Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9074/09.8T2SNT.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO AFONSO
Descritores: RESTITUIÇÃO DE POSSE
PRIVAÇÃO DO USO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
LUCRO CESSANTE
DANO EMERGENTE
Data do Acordão: 10/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL / DIREITOS REAIS / RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL/ DIREITO PROCESSUAL CIVIL / RECURSOS / OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: ARTS. 721.º, N.º 3, 721.º-A, N.º 1, AL. C); CÓDIGO CIVIL: ARTS. 483.º, 564.º, N.º 2, 564.º, 566.º E 1284, N.º 1
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO STJ DE 18-11-2008, REVISTA N.º 2738/08, 2.ª SECÇÃO
Sumário :
I - Criando, o art. 1284.º, n.º 1, do CC, uma responsabilidade civil autónoma, na medida em que o facto ilícito decorre da turbação da posse ou do seu esbulho, não deixa a mesma de ter como pressupostos os descritos no art. 483.º do CC: violação de um direito ou interesse alheio; ilicitude; imputação do facto ao agente; dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.

II - Assim, necessário se torna que os prejuízos, de cuja imputação se trata, sejam alheios e sejam certos, porque só estes poderão ser reparados, e já não os prejuízos possíveis ou eventuais de verificação incerta.

III - Os lucros cessantes, enquanto prejuízos futuros reportados a um advir hipotético, baseiam-se sempre num futuro normal e provável, no sentido jurídico do termo (art. 564.º, n.º 2 do CC).

IV - A privação de um bem (no caso um imóvel), por turbação ou esbulho não confere, sem mais, direito a indemnização ao possuidor restituído, havendo este que fazer prova da existência de prejuízos reparáveis, quer na forma de danos emergentes, quer de lucros cessantes ou ainda de danos não patrimoniais.

V - A circunstância de o imóvel poder, hipoteticamente, ser vendido ou arrendado não é por si só suficiente para se ter o dano como previsível.
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO


         Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça:

A) Relatório:

         Pelo Tribunal Judicial inserto na comarca de Sintra (hoje, Grande Lisboa Noroeste) corre processo comum na forma ordinária em que são AA AA; BB; CC; DD e EE, todos identificados nos autos e R. FF, ..., S.A., pedindo aqueles que se restitua definitivamente a posse do armazém 3, bem como se condene a R. a pagar-lhes a quantia de € 30.000,00, para reparação dos danos acusados nas instalações pela ocupação destas com centenas de toneladas de mercadorias e ainda a pagar-lhes o montante de € 46.600,00, correspondente ao valor das rendas que os Autores poderiam ter auferido, desde Setembro de 2008 até ao presente, mais o valor das rendas, calculado por este montante, que entretanto se vencerem até à restituição definitiva da posse do armazém aos Autores.

Por requerimento de 28/5/2009, vieram os autores informar que a R. lhes restituiu o armazém no dia 20/5, pelo que tomaram posse do mesmo a partir dessa data, desistindo do pedido de restituição do posse.

A Meritíssima Juiz homologou a desistência no que respeita ao dito pedido.

Contestou a R. pedindo a improcedência da acção.

Foi proferida sentença que julgando a acção parcialmente procedente, condenou a R. a pagar aos AA a quantia de € 27.600,00.

Desta sentença recorreu a R tendo O Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação confirmando a sentença recorrida.

Inconformada recorreu a R para o STJ em revista excepcional invocando a contradição de julgados, dizendo, em conclusão, e com interesse para a discussão da causa o seguinte:

Os recorridos não provaram que a alegada ocupação do armazém 3 excedesse a área correspondente ao direito de propriedade da recorrente;

Ainda que assim se não entenda, certo é que a privação do uso, sem mais, não é suficiente para a existência de dano indemnizável (Ac. do STJ de 10/7/2008);

Não tendo os recorridos demonstrado o uso concreto, efectivo, real, não houve dano, logo, não há qualquer obrigação de indemnizar;

De qualquer forma, a indemnização não poderia compensar um eventual arrendamento visto que, durante o período em causa, os recorridos pretendiam vender o armazém3, e não arrendá-lo;

Acresce que o alegado direito dos recorridos é um direito diminuído pois não podem alienar o armazém3;

A eventual renda, elemento definidor do contrato de arrendamento, não pode sustentar o pretenso dano sofrido pelos recorridos.

Contra-alegaram os recorridos pugnando pela bondade do decidido no Tribunal a quo

O Colectivo de Juízes a que se refere o art.721º-A, nº3 do Código do Processo Civil (CPC) admitiu o recurso de revista excepcional por se lhe afigurar haver contradição entre o acórdão recorrido e os acórdãos fundamento do STJ de 12/11/2009 e de 18/11/2008.


***

Tudo visto,

Cumpre decidir:

B) Os Factos:

Pelas instâncias foram dados como provados os seguintes factos:

Os AA. requereram contra a R. Procedimento Cautelar de Restituição Provisória de Posse que se encontra apensa, no qual foi ordenado "que a Requerida restitua aos Requerentes o armazém 3 identificado, livre e desocupado, sendo a mesma notificada para o fazer sob pena de desobediência", (a).

A 1a A. e os restantes AA., que são seus filhos, são os únicos herdeiros de GG, falecido em 5 de Fevereiro de 1998. Doe. junto a fls. 18 da providência em apenso, que se dá como inteiramente reproduzido, (b).

Encontra-se registada a favor da 1a A. e de GG a aquisição do imóvel, que corresponde ao prédio rústico denominado "T...", descrito na 2a Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob o n° …, no qual existem edificações destinadas a instalações industriais.

Uma daquelas instalações industriais é hoje o armazém 3, parte do prédio T..., sito no ..., freguesia de ..., concelho de Sintra, inscrito na Matriz Predial urbana sob o Artigo ..., com a área coberta de 2.300 m2. Doe. junto a fls. 25 da providência cautelar apensa, (d).

A R. FF está instalada num edifício contíguo ao aludido armazém 3, edifício este que, em tempos, pertenceu ao falecido GG e à 1a A. e no qual esteve instalada a "HH", (e).

À II tinha sido confiada uma chave do armazém 3. (f).

Em 3/12/2008 um soldado da GNR foi informado por alguém que se intitulou Director da FF, de que esta "estava a ocupar o armazém porque havia um acordo entre os advogados, porque estava tudo em tribunal, o armazém era ilegal, e 600 m2 da área deste pertenciam à FF". (g).

Encontravam-se, naquele armazém, algumas centenas de toneladas de mercadorias e outros objectos. (h).

0 mesmo Director entrou pela porta da frente do armazém e veio falar com o 2° A. a quem disse que tinha uma chave daquela porta do armazém, que lhe fora fornecida pela II, o que lhe tinha permitido o acesso ao armazém e a abertura do portão de comunicação com a FF. (i).

0 2° A. constatou que, do lado da FF, rebentaram com o cadeado que aquele acabara de colocar no portão, (j).

         Perante os soldados da GNR apareceu, o administrador da FF - Eng° JJ o qual afirmou que o armazém é ilegal, está em terreno da FF, que havia um acordo de advogados, que paga impostos sobre o terreno, e que a 1aA. tinha ficado de lhe dizer se aceitava a pro­posta de compra que lhe tinha feito e que ainda não tinha respondido. (I).

Há várias dezenas de anos, o terreno rústico "T..." era contíguo a um outro, propriedade também do falecido GG casado, no regime da comunhão geral, com a ora 1aA. (m).

No outro terreno, o dito GG construiu um edifício onde foi instalada a "HH", (n).

GG mandou construir armazéns, tendo a edificação do armazém 3 ficou concluída em 1991. (o).

Ao tentar regularizar na Câmara de Sintra aquelas edificações, verificaram, os serviços camarários, que cerca de 400 m2 do armazém 3 estavam sobre terreno que pertence hoje à FF (mas que, então, era propriedade de uma empresa denominada "KK"), e cerca de 200 m2 do arma­zém contíguo àquele estavam também sobre aquele terreno, (p).

Isto é explicável pela circunstância de, tanto o "T..." como o terreno contíguo a este, terem sido ambos dos mesmos donos, o referido GG e sua mulher, ora A. (q).

No ano de 2008, em Fevereiro ou Março, os ora 1a e 2o AA. contactaram a agora proprietária do terreno contíguo - a aqui R. - com a mesma finalidade de adquirirem aquele triângulo de terreno de cerca de 600 m2. (r).

Também esta se recusou a vender a parcela de terreno e também ela propôs a compra do "T..." por preço que foi considerado baixo. (s).

Quanto ao armazém 3 ainda não foi possível encerrar o processo de obras na Câmara, pelos motivos que acabam de ser referidos e atinentes à tal parcela de terreno de 600 m2. (t).

A R. é proprietária de uma parcela de 400 m2 de terreno sobre o qual está implantado um armazém com a área de 2.300 m2 - o armazém 3. (u).

Encontra-se registada a favor da R. a aquisição do prédio urbano sito na Rua …, n° …e …a, ..., descrito na conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n° …, a que corresponde o artigo de matriz …, da freguesia de …. Doe. junto a fls. 163 da providência cautelar apensa, que se dá por inteiramente reproduzido.

         Em 3 de Fevereiro de 2008, a A. e LL acordaram em celebrar um contrato promessa de compra e venda tendo como objecto o referido armazém 3. (art° 1o).

0 promitente comprador devidamente autorizado pelos proprietários, pretende fazer obras no armazém com vista a adaptá-lo aos fins para que o destina futuramente. (art° 2o).

Com aquele intuito, em 3 de Dezembro de 2008, cerca das 14.00 horas, dirigiu-se ao armazém, acompanhado de um técnico que ali iria colher dados para um orçamento das referidas obras e chegado ao local, abriu a porta do armazém mas não conseguiu entrar porque uma segunda porta, existente por detrás da primeira, estava fechada e não se movia. (art° 3o).

Telefonou, então, ao ora 2o A. dando a este conhecimento do ocorrido e informando-o de que, tendo espreitado pelo orifício da entrega da correspondência, viu que havia bobinas encostadas, por dentro, à tal porta que não abria, e de que verificou que alguém tinha tapado com madeira, pelo lado de dentro, os espaços de alguns vidros de janela da fachada do armazém, que estavam partidos. (art° 4o).

Posteriormente veio a saber que tinha sido alguém que, por parte da FF, que se introduzira no armazém 3, utilizando a chave confiada à II. (art° 5o).

De seguida, o 2o A. dirigiu-se ao local do armazém de onde, depois de confirmar que neste não conseguia entrar, telefonou à autoridade, Guarda Nacional Republicana, Posto Territorial de Pêro Pinheiro, a qual enviou para o local dois dos seus soldados. (art° 6o).

Existe um portão de acesso ao armazém 3 que, em tempo recuado, permitia a ligação com a HH, portão este que se encontrava encerrado há vários anos. (art° 7o).

A FF informou a GNR que "tinham soldado a tal porta da frente do edifício, por razões de segurança, e ainda que a ocupação já tinha tido início há dois meses e meio". (art° 8o).

Aquele portão foi aberto pelo Director da R. verificando-se que o armazém estava ocupado por bobinas de cabos, paletes, caixas, dois automóveis, um empilhador, uma moto, mobiliário, material eléctrico, em espaço e volume não concretamente apurado. (art° 9o).

No dia 4 do mês de Dezembro, o 2o A. munido de um cadeado destinado a fechar o portão de comunicação com a FF, dirigiu-se ao armazém onde procedeu à colocação do referido cadeado, no portão. (art°10°).

0 valor de arrendamento do armazém não é inferior a € 4.600,00 por mês. (art° 12o).

A R. foi autorizada a aceder ao armazém 3 para fazer medições e estudos no âmbito das negociações que estavam a decorrer entre ela e os AA. (art° 14°).

Nesse sentido a R. teve acesso a uma chave da porta principal do armazém 3, que lhe foi entregue pela II, autorizado verbalmente pelo 2o A. (art° 15o).

No terreno da R. existe um portão de acesso ao armazém 3. (arf 16o).

         C) O Direito:

         No presente recurso, apenas, está em causa a indemnização devida pela recorrente aos recorridos por privação do uso do armazém identificado nos autos.

         Tendo sido decidido pelas instâncias ser devida à A. a importância de 27.600,00 € sempre se estaria perante um caso de dupla conforme a que se refere o art.721ºnº3 do Código do Processo Civil (CPC) e nessa medida estaria vedado o recurso de revista para o STJ: No entanto entendeu a formação a que se refere o nº3 do art.721º-A do CPC ser de admitir o recurso por contradição de julgados.

         A acção proposta pelos AA (aqui recorridos) continha dois pedidos: um de restituição de posse e um pedido indemnizatório por privação do uso do armazém esbulhado.

         Os AA desistiram do pedido de restituição de posse por o armazém, identificado nos autos, lhes ter sido já entregue, restando, por isso, apenas, o pedido de indemnização referido na petição inicial.

         Decidiu o Tribunal da Relação que os AA tinham direito a ser indemnizados desde o momento em que não puderam entrar no armazém e mostrá-lo ao promitente comprador, até ao momento em que a R o restituiu àqueles, sendo desnecessária a prova pelos AA de que tinham alguém disposto a arrendar o armazém e que foram impedidos de o fazer pela ocupação abusiva.

         Entendeu, pois, a Relação que a mera privação do uso constitui um dano autónomo, de natureza patrimonial, indemnizável.

         Os acórdãos fundamento do STJ apresentados pela recorrente  defenderam que a privação do uso de um imóvel decorrente de ocupação ilícita, por ofensiva da propriedade do reivindicante, não confere, sem mais, a este, o direito de indemnização, sendo necessária a alegação e prova dos danos decorrentes de tal privação; não basta a simples alegação de que a não restituição do imóvel está a causar prejuízos aos proprietários, sendo necessária a alegação e prova de tais prejuízos.

         O art.1284ºnº1 do Código Civil (CC) diz que: “O possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em consequência da turbação ou do esbulho”. Este artigo criando, embora, uma responsabilidade civil autónoma na medida em que o facto ilícito decorre da perturbação da posse ou do seu esbulho, não deixa tal responsabilidade de ter como pressupostos os descritos no art.483º do CC: violação de um direito ou interesse alheio; ilicitude (e estes decorrem a própria perturbação da posse); vínculo de imputação do facto ao agente; dano; nexo de causalidade entre o facto e o dano.

         O dano concretiza-se nos prejuízos reparáveis sofridos pelo lesado ou lesados. O prejuízo é, antes, a frustração ou privação das vantagens que o lesado tiraria do bem.

         Para que possa verificar-se uma situação de responsabilidade civil é necessário que os prejuízos de cuja imputação se trata, sejam alheios e sejam certos porque só estes podem ser reparados; não poderão sê-lo os meros prejuízos possíveis ou eventuais, de verificação incerta.

         Se quanto aos danos emergentes a certeza ou incerteza não apresenta em geral dúvidas, já o mesmo se não pode dizer dos lucros cessantes que, por serem prejuízos futuros e reportados a um advir hipotético (frustração de ganhos que se teriam obtido se não fosse a lesão) nunca se apresentam com carácter de certeza absoluta.

         A certeza dos lucros cessantes é sempre baseada num futuro normal e, como tal, simplesmente provável (art.564ºnº2 do CC) no sentido jurídico do termo, ou seja, de que se tenha feito prova.

         Maioritariamente o STJ tem entendido (por todos o acórdão fundamento de 18/11/2008, revista nº2738/08 – 2ª secção) que a privação de um bem (in casu um imóvel), por turbação ou esbulho não confere, sem mais, ao possuidor restituído o direito a indemnização sem provar a existência de prejuízos reparáveis, sejam eles danos patrimoniais na forma de danos emergentes ou lucros cessantes ou danos não patrimoniais.

         Aos AA atentos os pressupostos da responsabilidade que pretendem efectivar e o prescrito no art.342ºnº1, 483ºnº1, 562º, 564º e 566º todos do CC, cumpria alegar e provar os danos decorrentes de tal privação e neste caso a existência de danos certos.

         Da matéria dada como provada retira-se que os AA pretenderiam vender o armazém. Nesse sentido em 3 de Fevereiro de 2008, a A. e LL acordaram em celebrar um contrato promessa de compra e venda, tendo como objecto o referido armazém, porém, nada mais se sabe sobre os termos do referido acordo e quais os eventuais prejuízos resultantes da sua não concretização. Também quanto a um possível arrendamento apenas se sabe que o valor de arrendamento do armazém não é inferior a € 4.600,00 por mês, contudo, não ficou provado que teriam existido diligência sérias de celebração de qualquer contrato de arrendamento, por que valor, e se algum deixou de se efectivar em virtude da privação do uso do imóvel.

         Assim, não vemos como possa ser concedida uma indemnização aos AA com fundamento na perturbação da posse. É certo que o imóvel em causa poderia, hipoteticamente, ser vendido ou arrendado, porém, como se disse o prejuízo não pode ser eventual ou hipotético, sempre teria que ser previsível e par tal encontrar-se provado.

         Não tendo os AA logrado fazer prova dos seus prejuízos não pode o pedido indemnizatório deixar de naufragar.

         Nesta conformidade, por todo o exposto acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça, em conceder revista revogando o acórdão recorrido e, consequentemente, absolver a R do pedido indemnizatório.

         Custas pelos AA.

Lisboa, 3 de Outubro de 2013

Orlando Afonso (Relator)

Távora Victor

Sérgio Poças