2010 e 15.03.2011, informação relativa à realização dos exames.

38 - A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos.

39 - Antes da realização do exame, foi enviado pelo Réu Hospital um e-mail à filha da Autora com as recomendações para a realização da colonoscopia.

40 - A duração do exame referida em 6. deveu-se à circunstância de se tratar de um colon anteriormente sujeito a uma operação de retirada de um tumor com necessidade de se insuflar mais ar do que em outras situações para facilitar a progressão do clonoscópio.

41 - O exame foi realizado com sedação geral da Autora.

42 - No decurso do exame não foi detectada a perfuração do colon, sem sinais de sangue no mesmo.

43 - O Réu CC tentou retirar a maior quantidade de ar possível na fase final do exame.

44 - Parte do ar que foi insuflado para o intestino delgado, aumentando a distensão do abdómen da Autora.

45 - Depois do exame, na sala de recobro, a Autora esteve sempre vigiada pelo anestesista e enfermeira.

46 - No recobro, o Réu CC analisou a Autora, apalpou-lhe o abdómen e referiu-lhe que tinha muito ar.

47 - No recobro, a Autora foi à casa de banho evacuar ar e revelou melhorias.

48 - A Autora comeu bolachas e bebeu chá no recobro e andou a pé ainda que com auxílio de terceiros.

49 - No recobro não foram detectados sinais de perfuração cólica, estando a tensão arterial da Autora estável e em valores adequados à idade desta, sem febre e sempre consciente.

50 - Tais sinais de perfuração cólica podem ser a presença de sangue na realização do exame, contratura abdominal, dor aguda, vómitos, febre, incapacidade de o doente se alimentar, levantar ou andar.

51 - Se o Réu CC tivesse detectado indícios de perfuração do cólon da Autora, não teria permitido a sua saída e determinava a realização de exames para o aferir e se fosse confirmada seria, em princípio, sujeita a intervenção cirúrgica.

53 - A taxa de perfuração cólica para colonoscopias diagnóstica está descrita como sendo da ordem dos 0,1 a 0,8%.

54 - A causa de uma perfuração do colon durante uma colonoscopia pode não derivar de incorrecta introdução ou manuseamento do aparelho ou excessiva introdução de ar, podendo ter origem em cólon estar em certos locais com processos aderenciais derivados de anteriores operações, a configuração do próprio colon (sua angulação) ou existirem segmentos cólicos isolados que podem conduzir a um aumento de pressão intracólica durante a colonoscopia.

55 - A perfuração do colon durante a colonoscopia pode iniciar-se com uma microfissura, pode a perfuração estar oculta nomeadamente por uma prega do intestino ou pela parede do mesmo.

56 - O Réu CC é um gastroenterologista conceituado, com mais de 30 anos de experiência, tendo realizado inúmeros exames como o realizado à Autora.


Importa também ter presente que foram dados como não provados os seguintes factos:

14) À Autora tenha sido expressamente referido pelo Réu CC ou por algum profissional do Réu «Hospital, .. » que por estar em causa um cólon operado e o estado geral do mesmo cólon estar mais debilitado face à operação ao tumor, o exame consubstanciava um maior risco.

15) Tenha sido dito à Autora que o exame ia demorar mais tempo por que tinham de se adotar cuidados acrescidos.


Tal como assinalado pelo acórdão recorrido, a situação dos autos – realização de exame de colonoscopia com perfuração do colon – encontra evidente paralelismo com a situação apreciada no acórdão deste Supremo Tribunal de 01/10/2015 (proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P.S1), já indicado.

Porém, com pelo menos a seguinte importante diferença, que desde já se regista: enquanto no acórdão de 01/10/2015 não se provou ter existido esclarecimento da paciente quanto aos riscos de perfuração nem declaração de consentimento informado da mesma paciente, no caso dos autos, foram provados factos (pontos 37 e 38) relativos à prestação de esclarecimentos à A. lesada e à declaração de consentimento por esta assinada.

Tendo presente tal diferença, consideremos os termos em que o referido acórdão de 01/10/2015 fundamentou a decisão de condenação do réu médico pela ocorrência de perfuração no intestino no decurso de um exame de colonoscopia:


“8. Trata-se de um contrato destinado à realização de um exame médico – um contrato de prestação de serviços médicos (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 08A183) –, sem função curativa; e não se questiona a correcção do resultado do exame (diferentemente do caso que se apreciou no acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de Janeiro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 9434/06.6TBMTS.P1.S1). Não tem pois utilidade procurar determinar, no caso concreto, se a obrigação que o médico assumiu perante a autora deve ser havida como uma obrigação de meios ou de resultado, para o efeito de definir o conteúdo da obrigação contraída e, assim, apurar o seu cumprimento ou incumprimento (cfr. o citado acórdão de 4 de Março de 2008). Vem assente que o réu BB assumiu e executou a obrigação de realizar a colonoscopia e deu a conhecer à autora o correspondente resultado.

Na execução da obrigação contratualmente assumida, BB perfurou o intestino da autora.

Ora, poder-se-á questionar se essa perfuração deve ser considerada como que desligada do contrato em execução (estranha à execução do contrato, escreve-se na sentença), e tratá-la como uma agressão à integridade física da autora e, por esse facto, como geradora de responsabilidade civil extra-contratual. Foi a via seguida em 1ª Instância (…).

Mas a Relação deslocou a questão para o cumprimento imperfeito do contrato de serviços médicos e veio a concluir que, no caso, não estava preenchido o pressuposto da ilicitude (“não se apurou que no decurso do exame tivesse havido por parte do réu qualquer afastamento das boas práticas da medicina”), não cabendo curar dos demais. Referiu, no entanto, que, a ter-se provado a ilicitude, a autora beneficiaria de uma presunção de culpa do réu.

No entanto, a justificação da Relação, no que toca à não verificação da ilicitude, não se afigura adequada à obrigação concretamente assumida no caso dos autos, que se não pode analisar como se de uma obrigação de meios se tratasse; numa situação dessas – como ocorrerá, por exemplo, com a realização de uma intervenção cirúrgica ou com a definição de um tratamento, em ambos os casos com função curativa (não vem agora ao caso analisar a especificidade das intervenções ou tratamentos com finalidade estética) – é que se poderia ponderar se o médico estaria apenas vinculado a actuar segundo as regras da arte, utilizando o seu melhor saber, e não a obter a cura, ou a melhoria pretendida.

Mas a inadequação da conclusão de que não se demonstrou a prática de um acto ilícito não significa que se deva desconsiderar o enquadramento contratual da actuação do réu e dos danos dela resultantes. 

Na verdade, a perfuração do intestino ocorreu durante e por causa da execução do contrato destinado à realização de um exame médico; independentemente de encontrar a construção juridicamente mais correcta, a verdade é que objectivamente ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada. 

Com esta afirmação quer-se dizer que, em si mesmo, o exame foi uma intromissão na integridade física, natural e necessariamente consentida e pretendida pela autora; assim sucederá, em regra, com os exames médicos. Mas esse consentimento ou pretensão da autora não abrange a lesão em discussão neste processo.

Poder-se-á sustentar que se não se tratará (ou não se tratará apenas) de um cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos, mas da lesão do direito à integridade física da autora, ocorrido no âmbito e por causa da execução do contrato; no entanto, esta ligação intrínseca significa que o regime aplicável às consequências dessa execução deve ser o regime da responsabilidade contratual. Aliás, dificilmente se poderá sustentar que a protecção da integridade física do paciente não integra o âmbito de protecção de um contrato de prestação de serviços médicos.


9. Sabe-se que a realização da colonoscopia implica a utilização de métodos dos quais pode resultar a perfuração do intestino, ainda que raramente (cfr. ponto 127 da matéria de facto); o que significa que o profissional que a executa há-de adoptar os procedimentos próprios do exame com a específica preocupação de tentar evitar que haja perfuração.

Pode assim entender-se que está em causa um “dever imposto pela regra de que, no cumprimento dos contratos, cada contraente deve ter na devida conta os interesses da contraparte (nº 2 do artigo 762º do Código Civil); e que, sendo violado”, acarreta a responsabilidade do médico, nos termos próprios da responsabilidade contratual (artigo 798º do Código Civil). A frase que se transcreveu consta do acórdão deste Supremo Tribunal de 1 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 623/09.2YFLSB, que não versou sobre um caso de responsabilidade médica, como agora sucede, mas no qual também se tratava da lesão de um direito absoluto (então o direito de propriedade) ocorrida na execução de um contrato, no caso, de empreitada.

O apelo a este acórdão destina-se a mostrar o ponto comum às duas situações em apreciação. Também está em causa no caso presente a “violação” de “deveres de protecção, de conduta ou laterais (para referir algumas das designações que têm sido utilizadas) caracterizados “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”, resultantes da sua “conexão com o contrato” (Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, reimp, Coimbra, 1982, pág.337 e segs.)”.

Como ali se dá nota e todos sabemos, há divergências quanto ao enquadramento da violação de tais deveres no âmbito da responsabilidade contratual ou extra-contratual. E “sabe-se igualmente que, embora unificados pela função desempenhada, têm conteúdos muito diversos, englobando deveres tão distintos como “deveres de informação e conselho, de cooperação, de segredo e não concorrência, de custódia e de vigilância, de lealdade, etc” (a exemplificação é de Manuel Carneiro da Frada, Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, pág. 40), que Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil, I, Coimbra, 1984, pág. 604) agrupa em “deveres de protecção, de esclarecimento e de lealdade”.

Aqui como ali, no entanto, entende-se que não vem ao caso “optar, em tese geral, pela aplicação do regime da responsabilidade contratual (por exemplo, Mota Pinto, op. cit, pág. 342) ou extra-contratual (por exemplo, Pedro Romano Martínez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra, 2001, pág. 253) a todas as situações (realmente diversificadas) que podem reconduzir-se à sua violação”; mas que, também aqui, a apontada ligação entre a realização da prestação principal e o risco de perfuração do intestino torna especialmente desadequado analisar o dever do médico «à luz do “dever geral de cuidado da área delitual” (expressão de Manuel Carneiro da Frada, op.cit., pág. 275)».” (negrito nosso).


Vejamos até que ponto esta orientação é susceptível de ser aplicada ao caso sub judice.

Antes de mais, não oferece dúvidas que, do contrato de prestação de serviços médicos dos autos, nasceu uma obrigação de resultado, qual seja a de obtenção dos dados clínicos do exame de colonoscopia. Que tal resultado tenha sido alcançado não é posto em causa pela A., não sendo de considerar a hipótese de a colonoscopia ter tido uma função curativa, uma vez que tal não foi alegado pelas partes. Assim, o que está em discussão não é o cumprimento do dever primário de prestação do médico, mas o cumprimento do dever acessório de, na realização do exame clínico, respeitar a integridade física da A.

Ora, na construção dogmática acolhida pelo citado acórdão do STJ de 01/10/2015, tendo ocorrido “uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada”.

Aceitando-se esta via qualificativa, e procurando-se aplicá-la ao caso dos autos, a perfuração do colon no decurso do exame de colonoscopia configurará, sem mais, ilicitude do resultado. Por via do regime do art. 799º, nº 1, do CC, tal facto será presuntivamente culposo.

Em alternativa, segundo a orientação, porventura prevalente na jurisprudência no domínio da responsabilidade civil médica (cfr., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24/06/2016 (proc. nº 6844/03.4TBCSC.L1.S1) e de 23/03/2017 (proc. nº 296/07.7TBMCN.P1.S1), in www.dgsi.pt, ambos relativos a casos, em que em intervenções cirúrgicas ao fémur, ocorreu uma lesão do nervo ciático), caberá ao paciente lesado provar a ilicitude da conduta do médico, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física do paciente.

No caso dos autos, tendo sido provado que os riscos de perfuração, embora raros, são inerentes a um exame de colonoscopia, mesmo que correctamente executado (facto provado 53) e ainda que, devido aos antecedentes clínicos da A., tais riscos eram acrescidos (factos provados 40 e 54), afigura-se que ambas as concepções (ilicitude do resultado ou ilicitude da conduta) conduzirão, afinal, a soluções convergentes.

Vejamos.

Admitindo-se a primeira concepção (a ocorrência da perfuração do colon basta para configurar ilicitude), haverá que ponderar da exclusão da ilicitude pelo consentimento informado da A. quanto aos riscos próprios daquela colonoscopia, tendo presente que, segundo a regra geral do art. 340º, nº 1, do Código Civil, “O acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão”.

Seguindo-se a segunda concepção (necessidade de que o paciente faça prova do incumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado na execução do exame médico, imposto pelas leges artis), tem de se reconhecer que tal prova não foi feita. Ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar a A. dos riscos inerentes à intervenção médica e se aquela os aceitou.

Deste modo, a existência ou não de consentimento devidamente informado constitui factor essencial para a decisão do pleito.


8.2. Tanto o direito nacional (cfr., além do citado art. 340º do Código Civil, os arts. 70º e 81º do mesmo Código, assim como o art. 157º do Código Penal e o nº 11, do artigo 135º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 282/77, de 5 de Julho, republicado em anexo à Lei nº 117/2015, de 31 de Agosto (“O médico deve fornecer a informação adequada ao doente e dele obter o seu consentimento livre e esclarecido”), como instrumentos internacionais (cfr. o art. 5º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina -Convenção de Oviedo), impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência; e que o consentimento dos pacientes seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando estes cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica.

Antes de se apreciar se, no caso dos autos, tais exigências foram respeitadas, considerem-se as consequências que, a existir, terá o consentimento informado prestado pela paciente.

Afigura-se que, seguindo-se o entendimento de que a perfuração do colon no decurso do exame de colonoscopia configura, sem mais, ilicitude do resultado, a prova do consentimento devidamente informado por parte da A. constituirá causa de exclusão da ilicitude.

Seguindo-se a segunda concepção (ilicitude da conduta) e nas palavras de André Dias Pereira (Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Coimbra Editora, 2015, pág. 459), “se o paciente consentiu (tendo sido previamente devidamente informado) só há lugar a indemnização em caso de má prática médica, por violação negligente das regras da arte. O consentimento válido transfere para a esfera jurídica do paciente os riscos da intervenção, desde que esta seja realizada diligentemente.”

Afigura-se, assim, ser este o problema nuclear a resolver: pode ou não considerar-se que a A. assumiu na sua esfera jurídica os riscos do exame de colonoscopia efectuado de acordo com as leges artis?

Enquanto facto impeditivo do direito da A. (art. 342º, nº 2, do CC), não se discute que compete ao R. médico fazer a prova do consentimento informado (neste sentido, cfr. os acórdãos do STJ de 02/06/2015, proc. nº 1206.3TVPRT.P1.S1 e de 16/06/2015, proc. nº 308/09.0TBCBR.C1.S1. consultáveis em www.dgsi.pt).


Vejamos se tal prova foi feita.

Foi dado como provado que “A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos”.

Do documento de fls. 125 consta a declaração da A. a autorizar a realização do exame de colonoscopia, “estando perfeitamente informada e consciente dos riscos, complicações ou sequelas que possam surgir”. O consentimento, prestado desta forma genérica, não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado. Porém, há que atentar também na prova de que “A Autora conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, tendo-lhe sido transmitido em 29.12.2009, 25.01.2010 e 15.03.2011, informação relativa à realização dos exames”.

Qual a relevância desta prova?

Considera-se relevante o facto de a A. ter sido informada do risco concreto de perfuração do intestino e ainda que tal informação tenha sido prestada em 15/03/2011, em momento anterior ao exame dos autos (embora se pudesse discutir se com a antecedência suficiente). Com efeito, não podem considerar-se como relevantes – para efeitos da validade do consentimento – os esclarecimentos prestados por ocasião de anteriores colonoscopias. Em relação a cada um dos exames tais esclarecimentos têm de ser actualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo. Se assim é para qualquer paciente, por maioria de razão para alguém como a A. que, em 15/03/2011, tinha já 83 anos de idade.

Porém, não basta a prova do esclarecimento quanto aos riscos comuns de perfuração. No caso dos autos em que os riscos de perfuração eram superiores ao normal (factos 40 e 54) era imperativo que o R. fizesse prova de que a A. fora informada de tais riscos acrescidos. Ora, não se provou que “À Autora tenha sido expressamente referido pelo Réu CC ou por algum profissional do Réu «Hospital, .. » que por estar em causa um cólon operado e o estado geral do mesmo cólon estar mais debilitado face à operação ao tumor, o exame consubstanciava um maior risco”.

Assim sendo, conclui-se não ter sido feita prova bastante para preencher as exigências do consentimento devidamente informado.

8.3. A avaliação das consequências da falta de prova da existência de consentimento devidamente informado da A. implica a ponderação de quais sejam os bens jurídicos protegidos pela exigência desse consentimento e, em correspondência, de quais sejam os danos ressarcíveis.

Retomemos as duas vias de aferição da ilicitude enunciadas supra, no ponto 8.2.

Considerando-se que a ocorrência da perfuração no colon configura sem mais, ilicitude do resultado, a ausência de consentimento devidamente informado do lesado conduz à não exclusão da ilicitude. Assim sendo, estando em causa a tutela do bem “integridade física”, serão ressarcíveis, nos termos gerais, tanto os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais resultantes do facto ilícito culposo.

Considerando-se que é de exigir a prova da ilicitude da conduta do médico, a ausência de consentimento devidamente informado configura, por si só, um acto ilícito autónomo (e, por aplicação do regime do art. 799º, nº 1, do CC, presuntivamente culposo). De acordo com André Dias Pereira, se se “concluir que a informação (maxime sobre os riscos) não foi suficiente para o paciente se poder autodeterminar com toda a informação de que necessitava, o consentimento é inválido e a intervenção médica ferida de ilicitude, visto que a causa de justificação – consentimento – não é eficaz, como resulta dos arts. 81º e 340º do CC e do art. 157º do CP. Por isso mesmo, a violação do dever de esclarecimento do paciente é fundamento de responsabilidade médica independentemente de negligência no que respeita à intervenção médica em termos técnicos e independentemente do seu resultado positivo ou negativo (“O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica”, in Responsabilidade civil dos médicos, Coimbra Editora, 2005, pág. 459).

Subsistindo a questão de apurar quais os bens jurídicos tutelados e os danos ressarcíveis.

Seguindo a orientação do autor que vimos citando:

- “Se a intervenção médica for arbitrária, porque não se obteve consentimento ou se obteve um consentimento viciado (por falta de informação adequada), devemos distinguir duas situações: na primeira, verifica-se uma intervenção médica sem consentimento (ou com consentimento viciado), mas sem quaisquer danos (corporais), ou seja, sem qualquer agravamento do estado de saúde do paciente; na segunda, a intervenção é arbitrária e não obteve êxito, ou verificaram-se riscos próprios da operação, ou provocou consequências laterais desvantajosas” (Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, cit., pág. 459);

- Na primeira situação, o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão, havendo lugar a indemnização por danos não patrimoniais (cit., págs. 459 e segs.);

- Na segunda situação, os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a integridade física e moral, pelo que “serão, assim ressarcíveis não só os danos não patrimoniais causados pela violação do seu direito à autodeterminação e à liberdade, mas também por violação da sua integridade física (e, eventualmente, da vida) (arts. 70º e 483º CC), bem como os danos patrimoniais derivados do agravamento do estado de saúde” (cit., pág. 465);

- “Assim sendo, o montante das indemnizações resultantes de um processo de responsabilidade por violação do consentimento informado pode ser tão elevado como os casos de negligência médica” (pág. 465).

No caso dos autos, estamos perante um caso subsumível na segunda situação: a intervenção não foi devidamente consentida e teve consequências laterais desvantajosas, isto é, a perfuração do colon. Haverá pois lugar a reparação tanto dos danos não patrimoniais como dos danos patrimoniais dados como provados.

Neste sentido decidiu o já indicado acórdão deste Supremo Tribunal de 02/06/2015 (proc. nº 1206.3TVPRT.P1.S1) num caso de inexistência de consentimento:

“Não tendo a autora prestado qualquer consentimento, escrito ou verbal, expresso ou tácito, presumido ou hipotético, para a prática do ato cirúrgico a que foi sujeita, estão assim preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual: ilicitude (incumprimento do contrato de prestação de serviços e de regras de conduta decorrentes da ética médica e do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, como a obrigação de obter um consentimento informado); culpa, a qual se presume nos termos do art. 799.º, n.º 1 do CC; nexo de causalidade entre o facto – intervenção médica não consentida – e o dano, no sentido em que aquela é a causa adequada do dano; danos patrimoniais e não patrimoniais amplamente documentados nos autos e refletidos na matéria de facto.”


Especialmente relevante se afigura o teor do acórdão do STJ de 02/11/2017 (proc. nº 23592/11.4T2SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt) relativo a um caso de falta de consentimento informado quanto aos riscos inerentes à extracção de um dente do siso incluso:

“É exacto que não se pode afirmar que, naturalisticamente, foi a falta de informação – que, no caso, está provada (pontos ccc), iii), bbbb)) e tem como objecto a comunicação do risco que a extracção do siso incluso implica para o paciente –, que provocou “a lesão do nervo lingual direito” (bbb)) e demais danos que vêm provados; desde logo, nem sequer vem demonstrado que, se conhecesse o risco que a intervenção implicava, a autora não teria consentido na sua realização; se essa prova tivesse sido feita, poder-se-ia estabelecer uma cadeia naturalística de causas, assim contrariando a alegação dos recorrentes, como é manifesto.

Não estando provado que a autora só aceitou submeter-se à intervenção porque não foi devidamente informada quanto aos respectivos riscos, porque, se tivesse sido, não a teria aceitado, a perspectiva jurídica que se nos afigura correcta é antes a de determinar se deve ser ressarcido o concreto dano consistente na perda da oportunidade de decidir correr o risco da lesão do nervo e das suas consequências; perda de oportunidade que, em si mesma, é um dano causado pela falta de informação devida, em abstracto susceptível de ser indemnizado, e cuja protecção tem como sustentação material o direito à integridade física e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1 da Constituição e artigo 70º, nº 1 do Código Civil). No seu conteúdo inclui-se, nomeadamente, o poder do titular de decidir em que agressões à sua integridade física consente, assim afastando a ilicitude das intervenções consentidas (cfr. nº 2 do artigo 70º e artigo 81º do Código Civil).

Nesta perspectiva, está ostensivamente demonstrado o concreto nexo de causalidade naturalístico, questionado pelos recorrentes; e preenchido o requisito da causalidade adequada (art. 563º do Código Civil), consagrado na lei portuguesa no âmbito da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual): para além de fáctica ou naturalisticamente se ter de apurar se uma determinada actuação (acção ou omissão) provocou o dano (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. 1399/06.OTVPRT.P1.S1), cumpre ainda averiguar, tendo em conta as regras da experiência, se era ou não provável que da acção ou omissão resultasse o prejuízo sofrido, ou seja, se aquela não realização é causa adequada do prejuízo verificado. É necessário que, em concreto, a acção (ou omissão) tenha sido condição do dano; e que, em abstracto, dele seja causa adequada (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ªed., Coimbra, 2000, pág. 900). 

No fundo, pode entender-se que ocorre ainda a hipótese descrita por André Gonçalo Dias Pereira, O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica, in “Responsabilidade Civil dos Médicos, Coimbra, 2005, pág. 435 e segs., pág. 496: “a falta de informação impossibilitou o paciente de tomar uma decisão informada em termos de ponderação adequada de riscos e benefícios”, apta a gerar responsabilidade civil do médico, através da sua inserção no círculo de protecção das normas que exigem o consentimento informado; embora se entenda, com Rui Cardona Ferreira A perda de chance na responsabilidade civil por acto médico, sep. da Revista de Direito Civil,  II (2017), 1, pág. 131-155, que o dano da perda de oportunidade tem autonomia, para efeitos indemnizatórios. Assim se decidiu, aliás, no acórdão de 14 de Março de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 78/09.1TVLSB.L1.S1.”


No caso dos autos, o exame médico realizado destinava-se à obtenção de dados quanto ao estado de saúde da A., sem que tivesse sido provado ou sequer alegado que o mesmo exame possuísse qualquer função curativa. Também aqui não se sabe se a A., se tivesse sido devidamente informada dos riscos acrescidos de perfuração do intestino em razão dos seus antecedentes clínicos, teria ou não aceitado submeter-se à colonoscopia. De qualquer forma, quer o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo do médico (a intervenção não devidamente autorizada) e os danos seja aferido pela causalidade adequada, quer pelo âmbito de protecção das normas que impõem o consentimento informado, sempre deverá ser ressarcida a perda da oportunidade de a A. decidir não correr os riscos da lesão.

Conclui-se assim que, quer se siga a concepção da ilicitude do resultado quer a concepção da ilicitude da conduta, o R. médico e a respectiva seguradora se encontram solidariamente obrigados a reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela A. com fundamento em falta de consentimento devidamente informado da A. para a realização da colonoscopia.


9. Na apreciação da questão da redução da indemnização por danos não patrimoniais recordam-se os parâmetros indicados no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/2016, proc. nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1, www.dgsi.pt, relatado pela relatora do presente acórdão):

- “A compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º, nº 1, do CC), não pode – por definição – ser feita através da fórmula da diferença. Deve antes ser decidida pelo tribunal, segundo um juízo de equidade (art. 496º, nº 4, primeira parte, do CC), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do art. 494º, do CC”;

- “Como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. nº 381/2002.S1, todos em www.dgsi.pt), “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”;

- “A sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Nos termos do acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 2012, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, www.dgsi.pt, “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição”. Exigência plasmada também no art. 8º, nº 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”

Tendo presentes estes parâmetros, vejamos os termos em que o acórdão recorrido fundamentou a decisão:


“(…) no caso dos autos, temos que a Autora, em virtude da perfuração cólica, teve que ser assistida no Hospital Privado … (hoje MM), onde efectuou consulta e exames, sofreu três intervenções cirúrgicas, vários períodos de internamento hospitalar entre os dias 16.03 a 30.03.2011, 30.03.2011 a 9.04.2011, de 12.04.2011 a 18.04.2011 e, ainda, de 2.11.2011 a 17.11.2011 – vide factos provados em 11., 13., 14., 15., 17., 18. e 19. Sofreu, assim, a Autora 49 dias de internamento hospitalar.

Por outro lado, desde o termo do exame de colonoscopia (a 15.03.2011) e até Abril de 2011, a Autora sofreu dores, ou seja durante cerca de 1 mês e meio. (facto provado em 26.)

Depois da intervenção cirúrgica do dia 17.03.2011, a Autora teve de usar um saco de colostomia (para armazenar as fezes), carecendo, até Novembro de 2011, de ajuda de terceiras pessoas para se vestir e despir, assim como para cuidar da sua higiene (facto provado em 31.)

O uso do aludido saco fazia a Autora sentir-se desconfortável, sendo que o mesmo chegou a rebentar em algumas ocasiões, incluindo de noite, obrigando a tomas de banho e mudança de roupa, no que contou com a ajuda de terceiros, nomeadamente do seu filho (factos provados em 30. e 32.)

A Autora, por ter que usar o saco de colostomia, sentiu-se diminuída, com perda de auto-estima e vergonha, reduzindo as suas saídas e o convívio com amigas, sendo certo que antes do evento em causa, a Autora era uma pessoa alegre, autónoma e que saía sozinha e com amigas, participando em aulas de «Pilates», aulas que deixou após ter de usar o dito saco. (factos provados em 33., 34. e 35.)

Por outro lado, ainda, é de considerar que a Autora tinha, à data do evento, uma idade avançada (83 anos), assumindo, pois, as sobreditas circunstâncias uma maior penosidade, pois que associadas às limitações de saúde próprias e naturais de quem possui aquela provecta idade.

Por último, é de considerar que a culpa do Réu/médico é uma culpa presumida.

Como assim, ponderando todos os sobreditos elementos, à luz de critérios de equidade e tendo presente os valores indemnizatórios que se colhem da nossa jurisprudência já antes citada, afigura-se-nos ser equitativo fixar-se a favor da Autora (e ainda que a indemnização em apreço integre já a sua herança e, por via do fenómeno sucessório, se venha a transmitir aos seus herdeiros – os ora apelantes), a título de danos não patrimoniais, e tendo por referência a data do presente acórdão, a quantia de € 28. 000, 00 (vinte e oito mil euros), a que acrescerão os juros de mora à mesma taxa legal, desde a data deste acórdão e até integral e efectivo pagamento.”


Entende-se serem inteiramente correctos os pressupostos e limites dentro dos quais se situou o juízo equitativo da Relação, fixando a indemnização pelos danos não patrimoniais da A. no valor de € 28.000,00, conclusão que se afigura em linha com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, respeitando-se assim as exigências impostas pelo princípio da igualdade.

Conclui-se, assim, ser de manter o montante indemnizatório por danos não patrimoniais.


10. Quanto à questão da inexistência de relação contratual entre a A. e a R. Hospital. S.A. ou existência de duas relações contratuais (uma entre a A. e o médico CC, e outra entre a A. e a R. Hospital, S.A.), importa ter em conta a tipologia que a doutrina mais recente propõe, a respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados (ver André Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, cit., págs. 684 e segs., desenvolvendo a proposta de Carlos Ferreira de Almeida, “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, in Direito da Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, págs. 75 e segs.), tipologia que aqui se indica: (i) “contrato total”, que é “um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos)”; (ii) “contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional)”, que corresponde a “um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações)”; (iii) “contrato dividido”, que é aquele em que “a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos).”

Os factos provados relevantes são os seguintes:

2 - A Autora foi paciente do Réu CC que exerce as funções de médico gastrenterologista no Réu Hospital [Hospital BB, SA] desde 1.03.1999.

3 - O Réu Hospital tem por objecto a prestação de cuidados de saúde.

4 - No dia 15.03.2011, pelas 17 horas, a Autora foi submetida a um exame de endoscopia digestiva baixa nas instalações do Réu Hospital pelo Réu CC em regime de consulta de acompanhamento.

5 - O Réu CC conhecia a situação clínica anterior da Autora.

24 - O Réu CC realizou a 25.01.2010 um outro exame de colonoscopia digestiva baixa à Autora tendo-lhe detectado um tumor maligno.

25 - Antes dessa colonoscopia realizada em 2010, a 29.12.2009 o mesmo CC iniciou colonoscopia à Autora interrompendo-a por falta de preparação adequada do colon.

38 - A Autora assinou em 15.03.2011, antes da realização do exame desse dia feito pelo Réu CC, um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», onde a Autora assina uma declaração em que afirma compreender a explicação fornecida acerca do seu caso clínico e os riscos em causa, conforme consta a fls. 125 dos autos.

39 - Antes da realização do exame, foi enviado pelo Réu Hospital um e-mail à filha da Autora com as recomendações para a realização da colonoscopia.    


Não oferece dúvida que, entre o R. CC, médico gastrenterologista, e a A. existe uma relação contratual de prestação de serviços médicos. Aquele R. foi o médico escolhido pela A. para a acompanhar ao longo de vários anos.

Quanto à relação entre a A. e a R. Hospital, S.A., os factos provados, ainda que escassos, permitem concluir pela existência de uma relação contratual directa, mas são insuficientes para que tal relação possa ser qualificada como de “contrato total com escolha de médico”. É certo que a celebração de um contrato de prestação de serviços médicos completos entre a A. e a R. Hospital, S.A. não depende da prova de que entre esta R. e o R. médico existisse uma relação de contrato de trabalho. Com efeito, na prestação de serviços médico-clínicos, o Hospital tanto se pode socorrer de médicos que integrem os seus quadros (mediante relação laboral) como de médicos com os quais celebre contratos de prestação de serviços. Em qualquer caso, o que importa apurar é se a A. contratou com a R. Hospital, S.A. a prestação total de serviços, ainda que escolhendo ela o médico de entre os que prestam serviços no mesmo hospital; ou se, diferentemente, a A. contratou, separadamente, o médico e o hospital.

Perante a prova feita, afigura-se que se trata de uma situação de “contrato dividido” ou autónomo pelo qual a A. e a R. Hospital, S.A. acordaram que esta prestaria àquela serviços “decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.)”.  

Identifica-se, assim, uma relação contratual entre a A. e o R. CC, que tem como objecto a prestação dos serviços especificamente médicos; e uma outra relação contratual entre a A. e a R. Hospital, S.A., que não envolve a prestação de serviços médicos em sentido estrito.

Deste modo, quanto ao fundamento da acção relativo à execução do exame de colonoscopia, o R. médico não é auxiliar de cumprimento das obrigações da R. Hospital, S.A., não podendo, pois, esta ser responsabilizada pela conduta daquele (ao abrigo do regime geral do art. 800º, nº 1, do Código Civil).

Tendo-se concluído no presente acórdão pela responsabilidade do R. médico CC com fundamento na falta de consentimento devidamente informado da A., não pode responsabilizar-se a R. Hospital, S.A. pela conduta do mesmo médico.


11. Contudo, não pode esquecer-se existir um outro fundamento da acção – a alegada deficiente prestação dos serviços médico-clínicos na fase de recuperação do exame (tanto antes como após a alta médica) – podendo, pelos factos alegados na petição inicial e na réplica, estar em causa quer a violação de obrigações do R. médico quer da R. Hospital, pelo que ambos poderiam vir ser responsabilizados. Pela factualidade dada como provada pela 1ª instância não terá havido deficiências na prestação dos serviços na fase pós-colonoscopia. Mas, recorde-se, sempre se teria de considerar a necessidade de mandar baixar o processo ao Tribunal de Relação para apreciar a questão da impugnação da matéria de facto quanto aos factos relativos à fase de recuperação do exame de colonoscopia (tanto antes como após a alta médica), questão que foi julgada prejudicada pelo acórdão recorrido, desde que se conclua que a eventual procedência daquela impugnação poderá alterar a decisão de mérito.

Ora, compulsada a p.i. e a réplica verifica-se que todos os danos alegados são conexionados com a ocorrência da perfuração do colon no decurso da execução do exame de colonoscopia e não com o eventual agravamento dos danos na fase pós-colonoscopia. Ou seja, apesar de terem sido alegados abundantes factos relativos a um alegado incumprimento dos deveres de diligência e de cuidado, tanto do médico como dos funcionários do Hospital, na fase de recuperação, certo é que o conhecimento da impugnação da matéria de facto nesta parte sempre se revelaria como inútil, na medida em que os danos alegados e provados pela A. foram causados pela perfuração do colon e não pelo agravamento do estado de saúde na fase de recuperação.

Conclui-se, assim, ficar prejudicada a questão do conhecimento da impugnação da matéria de facto pela Relação. Consequentemente, a R. Hospital, S.A. e a interveniente Seguradoras EE, S.A. não são responsáveis pelos danos sofridos pela A.


12. Concluindo-se pela ausência de responsabilidade quer da R. Hospital, S.A. quer da interveniente Seguradoras EE, S.A. todas as demais questões relativas a estas ficam prejudicadas.


13. Pelo exposto, julgam-se procedentes os recursos da R. Hospital BB, S.A.. e da interveniente Seguradoras EE, S.A. e improcedentes os recursos do R. CC e da interveniente GG, S.A., decidindo-se:

a) Revogar parcialmente o acórdão recorrido, absolvendo do pedido a R. Hospital BB, S.A.. e a interveniente Seguradoras EE, S.A.;

b) Manter a condenação do R. CC – com fundamento em falta de consentimento devidamente informado da A. para a realização da colonoscopia – e da interveniente GG, S.A, a pagar solidariamente à A. a indemnização, por danos patrimoniais a por danos não patrimoniais, fixada pelo acórdão recorrido.


Na acção, custas na proporção do decaimento.

Nos recursos da R. Hospital BB, S.A.. e da interveniente Seguradoras EE, S.A., custas pelos Recorridos.

Nos recursos do R. CC e da interveniente GG, S.A., custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 22 de Março de 2018


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho