Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
516/16.7T8TVD-A.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ALIMENTOS
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO
FILHO MAIOR
LEGITIMIDADE DO PROGENITOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/19/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- O progenitor que suporta inteiramente as despesas relativas a filho maior de 18 anos e menor de 25 que se mantém a estudar tem legitimidade para exigir judicialmente o cumprimento da obrigação de alimentos que o outro progenitor indevidamente interrompeu quando o filho de ambos atingiu a maioridade.
II- O incidente de incumprimento das responsabilidades parentais constitui um dos meios processuais adequados para atingir os efeitos referidos em I .
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
Por apenso aos autos de homologação de acordo de alteração das responsabilidades parentais nº 516/16.7T8TVD-A que correu termos no Juízo de Família e Menores de Torres Vedras, veio A [ Maria …] intentar incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra B [ Rui …..] , pedindo que “seja o requerido condenado a pagar as pensões de alimentos referentes aos meses de junho a dezembro de 2019 e janeiro a maio de 2020, no valor total de € 2.924,93 (…) e ainda, condenado a pagar as prestações que se vencerem após a entrada do presente incidente e até efetivo e integral pagamento”.
Para tanto alegou, em síntese, que:
- Nos termos do acordo supra identificado o requerido obrigou-se a suportar uma pensão de alimentos a favor do filho de ambos, C [ Francisco ….] , nascido em 22-05-2001, no valor de € 235 mensais, a depositar na conta da requerente;
- Assim que o C atingiu a maioridade, ou seja, em 22-05-2019, o requerido deixou de pagar aquela pensão de alimentos;
- O C encontra-se a frequentar uma licenciatura, pelo que nos termos da lei tem direito a receber alimentos do requerido até completar a sua formação universitária, ou até completar 25 anos;
- Apesar de instado, o requerido recusa-se a cumprir a sua obrigação de alimentos.
- A última prestação alimentar paga pelo requerido foi por este satisfeita em 04-05-2019.
Aberta vista à Digna Procuradora da República, a mesma promoveu “o cumprimento do disposto no nº 3 do artigo 41º do RGPTC”.
Seguidamente foi proferido o despacho com a refª 144895380, de 19-06-2020 (fls. 7-8, no qual o Tribunal a quo decidiu o que segue:
A deduziu o presente incidente de incumprimento contra B para cobrança da pensão de alimentos devida ao seu filho (então menor) C, fixada a cargo do pai.
Compulsado o assento de nascimento verifico que o referido C nasceu a 22 de maio de 2001.
Cumpre apreciar e decidir:
Face à sua data de nascimento, C atingiu a maioridade a 22/05/2019.
A Lei nº 122/2015 entrou em vigor no dia 01/10/2015, face ao que dispõe o seu artº 4º.
Não ressalvando, este diploma, a sua aplicação retroativa, temos que o seu regime só dispõe para o futuro, por força do disposto no artº 12º, nº 1 do Código Civil.
Até à entrada em vigor da Lei nº 122/2015, a pensão de alimentos fixada na menoridade cessava com a maioridade do filho, devendo este intentar contra os seus progenitores ação para fixação de alimentos (devidos a maior), quando continuasse a carecer de alimentos, mormente para completar a sua educação e formação.
Com a entrada em vigor da alteração introduzida ao artº 1905º (nº 2) do Código Civil pela Lei nº 122/2015, passou a manter-se “para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data”.
Assim, desde logo, as pensões de alimentos fixadas na menoridade, que se mantenham à data entrada em vigor da Lei nº 122/2015 (ou seja, que se mantivessem a 01/10/2015, por nesta data o beneficiário ainda ser menor), mantêm-se até que o filho atinja 25 anos, só cessando se o responsável, pelo meio próprio (ação de cessação da obrigação de alimentos), o vier pedir, alegando e provando ou que o filho já completou a sua educação e formação ou que a interrompeu livremente ou ainda que é irrazoável a exigência de tal pensão.
Vale por dizer que, a pensão de alimentos referente a C e fixada na sua menoridade não cessou quando este atingiu a maioridade (ou seja, em 22/05/2019), porquanto, à data já se encontra em vigor a Lei nº 122/2015, havendo, portanto, norma a impor a “manutenção”, para a maioridade, da pensão fixada na menoridade. Ou seja, quando entra em vigor a citada norma (em 01/10/2015) ainda C era menor, pelo que, por se tratar de pensão que não tinha cessado por efeito da maioridade, mantém-se, por aplicação da referida Lei.
Neste caso, muito embora a pensão se mantenha em vigor (e para que cesse, tem que o pai intentar a competente ação de cessação da pensão de alimentos), não pode ser a mãe a, em representação de C, exigir o seu pagamento, nem o pode continuar a fazer no âmbito deste especialíssimo incidente de incumprimento.
E não pode ser a mãe, em representação de C, porque este, por virtude da maioridade atingida passou a poder, por si, exercer plenamente os seus direitos, deixando de ter que ser representado (por já não ser incapaz) pela mãe. Perdeu, assim, a mãe legitimidade para agir em juízo em representação do filho.
Por outro lado, o incidente de incumprimento é um processo especialíssimo destinado a proteger os menores, tornando efetivo, em benefício destes, o regime de regulação das responsabilidades parentais, designadamente quanto a alimentos.
Vale por dizer que, mantendo-se embora o direito de C à pensão de alimentos, tem que ser o titular do direito (e, portanto, o próprio C), por si só (e não representado pela mãe, que perdeu legitimidade), através do processo próprio (execução por alimentos) a fazer valer o seu direito.
Neste sentido se tem vindo a pronunciar a jurisprudência dos Tribunais Superiores (vide, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/06/2016, proferido no processo nº 6692/05.7TBSXL-C.L1-2, acessível, na presente data, in http://www.lexpoint.pt).
Termos em que, determino o arquivamento dos autos, quer por falta de legitimidade da requerente continuar a agir em juízo em representação do seu filho maior, quer por inadmissibilidade do procedimento.
Custas pela requerente, com taxa de justiça pelo mínimo legal.
Registe e notifique.
Notifique.
Dê baixa.
Torres Vedras, d.s.”
Inconformado com este despacho, veio a requerente interpor o presente recurso de apelação, apresentando alegações de recurso, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:
A) A progenitora residente tem legitimidade ativa para propor os presentes autos.
B) Esta legitimidade é-lhe conferida pela Lei nº 122/15 de 1 de setembro de 2015.
C) Por força da referida Lei, o nº 2 do art. 1905º do Código Civil passou a estabelecer que “Para efeitos do disposto no art. 1880º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu beneficio durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da exigência”.
D) Para possibilitar a concretização desta modificação ao regime substantivo, a referida Lei, procedeu à correspondente alteração no âmbito processual, atribuindo também ao progenitor residente que suporta o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores, a legitimidade para exigir do progenitor não residente (obrigado aos alimentos) ao respetivo pagamento, através da inovação introduzida com o aditamento do nº 3 no art. 989º do CPC que estipula que “o progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores que não podem sustentar-se a si mesmos pode exigir ao outro progenitor o pagamento de uma contribuição para o sustento e educação dos filhos, nos termos dos números anteriores”.
E) O Tribunal a quo, fez assim, má aplicação do Direito, o qual permite hoje ao progenitor que suporta os alimentos do filho maior socorrer-se do incidente de incumprimento de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades contra o progenitor não residente.
Admitido o recurso, foi o mesmo remetido a este Tribunal da Relação, tendo o relator proferido despacho determinando a baixa dos autos ao Tribunal Recorrido, a fim de se proceder à notificação do requerido para os termos da causa e do recurso, nos termos previstos nos arts. 617º, nº 5 do CPC e 41º, nº 3 do RGPTC.
 Baixaram então os autos ao Tribunal a quo, que diligenciou pela notificação do recorrido, nos termos determinados. Não obstante tal notificação, o recorrido nada disse.
Remetidos os autos, de novo, a este Tribunal, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, foram colhidos os vistos.
2. Questão a decidir
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[1]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil).
Não obstante, e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal apreciar questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
Assim sendo, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
- A ilegitimidade ativa
- O erro na forma de processo.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
Os factos a considerar são os que resultam do relatório.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da ilegitimidade ativa
Como se afere da leitura da decisão recorrida, o primeiro fundamento para o indeferimento liminar do requerimento inicial foi a ilegitimidade ativa.
Embora sem definir cabalmente o conceito de legitimidade processual, o art. 30º do CPC reporta-o ao interesse em demandar ou contradizer.
E, no nº 2 do mesmo preceito esclarece-se que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação, enquanto que o interesse em contradizer se exprime pelo prejuízo que dela advenha.
Estas regras aplicam-se quer às situações de legitimidade singular, quer às situações de legitimidade plural, ou seja, aos casos de litisconsórcio e coligação (vd. arts. 32º a 36º do CPC).
Finalmente, e de acordo com o nº 3 do mesmo art. 30º do CPC, o critério supletivo para aferição da titularidade do interesse relevante para o efeito da legitimidade é o da titularidade da relação material controvertida tal como o autor a configura.
Mantém-se por isso atual a definição doutrinária de legitimidade processual proposta por CASTRO MENDES[3]: “A legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo.”
Em sentido semelhante sustenta PAULO PIMENTA[4] que “a legitimidade consiste numa relação concreta da parte perante uma causa. Por isso a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute”.
Do mesmo modo, dizem RITA LOBO XAVIER, INÊS FOLHADELA, E GONÇALO ANDRADE E CASTRO[5] que “ser parte legítima é ter uma relação direta com o objeto do litígio”.
Finalmente, esclarecem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[6] que “o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva ser for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo, ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica”.
Não obstante, os mesmos autores advertem para a circunstância de que “casos há (…) em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual alegação do autor em sentido inverso (…)”.
No caso em apreço, estamos perante um procedimento tutelar cível de incumprimento das responsabilidades parentais, intentado pela mãe de um jovem contra o pai do mesmo, no qual a requerente sustenta que assim que o filho de ambos atingiu a maioridade, o requerido deixou de pagar a pensão de alimentos a que se achava obrigado, isto apesar de o jovem se achar a frequentar o ensino universitário e ter menos de 25 anos de idade[7].
De acordo com o alegado pela requerente, a referida obrigação alimentar resultava de regulação do exercício das responsabilidades parentais estabelecida por acordo entre os progenitores e posteriormente alterado igualmente por acordo, antes de o filho de ambos atingir a maioridade, nos termos do disposto no art. 1905º do Código Civil[8].
Também de acordo com o invocado pela requerente, o acordo de alteração das responsabilidades parentais que invoca foi homologado em 10-03-2016[9], ou seja, já na vigência da Lei nº 122/2015, de 01-09.
Como expôs o Tribunal a quo na decisão recorrida, “até à entrada em vigor da Lei nº 122/2015, a pensão de alimentos fixada na menoridade cessava com a maioridade do filho“.
 Contudo, a referida Lei nº 122/2015, de 1 de setembro, veio acrescentar ao art. 1905º, um nº 2 com o seguinte teor: «Para efeitos do art. 1880º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda, se em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência».
A introdução deste preceito visou dirimir uma querela jurisprudencial que até então se suscitava na interpretação do mesmo preceito, conjugado com os arts. 1878º, 1879º, e 1880º do mesmo código.
Com efeito, não obstante o art. 1879º, do CC disponha que “os pais ficam desobrigados de prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação na medida em que os filhos estejam em condições de suportar pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos”, o art. 1880º estatui que “se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o número anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete”.
Da conjugação destes preceitos resultava já – mesmo antes da publicação da Lei nº 122/2015 - que a obrigação alimentar imposta aos pais na menoridade dos filhos, ou seja, a obrigação de prover ao seu sustento pode manter-se após a maioridade destes se os mesmos não tiverem completado a sua formação profissional, e não tiverem rendimentos que lhes permitam suportar aqueles encargos.
Neste contexto legislativo, suscitou-se muitas vezes, nos Tribunais, a questão de saber se não obstante o eventual prolongamento das responsabilidades alimentares dos progenitores para além da maioridade dos filhos, se deveria entender que a maioridade operava a caducidade das decisões judiciais que haviam estabelecido a obrigação alimentar com fundamento na sua menoridade, sem prejuízo da possibilidade de os filhos - agora maiores – poderem exercer o seu direito a alimentos, em nome próprio, e mediante a instauração das competentes ações judiciais, ou se pelo contrário se deveria considerar que o direito a alimentos se mantinha, e perduravam os efeitos das decisões judiciais que os haviam consagrado e porventura alterado, sem prejuízo de o progenitor poder intentar ação ou incidente de cessação de alimentos.
A tese da caducidade dos efeitos das decisões judiciais relativas à obrigação de alimentos foi sustentada nos acs.:
- RL 26-01-2004 (Fonseca Ramos), p. 0356365;
- STJ 31-05-2007 (Salvador da Costa), p. 07B1678;
- RP 21-02-2008 (Coelho da Rocha), p. 0830752;
- STJ 22-04-2008 (Pereira da Silva), p. 08B389;
- RL 06-05-2008 (Ana Grácio), p. 2508/2008-1;
- RL 10-09-2009 (Teresa Albuquerque), p. 6251/08-2;
Já a tese da manutenção dos efeitos da ação judicial que consagrou a obrigação alimentar foi sufragada nos seguintes arestos:
- RP 09-03-2006 (Fernando Baptista), p. 0630895;
- RC 03-05-2011 (C Caetano), p. 223/06.9TMCBR-D.C1
- RG 19-06-2012 (Ana Cristina Duarte), p. 599-D/1998.G1.
A lei nº 122/2015 pretendeu, pois, clarificar a interpretação dos mencionados preceitos, no sentido da manutenção dos efeitos da ação que consagrou a obrigação alimentar.
Assim, e porque consagrou um sentido interpretativo que alguma jurisprudência já havia sancionado[10], coloca-se a questão de saber se a mesma não terá caráter meramente interpretativo.
Com efeito, como refere o ac. STJ 14-03-2019 (Nuno Pinto de Oliveira), p. 582/18.0YRLSB.S1, “O Supremo Tribunal de Justiça tem consistentemente declarado que o critério determinante da qualificação de uma lei como interpretativa depende do preenchimento cumulativo de dois requisitos: o primeiro consiste em “a lei [nova] regular um ponto de direito acerca do qual se levantam dúvidas e controvérsias na doutrina e jurisprudência” e o segundo, em “a lei [nova] consagrar uma solução que a jurisprudência pudesse tirar do texto da lei anterior, sem intervenção do legislador”. Convocando a formulação do Professor Baptista Machado, dir-se-á que o primeiro requisito está em que a solução do direito anterior, da lei antiga, “seja controvertida ou, pelo menos, incerta” e que o segundo requisito está em que a solução da lei nova se situe dentro dos quadros da controvérsia ou da incerteza, de forma a que “o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei”
Como é sabido, nos termos do disposto no art. 13º, nº 1 do Código Civil, “a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza.”
Interpretando este preceito explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[11] que “deve considerar-se lei interpretativa aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado (…).“
Assim, numa primeira análise, dir-se-ia que a Lei nº 122/2015 tem natureza interpretativa e, por isso, é de aplicação imediata às situações jurídicas pendentes à data da sua entrada em vigor.
Contudo, a verdade é que apesar de solucionar a já aludida querela jurisprudencial, a Lei 122/2015 se reveste também de um aspeto inovatório, na medida em que consagrou o limite dos 25 anos de idade que o art. 1880º não continha, sendo certo que tal limite nunca havia sido objeto de elaboração jurisprudencial.
Nesta conformidade, haverá que considerar que pelo menos na parte em que consagra aquele limite, a Lei nº 122/2015 tem caráter inovatório - Em sentido aproximado ao exposto, vd. ac. RL 14-06-2016 (Rosa Ribeiro Coelho), p. 6954/16.8T8LSB.L1-7, e RG 12-01-2017 (Espinheira Baltar), p. 529/13.0TBCMN-B.G2.
Aqui chegados, resta aferir se por força da redação que a Lei nº 122/2015 conferiu ao art. 1905º do CC a requerente, mãe do C tem interesse direto em demandar o requerido.
A essa questão responde diretamente o art. 989º, nº 3 do CPC, norma também ela introduzida pela referida Lei nº 122/2015, que estabelece que “O progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores que não podem sustentar-se a si mesmos pode exigir ao outro progenitor o pagamento de uma contribuição para o sustento e educação dos filhos (…)”.
Esta norma deve ser interpretada em conjugação com o nº 2 do mesmo preceito que estipula que “tendo havido decisão sobre alimentos a menores ou estando a correr o respetivo processo, a maioridade ou emancipação não impedem que o mesmo se conclua e que os incidentes de alteração ou cessação dos alimentos corram por apenso”.
 Ora, se a maioridade não impede que os incidentes de alteração ou cessação corram por apenso ao processo em que foram fixados alimentos a favor da mesma pessoa enquanto menor, por identidade de razão se deverá aplicar a mesma regra aos incidentes de incumprimento.
Assim, conclui-se que os preceitos em apreço se devem interpretar no sentido de que o progenitor com quem o menor coabita tem legitimidade ativa nos procedimentos tutelares cíveis de incumprimento das responsabilidades parentais, fundadas em incumprimento da prestação alimentar por parte do outro progenitor,  nas situações em que o filho atinja a maioridade, esteja a estudar, não tenha ainda completado 25 anos, não disponha de rendimentos suficientes para se sustentar e seja sustentado pelo progenitor com quem reside.
Neste sentido, enquadrando tal situação na categoria da legitimidade indireta, cfr. GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES[12]. Em sentido aproximado, aludindo a uma situação de substituição processual, cfr. AAVV, in “Família e Crianças: As novas Leis - Resolução de questões práticas” ,[13].
O mesmo entendimento foi sufragado nos seguintes arestos:
- RG 15-10-2015 (Francisca Vieira), p. 387/15.0T8BCL-A.G1;
- RG 21-06-2018 (Margarida Sousa), p. 458/18.1T8BCL.G1;
- RL 20-09-2018 (Teresa Pardal), p. 4345/15.7T8LRS-A.L1-6;
- RG 11-10-2018 (Alexandra Rolim Mendes), p. 2343/15.2T8BCL-B.G1;
- RL 04-04-2019 (Jorge Leal), p. 769/15.8T8LRS.1.L1;
- RL 24-10-2019 (Carla Mendes), p. 238/17.8SXL.L1-8;
- RL 21-11-2019 (António Valente), p. 5100/05.8TBSXL-B.L1-8;
- RE 19-11-2020 (Tomé de carvalho), p. 3930/19.2T8FAR-A.E1;
A decisão recorrida considerou, contudo, que apenas o C dispunha de legitimidade para exigir do requerido o cumprimento da obrigação de alimentos incumprida.
E em abono de tal entendimento invocou o ac. RL 30-06-2016 (Ezagüy Martins), p. 6692/05.7TBSXL-C.L1.-2. Porém, em tal aresto admite-se expressamente a legitimidade ativa do progenitor com quem o filho maior estudante resida, pelo menos nos casos de inércia do filho.
Perante o exposto, concluímos que a requerente é parte legítima na presente causa.
3.2.2. Do erro na forma de processo
Como se afere da leitura da parte final da decisão recorrida, a mesma fundou-se também na inadmissibilidade do procedimento.
Muito embora nos pareça que a alusão a tal vício surge como em consequência de se haver concluído pela verificação da exceção de ilegitimidade ativa, o certo é que a referência à inadmissibilidade do procedimento convoca a figura do erro na forma de processo.
A tal figura se reporta art. 193º, nº 1 do CPC o qual, porém, não contém qualquer definição.
Cremos, contudo, poder defini-lo como a preterição da forma processual adequada ao litígio, considerando o objeto da causa (pedido e a causa de pedir).
O erro na forma de processo gera a nulidade de todo o processado sempre que não for possível aproveitar nenhum dos atos praticados na forma inadequada.
Quando tal suceda, o vício gera a nulidade de todo o processado, a qual constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que dá lugar ao indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial, ou, caso seja apreciado mais tarde, à absolvição do réu ou requerido da instância – arts. 193º, nº 1, 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. b), 578º, e 590º, nº 1, todos do CPC.
Já se for possível o aproveitamento dos atos praticados, ou de parte deles e a convolação do processado na forma adequada, estaremos perante uma mera irregularidade, sanável (art. 193º, nºs 1 e 3 do CPC).
A adequação da forma de processo ao litígio que com a mesma se pretende compor afere-se em função do pedido e da causa de pedir tal como o autor ou requerente a configuram – neste sentido cfr. ac. RL 22-02-2007 (Isabel Canadas), p. 8592/2006-2.
No caso vertente, a questão será a de saber se o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, previsto e regulado no art. 41º e segs. do RGPTC constitui o meio processual adequado para o progenitor convivente que provém ao sustento de filho maior com menos de 25 anos de idade que se mantém a estudar exigir do outro progenitor o cumprimento da obrigação alimentar fixada na menoridade do alimentando através de procedimento de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Sobre esta questão se pronunciou o ac. RG 08-06-2017 (João Diogo Rodrigues), p. 991/14.4T8GMR-F.G1, nos seguintes termos:
“Deixando de lado, por ora, o direito conferido ao progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores, verificamos que estes últimos também podem exercitar esse direito autonomamente. E ao fazê-lo devem observar o que se acha prescrito no regime previsto para idênticas situações, em relação aos menores.
Ora, neste âmbito, perante o incumprimento da referenciada obrigação alimentar, o credor tem ao seu dispor três meios: o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, previsto no artigo 41.º do RGPTC (…); o mecanismo do artigo 48.º do RGPTC; e a execução especial por alimentos, regulada nos artigos 933.º a 937.º, do Código de Processo Civil.
Chegou a ser controvertida a questão de saber como se articulavam estes instrumentos processuais; designadamente, os dois últimos. Mas, a maioria da jurisprudência acabou por firmar o entendimento de que cabe “ao credor dos alimentos optar, em alternativa, por um desses meios procedimentais, em função da avaliação que realiza, em concreto, acerca dos seu próprio interesse na reintegração efetiva do direito lesado com o incumprimento da obrigação alimentar” (…)[14].
E, sendo esse o regime que vigora para os menores, por que razão há-de ser diferente para os maiores?
Não vemos. (…)
Na verdade, a circunstância do credor de alimentos já dispor de título executivo não é diferente da situação em que se encontra o credor que, embora menor, pretenda, ainda que representado por outrem, cobrar alimentos que já lhe foram reconhecidos por sentença. E, nessa situação, cremos todos estarem de acordo, o representante do menor pode socorrer-se de qualquer um dos falados meios”.
Concordamos inteiramente com este entendimento.
Nesta medida, deve entender-se que o procedimento tutelar cível de incumprimento das responsabilidades parentais, previsto e regulado no art. 41º do RGPTC é um dos meios processuais adequados a exigir o cumprimento da obrigação alimentar fixada no regime de responsabilidades parentais relativo ao C e alterado no âmbito do processo por apenso ao qual correm os presentes autos.
Em consequência, conclui-se que no caso em apreço não se verifica a exceção de erro na forma de processo.
3.2.3. Síntese conclusiva
Improcedendo ambos os fundamentos em que se baseou a decisão recorrida, e não se descortinando qualquer vício de conhecimento oficioso que justiçasse o indeferimento liminar do requerimento inicial, impõe-se revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que determine o prosseguimento do presente procedimento tutelar cível de incumprimento das responsabilidades parentais.
3.2.4. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito“.
Por seu turno, acrescenta o nº 2 do mesmo preceito que “(…) dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.”
No caso em apreço, cremos que as custas não devem ser imputadas a nenhuma das partes, porquanto o recurso incide sobre decisão proferida por iniciativa do Tribunal, sem que o fundamento invocado para o indeferimento liminar do requerimento inicial tenha sido suscitado por qualquer das partes, e sem que o recorrido tenha contra-alegado.
Nesta conformidade, entendemos que não são devidas custas.
4. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 662º, nº 2, al c) do CPC, acordam os Juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente procedente, e em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento da causa.
Sem custas.

Lisboa, 19 de janeiro de 2021 [15]
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
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[1] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[2] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[3] “Direito processual civil”, II vol., AAFDL, 1987, p. 187.
[4] “Processo Civil declarativo”, 2ª ed., Almedina, 2018, p. 75.
[5] “Elementos de direito processual civil – Teoria geral – Princípios – Pressupostos”, Universidade Católica Portuguesa Editora – Porto, 2014, p. 164
[6] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, p. 59.
[7] Arts. 1º, 2º, e 4º do requerimento inicial.
[8] Art. 1º do requerimento inicial.
[9] Art. 1º do requerimento inicial.
[10] Ao contrário do que a decisão recorrida parece pressupor, uma vez que apenas invoca um aresto que concluiu no sentido interpretativo que propugna, sem mencionar a existência de acórdãos em sentido diverso.
[11] “Código Civil Anotado”, Vol. I, Coimbra Ed., 1987, p. 62.
[12] “A tutela (jurisdicional) do direito a alimentos dos filhos maiores que ainda não concluíram a sua formação profissional”, in JULGAR ONLINE, março de 2018, pp. 12-13, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/03/20180329-ARTIGO-JULGAR-Direito-a-alimentos-dos-filhos-maiores-que-ainda-n%C3%A3o-conclu%C3%ADram-forma%C3%A7%C3%A3o-profissional-Gon%C3%A7alo-Oliveira-Magalh%C3%A3es.pdf.
[13] CEJ, 2017, pp. 63-64, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_familia_criancas_as_novas_leis_resolucao_questoes_praticas.pdf.
[14] A decisão citada alude ao ac. STJ 08-10-2009 (Lopes do Rego), p. 305-H/2000.P1.S1. No mesmo sentido cfr. tb. ac. RL
[15] O presente acórdão foi assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.