Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
188/14.3T8PBL.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO FACULTATIVO
PERDA DE VEÍCULO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
JUROS DE MORA
CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / RAMO AUTOMÓVEL.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÓES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, 2009, 545.
- Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra Editora, 2011, 324.
- Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, 58.
- Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 1990, 452, nota 2.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 566.º, N.ºS 2 E 3, 806.º, N.º 3.
REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO, APROVADO PELO DECRETO-LEI Nº 72/2008, DE 16 DE ABRIL: - ARTIGO 130.º, N.º 3.
Sumário :
I - O problema da privação do uso de veículo tanto se pode colocar na responsabilidade contratual como na responsabilidade extracontratual; a solução, contudo, pode não ser coincidente quanto a questões como a existência do direito, a prova dos danos ou a fixação da indemnização.

II - Perante um contrato de seguro do ramo automóvel, na modalidade de danos próprios/seguro facultativo, situando-se as questões suscitadas no domínio da responsabilidade contratual, é essencial determinar se as pretensões do tomador de seguro correspondem ou não a obrigações assumidas pela seguradora, e, em caso afirmativo, qual o seu conteúdo.

III - Num caso de responsabilidade contratual como o dos autos, a indemnização pelo não pagamento da quantia correspondente à perda total reconduz-se tão só ao pagamento de juros moratórios sem que haja lugar ao pagamento de uma indemnização suplementar por danos superiores ao montante dos juros, uma vez que a previsão do nº 3, do art. 806º, do CC, é aplicável apenas à responsabilidade civil extracontratual.

V - Do trânsito em julgado a condenação da ré seguradora a indemnizar o autor pela perda total do veículo com juros à taxa de 4% desde a data da citação, de acordo com o regime legal aplicável ao incumprimento da obrigação de compensar o autor pela perda total do veículo sinistrado, não deriva a obrigação de o ressarcir também pela privação de uso do mesmo veículo.

VI - No entanto, resultando provado que a ré seguradora se obrigou contratualmente a, em caso de sinistro que inviabilize a utilização do veículo seguro, entregar um veículo de substituição ao autor, o efeito prático-jurídico do pedido de compensação pela privação de uso de veículo é compatível com o entendimento de que a privação resulta do incumprimento desta obrigação contratual, prevista tanto para a hipótese de reparação do veículo automóvel como de perda total.

VII - A regra geral do art. 566º, nº 2, do Código Civil – teoria da diferença – não pode ser aplicável ao dano de privação de uso, na medida em que a comparação entre a situação patrimonial real e a situação patrimonial hipotética do lesado, na data mais recente que puder ser atendida se adequa a privações definitivas e não a privações limitadas no tempo.

VIII - Para efeitos de cálculo da indemnização, com recurso à equidade, não pode considerar-se excessivo o valor diário de € 30,00 fixado pela Relação quando corresponde exactamente ao valor previsto no contrato de seguro dos autos para a hipótese de ser impossível à seguradora facultar um veículo de substituição.

IX - Compreendendo-se o período de privação do uso do veículo entre 04-01-2013 e a data da entrega efectiva da indemnização pela perda total do veículo (que se desconhece se já ocorreu), uma vez que o valor acumulado da indemnização pela privação de uso ascenderá presentemente a um nível extremamente elevado e desproporcionado, tanto em relação ao valor devido pela perda total do veículo sinistrado, como em relação ao preço de um veículo novo nos últimos anos em que foi o mesmo foi produzido, deve o valor da indemnização a atribuir ter como limite máximo este último valor.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB - Companhia de Seguros Reais, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe: a quantia de € 20.587,00, deduzida da franquia contratual (€ 332,43), referente ao valor do veículo do A. e equipamento seguro; a quantia a apurar em sede de liquidação relativa ao dano da privação do uso do veículo, tendo por referência o custo de aluguer de veículo idêntico ao sinistrado, em montante não inferior a € 50,00/dia, desde 14/01/2013, até efectivo pagamento do valor da viatura; juros vencidos sobre estas quantias desde a citação.

Alega, para tanto, e em síntese, que celebrou com a R., em 12/11/2010, um contrato de seguro pelo qual esta se obrigou a pagar-lhe todos os danos que viessem a produzir-se no seu veículo ...-AT-... em consequência da respectiva circulação, incluindo quer a viatura, cujo valor foi então fixado em € 18.078,00, quer o equipamento extra, ao qual foi atribuído o valor de € 3.887,00; por causas ignoradas, quando no dia 14/12/2012 era conduzido pelo A., o referido veículo despistou-se, indo embater numa árvore existente junto da berma da estrada por onde transitava, sofrendo avultados danos; em 01/03/2013 foi a respectiva reparação orçada em € 16.822,45; tal reparação era desaconselhável, havendo lugar à perda total, uma vez que, tendo em conta a desvalorização entretanto verificada, o valor venal do veículo passou a ser de apenas € 16.700,00; recusou-se a R., no entanto, a satisfazer esta indemnização, deixando o A. privado da utilização da viatura desde a data do acidente, pois que, desde então, não pode transportar-se a si e aos seus familiares – como até então fazia – por não ter condições financeiras para alugar ou adquirir outro veículo.

Contestou a R., impugnando tanto o montante da reparação como o valor a indemnizar pela perda total, a qual, por virtude de dedução de € 2.255,00 a título de salvados, defendeu ser apenas de € 13.881,58; não obstante, negou que a reparação não fosse viável, pelo que deu ordem para que a mesma fosse efectuada; alegou não haver lugar a indemnização pela privação do uso porquanto se trata de danos próprios e que, se assim não se entender, o prejuízo do A. decorre apenas da mora e é já compensado pelos juros desde a data da constituição em mora.

Por sentença de fls. 183 foi a acção julgada parcialmente procedente e a R. condenada a pagar ao A. a quantia de € 14.478,74, correspondente ao valor da indemnização devida a título de perda total da viatura sinistrada, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa anual de 4%, desde a citação até efectivo pagamento. Do mais peticionado foi a R. absolvida.

Inconformado, o A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de …, pedindo a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto e impugnando a decisão de direito, concluindo pelo direito a ser indemnizado pelo dano de privação do uso do veículo, desde 04/01/2013 (data da realização da peritagem).

Por acórdão de fls. 265 foi mantida a decisão relativa à matéria de facto e decidido, a final, o seguinte:

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam a sentença recorrida no segmento em que absolveu a Ré do pedido de condenação no pagamento das quantias correspondentes à privação do uso do veículo, condenando também a Ré a pagar ao A., a esse título, a verba diária de € 30 desde 04/01/2013 até à data em que se tiver verificado a efectiva entrega ao A. da indemnização em que aquela está condenada.

Em tudo o mais vai mantida a sentença recorrida.


2. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - As presentes Alegações de Recurso visam impugnar a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” que, na procedência da apelação, revogou a sentença recorrida no segmento em que absolveu a Ré do pedido de condenação no pagamento das quantias correspondentes à privação do uso do veículo, condenando também a Ré a pagar ao A., a esse título, a verba diária de € 30 desde 04/01/2013 até à data em que se tiver verificado a efetiva entrega ao A. da indemnização em que aquela está condenada.

2.ª – Atenta a matéria de facto apurada nos presentes autos, o contrato de seguro em causa tem natureza facultativa, assim subordinado ao princípio da liberdade contratual das partes, as quais poderão no mesmo fazer incluir ou não incluir as cláusulas que lhes aprouver; sendo que os termos da cobertura contratada não englobam a indemnização pela privação do uso do veículo com a amplitude e nos termos pretendidos pelo autor, como bem julgou o Tribunal de 1.ª Instância.

3.ª - No caso em apreciação, a ré não procedeu à entrega ao autor da quantia devida e acordada, correspondente ao valor da indemnização associada à situação de perda total que, como se apurou, se verificava. Sem dúvida que, conforme foi apreciado, incorreu em violação dos deveres contratuais.

4.ª - E esse facto voluntário, ilícito e culposo determinou que o autor se visse desapossado da quantia pecuniária a que tinha direito e, assim, impedido de adquirir outro veículo em substituição do acidentado.

5.ª - Mas estes factos, assim considerados, consubstanciarão um dano de privação do uso do veículo?

6.ª - Julgamos que não, já que a obrigação que a ré não cumpriu ilicitamente se traduziu, apenas, na omissão de entrega da quantia que lhe competia entregar por força do contrato de seguro celebrado, quantia correspondente ao valor da viatura calculado na perspectiva de uma situação de “perda total”.

7.ª - O prejuízo do autor deve qualificar-se, apenas, como dano consubstanciado na omissão do cumprimento dessa obrigação pecuniária.

8.ª - Inexiste um nexo de causalidade adequada – nos termos previamente caracterizados - entre a conduta ilícita da ré e a impossibilidade de o autor usufruir (através de compra ou aluguer) de outro veículo em substituição do acidentado.

9.ª - Na obrigação pecuniária a indemnização consiste, apenas, nos juros a contar do dia da constituição em mora – cfr. artigo 806º/1 do Código Civil.

10.ª - A mora da ré verifica-se desde o dia em que tomou conhecimento da pretensão do autor, 28/01/2013, ou seja, desde a data a partir da qual deveria ter procedido à entrega do valor acima fixado, tanto mais que o autor deu conta à ré da sua pretensão com informação sobre o valor alcançado com a primeira peritagem realizada, que cifrou o custo da reparação dos estragos do veículo em € 11.348,77, quantia que, por si só, demandava necessariamente a qualificação da situação do veículo como “perda total”.

11.ª - O A. não contratou com a R. a cobertura de indemnização pela privação do uso de veículo.

12.ª - Trata-se de uma cobertura facultativa, porque excluída do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel regulado pelo D.L. n.º 291/2007, de 21/8 visando este garantir, até certo montante, o pagamento de indemnização a terceiros por danos causados por veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal (nº 1 do artº 4º do DL 291/2007).

13.ª - As coberturas facultativas contratadas, de acordo com as Condições da Apólice, são as seguintes e encontram-se expressas nos factos provados:

8. Consta da cláusula 38º, c) da Parte II das condições gerais do contrato que perda total é “o desaparecimento do veículo seguro ou destruição do mesmo quando se verifique uma das seguintes situações: i) a reparação seja possível, mas o seu custo exceda a diferença entre o valor venal do veículo seguro (determinado pela aplicação da referida Tabela de Desvalorização) e o valor do mesmo após o acidente; ii) a reparação não seja materialmente possível ou tecnicamente aconselhável, de modo a cumprir com os requisitos de segurança”.

9. A cobertura por sinistro danos ao veículo e a cobertura veículo de substituição por avaria ou acidente foram estipuladas de acordo com as seguintes cláusulas de cobertura: “veículo de substituição por sinistro danos ao veículo – este contrato garante, em caso de acidente com danos ao veículo em Portugal, por um período máximo de 30 dias/ano, um veículo de substituição até 1.200 cc”; “veículo de substituição por avaria ou acidente – este contrato garante, em caso de avaria ou acidente em Portugal, por um período máximo de 5 dias por anuidade (avaria) e de 5 dias por anuidade (acidente) um veículo de substituição de classe equivalente à do veículo seguro (gasolina até 2.000 cc diesel até 1.900 cc)”; incluindo, ademais, a cobertura por choque, colisão ou capotamento, sempre na perspectiva dos danos causados ao veículo; furto ou roubo; e incêndio, raio ou explosão.

14.ª - Mas o que vem peticionado nos presentes autos é um dano de privação, não contratado na apólice.

15.ª - As despesas que o Autor suportou e continua a suportar em virtude da privação forçada do uso do veículo seguro, não estão, pois, abrangidas pelo contrato de seguro facultativo celebrado entre as partes.

16.ª - A indemnização de tal dano só era devida se contratada tal cobertura, e sempre seriam clausulados, nesse âmbito, o capital diário seguro e o período de indemnização.

17.ª - Face aos termos do contrato de seguro celebrado entre o Autor e a Ré, o ressarcimento dos danos está, pois, limitado ao valor do veículo seguro. “Assim acontece, de uma maneira geral, no tocante aos seguros de coisas, em que ficam excluídos da garantia os chamados “danos indirectos” derivados da privação do gozo ou uso do bem, em que a indemnização devida pelo segurador ao segurado não poderá exceder o valor da coisa segura ao tempo do sinistro. A indemnização devida pela seguradora é, assim, rigorosamente calculada em razão do valor do objecto ao tempo do sinistro, e não permitindo que o seguro exceda o valor do objecto.

18.ª - Diferentemente, se estivéssemos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, o dano da privação do uso seria indemnizável, ao abrigo do disposto no nº 1 do artº 564º do CC.

19.ª - A atribuir-se a indemnização pretendida pelo A., estar-se ia a indemnizar para além do valor convencionado entre as partes.

20.ª – À luz do n.º 2 do artigo 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro [“No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado”], daí decorrendo que a indemnização por lucros cessantes pressupõe, necessariamente, a sua expressa convenção.

21.ª - Decorre do referido regime, que a seguradora apenas responde nos termos da cobertura contratada, pelo que, não tendo sido expressamente estipulada a abrangência de um determinado dano, não será devida qualquer indemnização correspondente ao seu ressarcimento.

22.ª - Ao assim não entender, o Tribunal recorrido violou, entre outras disposições legais, o disposto no art.º 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e o disposto nos artºs. 762º e 806º do Cód. Civil.

Sem conceder e para o caso de assim se não entender,

23.ª - Apenas resultou provado que:

18. O autor deixou de poder circular com a viatura referida em 1) desde a data referida em 11) porquanto a viatura não está, desde então, em condições de circular.

19. O autor utilizava a referida viatura para se deslocar no âmbito da sua vida pessoal e profissional e para transportar os seus filhos e outros familiares.

20. O autor não procedeu ao aluguer de veículo sem condutor para suprir a falta do veículo acidentado nem adquiriu outro em sua substituição, por não dispor de capacidade financeira para tanto.

24.ª - Perfilamos o entendimento que para haver indemnização, tem de haver danos, o que vale por dizer que a simples privação do uso de um veículo, sem a demonstração de qualquer dano concreto ocasionado por essa privação, ou seja, sem qualquer repercussão negativa no património do lesado, não é susceptível de fundar a obrigação de indemnizar.

25.ª - Para que a imobilização de uma viatura possa traduzir-se em danos para o seu proprietário, susceptíveis de serem indemnizados, é necessário que o lesado alegue e prove os factos que consubstanciam esses danos, o que no caso dos autos não ocorre.

26.ª - Termos em que, também sob este ponto de vista, e atenta a matéria de facto provada, o pedido correspondente à alegada paralisação do veículo deve ser julgado improcedente por não provado.

Ainda sem conceder,

27.ª - Mesmo que assim se não considere, considerando-se que o dano de privação merece a tutela do Direito, atenta a factualidade provada, entendemos que a sua quantificação peca por manifesto exagero.

28.ª - A considerar-se o valor atribuído pelo Tribunal recorrido, fácil é concluir pelo enriquecimento injustificado e manifestamente ilegítimo, atenta a flagrante disparidade entre o dano e a atribuição indemnizatória de um dano que se pretende colateral e sem um prejuízo patrimonial concreto.

29.ª - Imagine-se que o recorrido havia, efetivamente, alugado uma viatura, pagando um montante diário de 20,00 euros? Receberia esse montante, inferior ao seu “vizinho” que nada provou quanto ao prejuízo concreto....

30.ª - Ultimamente, a jurisprudência tem lançado mão de um exercício curioso para quantificar este dano: afigura-se ajustado que a indemnização a atribuir ao proprietário tenha alguma correspondência relativamente ao investimento feito por si na aquisição e manutenção do veículo.

31.ª - Na posse deste valor, necessariamente aproximado, pode o mesmo ser fraccionado em dias de utilização considerando o período médio de vida do automóvel, multiplicando-se, depois, o valor encontrado por dia de utilização pelo número de dias de paralisação.

32.ª - Deste modo, e atendendo ao valor do veículo, afigura-se que a quantia de €8,00 diários é adequada a título de indemnização pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as necessidades básicas diárias do lesado.

33.ª - Ao assim não decidir, violou o Douto Acórdão recorrido, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos art.ºs 130º. do D.L. 72/2008 e 9º., 483.º, 562.º, 564.º, 798.º, 799º nº 2, 804º/1 e 808.º, todos do Código Civil.

Termina pedindo que o acórdão recorrido seja revogado na medida assinalada.

       O Recorrido não contra-alegou.

       Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte:

1. O veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca “Citroën”, modelo “C8 2.0 HDI Diesel” e matrícula “...-AT-...” é pertença do autor.

2. O autor celebrou com a ré um contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice n.º 01…, por via do qual declarou transferir para a ré e esta declarou assumir a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do veículo de matrícula “...-AT-...” (na modalidade de danos próprios/seguro facultativo), com início em 12/11/2010, vigente no circunstancialismo de tempo referido em 11).

3. À data da realização do contrato de seguro foi atribuído pela ré seguradora ao veículo seguro o valor de € 18.078,00, tendo sido objecto do contrato, ademais, o equipamento extra de que o veículo era portador, ao qual a ré atribuiu também o valor de € 3.887,00.

4. Consta das cláusulas especiais da apólice o seguinte relativamente a seguro de danos próprios – actualização automática: “o valor do veículo seguro é estabelecido de acordo com o disposto nas alíneas A) e B) do n.º 2 da cláusula 42º das condições gerais da apólice, sendo de actualização automática conforme tabela de desvalorização anexa às referidas condições gerais”.

5. Constam do anexo II ao referido contrato tabelas de desvalorização de veículos, nesta sede consideradas integralmente reproduzidas (fls. 75 p.p.).

6. Consta da cláusula 44º das condições especiais do contrato de seguro referido em 2): “Em caso de perda total, o valor da indemnização corresponderá ao valor venal à data do sinistro, nos termos da alínea b), da cláusula 38ª, deduzido da franquia contratualmente aplicável e, se for o caso, do valor atribuído ao veículo após o sinistro”.

7. Consta da cláusula 38º/b) da Parte II das condições gerais do contrato que “valor venal” é o “valor do veículo seguro, à data do sinistro, depois de aplicada a percentagem indicada na Tabela de Desvalorização constante do Anexo II das presentes condições gerais, ao último valor em novo no ano da primeira matrícula”; “nas condições em que, por convenção expressa nas Condições Particulares, não se aplicarem ao contrato as regras gerais de fixação do valor seguro estabelecidas no n.º 2 da cláusula 42º, o valor venal é igual ao valor comercial do veículo à data do sinistro”.

8. Consta da cláusula 38º/c) da Parte II das condições gerais do contrato que perda total é “o desaparecimento do veículo seguro ou destruição do mesmo quando se verifique uma das seguintes situações: i) a reparação seja possível, mas o seu custo exceda a diferença entre o valor venal do veículo seguro (determinado pela aplicação da referida Tabela de Desvalorização) e o valor do mesmo após o acidente; ii) a reparação não seja materialmente possível ou tecnicamente aconselhável, de modo a cumprir com os requisitos de segurança”.

9. A cobertura por sinistro danos ao veículo e a cobertura veículo de substituição por avaria ou acidente foram estipuladas de acordo com as seguintes cláusulas de cobertura: “veículo de substituição por sinistro danos ao veículo – este contrato garante, em caso de acidente com danos ao veículo em Portugal, por um período máximo de 30 dias/ano, um veículo de substituição até 1.200 cc”; “veículo de substituição por avaria ou acidente – este contrato garante, em caso de avaria ou acidente em Portugal, por um período máximo de 5 dias por anuidade (avaria) e de 5 dias por anuidade (acidente) um veículo de substituição de classe equivalente à do veículo seguro (gasolina até 2.000 cc diesel até 1.900 cc)”; incluindo, ademais, a cobertura por choque, colisão ou capotamento, sempre na perspectiva dos danos causados ao veículo; furto ou roubo; e incêndio, raio ou explosão.

10. O valor da franquia, nos termos acordados entre as partes, cifrou-se em € 332,42.

11. No dia 14/12/2012, quando o autor circulava com o mencionado veículo na estrada que liga Santiago de Litém a Vila Cã do concelho de Pombal, este entrou em despiste, indo embater numa oliveira que se encontrava implantada junto da berma da estrada por onde seguia e aí se imobilizou, o que lhe causou estragos.

12. A reparação dos estragos da viatura ocorridos como consequência do acidente importa o custo de, pelo menos, € 13.676,75, acrescido do IVA legal, o que perfaz o total de € 16.822,45. 13. É previsível que aquando da desmontagem da viatura para concretização da reparação que antecede surjam outros estragos decorrentes do evento referido em 11).

14. O valor dos salvados é de € 2.255,00.

15. O primeiro relatório da peritagem realizada ao veículo referido em 1) e aos estragos decorrentes do evento referido em 11) fixou em € 11.681,19 o custo da reparação daqueles estragos.

16. O autor transmitiu à ré, que tomou conhecimento do facto, que o veículo deveria ser considerado em situação de perda total, solicitando-lhe a disponibilização do capital seguro descontado do valor da franquia acordada, no dia 28/01/2013, o que fez dando conta do valor alcançado com a primeira peritagem realizada, que cifrou o custo da reparação dos estragos do veículo em € 11.681,19.

17. A ré colocou à disposição do autor o valor atribuído nos termos referidos em 15), o que fez em data que em concreto não foi possível apurar.

18. O autor deixou de poder circular com a viatura referida em 1) desde a data referida em 11) porquanto a viatura não está, desde então, em condições de circular.

19. O autor utilizava a referida viatura para se deslocar no âmbito da sua vida pessoal e profissional e para transportar os seus filhos e outros familiares.

20. O autor não procedeu ao aluguer de veículo sem condutor para suprir a falta do veículo acidentado nem adquiriu outro em sua substituição, por não dispor de capacidade financeira para tanto.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, estão em causa neste recurso as seguintes questões:

- Tem o A. direito a indemnização por dano de privação do uso de veículo;

- Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, deve considerar-se provado ter o A. sofrido danos pela privação de uso de veículo;

- Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, deve ser reduzida a indemnização de € 30, fixada pela Relação, advogando a Recorrente que seja antes fixada em € 8 por dia.


5. As pretensões do A. na presente acção fundam-se no “contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice n.º 01…, por via do qual declarou transferir para a ré e esta declarou assumir a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do veículo de matrícula “...-AT-...” (na modalidade de danos próprios/seguro facultativo)” (facto provado 2), tendo já transitado em julgado a condenação da R. a indemnizar o A. pela perda total do veículo segurado, com juros à taxa de 4% desde a data da citação.

O recurso de revista circunscreve-se, pois, ao pedido de indemnização pelo dano da privação do uso de veículo, com fundamento no contrato de seguro automóvel por danos próprios, celebrado entre as partes em 12/11/2010.

Não é demais sublinhar que as questões objecto do recurso se situam no domínio da responsabilidade contratual e não no domínio da responsabilidade extracontratual, tanto mais que se afigura que as posições assumidas pelas partes ao longo do processo e, em particular, as pretensões da R. Recorrente em sede de revista, nem sempre distinguem claramente os dois domínios.

Na verdade, não pode ignorar-se que, mesmo que o problema da privação do uso de veículo se possa colocar tanto na responsabilidade contratual como na responsabilidade extracontratual, a solução a dar às três questões suscitadas – existência do direito, prova dos danos, fixação da indemnização – pode não ser coincidente. Perante um contrato de seguro automóvel por danos próprios como o dos autos, essencial é determinar se as pretensões do A. correspondem ou não a obrigações assumidas pela seguradora, e, em caso afirmativo, qual o seu conteúdo.


6. A primeira questão – saber se o A. tem ou não direito a indemnização pela privação do uso de veículo – foi resolvida pelas instâncias de forma divergente, em termos que importa ter presentes.

A 1ª instância considerou que, ainda que o dano de privação de uso seja, em geral, indemnizável, no caso dos autos o A. não tem direito a invocá-lo por duas ordens de razões: (i) consistindo a conduta ilícita da R. na omissão de entrega ao A. da quantia indemnizatória correspondente à perda total do veículo, não se verifica nexo de causalidade entre tal conduta e a privação do uso do veículo sinistrado; (ii) a compensação a que o A. tem direito pela mora na entrega dessa quantia indemnizatória consiste apenas, nos termos do art. 806º, nº 1, do Código Civil, nos juros a contar do dia da constituição em mora (28/01/2013), tendo, contudo, o A, peticionado juros apenas a partir da data da citação.

A Relação entendeu condenar a R. a pagar ao A. indemnização por dano de privação de uso de veículo porque: (i) por aplicação do art. 806º, nº 3, do CC, o A. tem direito a uma indemnização superior aos juros de mora, se provar ter tido um dano superior; (ii) o dano de privação do uso de veículo encontra-se coberto pelo seguro dos autos, designadamente pelo ponto 06, cláusula 3ª, nº 1, das Condições Especiais de fls. 76 e segs., bem como pelas Condições Particulares de fls. 17 e segs.

Vejamos.

   Transitou em julgado a condenação da R. a pagar ao A. o valor correspondente à perda total do veículo com juros moratórios (que foram peticionados a partir da data da citação e não do momento de constituição em mora). A previsão do nº 3, do art. 806º, do CC – “Pode, no entanto, o credor provar que a mora lhe causou dano superior aos juros referidos no número anterior [juros legais] e exigir a indemnização suplementar correspondente, quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco – é aplicável apenas à responsabilidade civil extracontratual (cfr. Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 1990, pág. 452, nota 2; e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, 2009, pág. 545). Num caso de responsabilidade contratual como o dos autos, a indemnização pelo não pagamento da quantia correspondente à perda total reconduz-se tão só ao pagamento de juros moratórios sem que haja lugar ao pagamento de uma indemnização suplementar por danos superiores ao montante dos juros (ver Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra Editora, 2011, pág. 324). Em qualquer caso, ainda que se pretendesse alargar este regime à responsabilidade contratual, no caso dos autos não teria sido feita prova de que a falta de pagamento do valor por perda total do veículo tivesse causado a privação de uso do veículo sinistrado, precisamente pelo facto de este veículo ter sido dado como perdido.

    Tem assim razão a 1ª instância ao ajuizar que, do regime legal aplicável ao incumprimento da obrigação de compensar o A. pela perda total do veículo sinistrado, não deriva a obrigação de o ressarcir também pela privação de uso do mesmo veículo.

     Contudo, como entendeu a Relação, essa não é a única obrigação assumida pela R. no contrato de seguro sub judice. Tanto do facto provado 9 como dos demais factos dados como provados por documentos (cfr. art. 607º, nº 4, do CPC, aplicável em conjugação com os arts. 679º e 662º, nº 1, do CPC), resulta ter-se a R. obrigado contratualmente a, em caso de sinistro que inviabilize a utilização do veículo seguro, entregar um veículo de substituição ao A. O efeito prático-jurídico do pedido de compensação pela privação de uso de veículo é compatível com o entendimento da Relação de que a privação resulta do incumprimento desta obrigação contratual, prevista tanto para a hipótese de reparação do veículo automóvel (cláusula 3ª, nºs 1 e 2, do ponto 05, e cláusulas 2ª e 3ª do ponto 06, das Condições Especiais de fls. 76 e segs.; e Condições Particulares) como de perda total (cláusula 3ª, nº 3, do ponto 05 das Condições Especiais de fls. 76 e segs.).

     Deste modo, diversamente da perspectiva da Recorrente, para que o seguro dos autos cubra a privação de uso de veículo não é necessário que esta privação se reporte directamente ao veículo sinistrado, referindo-se antes à privação de uso do veículo que devia ter sido entregue em sua substituição. O que se afigura inteiramente compatível com a previsão do art. 130º, nº 3, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril – que, tendo entrado em vigor a 1 de Janeiro de 2009, se aplica ao contrato de seguro dos autos, celebrado em 12/11/2010 – no qual se prevê que, no seguro de coisas, o segurador apenas responda pelo dano de privação de uso do bem se assim for convencionado.

     Conclui-se que o A. tem direito a indemnização pela privação do uso de veículo com fundamento no contrato de seguro.


7. Respondida afirmativamente a primeira questão, há que passar a apreciar a questão de saber se se deve deve considerar provado ter o A. sofrido danos por tal privação.

    Relevam os seguintes factos provados:

18. O autor deixou de poder circular com a viatura referida em 1) desde a data referida em 11) porquanto a viatura não está, desde então, em condições de circular.

19. O autor utilizava a referida viatura para se deslocar no âmbito da sua vida pessoal e profissional e para transportar os seus filhos e outros familiares.

20. O autor não procedeu ao aluguer de veículo sem condutor para suprir a falta do veículo acidentado nem adquiriu outro em sua substituição, por não dispor de capacidade financeira para tanto.


     O acórdão recorrido considerou que, provando-se que “O autor utilizava a referida viatura para se deslocar no âmbito da sua vida pessoal e profissional e para transportar os seus filhos e outros familiares”, se encontra provado o dano do A., o que não merece censura. Deve sublinhar-se que, no caso dos autos, mesmo que não tivesse sido feito prova de que o A. utilizava o veículo de forma habitual, tanto na vida pessoal e familiar como na vida profissional, a simples afectação da possibilidade de uso do veículo seria bastante, uma vez que a R. seguradora se obrigou contratualmente a facultar ao A. um automóvel de substituição, independentemente da prova da efectiva necessidade do mesmo. Por outras palavras, no domínio da responsabilidade contratual a ressarcibilidade da privação de uso tem de ser aferida pelo concreto conteúdo das obrigações do próprio contrato, não podendo aqui ser invocadas – como faz a Recorrente – as exigências de prova do dano no domínio da responsabilidade extracontratual.

     Conclui-se, assim, estar provado ter o A. sofrido danos com a privação do uso de veículo; e que, de qualquer forma, face ao conteúdo das obrigações contratuais assumidas pela R., o A. sempre teria direito a ser compensado pela simples perda da possibilidade de uso do veículo de substituição.


8. Quanto à terceira e última questão – saber se deve ser reduzida a indemnização de € 30, fixada pela Relação, advogando a Recorrente que seja antes fixada em € 8 por dia – não foi posto em causa que, conforme decidido pela Relação, o período da privação de uso se compreende entre 04/01/2013 e a data da entrega efectiva do valor fixado para a perda total do veículo sinistrado, mas tão-só a base de referência para o cálculo da indemnização.

       Vejamos.

     Deve ter-se presente que a regra geral do art. 566º, nº 2, do Código Civil – teoria da diferença – não pode ser aplicável ao dano de privação de uso, na medida em que “a comparação entre a situação patrimonial real e a situação patrimonial hipotética do lesado, na data mais recente que puder ser atendida [se] adequa a privações definitivas e não a privações limitadas no tempo” (Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, pág. 58). Deste modo, a indemnização pelo dano de privação de uso terá de ser fixada de acordo com a equidade (art. 566º, nº 3, do CC).

      No caso dos autos, a Relação, invocando, sem mais, “lançar mão de juízos de equidade”, fixou a indemnização em € 30 por dia, valor que a Recorrente entende excessivo.

Em princípio, não poderá considerar-se ser este valor diário excessivo quando corresponde exactamente ao valor previsto no contrato de seguro dos autos para a hipótese de ser impossível à seguradora facultar um veículo de substituição (cláusula 3ª, nº 7, do ponto 06. das Condições Especiais de fls. 76 e segs.: “Em caso de impossibilidade objectiva de disponibilização do veículo de substituição, o Segurador apenas estará obrigado a indemnizar o Segurado com uma verba diária de 30 €). Afinal, foi a própria seguradora, aqui R. Recorrente, que avaliou neste montante diário a compensação a atribuir numa situação paralela à dos autos; o que foi aceite pelo A. ao aderir ao contrato de seguro dos autos.

Contudo, não pode deixar de se ponderar que – caso a indemnização pela perda total do veículo não tenha sido entregue – o valor acumulado da indemnização pela privação de uso de veículo ascenderá presentemente a um nível extremamente elevado (acima de € 49.000), que se afigura desproporcionado, tanto em relação ao valor devido pela perda total do veículo sinistrado (€ 14.478,74), como em relação ao preço de um veículo novo nos últimos anos em que foi o mesmo foi produzido (aproximadamente € 41.000).

Pelo que se entende ser justo e equitativo atribuir, pela privação do uso de veículo, uma indemnização correspondente à “verba diária de € 30 desde 04/01/2013 até à data em que se tiver verificado a efectiva entrega ao A. da indemnização em que aquela está condenada” pela perda total do veículo sinistrado, com o limite máximo de € 41.000.


9. Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, alterando-se o acórdão recorrido e condenando-se a R. a pagar ao A., pela privação do uso de veículo, uma indemnização correspondente à verba diária de € 30, desde 04/01/2013 até à data em que se tiver verificado ou verificar a efectiva entrega ao A. da indemnização em que a R. está condenada pela perda total do veículo sinistrado, com o limite máximo de € 41.000.


Custas pelas partes, na acção e no recurso, na proporção do decaimento.


Lisboa, 13 de Julho de 2017


Maria da Graça Trigo (Relatora)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos