Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
160/09.5YFLSB
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ROCHA
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PEDIDO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
QUESTÃO NOVA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :

I - Sendo impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente satisfazer os ónus impostos pelo art. 690.º-A do CPC, sob pena de rejeição imediata do recurso e sem que haja lugar a convite prévio com vista ao suprimento de qualquer omissão (art. 690.º-A, n.ºs 1, proémio, e 2, do CPC).
II - Nas acções reivindicatórias, cabe ao autor provar o direito de propriedade sobre a coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do réu; a este cabe a prova de qualquer facto impeditivo ou extintivo do direito do autor, a prova da excepção, a prova de que possui por virtude de um direito real ou obrigacional que lhe permite recusar a restituição, que legitima a sua posse ou detenção.
III - A invocação, apenas, de um negócio translativo de propriedade não basta para caracterizar a causa de pedir na acção de
reivindicação: o reivindicante, pelo menos quando não for favorecido por nenhuma presunção legal de propriedade, terá de invocar factos dos quais resulte a aquisição originária do domínio por parte dele ou de um transmitente anterior.
IV - Satisfaz à invocação do domínio o autor declarar-se dono e proprietário do prédio reivindicado, juntar certidão do registo predial em seu nome e dizer que o prédio lhe adveio por transmissão (arts. 7.° do CRgP e 350.°, n.º 1, do CC).
V - Os recursos são meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados): a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo tribunal ad quem (art. 676.º do CPC).
VI - Não se pode onerar o adquirente de um prédio com a validação de uma situação de nulidade perante o alienante, designadamente, com um contrato de arrendamento comercial nulo por falta de observância da forma legal.
VII - O autor, juntamente com os pedidos característicos da acção de reivindicação, pode formular um pedido de indemnização a que haja lugar pelo rendimento que podia retirar do imóvel, se não fosse a indevida ocupação, e mesmo que não haja sofrido prejuízo com esta (art. 470.º do CPC).
VIII – Ainda que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem, o lesado deve ser compensado monetariamente pelo período correspondente ao impedimento dos poderes de fruição ou de disposição.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1
AA, Imobiliária, S.A., intentou acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra Transportes BB, Lda., pedindo a condenação da ré:
a) A reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o Casal do ....., bem como a inexistência de título legítimo que sustente a manutenção da ocupação de uma parcela dessa propriedade por si e a entregar a mesma parcela devoluta de pessoas e bens;
b) A pagar à autora a indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença pelos prejuízos sofridos por esta e pelos benefícios que a autora deixar de obter em resultado da sua recusa a entregar a dita parcela.

Alega, para tanto e em suma, que adquiriu o aludido prédio por escritura pública de compra e venda de 4 de Janeiro de 2000, ocupando a ré uma parcela do prédio sem nunca ter exibido título bastante nem demonstrado, por qualquer forma, a existência do mesmo, mantendo-se naquele contra a vontade reiteradamente expressa pela autora, que, assim, se vê impedida de dispor do local como melhor entender e, designadamente, proceder à rápida operação de reconversão urbanística projectada para o prédio.

Contestou a ré por excepção, alegando que celebrou com o Sr. CC um contrato de arrendamento relativo ao local, com a área de cerca de 1000 m2, que ocupa no prédio, tratando-se, aquele Sr. CC, da pessoa que, ao longo de várias décadas, dos anos 60 até pelo menos à década de 90, era tida pela ré e pela totalidade das pessoas que frequentavam o local como o dono do prédio.
E era o "dono" por gerir os respectivos negócios e deter parte do capital da sociedade denominada DD & Ca, Lda., que, nessa mesma propriedade, possui um estabelecimento dedicado à indústria de pedras, madeiras e outros materiais. Ou, se não era ele o dono, era a referida sociedade, passando a ré, desde 1992, a ocupar o local e a pagar renda mensal, por último, no valor de 18.560$00, de que era passado recibo, figurando no contrato, como senhoria, a DD & ca, Lda.
A ré, entretanto, investiu largos milhares de contos em obras e na adaptação do local à sua actividade e, na sequência de notificação da Repartição de Finanças, passou a entregar o valor da renda ao Estado, de tudo isto sendo conhecedora a autora.
Pede a improcedência da acção e, em via reconvencional, que seja declarado:
- ser válido o contrato de arrendamento referente ao local dos autos de que a ré é titular e celebrado em 23 de Abril de 1992;
- ser a falta de pagamento da renda, no montante de 18.560$00, da responsabilidade da autora.

Foi proferida sentença, que julgou a acção procedente e, consequentemente, declarou ser a autora legítima proprietária do prédio dos autos e declarou nulo ou ineficaz em relação a ela o contrato de cedência do espaço que a ré ocupa, condenando-a a entregar o mesmo à autora de imediato, livre e devoluto.
Mais condenou a ré a pagar à autora a quantia que se liquidar em incidente posterior, correspondente ao valor locativo do aludido espaço, acrescida de juros à taxa legal, desde a data da citação e até efectiva entrega do aludido espaço.
Julgou, ainda, improcedente o pedido reconvencional.

Requerida pela autora a aclaração da sentença e a sua reforma quanto a custas, foi esta deferida, consignando-se, no âmbito da primeira, que "Na fundamentação da sentença passa a valer a referência à celebração do contrato de locação tal como resulta dos pontos E) e F) dos Factos Provados.

Inconformada recorreu a ré recorreu, sem êxito, para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Ainda irresignada, pede revista.
Concluiu a alegação do recurso pela seguinte forma:
A recorrente, nas suas alegações e conclusões, cumpriu o ónus imposto pelo artigo 690º-A do CPC.
A recorrente indicou claramente a parcela ou o ponto ou pontos da matéria de facto da decisão proferida que considerou viciada por erro de julgamento e quais os meios probatórios que implicavam decisão diversa pelo Tribunal.
Mas mesmo que assim se não entenda, sempre haveria lugar ao convite ao aperfeiçoamento dos mesmas, o que não aconteceu.
Uma vez que os Venerandos Juízes assim não determinaram, mantendo a decisão do Juiz Relator, encontra-se violado o disposto no artigo 690º, nº 4, 1a parte, do CPC.
O CC agiu em nome e representação da Sociedade da família FCC como seu gerente e não como "mero comproprietário”.
Estes factos foram alegados na 1a Instância, não se tratando de quaisquer factos novos.
A decisão sob censura viola a prova documental/Documento escrito/Contrato de Arrendamento junto aos autos.
Este Documento/Contrato de Arrendamento consubstancia uma verdadeira e real relação obrigacional de arrendamento entre as partes, tal como especificados nas referidas alíneas.
A CC & Companhia, Lda, era uma Sociedade familiar de todos os Herdeiros e Interessados no Casal e na Herança Indivisa.
Esta Sociedade estava sedeada no Casal, tinha ali escritório e instalações e exercia no local a sua actividade.
Impugna-se, por isso, nos termos do disposto nos art. 690° e 690º-A do CPC a inversão da prova escrita produzida constante do Documento/Contrato escrito especificado, em violação do disposto nos arts. 655° e 659°, nº 3, do CPC.
A sentença da 1a Instância e o acórdão da Relação não fazem um exame crítico e prudente à prova documental junto aos autos.
O senhorio e proprietário do imóvel "Casal do .....", tratando-se de Herança indivisa desde a morte do seu primitivo proprietário DD (Sénior), em 21.03.1958, ficou legalmente representada no local pelo cabeça-de-Casal em cada momento existente e consentido pelos demais herdeiros ao longo do tempo.
Foi assim com a viúva, EE, que exerceu essas funções desde a morte do marido até 25.07.1965, data em que faleceu, foi assim com o filho varão mais velho, DD Júnior, que exerceu aquela função desde a morte da mãe até 14.08.1968, data em que veio a falecer; e foi assim com o filho varão mais novo, CC, desde a morte do irmão até1997, data em que faleceu também.
O CC administrava a Herança (e o "Casal do ....." que a integrava) naquela qualidade de cabeça-de-casal e também na qualidade de gerente da DD& Ca., Sociedade da família (todos os Herdeiros eram sócios) e que estava instalada e a laborar no local.
Nesta dupla qualidade, CC negociou, acordou e consensualizou com o R./ Apelante a relação jurídica de arrendamento e, portanto, com plena legitimidade de Senhorio, nos termos do disposto nos artigos 2079° e 2087º do C.Civil.
Os senhores Desembargadores, no entanto, ao confirmarem a sentença da la Instância, pronunciaram-se pela ilegitimidade deste Senhorio o que viola também aqueles procedimentos legais e o disposto nos arts. 1054º a 1056° do C. C.
De igual modo, quanto ao consentimento/assentimento dos demais Herdeiros e consortes/comproprietários, o acórdão decide ao contrário do que afirmaram e declararam as próprias testemunhas da A./Recorrida e contra a prática consuetudinária, os usos e costumes duma situação que se perpetuou no tempo durante anos e anos reiterados aos olhos de toda a gente e também dos interessados que nela consentiram. Nem após a partilha, em 1993, estes Interessados denunciaram a relação contratual estabelecida e constituída com o Recorrente. E também o não fizeram em 1997, após a morte do CC.
O acórdão conformativo viola, ainda, o disposto nos artigos 1046º e seguintes do CC, quanto à administração da coisa comum, na medida em que, desde 1958, data da morte do DD (Sénior) até 1997, data da morte do DD, nenhum dos herdeiros/consortes/comproprietários contestou a administração do referido cabeça-de-casal, não o obrigou a prestar contas da sua administração nem da gerência da Sociedade que recebia as rendas e as incorporava na sua contabilidade e a eles competia e incumbia fazê-lo.
O acórdão, ao confirmar a sentença da 1a Instância interpretou "a contrário” o disposto nos artigos 342º e 799°, nº 2 do C.C., quanto ao ónus da prova aplicado ao caso dos autos. O Senhorio, que foi o mesmo que negociou, que recebeu as rendas e as contabilizou na escrita da sociedade e as fez desta, só não teve legitimidade para outorgar o documento em causa.
A própria lei refere expressamente que, em caso de dúvida, os factos devem ser constitutivos do direito (ver o nº 3 do referido art. 342° do CC) e a culpa no incumprimento deve ser apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil (nº 2 do art. 799°) e a responsabilidade do Senhorio à altura dos factos e nas circunstâncias descritas nos autos, não podem restar dúvidas, estava do lado do Senhorio, que exercia não só a administração como detinha uma posição de domínio (principio da parte mais forte).
Não é legitimamente admissível sequer que o Senhorio, CC, naquele contexto, aceitasse uma qualquer imposição do Inquilino para o obrigar a assumir um documento escrito de arrendamento e muito menos a outorgar uma escritura pública! O contrário é que era exigível!
O acórdão confirma o exercício de um manifesto abuso de direito, o que viola o disposto no artigo 334° do CC.
Finalmente, o acórdão viola também a lei, quando confirma uma sentença que condena em indemnização a apurar em liquidação de sentença.

Nas contra-alegações, a autora pronuncia-se pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.
Foram dados como provados os seguintes factos:
A. Por escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 14 de Janeiro de 2000, a autora adquiriu a propriedade e posse plena e exclusiva do prédio urbano denominado "Casal do ......", sito em Lisboa, Estrada de Monsanto, à Cruz das Oliveiras, freguesia de Alcântara, inscrito actualmente na matriz urbana sob o artigo 1880º (anteriormente sob os artigos 160°, 161º e 1117º da mesma freguesia), descrito na 6a Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha n° 869/980921, conforme documento de fls. 15 a 30.
B. O Casal do ..... era, até então, detido em compropriedade por catorze pessoas singulares (documento de fls. 15 a 30).
C. O Casal do ..... encontra-se, neste momento, ocupado por número não determinado de pessoas físicas e morais, que ali construíram diversos edifícios e barracas, habitados ou utilizados para o exercício de actividades comerciais ou industriais.
D. Por notificação judicial avulsa de 20 de Março de 2000, a autora notificou a ré para lhe exibir o título jurídico ao abrigo do qual ocupava parte do imóvel da primeira e ainda a notificou da sua intenção de, na inexistência do dito título, cessar a ocupação do dito espaço, devolvendo à primeira, conforme documento de fls. 31 a 38.
E. Com data de 24 de Abril de 1992, DD, Companhia Lda., e a ré outorgaram um contrato, mediante o qual a primeira cedia à segunda, por Esc. 14.140$00 mensais, actualizáveis, o prédio a que se reportam estes autos, conforme documento de f1s. 50.
DD emitiu o documento, cuja cópia se encontra a fls. 51, na qual declara que dá pelo arrendamento de um armazém a quantia de Esc. 18.560$00.
G. A DGCI notificou FF, na qualidade de fiel depositário da renda penhorada da DD, de que havia sido ordenado o levantamento da penhora, conforme documento de fls. 52.
H. A ré procedeu ao depósito na CGD de Esc. 15.776$00, alegando que a DD Lda., não queria receber a renda de Março de 2000, conforme documento de fls. 53.
I. A ré enviou à autora, com data de 14 de Abril de 2000, carta em resposta à notificação judicial proferida em D., na qual alega ser inquilina do espaço indicado e no qual declara que já investiu milhares de contos. E que aguardam instruções quanto ao pagamento da renda, conforme documento de fls. 54.
J. Durante décadas, o imóvel em causa foi administrado por CC, que possuía um estabelecimento de madeiras e outros materiais e permitia o acesso de pessoas e comerciantes ao local, sendo considerado como dono do mesmo.
L. Era ele que vendia pedra, que extraía da pedreira instalada no local, era ele que aí vendia madeiras, ferros, cimento e outros materiais para construção civil.
M. Dos anos 60 até aos anos 90, se alguém se queria instalar no prédio, tinha que falar com CC.
N. Em 1992, a ré teve que falar com CC para poder instalar os seus serviços no prédio.
O. Nunca aí conheceu nenhuma das pessoas que vieram a outorgar a escritura de venda à autora.
CC negociou tudo o que respeitava ao imóvel até à sua morte.
Q. A autora sabia que existiam ocupantes no terreno.
R. A permanência da ré na parcela ocupada impede a execução dos trabalhos de urbanização do Casal do .....
S. O que impede a autora de construir e comercializar os futuros edifícios.
T. Impedindo a autora de rentabilizar o investimento efectuado.

3. O Direito.

Sabido que os recursos se destinam a modificar as decisões recorridas e a não a gerar decisões sobre matéria nova, a menos que se trata de questões de conhecimento oficioso e desde que não estejam já resolvidas por sentença com trânsito em julgado, as questões a dilucidar são as seguintes:

- A recorrente pôs em causa a decisão sobre a matéria de facto, tendo cumprido o ónus imposto pelo artigo 690º-A do CPC?
- Mas mesmo que assim se não entenda, sempre haveria lugar ao convite ao aperfeiçoamento das mesmas, o que não aconteceu?
- Porque tal não foi feito, encontra-se violado o disposto no artigo 690º, nº 4, 1a parte, do CPC?
- A ré firmou com CC um contrato de arrendamento válido relativamente ao prédio reivindicado?
- O acórdão confirma o exercício de um manifesto abuso de direito, o que viola o disposto no artigo 334° do CC?
- O acórdão viola também a lei, quando confirma uma sentença que condena em indemnização a apurar em liquidação de sentença?

Vejamos, agora, cada uma das questões enunciadas.

Impugnando o recorrente a decisão sobre a matéria de facto, fica sujeito a alguns ónus, que deve satisfazer, sob pena de rejeição do recurso, conforme o disposto no art. 690º-A do CPC.
São eles: especificar os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados; especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão diversa da recorrida sobre os pontos impugnados da matéria de facto e indicar os depoimentos em que se baseia, por referência ao assinalado na acta, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.
A não satisfação destes ónus por parte do recorrente implica, como é doutrina e jurisprudência dominantes, a rejeição imediata do recurso, como expressamente se refere no art. 690º-A, nºs 1, proémio, e 2, não havendo lugar a convite prévio, em vista a suprir qualquer omissão do recorrente.
Fosse essa a intenção do legislador e tê-lo-ia declarado, como o fez para situações diversas, nos arts. 690º, nº 4, e 75º-A, nº 5, este da LCT (cfr. Amâncio Ferreira in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 6ª ed. Almedina, 2002, págs. 171, nota 354 e 172).

Analisando as alegações do recurso de apelação e as respectivas conclusões e tentando surpreender nelas o propósito, por parte da recorrente, de impugnar a decisão sobre a matéria de facto, em vão o encontramos.

A acção de reivindicação é uma acção real, porque tem origem num direito real, a sua causa de pedir (498°, n° 4, 2ª parte, CPC) é o facto jurídico de que deriva esse direito real.
Tem legitimidade activa o titular do direito reivindicado e será réu quem tem a posse ou detenção da coisa - art.1311°, n°1, do C.Civil (diploma a que pertencerão as demais citações sem menção em contrário).
A pretensão reivindicatória (petitum), consoante resulta deste normativo, é integrada por dois pedidos entre si logicamente articulados: reconhecimento judicial do direito de propriedade do autor da acção sobre a coisa reivindicada e condenação do demandado a restituí-la ao seu proprietário.
E, uma vez que, na economia daquele texto legal, a procedência do primeiro pedido funciona como pressuposto do acolhimento do segundo, compreende-se que, desatendido aquele, este último deva naufragar necessariamente. Se, porém, o primeiro pedido for atendido, a sentença deve condenar o demandado a restituir a própria coisa reivindicada, salvo se o demandado invocar e provar a titularidade de algum direito que o legitime a continuar a manter a coisa em seu poder como o arrendamento, o direito a novo arrendamento, o direito de retenção por benfeitorias, etc..
Ora, nesta medida, a presente acção é uma acção claramente reivindicatória: nela a autora pede o reconhecimento do seu direito de compropriedade e, igualmente, peticiona a restituição (desocupação) do prédio ilicitamente detido pela ré.
De acordo com as regras do ónus da prova, cabe ao autor provar o direito de propriedade sobre a coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do réu; a este cabe a prova de qualquer facto impeditivo ou extintivo do direito do autor, a prova da excepção, a prova de que possui por virtude de um direito real ou obrigacional que lhe permite recusar a restituição, que legitima a sua posse ou detenção.
A invocação, apenas, de um negócio translativo de propriedade não basta para caracterizar a causa de pedir na acção de reivindicação, pelo que o reivindicante, pelo menos quando não for favorecido por nenhuma presunção legal de propriedade, terá de invocar factos dos quais resulte a aquisição originária do domínio por parte dele ou de um transmitente anterior.
Satisfaz à invocação do domínio o autor declarar-se dono e proprietário do prédio reivindicado, juntar certidão do registo predial em seu nome e dizer que o prédio lhe adveio por transmissão.
É que a inscrição da aquisição em seu nome no registo faz presumir que o direito registado lhe pertence - art. 7° do CRP - e quem tem a seu favor presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz - 350°, nº1 - sujeitando-se, no entanto, a que o réu ilida tal presunção ou beneficie de presunção prevalecente, como é o caso da presunção derivada da posse - 1268°, n°1.

No nosso caso, a autora goza dessa presunção, mas a ré, invoca a seu favor um contrato de arrendamento para legitimar a ocupação do prédio dos autos e impedir a sua restituição à autora.

Tanto a 1ª instância como a Relação pronunciaram-se pela invalidade deste contrato, ainda que com fundamentos não inteiramente coincidentes, aquela porque o CC era mero comproprietário do prédio e não se provou que o contrato tivesse sido confirmado pelos demais consortes, como também não ficou provado que o CC fosse o administrador da herança e esta (Relação), porque quem interveio como locador não estava investido na invocada qualidade de proprietário, como também tinha sido preterida a redução do contrato a escritura pública.

A recorrente dissente da posição assumida pelas instâncias, considerando que a DD & Companhia, Lda, era uma Sociedade familiar de todos os Herdeiros e Interessados e no Casal e na Herança Indivisa. O senhorio e proprietário do imóvel "Casal do ....", tratando-se de Herança indivisa desde a morte do seu primitivo proprietário DD (Sénior), em 21.03.1958, ficou legalmente representada no local pelo cabeça-de-Casal em cada momento existente e consentido pelos demais herdeiros ao longo do tempo.
Foi assim com a viúva, EE , que exerceu essas funções desde a morte do marido até 25.07.1965, data em que faleceu, foi assim com o filho varão mais velho, DD Júnior, que exerceu aquela função desde a morte da mãe até 14.08.1968, data em que veio a falecer; e foi assim com o filho varão mais novo, CC, desde a morte do irmão até 1997, data em que faleceu também.
O CC administrava a Herança (e o "Casal do ....." que a integrava) naquela qualidade de cabeça-de-casal e também na qualidade de gerente da Sociedade EE & Ca., Sociedade da família (todos os Herdeiros eram sócios) e que estava instalada e a laborar no local.
Nesta dupla qualidade, CC negociou, acordou e consensualizou com o R./Apelante a relação jurídica de arrendamento e, portanto, com plena legitimidade de senhorio, nos termos do disposto nos artigos 2079° e 2087º do C.Civil.

Antes de nos debruçarmos sobre esta questão, importa ter presente que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue aplicável (art. 729º, nº1, do CPC).
Consequentemente, não conhece de matéria de facto, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (arts. 729º, nº 2 e 722º, nº 2, do mesmo diploma).
É que, sem qualquer dúvida, cabe às instâncias apurar a factualidade relevante, sendo que na definição da matéria fáctica necessária para a solução do litígio, a última palavra cabe à Relação.
Daí que, a tal propósito, a intervenção do Supremo Tribunal se apresente como residual e apenas destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material - art. 722º, nº 2 - ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto - art. 729º, nº3, do CPC. Aliás, não poderá esquecer-se que só à Relação compete censurar as respostas à base instrutória ou anular a decisão proferida na 1ª instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos nºs 1 e 4 do art. 712º, do mesmo Código.
Pode, assim, afirmar-se que, no âmbito do julgamento da matéria de facto, se movem as instâncias, estando, em princípio, vedado ao Supremo Tribunal de Justiça proceder à respectiva sindicância.
Por outro lado, visto que o princípio do contraditório constitui pedra angular do nosso sistema adjectivo, segue-se que cada uma das partes só poderá responder às pretensões da contra-parte se puder conhecer com exactidão essas pretensões e os fundamentos a que as mesmas se acobertam (art. 3º do CPC).
O que se deixa dito já evidencia a relevância do pedido e da causa de pedir: é por eles que se identifica a acção e é por eles que ficam circunscritas as questões decidendas.
Sabe-se que o pedido é enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto que ele aduz como título aquisitivo desse direito (cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares do Processo Civil, 1939, pags. 321 e 322).
Mas uma coisa é o concreto facto jurídico invocado e outra a qualificação jurídica que dele se operar.
Vigorando entre nós, nesta matéria, a teoria da substanciação, não basta ao autor identificar o direito invocado, através do seu conteúdo e objecto, antes se impõe, ainda, que ele concretize a sua causa de pedir, isto é, o facto ou o título constitutivo desse arrogado direito.
No caso específico de acções emergentes de direitos das obrigações - como ao caso importa - a causa de pedir é o facto jurídico concreto de que nasceu o direito de crédito (compra e venda, prestação de serviços, empréstimo, etc.) – cfr. Alberto dos Reis, in Comentário, III, pag. 122.
Mas o que é que concretamente se impõe ao autor aduzir?
No quadro de repartição do ónus da prova, cabe ao autor provar os factos constitutivos do direito invocado e ao réu provar os factos extintivos, modificativos ou impeditivos desse pretenso direito - art. 342º.
Como o ónus de alegação está intimamente conexionado com o ónus da prova, temos que a cada parte compete alegar a factualidade que lhe cumpre, subsequentemente, provar.
E, “…atenta a relação de instrumentalidade existente entre o direito processual civil e o direito substantivo, é à luz do direito substantivo aplicável que deve ser feita a determinação dos factos constitutivos (bem como dos factos extintivos, modificativos ou impeditivos) da pretensão formulada pelo autor” (Antunes Varela, in RLJ, ano 116, pag. 380).

Ademais, às partes cabe, em exclusivo, definir o objecto do litígio através da dedução das suas pretensões e da correlativa alegação dos factos que integram a causa de pedir ou que sirvam de fundamento a eventuais excepções, de tal modo que, em princípio, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.
Assim, quanto aos factos essenciais, funciona em pleno o princípio da auto-responsabilidade das partes, enquanto emanação da regra do dispositivo, embora, para além da atendibilidade dos factos notórios (art. 514º do CPC) e do dever de obstar ao uso anormal do processo (art. 665º), se reconheça, agora, ao juiz a possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, os factos meramente instrumentais e de os utilizar quando resultem da instrução e do julgamento da causa (art. 264º, nº2, do mesmo Código).
Mais ainda: se da instrução e discussão da causa resultarem factos complementares de factos essenciais aduzidos pelas partes ou factos que traduzam uma mera concretização de outros que a parte haja oportunamente alegado, tais factos podem, de igual modo, ser considerados na decisão, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório (nº 3 do art. 264º, do mesmo diploma legal).

Tudo isto para dizer, como supra se referiu, que competia à ré a prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito do autor, a prova da excepção, a prova de que possui por virtude de um direito real ou obrigacional que lhe permite recusar a restituição, que legitima a sua posse ou detenção.

Ora, como é assinalado no acórdão impugnado, os argumentos invocados no recurso de apelação e a que fizemos referência não constam da matéria alegada na contestação - o único articulado da ré.
E, do específico ponto de vista da instância recursiva, tem-se por certo que, como é jurisprudência uniforme, sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados), ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido (confirmando-as, revogando-as ou anulando-as) e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em sede de matéria indisponível, a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo Tribunal ad quem (art. 676º CPC).

O que ficou provado foi que, com data de 24 de Abril de 1992, DD Companhia, Lda, e a ré outorgaram um contrato, mediante o qual a primeira cedia à segunda, por Esc. 14.140$00 mensais, actualizáveis, o prédio a que se reportam estes autos, conforme documento de f1s. 50 (al. E) e que a DD emitiu o documento, cuja cópia se encontra a fls. 51, na qual que recebeu de Transportes J..J... a quantia de Esc. 18.560$00 pela renda de um armazém na minha propriedade do casal do ..... (al. F) – v. rectificação da Relação).
Como se alcança do mesmo contrato que DD, Companhia, Lda, celebrou o aludido contrato com a ré, invocando a qualidade de “dona e legítima proprietária” do prédio dado de arrendamento.
Mais se provou que, por escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 14 de Janeiro de 2000, a autora adquiriu a propriedade e posse plena e exclusiva do prédio urbano denominado "Casal do .....", sito em Lisboa, Estrada de Monsanto, à Cruz das Oliveiras, freguesia de Alcântara, inscrito actualmente na matriz urbana sob o artigo 1880º (anteriormente sob os artigos 160°, 161º e 1117º da mesma freguesia), descrito na 6a Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha n° 869/980921 e que o Casal do....... era, até então, detido em compropriedade por catorze pessoas singulares.

De todo o modo, tendo em conta a data em que foi celebrado o aludido contrato de arrendamento para o comércio (24 de Abril de 1992), portanto, em plena vigência do RAU, aprovado pelo DL. nº 321-B/90, de 15 de Outubro, sempre teria de ser reduzido a escritura pública, nos termos do nº 2, al. b), do art. 7º, na redacção então em vigor, como se assinala no acórdão impugnado, o que determina a sua nulidade, conforme se dispõe no art. 286º, não podendo ser convalidado com a exibição do recibo de renda, por lhe ser inaplicável o nº 3, do referido art. 7º do RAU (cfr. Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 3ª ed., pag. 146), o que sempre seria inútil saber a qualidade em que o CC interveio no contrato, bem assim a apreciação de todas as restantes questões, que, neste âmbito, a recorrente coloca à apreciação do STJ.

Alega a recorrente que a autora actuou com abuso de direito, pois que excedeu, manifestamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico visado. Como este excesso se manifesta pela inércia ou omissão do exercício durante anos de perdurabilidade da situação.
A conduta anterior de inacção de todos os herdeiros, consortes e interessados, ao deixar passar tanto tempo sem o exercer, foi sempre entendida e objectivamente interpretada por si no sentido de que, face à lei vigente ao tempo, aos bons costumes e à boa fé, esse direito não seria exercido nos termos em que o veio a ser.

O abuso de direito - art. 334º - traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Não basta, porém, que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
Como não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, isto é, não é necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que, na realidade (objectivamente), esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e clara, assim se acolhendo a concepção objectiva do abuso do direito (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pag. 217).
A complexa figura do abuso de direito, como é sublinhado no Acórdão do STJ, de 21.9.93 (C.J., III, pag. 21), citando Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, pags. 63 e sgs.; Almeida Costa, Direito das Obrigações, pags. 60 e sgs.; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pags. 298 e sgs. e Antunes Varela, RLJ, 114º-75, «é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico inoperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento».
O abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.
Como refere Baptista Machado (Obra Dispersa, I, 415 e ss.) o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.
É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.”
Está ínsita a ideia de “dolus praesens”.
O conceito de boa fé constante do art. 334º do Código Civil tem um sentido ético, que se reconduz às exigências fundamentais da ética jurídica, “que se exprimem na virtude de manter a palavra dada e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do circulo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos” (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pags. 104-105).
“Uma conduta para ser integradora do “venire” terá de, objectivamente, trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em si, uma clara injustiça.
Ou seja, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade, por “factum proprium” dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta pregressa.
Não se busca o “animus nocendi” mas, e como acima se acenou, apenas um comportamento anteriormente assumido que, objectivamente, contrarie aquele” (Ac. STJ, de 15.5.2007, www.dgsi.pt).
Para o Prof. Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil, 45) “o venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo”.
E o mesmo Professor considera (ROA, 58º, 1998, 964) que o “venire contra factum proprium” pressupõe: “1º- Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no “factum proprium”); 2º- Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do “factum proprium” seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis”; 3º- Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do “factum proprium”, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo “venire”) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4º- Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no “factum proprium”) lhe seja de algum modo recondutível.”
Por outro lado, ensina o mesmo Autor, a propósito do “modelo de decisão” a compor pelo tribunal em situações enquadráveis na figura da supressio, que “o não exercício prolongado está na base quer da situação de confiança quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de, mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inacção. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objectiva”.

O que nos mostram os factos não pode ser reconduzido ao instituto do abuso de direito.
Veja-se, com efeito, que a autora, cerca de dois meses depois do contrato de compra e venda, por notificação judicial avulsa de 20 de Março de 2000, intimou a ré para lhe exibir o título jurídico ao abrigo do qual ocupava parte do imóvel da primeira e ainda a notificou da sua intenção de, na inexistência do dito título, cessar a ocupação do dito espaço.
Ademais, não se pode onerar o adquirente de um prédio com a validação de uma situação de nulidade perante o alienante.
Donde podemos concluir que a autora não actuou com abuso de direito.

A última questão tem a ver com a condenação da ré a pagar à autora a indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença pelos prejuízos sofridos por esta e pelos benefícios que deixar de obter em resultado da sua recusa a entregar a dita parcela.

Nada impede que, nos termos do disposto no art. 470º do CPC, o autor formule os pedidos característicos da acção de reivindicação e com eles cumule pedido de indemnização a que haja lugar pelo rendimento que o proprietário podia retirar do imóvel, se não fosse a indevida ocupação e mesmo que o proprietário não haja sofrido prejuízo com a indevida ocupação.
Como refere Abrantes Geraldes (Indemnização Do Dano Da Privação Do Uso, pags. 55, 61 e 62), desde que a violação do direito de propriedade e a decorrente privação do uso derivem da prática de acto ilícito, a par do pedido de reivindicação, nos termos do art. 1311º do CC, pode ser formulado o pedido de indemnização, como forma de repor a situação anterior e de reparar os prejuízos decorrentes da privação, como ocorre quando esta atinge bens imóveis; se se provar que a indisponibilidade foi causa directa de prejuízos resultantes da redução ou perda de receitas, da perda de oportunidades de negócio ou da desvalorização do bem, não se questiona o direito de indemnização atinente aos lucros cessantes.
Mas mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem, o lesado deve ser compensado monetariamente pelo período correspondente ao impedimento dos poderes de fruição ou de disposição.
A simples falta de prova (ou de alegação) desses danos concretos não conduz necessariamente à denegação da pretensão indemnizatória. Sem embargo da prova que possa ser feita da total ausência de danos, não deve descartar-se o recurso à equidade para encontrar, no balanceamento dos factos e das regras de experiência, um valor razoável e justo. Não é imprescindível que o lesado invariavelmente alegue e prove a existência de danos efectivos.
Decerto tais danos podem ser invocados. E, uma vez provados, podem servir para, com mais rigor, quantificar a indemnização ou permitir a atribuição de um quantitativo superior.

Está provado que a permanência da ré na parcela ocupada obsta à execução dos trabalhos de urbanização do Casal do ........., o que impede a autora de construir e comercializar os futuros edifícios, impedindo a autora de rentabilizar o investimento efectuado.

Quando alguém adquire ou projecta adquirir um bem para exercer sobre o mesmo os inerentes poderes de proprietário, não lhe é indiferente a data em que a aquisição ou a entrada na posse se verifica.
Pode dizer-se que, na situação assinalada, uma dilação excessiva na disponibilidade material e jurídica do bem não deixará de constituir uma perturbação da relação entre o credor e o seu património, privando-o do seu uso normal e das correspondentes utilidades que poderiam ser proporcionadas, o que, em regra, não poderá deixar de ser monetariamente compensado.
Tendo em conta que a autora exerce uma actividade lucrativa, a privação do uso de um bem imóvel não pode deixar de ser compensada através da atribuição de uma indemnização, cuja quantificação, em último caso, fosse feita com recurso às regras da equidade, sem embargo da possibilidade de relegar a sua concretização para liquidar em incidente posterior.

Improcedem, pois, todas as conclusões da recorrente

4.
Face ao exposto, decide-se negar a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 28 de Maio de 2009

Oliveira Rocha (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista