Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8625/18.1T8LSB.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: VENDA JUDICIAL DE IMÓVEL COM HIPOTECA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
INOPONIBILIDADE AO COMPRADOR
ABUSO DO DIREITO
INDEMNIZAÇÃO POR PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – O arrendamento constituído após o registo de hipoteca, arresto ou penhora é inoponível ao comprador do imóvel em venda judicial, seja na acção executiva, seja em processo de insolvência, caducando automaticamente com a concretização dessa venda, nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil.
II - De acordo com o vertido no artigo 334º do Código Civil agir de boa-fé significa agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte e ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança e expectativa dos outros.
III - O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.
IV – Porque ao proprietário é lícito gozar o bem, usando e fruindo da coisa, a privação ilícita desse uso é ressarcível, sem que se exija a demonstração de prejuízos efectivos, mas pressupõe, ainda assim, a verificação de uma concreta e real desvantagem resultante dessa privação, que não a simples perda da possibilidade de utilização do bem.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, pessoa colectiva n.º 500…, com sede na Av. João XXI, Nº …, 1000-300 Lisboa intentou contra B, com domicílio na Rua Abade Faria, nº .., 1º andar direito, 1900-007 Lisboa a presente acção declarativa de condenação, com processo comum formulando os seguintes pedidos:
a) A condenação da ré a reconhecer a autora como legítima titular do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar do prédio sito na Rua Abade Faria, Nº , Areeiro em Lisboa, freguesia de Penha de França, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número 0000/20030925 e a entregar-lha completamente livre e devoluta de pessoas e bens;
b) A condenação da ré a pagar à Autora, a título de indemnização pelos danos causados, a importância de € 37 589,99, calculada até Março de 2018 e, ainda, a contar desta data, o montante mensal de € 803,11, correspondente ao valor da última renda fixada, até à entrega efectiva do imóvel, com actualizações anuais às taxas fixadas legalmente para as rendas livres, a liquidar em execução de sentença, e à taxa de juro legal sobre o montante total da indemnização até ao integral e efectivo pagamento.
Alega para tanto, muito em síntese, o seguinte:
- É titular do direito de propriedade sobre a fracção autónoma identificada, que adquiriu mediante arrematação, em 22-02-2014, livre de quaisquer ónus ou encargos e que se encontra ocupado pela ré sem o seu consentimento e contra a sua vontade;
- Após a aquisição, teve conhecimento de que a fracção em causa se encontrava ocupada pela ré, sem qualquer título legítimo para o efeito;
- A autora interpelou a ré para proceder à desocupação do imóvel e entregar as chaves, o que não sucedeu;
- Se o imóvel tivesse sido entregue, poderia ter sido colocado no mercado de arrendamento, o que teria gerado um rendimento de € 37 589,99.
A ré contestou admitindo o direito de propriedade da autora sobre a fracção, adquirido no âmbito do processo de insolvência de Moisés ……, seu filho, mas alega que a administradora da insolvência sabia, tal como igualmente a ali credora Caixa Geral de Depósitos, que a fracção se encontrava arrendada à ré, o que foi referido no relatório daquela, notificado às partes em 4 de Julho de 2011, conforme contrato celebrado a 1 de Maio de 2009, pelo que a administradora da insolvência não poderia ter transmitido a fracção livre de ónus ou encargos; mais refere que tendo tomado conhecimento da carta enviada ao filho para entregar a fracção, tentou apurar onde deveria pagar a renda, nada lhe tendo sido dito, pelo que passou a depositar as rendas a favor da autora; invoca ainda que a presente acção constitui um abuso de direito porque a autora não pode deixar de ter consciência que, ao pretender exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes.
Impugnou ainda o valor atribuído à acção e concluiu pela improcedência desta e pela sua absolvição do pedido.
Em 25 de Maio de 2018 a autora apresentou requerimento em que sustenta que o contrato de arrendamento invocado pela ré não lhe é oponível, porque era beneficiária de uma hipoteca sobre a fracção, com registo de 9 de Junho de 2006, ou seja, anterior à celebração do contrato de arrendamento, pelo que este é inoponível quer ao credor exequente, quer ao adquirente em venda executiva, caducando nos termos do n.º 2 do artigo 824º do Código Civil, o que vale também para os processos de insolvência; refuta ainda que possa estar em abuso de direito ao pretender exercer um direito próprio (cf. Ref. Elect. 19125050).
Em 17 de Setembro de 2019, teve lugar a realização de audiência prévia, no âmbito da qual foi fixado o valor da causa, foram aferidos os pressupostos processualmente relevantes e foi proferido despacho de fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova, sem reclamação (cf. Ref. Elect. 389968726).
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, em 16 de Janeiro de 2020, que julgou improcedente a acção, por não provada e, em consequência, absolveu a ré B dos pedidos formulados de entrega, livre de pessoas e bens, da fracção autónoma sita no 1º andar do n.º … da Rua Abade Faria, em Lisboa, bem como do pagamento da quantia de € 37 589,99 e da quantia mensal € 803,11 (calculada desde Março de 2018, actualizada anualmente em função das taxas fixadas para o regime das rendas livres) e dos juros legais de mora peticionados.
É desta sentença que a autora recorre, concluindo assim as respectivas alegações:
1. A aquisição da fração em causa pela ora Recorrente ocorreu em 22.02.2014.
2. A hipoteca de que a ora Recorrente era beneficiária, tem data de registo de 09.06.2006, isto é data muito anterior à da alegada celebração do contrato de arrendamento invocado pela Recorrida que data de 16.09.2011.
3. O arrendamento invocado não é oponível à Recorrente, por esta ter adquirido a fração em venda judicial e o registo de hipoteca de que era beneficiária, datar de momento anterior ao, alegado, contrato de arrendamento celebrado.
4. Mesmo que se julgue comprovada a existência do contrato de arrendamento invocado pela Recorrida, o mesmo caducou com a venda judicial acima referida.
5. Atento o conhecimento pela ora Recorrida, de que a propriedade da fração que ocupa passou para a esfera jurídica da ora Recorrente em 22.04.2014, não pode estar esta em abuso de direito por pretender exercer um direito próprio.
6. Não detém a Recorrida qualquer título que legitime a ocupação da fração em causa, que deveria ter entregado à ora Recorrente, livre e devoluta, pelo menos desde que teve conhecimento da carta referida no ponto 6 dos factos provados que foi remetida pela ora Recorrente após a aquisição do imóvel.
7. Tendo a Recorrida tido conhecimento da comunicação remetida, após a aquisição do imóvel, pela ora Recorrente ao anterior proprietário, o filho da ora Recorrida, manteve a ocupação à revelia da Recorrente.
8. Tal ocupação constitui um facto ilícito, visto que não houve autorização da Recorrente para a sua verificação, pelo contrário esta remeteu a referida comunicação ao anterior proprietário e a Recorrida dela teve conhecimento, existindo por isso culpa sua.
9. Não existe por isso nenhum abuso de direito da parte da Recorrente.
10. O que determina a inoponibilidade do contrato de arrendamento à Recorrente, e a sua legitimidade para reclamar a posse do imóvel, cuja propriedade lhe pertence.
11. Resulta da ocupação do imóvel da propriedade da Recorrente, sem o seu consentimento, a impossibilidade desta usar e fruir do imóvel de acordo com a sua vontade.
12. E foi da ação de ocupação da Recorrida que resultou para a Recorrente a impossibilidade prática de colocar no mercado designadamente de arrendamento a mencionada fração, como era sua intenção.
13. E de tal comportamento da Ré resultou o prejuízo para a Recorrente, pois o titular do bem tem sempre a faculdade de gozar, em exclusivo, o destino do bem, independentemente de o exercer ou não.
14. Da ocupação de um prédio sem autorização do seu proprietário resulta a violação do respetivo direito de propriedade, e a violação do direito de propriedade necessariamente envolve a obrigação de indemnizar os danos sofridos.
Nestes termos, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a sentença ora recorrida e substituindo-a por outra que declare a inoponibilidade à recorrente do arrendamento invocado e reconheça o seu direito à indemnização pela ocupação do imóvel dos autos.
A ré/recorrida contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões da alegação da autora/apelante há que apreciar as seguintes questões:
a) A subsistência do contrato de arrendamento e sua oponibilidade à autora após a transmissão do bem hipotecado em processo de insolvência;
b) O abuso de direito do banco ao pretender o reconhecimento da caducidade do contrato de arrendamento;
c) Em caso de caducidade, o direito da recorrente em obter uma indemnização pela ocupação ilícita da fracção.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos (a que esta Relação introduziu o aditamento que consta do ponto 19., em função do documento n.º 4 junto com a contestação e, mais do que isso, face à expressa admissão pela ré no seu articulado de contestação que o contrato de arrendamento apenas foi celebrado em 1 de Maio de 2009 - cf. artigo 10º da contestação -, considerando que nos termos do art.º 662º, n.º 1 do CPC, a Relação pode/deve corrigir, mesmo a título oficioso, patologias que afectem a decisão da matéria de facto - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 245; Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, 2015, pág. 468):
A favor da autora (AP. 2036 de 2014/04/22) encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º 0000/20030925, a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar do prédio sito na Rua Abade Faria, n.º …, Areeiro, Lisboa, freguesia de Penha de França, concelho de Lisboa.
2º A autora adquiriu a fracção autónoma identificada em em 22/04/2014, por compra no âmbito do processo de insolvência n.º 477/11.9YXLSB, que correu termos no 6º Juízo Cível de Lisboa contra Moisés ……..
3º Na escritura de compra e venda da fracção autónoma identificada em , a administradora do insolvente Moisés ……. e a aqui autora fizeram constar, na qualidade de outorgantes, que “o imóvel é transmitido livre de ónus ou encargos, nos termos do disposto no número dois do artigo 824º do Código Civil”.
4º A fracção autónoma identificada em encontra-se ocupada pela ré até à presente data.
Desde a sua aquisição e até à presente data, a autora não consegue entrar na fracção, em virtude da mesma se encontrar ocupada pela ré.
No dia 19/05/2014, a autora enviou a Moisés ……, que a recebeu em 20/05/2014, a carta de fls. 14, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
7º No processo de insolvência de Moisés ….., melhor identificado no facto provado n.º 2, a aí administradora de insolvência elaborou relatório nos termos do artigo 155º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) e juntou-o aos autos em 30/06/2011.
8º Nesse relatório e a propósito da fracção autónoma identificada em consta que “O único bem que o devedor possui é uma fracção autónoma de um imóvel sito na Penha de França em Lisboa, que adquiriu em Agosto de 1996, onde se localizava a sede da “Academia dos Infantes” e onde vive permanentemente a sua mãe, pagando-lhe uma renda mensal de 180,00€.”
A aqui autora “Caixa Geral de Depósitos, S. A.” teve conhecimento desse relatório em 04/07/2011.
10º No dia 06/07/2011, foi realizada a assembleia de credores do processo de insolvência de Moisés ….., melhor identificado no facto provado n.º 2.
11º A aqui autora esteve presente nessa assembleia de credores, fazendo-se representar pela Exma. Senhora Dr.ª Valentina …., tendo requerido que o “(…) Tribunal (…) notificasse a Sra. Administradora da Insolvência, para que completasse o relatório com informações mais concretas sobre a efectiva situação patrimonial do insolvente, designadamente, que fossem feitas as seguintes diligências: saber onde o insolvente reside e com quem reside; a junção do comprovativo do valor que o insolvente recebe da sua mãe a título de pagamento de rendas, a indicação da data em que se iniciaram esses pagamentos, bem como a junção de cópia do contrato de arrendamento do imóvel arrendado à sua mãe, caso o mesmo exista …”.
12º Na sequência do requerimento da aqui autora, melhor referido em 11º, a assembleia de credores foi suspensa, tendo sido designado o dia 5 de Setembro de 2011 para a sua continuação.
13º No dia 5 de Setembro de 2011, a Administradora da Insolvência requereu a junção aos autos das informações complementares requeridas na anterior assembleia de credores, e nas quais informou que o insolvente vivia com a sua mãe, ré nos presentes autos há cerca de dois anos; que o insolvente recebia da sua mãe uma renda de € 180,00, e da qual não emitia recibos de quitação devido à proximidade familiar/grau de parentesco existente entre ambos.
14º A aqui autora esteve presente na continuação da assembleia de credores realizada no dia 05/09/2011, fazendo-se representar pela Exma. Senhora Dr.ª Valentina …….
15º Na continuação da Assembleia de credores, e na sequência da apresentação das informações complementares pela Administradora da Insolvência, a aqui autora, na pessoa da sua mandatária, a Exma. Senhora Dr.ª Valentina ……, pediu ainda vários esclarecimentos à Administradora da Insolvência, tendo esta informado, em resposta, que teve contacto com a esposa do insolvente que a informou encontrar-se separada de facto do insolvente e que a filha de ambos estava totalmente a seu cargo, e que o insolvente vivia com a mãe, uma senhora de 72 anos, que era o seu suporte económico.
16º A ré teve conhecimento do teor da carta referida em 6º pelo seu filho Moisés …….
17º Após ter conhecimento da carta referida em 6º, a ré, através do seu mandatário, enviou à Administradora da Insolvência uma cópia do documento de fls. 32, intitulado “contrato de arrendamento para fins habitacionais” e solicitou-lhe que desse conhecimento dessa carta à autora a fim de esta informar qual a conta bancária, ou o local para pagamento da renda.
18º A aqui autora e a Administradora da Insolvência não responderam ao pedido da ré, melhor referido em 17º.
19º Em data não concretamente apurada, mas não anterior a 1 de Maio de 2009 e não posterior a 16/09/2011, a ré celebrou com o filho Moisés ……. o acordo escrito de fls. 32, intitulado “contrato de arrendamento para fins habitacionais”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
20º O acordo referido em 19º foi comunicado ao Serviço de Finanças de Lisboa 1 no dia 16/09/2011.
21º A favor da aqui autora e sobre a fracção autónoma identificada em encontrava-se registada, desde 09/06/2006, uma hipoteca para garantia do crédito que aquela detinha sobre Moisés …..  .
22º Desde a aquisição da fracção pela autora que a ré tem vindo a proceder ao depósito de diversas quantias a seu favor, a título de “renda”, primeiro à ordem do processo de insolvência melhor identificado em 2º e posteriormente à ordem dos presentes autos.
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O Tribunal a quo julgou como não provados os seguintes factos:
a) A autora apenas tenha tido conhecimento da ocupação da fracção autónoma identificada em pela ré após a sua aquisição em 22/04/2014.
b) A autora tenha interpelado por escrito a ré para efectuar a entrega da fracção identificada em livre de pessoas e objectos.
c) A carta referida no facto provado n.º 6 tenha sido devolvida.
d) Na carta referida no facto provado n.º 6 a autora tenha interpelado a ré a desocupar a fracção autónoma identificada em e a entregar-lhe as respectivas chaves.
e) A autora poderia ter obtido da fracção autónoma identificada em , a título de renda, um rendimento mensal de € 800,00 entre Maio e Abril de 2015; de € 797,52 entre Maio de 2015 e Abril de 2016; de € 798,80 entre Maio de 2016 e Abril de 2017; e de € 803,11 entre Maio de 2017 a Março de 2018.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Em primeiro lugar há que apurar se a decisão recorrida deve ser revogada por ter indeferido a pretensão da autora/recorrente de ver declarada a caducidade do contrato de arrendamento referido no ponto 19. dos factos provados, em virtude de ter sido celebrado após a constituição da hipoteca sobre a fracção objecto da locação.
Em traços breves, a questão que se coloca é a de saber se existindo uma hipoteca constituída sobre uma fracção autónoma que integra o património do insolvente, tendo sido celebrado um contrato de arrendamento posterior à data da constituição da hipoteca, sem o acordo do titular do direito real de garantia, ocorrida a venda da fracção no processo de insolvência, tal contrato deve caducar, por aplicação do estatuído no art. 824º, n.º 2 do Código Civil.
Neste caso, a autora/recorrente beneficiava de uma hipoteca constituída a seu favor incidente sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar do prédio sito na Rua Abade Faria, Nº .., Areeiro em Lisboa, freguesia de Penha de França, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número 0000/20030925.
No âmbito do processo de insolvência n.º 477/11.9YXLSB que correu termos contra Moisés ….., a autora adquiriu essa fracção, através de escritura de compra e venda em que interveio a administradora da insolvência, nessa qualidade e para tanto mandatada, tendo ficado consignado que “O imóvel é transmitido livre de ónus ou encargos, nos termos do disposto no número dois do artigo 824º do Código Civil” – cf. pontos 1. a 3. dos factos provados.
No entanto, tal fracção encontra-se ocupada pela ré, desde a aquisição e até à presente data, sendo que já no âmbito do relatório apresentado nos autos de insolvência, nos termos do art. 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[2], constava que o devedor/insolvente possuía como único bem esta fracção, onde vivia com a mãe, que lhe pagava uma renda mensal de € 180,00.
Mais tarde, na sequência de pedidos de esclarecimentos solicitados em assembleia de credores, em 5 de Setembro de 2011, a administradora de insolvência informou que há cerca de dois anos o insolvente recebia da mãe a renda de € 180,00, não existindo recibos de quitação face ao parentesco existente.
Em data não apurada, mas não antes de 1 de Maio de 2009 e não posterior a 16 de Setembro de 2011, foi subscrito o acordo que consta dos autos, designado, como contrato de arrendamento para fins habitacionais, onde consignaram que o arrendamento foi feito por duração indeterminada, com início a 1 de Maio de 2009.
Nos termos do art. 164º do CIRE, no âmbito da liquidação que deve ter lugar no processo de insolvência, o administrador procede à alienação dos bens, mas as modalidades da venda não têm carácter taxativo, podendo aquele optar quer pelas previstas no âmbito do processo executivo, como por qualquer outra que considere adequada.
De todo o modo, em qualquer caso, à venda celebrada pelo administrador da insolvência aplica-se o regime da venda em processo executivo, actualmente previsto nos artigos 811º e seguintes do CPC (cf. art. 17º do CIRE e art. 549º, n.º 2 do CPC).
Dispõe o artigo 824.º do Código Civil, sob a epígrafe “Venda em execução” o seguinte:
“1.- A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2.- Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3.- Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens.”
Por sua vez, o art. 1051.º do Código Civil prescreve:
“O contrato de locação caduca:
a)- Findo o prazo estipulado ou estabelecido por lei;
b)- Verificando-se a condição a que as partes o subordinaram, ou tornando-se certo que não pode verificar-se, conforme a condição resolutiva ou suspensiva;
c)- Quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado;
d)- Por morte do locatário ou, tratando-se de pessoa coletiva, pela extinção desta, salvo convenção escrita em contrário;
e)- Pela perda da coisa locada;
f)- Pela expropriação por utilidade pública, salvo quando a expropriação se compadeça com a subsistência do contrato;
g)- Pela cessação dos serviços que determinaram a entrega da coisa locada.”
E o art. 109º do CIRE estatui:
“1 - A declaração de insolvência não suspende a execução de contrato de locação em que o insolvente seja locador, e a sua denúncia por qualquer das partes apenas é possível para o fim do prazo em curso, sem prejuízo dos casos de renovação obrigatória.
2 - Se, porém, a coisa ainda não tiver sido entregue ao locatário à data da declaração de insolvência, é aplicável o disposto no nº 5 do artigo anterior, com as devidas adaptações.
3 - A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância.”
Em face destes normativos legais, há que determinar se, vendido o prédio hipotecado no âmbito do processo de insolvência, o contrato de arrendamento celebrado depois da constituição de hipoteca caduca, ou não, automaticamente com tal venda.
Como se refere na decisão recorrida, trata-se de questão sobre a qual não há consenso, seja na doutrina, seja na jurisprudência, sendo que ali se concluiu pela não caducidade do contrato de arrendamento nos seguintes termos:
“[…] na senda do entendimento dominante, defendemos que o direito ao arrendamento constitui um direito pessoal de gozo da coisa locada e não um direito real, pelo que não se aplica o disposto no artigo 824º, n.º 2, do Código Civil. Assim, em caso de venda executiva (ou, por analogia, em caso de venda judicial no âmbito de processo de insolvência), o direito ao arrendamento não caduca, quer não exista qualquer ónus sobre o imóvel à data da celebração do arrendamento, quer sobre esse imóvel incida (como é o caso dos presentes autos) uma garantia real (in casu, uma hipoteca constituída a favor da autora, registada em 09/06/2006).
Solução contrária dificilmente se compatibilizaria com o disposto no artigo 1057º do Código Civil (o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato de locação sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo); ou com a nulidade da cláusula que proíbe o proprietário de onerar os bens hipotecados (artigo 695º do Código Civil), os bens cujos rendimentos foram consignados (artigo 665º do Código Civil), os bens penhorados (artigo 678º do Código Civil) e os bens afetos a privilégios creditórios (artigo 753º do Código Civil); ou com o direito de preferência do arrendatário na venda do local arrendado (artigo 1091º do Código Civil); ou com o disposto no artigo 109º, n.º 3, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (nos termos do qual, a alienação de coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância).
Assim, tendo resultado provado que a ré, pelo menos desde 16/09/2011, é arrendatária da fracção autónoma sita no 1º andar do n.º … da Rua Abade Faria, em Lisboa, pode esta opor tal arrendamento à autora, que adquiriu a dita fracção em 22/04/2014, no âmbito de uma venda judicial no processo de insolvência n.º 477/11.9YXLSB.
E sendo oponível à autora tal arrendamento, deve improceder totalmente a acção.”
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Setembro de 2019, relator Carlos Castelo Branco, processo n.º 1200/17.0T8SNT.L1-2 acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt[3] fornece uma síntese das duas correntes que se posicionam face à resposta à questão que aqui cumpre dilucidar:
“Uma corrente que defende que o citado art. 824º, nº 2 não pode aplicar-se ao arrendamento por este não ser um direito real, tendo natureza obrigacional e o carácter taxativo da enumeração dos casos de caducidade do contrato de locação feita no art. 1051º do C. Civil. Considera que o art. 824º, nº 2 do C. Civil, não previu a caducidade do arrendamento porque o art. 1057º do mesmo Código estabeleceu a regra da sua transmissão, inexistindo, por isso, lacuna legal que permita, de harmonia com o disposto no art. 10º, nºs 1 e 2 do C. Civil, a aplicação analógica do citado art. 824º, nº 2 ao arrendamento, sendo que a hipoteca, nos termos do art. 695º do C. Civil, não gera, para o respetivo dono, qualquer indisponibilidade para onerar ou dar de arrendamento os bens hipotecados. Posicionam-se nesta corrente de entendimento Menezes Cordeiro (“Da natureza do direito do locatário”, in ROA 40.º (1980), pp 61 e 349), Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 11ª ed., Almedina, 2009, p. 403) e Maria Olinda Garcia (Arrendamento Urbano e Outros temas de Direito e Processo Civil, Coimbra Ed., 2004, pp. 24 e 48-60). No mesmo sentido pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07-12-1995 (processo nº 087516); de 19-01-2004 (processo 03A4098); de 20-09-2005 (CJSTJ, Ano XIII, T. III, p. 29] e de 27-03-2007 (CJSTJ, Ano XV, T. I, p. 146).
Outra corrente, largamente maioritária, pugna no sentido de que, mesmo entendendo que o arrendamento tem natureza obrigacional, o artigo 824°, n.º 2, do Código Civil, tem aplicação ao arrendamento, pelo que qualquer situação locatícia - registada ou não - constituída após o registo de hipoteca, arresto ou penhora, é inoponível ao comprador do imóvel em sede de venda judicial, na justa medida em que, após a concretização desta, caduca automaticamente. Defendem esta doutrina, na senda de Vaz Serra (“Realização coactiva da prestação. Execução. Regime civil, BMJ 73 (1958), 31-192), Romano Martinez (Da cessação do Contrato, p. 321), José Alberto Vieira (“Arrendamento de Imóvel dado em Garantia”, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles”, Vol. IV, p. 448 e seguintes), Miguel Teixeira de Sousa (Acção Executiva Singular, LEX, 1998, pág. 390), Remédio Marques e Miguel Mesquita (Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, Almedina, 2000, págs. 408 e ss.), Oliveira Ascensão (Locação de bens dados em garantia – natureza jurídica da locação”, in ROA, Ano 45, Vol. II, Setembro, págs. 365 e 366.), Rui Pinto (Manual da execução e despejo, Coimbra Editora, 2013, pág. 958), António Luís Gonçalves (”Arrendamento de prédio hipotecado. Caducidade do arrendamento”, in RDES, Ano XXXX, nº 1, p. 98), Henrique Mesquita (RLJ, ano 127.º, p. 223), Maria Isabel Menéres Campos (Da Hipoteca- Caracterização, Constituição e Efeitos, p. 242), Ana Carolina S. Sequeira (“A Extinção de Direitos Por Venda Executiva», in Garantias das Obrigações, pp. 23 e 43.) e Inês Nogueira Rebelo, (Caducidade do Contrato de Arrendamento por Venda Judicial de Imóvel Hipotecado, Universidade do Minho, Escola de Direito, Dissertação de Mestrado, 2013).”
Como referido na transcrição supra, do cotejo dos acórdãos publicados a que se teve acesso verifica-se que a jurisprudência tem propendido largamente para a segunda das correntes mencionadas.
Vejam-se nesse sentido - caducidade do contrato de arrendamento celebrado em data posterior à constituição de hipoteca por força da transmissão executiva ou em processo de insolvência - os acórdãos dos seguintes tribunais superiores:
= Supremo Tribunal de Justiça
- 18-10-2018, processo n.º 12/14.7TBEPS-A.G1-S2, relatora Rosa Tching
- 9-07-2015, processo n.º 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1, relator João Camilo
- 22-10-2015, processo n.º 896/07.5TBSTS.P1.S1, relator Pires da Rosa
- 3-12-1998, processo n.º 98B863, relator Ferreira de Almeida
- 16-09-2014, processo n.º 351/09.9TVLSB.L1.S1, relator Alves Velho (este e os seguintes acessíveis em www.colectaneadejurisprudencia.com)
- 15-02-2018, processo n.º 851/10.8TBLSA, relator Roque Nogueira
- 12-06-2012, processo n.º 409/06.6TBCDR.P1.S1, relator Hélder Nogueira Roque
- 5-02-2009, processo n.º 3994/08, relator Oliveira Rocha
- 6-07-2000, processo n.º 1881/00, relator Torres Paulo;
= Tribunal da Relação de Lisboa
- 13-03-2020, processo n.º 770/18.0T8LSB.L1-8, relatora Carla Mendes
- 26-09-2019, processo n.º 1200/17.0T8SNT.L1-2, relator Carlos Castelo Branco (em www.dgsi.pt)
- 10-09-2019, processo n.º 1452/17.5T8CSC.L1-7, relatora Maria Conceição Saavedra
- 15-05-2018, processo n.º 7734/10.0YYLSB-C, relatora Carla Câmara
- 25-10-2016, processo n.º 1237/13.8YXÇSB-G.L1, relatora Dina Maria Monteiro
- 26-06-2008, processo n.º 5180/08, relator Fernando Rodrigues
- 28-09-2006, processo n.º 6598/2006-6, relatora Ana Luísa Geraldes
= Tribunal da Relação do Porto
- 4-06-2019, processo n.º 4975/10.3TBVNG-B.P1, relatora Maria Graça Mira
- 25-09-2018, processo n.º 4630/12.0TBMAI-C.P1, relatora Anabela Ferreira
- 14-12-2017, processo 250/08.1YYPRT-D.P1, relatora Ana Lucinda Cabral
= Tribunal da Relação de Coimbra
- 30-04-2019, processo n.º 3557/18.6T8CBR-C,C1, relator Barateiro Martins
- 16-10-2018, processo n.º 4157/09.7TBVIS-J.C1, relator Barateiro Martins
- 26-02-2013, processo n.º 6/09.4TBCBR-C1, relatora Maria Inês Moura
- 9-10-2012, processo n.º 1734/10.7TBFIG, relatora Albertina Pedroso
- 14-11-2006, processo n.º 153/03, relator Paulo Brandão
= Tribunal da Relação de Évora
- 30-05-2019, processo n.º 701/16.1T8PTG-C.E1, relator Rui Machado e Moura
- 8-11-2018, processo n.º 561/14, relator Tomé de Carvalho
- 13-09-2018, processo n.º 43/16.2T8FAL-F.E1, relator Tomé Ramião
- 11-01-2018, processo n.º 1268/16.6T8FAR.E1, relator Jaime Pestana
- 19-06-2008, processo n.º 2652/07, relatora Alexandra Moura Santos.
Pelo contrário, entendendo o direito de arrendamento como um direito obrigacional, em que o direito do locatário é um direito de raiz estruturalmente obrigacional, assente no dever que recai sobre o locador de proporcionar ao arrendatário o gozo temporário da coisa para o fim a que ela se destina, sendo, como tal, um direito pessoal de gozo, e afastando, desse modo, a aplicabilidade, directa ou analógica, do art.º 824º, n.º 2 do Código Civil, detectaram-se os seguintes acórdãos:
= Supremo Tribunal de Justiça
- 27-11-2018, processo n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2, relator Henrique Brito Araújo
- 27-03-2007, processo n.º 404/07, relator Moreira Alves
- 28-09-2005, processo n.º 1489/05, relator Álvaro Reis Figueira
= Tribunal da Relação de Lisboa
-30-04-2019, processo n.º 1357/17.0T8LSB-C.L1, relator Rijo Ferreira
- 23-09-2014, processo n.º 394/12.5TBMTA.L1, relator Rui Torres Vouga
- 16-09-2008, processo n.º 515/08, relator Abrantes Geraldes
- 15-05-1997, processo n.º 1255, relator Francisco Magueijo.
Adiante-se, desde já, que os argumentos da posição maioritária, porque conduzem a uma aplicação da lei mais conforme à defesa dos direitos que conflituam entre si, justificam que a ela se adira, pelas razões claramente expostas no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2018, processo n.º 12/14.7TBEPS-A.G1-S2, relatora Rosa Tching acima referido:
“[…] a circunstância de o arrendamento não ser um direito real, revestindo-se, antes, de a natureza obrigacional, não é de per si excludente da sua subsunção na previsão do nº 2 do art. 824º do C. Civil e de que o art. 1051º do C. Civil também não coloca nenhuma proposição adverbial excludente de outras causas de caducidade do contrato de locação, sendo que, como se refere o citado Acórdão do STJ de 06.07.2000, «o carácter taxativo nunca é de presumir» e não falta, na doutrina, quem, como Cunha e Sá e Oliveira Ascensão considere a enumeração das causas de caducidade vertidas no citado art. 1051º como meramente exemplificativa.
E se é certo que a hipoteca não impede, nos termos do art. 695º do C. Civil, o poder de disposição dos bens hipotecados por parte do respetivo dono, mediante alienação ou oneração, não menos certo é que, como resulta do disposto nos arts. 686, 695º, 700º e 701º, todos do C. Civil e refere Maria Isabel Menéres Campos, ela não deixa de produzir limitações de vária ordem ao direito de propriedade do hipotecador, a quem fica vedado praticar livremente atos que ponham em causa o valor da coisa hipotecada estando limitado aos atos que caibam nos poderes de administração ordinária.
Por outro lado e vistas as coisas pelo prisma do credor hipotecário, é consabida a repercussão negativa, em termos de valor-preço, que a celebração de um contrato de arrendamento provoca no imóvel.
O valor de um prédio arrendado é, em regra, inferior ao valor de um prédio devoluto.
Por isso, como escreve Maria Isabel Menéres Campos, citando A. Luís Gonçalves e Henrique Mesquita, o contrato de arrendamento «na medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do proprietário devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, deve estar sujeito à extinção por força da venda executiva. O arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a breve prazo é um ónus, não podendo sobrepor-se à hipoteca, porquanto origina a degradação do valor dado em garantia».
Daí afirmar também o Acórdão deste Supremo Tribunal de 31.10. 2006 (processo 06A3241), que «À luz do artº 824º do CC, o contrato de arrendamento é considerado como um verdadeiro ónus em relação ao prédio. Daí que, vendido o prédio em sede executiva, o contrato de arrendamento celebrado depois da constituição de hipoteca e penhora caduque automaticamente».
É que, como salienta o citado Acórdão do STJ de 03.12.1998 (processo nº 98B863), «Apesar de um manifesto intuito de proteger o bem da estabilidade da habitação, não pode entender-se que o legislador houvesse querido deixar sem protecção os direitos dos credores titulares de garantias reais registadas com anterioridade relativamente à celebração da invocada relação locatícia (…) », sustentando, por isso, que « (..) só por esta via interpretativa se obviará a que a oneração de prédio urbano através da celebração posterior de contrato de arrendamento, impossibilite ou pelo menos dificulte o ressarcimento completo do credor com garantia real».
Ou seja, segundo afirma o citado Acórdão do STJ de 27.05.2010 (processo nº 5425/03.7TBSLX.S1), estribado nos ensinamentos de Romano Martinez, Mota Pinto e Dias Marques, impõe-se, por via de uma interpretação teleológica e com base em argumentos de analogia ou semelhança das situações de facto e consequências práticas (que não se confunde com a integração de uma lacuna legal, no sentido técnico-jurídico do art. 10º do C. Civil), designadamente de natureza socioeconómica, entender-se que «a referida norma do art. 824º se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real, quer pessoal, de que a coisa vendida seja objecto e que produzam efeitos em relação a terceiros. É que o arrendamento, dada a sua eficácia em relação a terceiros, deve ser para este efeito, equiparado a um direito real. De outra forma, pôr-se-ia em causa o escopo da lei, de que a venda em execução se faça pelo melhor preço possível».
Dito de outro modo e nas palavras do citado Acórdão 16.09.2014 «não se trata, portanto, de estender, por via analógica, o efeito extintivo previsto no art. 824º, nº 2 a direitos de crédito, naturalmente de eficácia relativa e, nessa medida, inoponíveis a terceiros, mas apenas de considerar aplicável esse efeito a direitos não reais relativamente aos quais, pela sua especificidade» e, no dizer de Ana Carolina S. Sequeira, “ possam proceder as mesmas razões justificativas da extinção”.”
Com efeito, sendo a ratio do art. 824º, n.º 2 do Código Civil a de que os bens vendidos judicialmente devem ser transmitidos livres de quaisquer encargos, a natureza não real do direito de arrendamento, sendo este, como é, um ónus que incide sobre o prédio e que inelutavelmente o crava afectando seja a sua disponibilidade, seja o seu valor, não deve, por si só, afastar a aplicabilidade do mencionado normativo legal.
Pelo contrário, apenas a aplicabilidade do art. 824º, n.º 2 do Código Civil, com a consequente caducidade do contrato de arrendamento celebrado em momento posterior à constituição da hipoteca, garante um equilíbrio válido entre o interesse do proprietário do bem hipotecado, em celebrar o contrato de arrendamento, o do arrendatário, que conhece ou pode conhecer, se para tanto for diligente, através da publicidade registal, que o locado está sujeito à execução, e o do credor hipotecário, que assim não se depara com um bem hipotecado passível de desvalorização em consequência do arrendamento.
Com efeito, se o arrendatário sabia ou podia saber que o prédio locado estava hipotecado e, ciente das consequências daí advenientes, optou por celebrar o negócio, já o mesmo não sucede com o credor hipotecário, que é confrontado com um imóvel arrendado sem a sua intervenção e vontade.
Acresce que os argumentos aduzidos em sentido contrário não impressionam.
Na verdade, apesar das recentes alterações legislativas no regime do arrendamento urbano e ainda que se reconheça um aliviar da sua natureza vinculística face às limitações introduzidas quanto à sua duração, ainda assim continua a constituir, como se disse, desde logo pela sua natureza, um verdadeiro ónus sobre o imóvel que irá condicionar, necessariamente, o seu valor, pois que um arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a breve prazo é um ónus, que não pode prevalecer sobre a hipoteca, porquanto origina a degradação do valor dado em garantia.
Por outro lado, sendo certo que, como se refere, a hipoteca não impede, nos termos do art. 695º do Código Civil, o poder de disposição dos bens hipotecados por parte do respectivo dono, mediante alienação ou oneração, certo é também, como resulta do disposto nos art.ºs 686º, 695º, 700º e 701º, todos do Código Civil que esta produz limitações de vária ordem ao direito de propriedade do hipotecador, a quem fica vedado praticar livremente actos que ponham em causa o valor da coisa hipotecada estando limitado aos actos que caibam nos poderes de administração ordinária – cf. Maria Isabel Menéres Campos, in “Da Hipoteca- Caracterização, Constituição e Efeitos”, págs. 232 e segs. apud acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 1200/17.0T8SNT.L1-2 acima mencionado.
Ademais, como refere, o Prof. Oliveira Ascensão:
“A lei admite que os bens penhorados sejam arrendados, facilitando o tráfego jurídico – mas só o admite porque o arrendamento caduca em caso de venda judicial.
A lei admite que os bens hipotecados sejam arrendados, permitindo que o hipotecador deles tire partido – mas só admite porque o arrendamento caduca em caso de venda judicial. A isso leva a teleologia do preceito, que ficaria frustrada se o arrendamento não ficasse compreendido entre as onerações que se prevêem.
O art. 824º/2 é a chave de volta de todo este sistema. Com a sua referência dos direitos reais quer abranger aquelas mesmas onerações que atingem a posição real adquirida pelo credor hipotecário. […]
Que direitos é que o art. 824º/2 pretende fazer caducar?
Não são os comuns direitos de crédito. É evidente. […] São necessariamente, direitos que seguem a coisa, de maneira a serem oponíveis ao adquirente dos bens. São necessariamente direitos inerentes. Sejam ou não direitos reais, só os direitos inerentes são oponíveis ao adquirente dos bens em processo executivo.
Ora o arrendamento é um direito inerente, e isto sempre abstraindo da sua qualificação como direito real. Pois assim se traduz a sua característica de gravar quem quer que seja o titular do gozo do prédio. Se a lei quer que os bens passem livres dos direitos que os onerem, assegurando assim o valor dos bens em processo executivo, seria incompreensível que deixasse subsistir o arrendamento.” – cf. Locação de Bens dados em Garantia – Natureza Jurídica da Locação, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 45, vol. II, 1985, pp. 364-365
Também não colhe a invocação do estatuído no art. 109º, n.º 2 do CIRE, porquanto tal argumento é facilmente rebatível pela sua apresentação ao inverso, ou seja, se o locatário mantém os direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil, verificada que seja a alienação da coisa locada no processo de insolvência, tais direitos haverão de ser definidos pela aplicação do ordenamento jurídico no seu conjunto e, em concreto, das regras da locação que, como se viu, não afastam a aplicação do art. 824º, n.º 2 do Código Civil.
Acresce que o art. 819º do Código Civil, sob a epígrafe “Disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados” estatui: “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.” Daí que seja relevante para aferir da caducidade do arrendamento a data da sua celebração por referência, seja à data da constituição e registo da hipoteca, seja à data da realização da penhora.
No caso sub judice, sabendo que o contrato de arrendamento terá sido celebrado entre 1 de Maio de 2009 e 16 de Setembro de 2011 (cf. ponto 19. da matéria de facto provada), logo, após o registo da hipoteca descrita em 21., impõe-se reconhecer que o referido arrendamento, por força da venda em processo de insolvência, caducou, nos termos do n.º 2 do art. 824 do Código Civil.
Questão distinta é aferir se, em face das concretas circunstâncias em que tal venda teve lugar, a recorrente estava impedida, de acordo com as regras da boa-fé, de opor-se à validade/subsistência do arrendamento contratado pela ré/recorrida com o anterior proprietário e de invocar a sua caducidade à luz do mencionado art. 824, n.º 2 do Código Civil.
A esse propósito, apesar de ter concluído pela subsistência do contrato de arrendamento, a sentença recorrida discorreu do seguinte modo:
“Mesmo que assim não se entendesse, sempre se diria que os pedidos da autora improcederiam por manifesto abuso de direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil.
Com efeito, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, é necessário saber se a conduta do pretenso abusante foi no sentido de criar, razoavelmente, na parte contrária uma expectativa factual, sólida, que poderia confiar numa dada interpretação de factos (cfr. Acs. do STJ de 01/03/2007 e de 28/10/2008, disponíveis em www.dgsi.pt).
Uma conduta para ser integradora do “venire” terá de, objetivamente, trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em si, uma clara injustiça.
Ou seja, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade, por “factum proprium” dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta pregressa.
Não se busca o “animus nocendi” mas, e como acima se acenou, apenas um comportamento anteriormente assumido que, objectivamente, contrarie aquele.
Para o Prof. Menezes Cordeiro (apud “Da Boa Fé no Direito Civil”, 45) o “venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o “factum proprium” – é, porém, contrariado pelo segundo”.
E o mesmo Professor considera (agora, in, ROA, 58°, 1998, 964) que o “venire contra factum proprium” pressupõe: “1.º Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no “factum proprium”); 2°- Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do “factum proprium” seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis”; 3°- Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do “factum proprium”, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo “venire”) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4°- Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no “factum proprium”) lhe seja de algum modo recondutível.”
In casu, resultou provado que, já no âmbito do processo de insolvência n.º 477/11.9YXLSB, e pelo menos desde 05/09/2011, a autora sabia que a ré ocupava a fracção ora em discussão arrogando-se titular de um direito ao arrendamento (inclusivamente, o referido contrato foi junto àquele processo e dele foi dado conhecimento à autora).
Ora, se é certo que a autora não era obrigada a conhecer, reconhecer e aceitar a existência/oponibilidade do contrato de arrendamento celebrado entre a ré e o filho, também não é menos verdade que, tendo acabado por adquirir o imóvel e constatado, ao dele pretender tomar posse, que a ré o ocupava, deveria ter judicialmente exercido os seus direitos. Ora, ao invés, resultou provado que a autora optou por não interpelar a ré à desocupação da casa (optou o filho da ré, bem sabendo que este, à data da interpelação – 19/05/2019 /fls. 14 - já não detinha qualquer vínculo ao imóvel) e, durante mais de quatro anos, nada fez não obstante saber que a ré procedia ao ininterrupto depósito das rendas, criando assim nesta a legítima confiança e expetativa de ter finalmente reconhecido e aceite o contrato de arrendamento, violando, com a presente acção, os limites da boa fé, usos e costumes.”
Não obstante a acertada apreciação do regime jurídico do abuso de direito, não se pode acompanhar a sentença quando concluiu que a recorrente actuou de modo a criar uma confiança legítima na recorrida de que aquela reconheceria e aceitaria a vigência do contrato de arrendamento, vindo agora, em sentido contrário, suscitar a sua caducidade.
Com efeito, afigura-se inócuo para tais efeitos que a recorrente tenha tomado conhecimento no âmbito do processo de insolvência da existência do contrato de arrendamento e ainda assim o tenha adquirido. A simples aquisição do prédio hipotecado, posteriormente onerado com o arrendamento, não implica qualquer aceitação deste pela singela razão de que o credor hipotecário adquirente sabe ou prevê que tal arrendamento caducará precisamente por força da transmissão ocorrida em sede executiva ou de processo de insolvência.
Por outro lado, a circunstância de a recorrente não ter interpelado directamente a arrendatária para efectuar a entrega do imóvel justifica-se, também ela, pela caducidade decorrente da transmissão. Com efeito, se o arrendamento caduca, conforme se viu, pela transmissão do bem no processo de insolvência, a ocupante do prédio deixa de ter tal qualidade, pelo que se justifica que a interpelação para a entrega do imóvel seja dirigida ao transmitente forçado.
De todo o modo, a ausência de interpelação directa à recorrida relevará eventualmente para efeitos da determinação do dies a quo da obrigação de indemnização pela ocupação ilícita, mas dela não poderá resultar para a recorrida, ao menos no caso em apreço, uma qualquer confiança legítima de que a recorrente não iria exigir a entrega do prédio ou iria reconhecer o contrato de arrendamento, tanto mais que, como resultou demonstrado (cf. ponto 16.), a ré/recorrida teve conhecimento da carta de interpelação dirigida ao seu filho em Maio de 2014, pelo que não poderia estar convencida, como afirma, que a recorrente reconheceria um qualquer seu direito ao arrendamento.
E a circunstância de terem decorrido quatro anos entre a interpelação dirigida ao filho da recorrida e a interposição da presente acção não releva, por si só, para criar a convicção na recorrida de que a recorrente, a final, teria acabado por aceitar o contrato de arrendamento.
Aliás, se assim fosse, não se percebe por que continuou a recorrida a efectuar o depósito das rendas na Caixa Geral de Depósitos, em consignação em depósito, com a menção “senhorio recusou receber a renda”.
Por outro lado, não é pela mera circunstância de a recorrente coincidir, precisamente, com a entidade onde o depósito, em sede de consignação em depósito, deve ser realizado (cf. art. 916º, n.º 2 do CPC), que autoriza a concluir que aquela recebeu e aceitou as rendas na qualidade de senhoria, o que apenas poderia admitir-se se a recorrente tivesse procedido ao levantamento dessas quantias e delas se tivesse apropriado, o que, notoriamente, não emerge dos factos apurados nos autos.
Além disso, o conhecimento de que alguém habita o prédio e, mais do que isso, procede ao depósito de rendas, não equivale, por si só, ao reconhecimento da existência de um arrendamento e à aceitação do ocupante como arrendatário – cf. em sentido similar, cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-12-2016, processo n.º 370/14.3T8LSB.L1.S1 acessível em www.colectaneadejurisprudencia.com.
Apesar de terem decorrido quatro anos entre a data da aquisição do prédio e a interpelação (judicial) da ocupante para a entrega do imóvel, na falta de demonstração de que a recorrente tenha tomado perante a recorrida qualquer atitude ou assumido qualquer comportamento que, objectivamente, pudesse ser configurado como uma aceitação da ocupação ou reconhecimento da sua qualidade de arrendatária, não basta para objectivamente justificar o alegado convencimento da recorrida de que a adquirente do prédio teria aceitado a subsistência do contrato de arrendamento.
Note-se que de acordo com o art. 334º do Código Civil, agir de boa-fé significa agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte e ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança e expectativa dos outros.
Os bons costumes correspondem à moral social e “traduzem um conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico acolhidas, pelo Direito, em cada momento histórico. Não estando embora codificadas, tais regras provocam consenso em concreto, pelo menos em casos-limites.” – cf. A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2000, pág. 243.
O fim social ou económico do direito corresponde ao interesse ou interesses que o legislador visou proteger através do reconhecimento do direito em causa. Tem a ver com a sua configuração real a apurar através da interpretação.
A paralisação do exercício abusivo do direito não visa suprimir ou extinguir o direito, mas apenas impedir que, em certas circunstâncias concretas, esse direito não seja exercido de forma a ofender gravemente o sentimento de justiça dominante na sociedade.
O abuso de direito está construído sobre limites indeterminados à actuação jurídica individual que advêm de conceitos como os de função, bons costumes e de boa-fé. Tais conceitos carecem de concretização para que sejam passíveis de aplicação em concreto.
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
A aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os respectivos pressupostos.
É puramente objectivo, logo, não depende de culpa do agente; todavia, implicará sempre uma ponderação global da situação em presença em que a intenção das partes pode relevar para a sua concretização – cf. António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, 3ª edição aumentada e actualizada à luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 136.
No que à tipologia venire contra factum proprium diz respeito, a confiança será pois um critério para a sua proibição. “A concretização da confiança prevê: a actuação de um facto gerador de confiança em termos que concitem interesse por parte da ordem jurídica; a adesão do confiante a esse facto; o assentar, por parte dele, de aspectos importantes da sua actividade posterior sobre a confiança gerada – um determinado investimento de confiança – de tal forma que a supressão do facto provoque uma iniquidade sem remédio”. O factum proprium daria o critério de imputação da confiança gerada e das suas consequências – cf. A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra 1997, págs. 745 a 747.
Ora, como se referiu, o decurso do prazo de quatro anos entre a data da aquisição e a da interposição da presente acção não pode ser tido como bastante para o alegado investimento de confiança que a recorrida afirma ter efectuado quanto à situação de estabilização do contrato de arrendamento, porquanto teve conhecimento da intenção da recorrente de obter a entrega do imóvel e, mais do que isso, tendo solicitado informação junto da Caixa Geral de Depósitos sobre o modo e local para o pagamento da renda, não obteve qualquer resposta (cf. pontos 17. e 18.) e continuou a proceder à consignação em depósito das rendas, reconhecendo que o alegado senhorio as recusava receber.
E se não se identifica nos factos apurados uma situação de venire contra factum proprium, aqueles também não concitam a aplicação da figura da supressio.
Quanto à figura da supressio atente-se no que a este respeito se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, desta secção, de 8-10-2019, relator Luís Filipe Sousa, processo n.º 32016/16.0T8LSB.L1-7:
“Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2012, pp. 239-240, afirma que a suppressio é um subtipo do venire contra factum proprium, traduzindo «o comportamento contraditório do titular do direito que o vem exercer depois de uma prolongada abstenção. A abstenção prolongada no exercício de um direito, pode, em certas circunstâncias, suscitar uma expetativa legítima e razoável de que o seu titular o não irá exercer ou que haja renunciado ao próprio direito, ao exercício de algum dos poderes que o integram, ou a certo modo do seu exercício. Esta expectativa é atendível quando a sua criação seja imputável ao titular do direito e resulte de uma situação de confiança que seja justificada e razoável.»
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V Vol., 2011, p. 237, afirma que o papel indireto da supressio é o de complementar a área tradicional da prescrição e da caducidade, aperfeiçoando-a e diferenciando-a. Analisando este instituto, afirma o mesmo autor:
«O quantum de tempo necessário para concretizar a suppressio varia. Podemos, todavia, marcar balizas: será inferior ao da prescrição, ou a suppressio perderá utilidade; além disso, equivalerá àquele período decorrido o qual, segundo o sentir comum prudentemente interpretado pelo juiz, já não será de esperar o exercício do direito atingido.
Os indícios objetivos que complementam o decurso do prazo relacionam-se com a posição do titular atingido: este não deve surgir como impedido patentemente de atuar mas, antes, como pessoa consciente que, podendo fazê-lo, não aja.
A suppressio é apresentada como um instituto totalmente objetivo; não requer qualquer culpa do titular atingido, mas apenas o facto da sua inação. Considera-se a suppressio prejudicada pelos fatores voluntários que, nos termos da lei, interrompam ou suspendam a prescrição ou a caducidade: tais factos vêm destruir, por definição, a ideia de que o direito não mais será exercido.
Finalmente: a suppressio é entendida como um remédio subsidiário: acode a situações extraordinárias, que não encontrem saída perante os remédios normais [p. 322]. (…)
Por fim, a suppressio, justamente por não dispor da precisão facultada pelo factum proprium, vai requerer circunstâncias colaterais que melhor alicercem a confiança do beneficiário.
Em suma, teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário, com as proposições seguintes:
-Um não-exercício prolongado;
-Uma situação de confiança;
-Uma justificação para essa confiança;
- Um investimento de confiança;
-A imputação da confiança ao não-exercente.
O não exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de, mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inação. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objetiva [pp. 323-324].»
A jurisprudência tem afirmado que, para sedimentar a confiança é necessário o decurso de um prazo de, por exemplo, de sete anos (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.1.2008, Ezaguy Martins, 10615/2007) ou de dez anos (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.12.2014, Gouveia Barros, 414/12).”
A factualidade apurada, cingida apenas ao decurso de um prazo de quatro anos entre a data da aquisição da fracção e a da interposição da acção, não permite convocar a supressio para afastar o direito da autora/recorrente por, como se disse, a ré/recorrida ter tido conhecimento da intenção da apelante obter a entrega do imóvel. Aliás, precisamente por essa razão tentou indagar junto desta como procederia ao pagamento das rendas, ao que não obteve resposta, omissão que não poderia deixar de ser entendida como uma falta de intenção de auferir as rendas e, consequentemente, de reconhecer o direito ao arrendamento.
Além disso, a própria apelada não tomou qualquer atitude para resolver uma situação que notoriamente não estava estabilizada, quando continuou a depositar as rendas na Caixa Geral de Depósitos, S. A. motivando-a com a recusa do senhorio em recebê-las.
Apesar de a autora não ter interpelado extrajudicialmente a ré para efectuar a entrega da fracção, certo é que manifestou essa sua intenção e a ocupante dela tomou conhecimento, pelo que não se pode sustentar validamente que o lapso de tempo decorrido, associado a uma não recepção de rendas, permitisse à ré/apelada convencer-se que aquele não iria reclamar a restituição do bem.
Decorre do acima referido que o fim económico do direito corresponde ao interesse ou interesses que o legislador visou proteger através do reconhecimento do direito em causa e que os seus limites têm de ser excedidos de modo manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, relativamente ao fim social ou económico do direito, “deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei. Há direitos acentuadamente subordinados a determinado fim (como sucede no poder paternal, no poder tutelar, etc.), a par de outros em que se reconhece maior liberdade de actuação ou decisão ao titular (direitos potestativos, direito de propriedade, dentro de certos limites, etc.) – cf. Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição Revista e Actualizada, pág. 299.
Seja como for, o exercício do direito só será abusivo quando o excesso cometido é manifesto, ou seja, o direito é exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, de tal modo que a aplicação do preceito de lei conduziria, no caso concreto, a uma situação intoleravelmente ofensiva do sentido ético-jurídico da comunidade.
Não é isso que se afere no caso concreto, reiterando-se aqui o já acima referido quanto a não poder a ré tomar por seguro que o adquirente da fracção não a reclamaria e menos ainda que reconhecera o direito de arrendamento, dado que a este nunca deu o seu beneplácito e a mera dilação na interposição da acção, por si só, não o permite configurar.
Por conseguinte, não ocorre abuso de direito em qualquer das suas modalidades, nem se mostra violado o fim social/económico do direito (reconhecimento do direito de propriedade e restituição do bem), não podendo, assim, o contrato de arrendamento dos autos ser considerado como subsistente após a realização da venda.
Resta, pois, apreciar o pedido de indemnização formulado pela autora/recorrente.
A autora alegou que se o imóvel lhe tivesse sido entregue pela ré, na data da aquisição, poderia ter sido colocado no mercado de arrendamento, através de empresas do Grupo Caixa, pelo que poderia ter auferido, desde Maio de 2014 a Março de 2018, rendas mensais que teriam variado entre € 797,52 e € 803,11, num total de € 37 589,99, sendo este o prejuízo que lhe foi causado pela ré por ocupar ilicitamente a fracção em referência.
Estes factos, sobremaneira no que concerne ao valor mensal que o arrendamento do prédio poderia atingir, não resultaram provados – cf. alínea e) dos factos não provados.
Nos termos do disposto no art. 1305º do Código Civil, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
O direito de disposição do proprietário compreende, além do mais, por norma, a faculdade de praticar actos jurídicos de alienação ou de fruição das coisas que lhe pertencem, onde se inclui, no caso de imóveis, o direito de as arrendar.
A violação do direito de propriedade é, assim, susceptível de derivar da privação do uso ou fruição da coisa, designadamente por via da disposição indevida dela.
A obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil depende da violação ilícita, com dolo ou mera culpa, do direito de outrem e de tal violação resultar, em termos de causalidade adequada, um dano ou prejuízo reparável – cf. artigos 483º, n.º 1, 562º e 563º do Código Civil.
É sabido que a doutrina e a jurisprudência têm apreciado e debatido a questão de saber se a mera privação de uso de um bem, sem que se apurem prejuízos concretos, é suficiente para configurar uma obrigação de indemnizar nos quadros da responsabilidade civil extracontratual.
O acórdão proferido por esta Relação e secção em 19-11-2019, no processo n.º 10759/17.0T8LSB.L1, em que foi relator o Exmo. Sr. Desembargador Diogo Ravara e a ora relatora segunda adjunta, expôs a aludida divergência nos seguintes termos:
“A esta questão responderam afirmativamente JÚLIO GOMES, ABRANTES GERALDES, MENEZES LEITÃO, e PAULO MOTA PINTO.
Tal entendimento mereceu especial acolhimento na jurisprudência em situações das quais resultava a privação do uso de veículo automóvel, na medida em que neste domínio se afigurava particularmente simples concluir que o bem em causa estava destinado a determinada utilidade, que tem evidente valor económico, e que por força de conduta imputável a terceiro tenha ficado indisponível.
Neste sentido se pronunciou o ac. STJ 05-07-2018 (Abrantes Geraldes), proc. 176/13.7T2AVR.P1.S1, o qual, aludindo a jurisprudência anterior que havia respondido negativamente à questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso, expôs o que segue:
“Quanto à ressarcibilidade do dano da privação do uso dir-se-á, em primeiro lugar, que a jurisprudência que a recorrente cita em sentido contrário (de 2008) à que foi adotada pelas instâncias foi larga e consistentemente ultrapassada por jurisprudência posterior, designadamente da emanada deste Supremo, que passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações, como a dos autos, em que o veículo é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo sinistrado foi causa de despesas acrescidas.
Outra tese ainda mais benévola para o lesado é defensável e encontra também na jurisprudência bastas adesões no sentido de fazer corresponder à privação do uso uma indemnização autónoma, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação.
Essa é a tese que o ora relator defendeu na monografia citada pela recorrente (Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso), a qual é compartilhada por diversos autores também citados pela recorrente e com adesão de um largo setor da jurisprudência.”
Sobre a mesma matéria cfr. ainda os acs. RC de 10-09-2013 (Maria José Guerra), proc. 438/11.8TBTND.C1; STJ 09-07-2015 (Fernanda Isabel Pereira), p. 13804/12.2T2SNT.L1.S1; STJ 13-07-2017 (Maria da Graça Trigo), p. 188/14.3T8PBL.C1.S1.
A questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso foi igualmente equacionada em situações de apropriação ilegítima de imóveis por terceiros, muitas vezes no contexto de ações de reivindicação, ou de restituição da posse.
Também neste âmbito, pelo menos uma parte da jurisprudência vem admitindo que o proprietário de imóvel indevidamente ocupado por terceiro tem direito a ser indemnizado pela privação do uso e fruição do mesmo que decorre da referida ocupação ilícita, e que o valor locativo do imóvel ocupado constitui uma boa referência para esse cálculo. Neste sentido cfr., entre outros, os acs. STJ 28-05-2009 (Oliveira Rocha), p. 160/09.5YFLSB; RL 06-01-2009 (Maria do Rosário Morgado), p. 652/05.5TBSSB.L1-7; RG 06-11-2012 (António Figueiredo de Almeida), p. 326/08.5TBPVL.G1; RE 11-07-2013 (Mata Ribeiro), p. 2830/11.9TBLLE.E1; RL 16-04-2015 (Mª Teresa Pardal), p. 4548-09.3TBALM.L1-6.
Analisando situações com contornos distintos, mas aí identificando igualmente a verificação de um dano de privação de uso se pronunciou o ac. STJ 12-07-2018 (Acácio das Neves), p. 2875/10.TBPVZ.P1.S1. Este aresto versou sobre um caso em que por factos imputáveis aos réus, os autores ficaram impedidos de utilizar uma fração autónoma de que são proprietários. O Supremo considerou verificar-se dano de privação de uso, mas quantificou a indemnização correspondente por referência à equidade.
Porém, outra corrente jurisprudencial que a mera privação do uso não configura um dano indemnizável, sendo necessária a alegação e prova de um dano efetivo – vd. acs. STJ 03-10-2013 (Orlando Afonso), p. 9074/09.8T2SNT.L1.S1; STJ 14-07-2016 (Lopes do Rego), p. 3102/12.7TBVCT.G1.S1, e STJ 12-07-2018 (Acácio das Neves), p. 2875/10.6TBPVZ.P1.S1.”
Para além destas posições, pode ainda configurar-se uma via intermédia de acordo com a qual a simples privação do uso do bem não basta para justificar a indemnização mas também o essencial é que se prove a frustração de um propósito real e concreto de proceder à sua utilização, não se exigindo a prova de danos efectivos – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27-06-2019, Ana Cristina Duarte, processo n.º 165/17.2T8VPA.G1.
Em sentido similar parece orientar-se Paulo Mota Pinto, in Dano da Privação do Uso, pp. 226-239[4] quando refere:
“Cremos que há que distinguir, por assumirem diversa relevância para efeitos de regime, entre a faculdade abstracta de utilização da coisa, os direitos de utilização resultantes, por exemplo, de um contrato destinado a proporcionar tal gozo, e as concretas e determinadas vantagens retiradas do gozo da coisa. A primeira, como possibilidade abstracta (embora referida a uma coisa determinada), é logo inerente ao licere que constitui o “lado interno” dos direitos de domínio e não tem uma estrita vinculação temporal, na medida em que o direito de usar e fruir uma coisa (não deteriorada) pode ser exercido num momento posterior. Confere ao proprietário um “espaço de liberdade”, dependente na sua atualização da possibilidade e opção de uso. Os direitos de gozo fundamentam-se num título (normalmente um contrato) que molda decisivamente o seu âmbito e visa justamente proporcionar uma possibilidade de gozo, e por um período de tempo limitado, distinguindo-se daquela faculdade de utilização do proprietário (como é patente, além do mais, quando está em causa a privação do uso, não pelo proprietário, mas, justamente por um titular de um direito de gozo limitado no tempo). Diversamente, as concretas vantagens do gozo da coisa não se situam no plano do mero licere inerente à propriedade — como faculdade deôntica —, mas situam-se também no plano fáctico. Como concretizações dependentes de elementos subjetivos e contextuais, as vantagens concretas do gozo autonomizam-se, quer do direito pessoal de gozo, por exemplo, de um locatário, quer daquele ius utendi et fruendi do proprietário em que se traduz a faculdade de utilização […]
Pensamos, pois, que a privação dessas concretas vantagens, e não logo a perturbação da faculdade de utilização que integra o direito de propriedade, é que importará já um dano, autonomizável da ilicitude por afectação da abstracta possibilidade de uso — um dano, portanto, bem mais próximo da ideia de vantagens que teriam podido ser fruídas depois do evento lesivo, e, assim, de vantagens ou de um “lucro” (em sentido amplo) cessante, do que de uma perda ou dano emergente em posições atualizadas do lesado […]
[….] a concessão de uma indemnização pela mera privação do uso, independentemente da prova de outros prejuízos patrimoniais, corresponde à posição dominante na generalidade dos países europeus, mas tal não significa que baste a faculdade abstracta de utilização, ignorando-se a concreta vontade ou possibilidade de utilização da coisa, por si próprio ou por interposta pessoa. É neste sentido, também, que deve (tentar) entender-se a posição da jurisprudência alemã, a qual pode ser resumida na máxima “a privação da possibilidade de uso é apenas uma fonte possível de dano, mas não já em si mesma um dano”. Só esta posição […] corresponde, senão à correta análise do “conteúdo de atribuição” do direito de propriedade pelo menos à distinção, imposta pela sua diversa relevância jurídica, entre a possibilidade de uso integradora do direito de propriedade, os direitos limitados de gozo e as concretas vantagens fácticas de uso. E é tal conclusão que resulta da separação entre a ilicitude e o dano requerida pela exigência também deste último requisito para a indemnização por factos ilícitos, como, ainda, do postulado da proibição de enriquecimento do lesado devido ao evento lesivo, que resultaria da atribuição de uma indemnização superior aos prejuízos reais. Se, por exemplo, se provar que, durante a semana de reparação, o automóvel lesado estaria estacionado, por o seu proprietário estar ausente em férias, ou por estar internado, caso não fosse de atender a esta vontade e possibilidade de utilização hipotética (por si mesmo ou por outra pessoa, e devendo presumir-se para bens de uso corrente), é claro que o titular que vê ressarcida a perda de uma mera possibilidade que nunca utilizaria ficaria indevidamente beneficiado, em relação à situação que existiria se não se tivesse verificado o evento lesivo. E, evidentemente, tal conclusão deve também ter os seus reflexos na determinação do quantum da indemnização devida — que não deve ser nivelada aos custos de aluguer, embora estes possam ser um ponto de partida para a sua fixação — e, mesmo no afastamento da obrigação de indemnizar se nenhum prejuízo se registou […]
O dano da privação do gozo ressarcível é, assim, a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem — a qual (mesmo que resultante de uma ofensa direta ao objecto, e não apenas de uma lesão no sujeito) pode não ser concretizável numa determinada situação.”
Não obstante se tenda a aceitar que a privação do uso de um bem constitui um dano patrimonial indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade, pois ao seu proprietário é lícito gozar o bem, usando e fruindo da coisa, podendo optar livremente entre utilizá-lo ou não (conforme se sustentou no acórdão relatado pela ora relatora proferido em 29-09-2020, no processo n.º 1457/20.9YRLSB), não se pode deixar de relevar, como também aí se consignou, que para a atribuição da indemnização pela privação do uso é suficiente a demonstração de que o seu proprietário usaria normalmente o bem, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos.
Mas se assim é, deve aceitar-se que, como defende Paulo Mota Pinto, a existência de dano indemnizável, enquanto realidade distinta da ilicitude da própria ocupação, depende da verificação de uma concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, que não a simples perda da possibilidade de utilização do bem.
Neste caso, a autora/apelante alegou a impossibilidade de colocar a fracção autónoma no mercado, designadamente, do arrendamento, face à ocupação ilícita verificada e a consequente perda de rendas mensais que lhe seriam devidas durante todo esse período, mas não logrou demonstrar que fosse essa ou qualquer outra a sua intenção, sendo certo que, não obstante a alusão superficial que produziu no artigo 36º da motivação do seu recurso, não impugnou a matéria de facto aferida nos autos.
Por essa razão, não estando demonstrado que a privação da possibilidade de uso (decorrente do acto de ocupação ilícita praticado pela recorrida) se transmutou, de algum modo, numa concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não podendo presumir-se tal desvantagem apenas com base numa possível conjectura do destino que seria dado pela adquirente à fracção, nesta parte a acção tem de improceder, não havendo lugar à atribuição de indemnização pela privação do uso.
Em face do expendido, procede parcialmente a apelação, impondo-se a alteração da decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que, para além do reconhecimento do direito de propriedade da apelante sobre a fracção acima identificada, reconheça a caducidade do contrato de arrendamento e determine a restituição do imóvel à adquirente.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O recurso interposto pela autora procede parcialmente, tendo resultado vencida apenas na questão da indemnização que peticionava, pelo que as custas (na vertente de custas de parte), devem ficar a cargo da autora/apelante e da ré/apelada, na proporção do respectivo decaimento, aferível em função do valor da parte do pedido em que claudicou.
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar parcialmente procedente a apelação e revogar, em parte, a decisão recorrida, e, consequentemente:
a. declarar que a A. detém o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar do prédio sito na Rua Abade Faria, Nº ...  Areeiro em Lisboa, freguesia de Penha de França, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número 0000/20030925;
b. condenar a ré/apelada B a entregar à autora/apelante a fracção autónoma identificada em a., livre e devoluta de pessoas e bens;
c. manter, no mais, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo da autora/apelante e da ré/apelada, na proporção do respectivo decaimento.
*
Lisboa, 10 de Novembro de 2020[5]
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro
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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Adiante designado pelo acrónimo CIRE.
[3] Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem encontram-se acessíveis na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.
[4] Responsabilidade Civil Cinquenta Anos em Portugal, Quinze Anos no Brasil, Coordenadores Mafalda Miranda Barbosa Francisco Muniz, VOLUME II, Abril 2018, acessível em https://www.uc.pt/fduc/ij/publicacoes/pdfs/coloquios/RC_Vol2.pdf.
[5] Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.