Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
305-H/2000.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
EXECUÇÃO POR ALIMENTOS
ERRO NO MEIO PROCESSUAL UTILIZADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAGO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

1.O incidente «pré- executivo» regulado no art. 189º da OTM não pode configurar-se – atento o âmbito limitado dos bens do devedor que nele podem ser atingidos com vista à satisfação da prestação alimentar - como um processo «especialíssimo», relativamente à execução especial por alimentos, regida pelo CPC, e que deva ter necessária prioridade sobre a via da execução autónoma, em termos de só poder lançar-se mão desta quando não for possível obter o pagamento pelo meio ali previsto.

2.Cabe, deste modo, ao credor dos alimentos optar , em alternativa, por um desses meios procedimentais , em função da avaliação que realiza, em concreto, acerca dos seu próprio interesse na reintegração efectiva do direito lesado com o incumprimento da obrigação alimentar.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.AA, executado em execução especial por alimentos contra si movida por BB, com vista a obter o pagamento coercivo de obrigação alimentar emergente de decisão proferida em processo de regulação do poder paternal, .veio deduzir oposição à execução e à penhora.
Por decisão proferida no 1º Juízo do Tribunal de Família e Menores do Porto,foram ambas as oposições liminarmente indeferidas, o que motivou a interposição de agravo para a Relação do Porto que considerou a seguinte matéria de facto relevante:


Os factos relevantes para o julgamento do recurso são os seguintes:
1) Em sentença proferida em acção de regulação do exercício do poder paternal, ficou o ora recorrente obrigado a prestar alimentos no montante de 500,00 € mensais.
2) Não o vindo fazendo, a recorrida intentou a execução especial de alimentos do art. 1118.º do CPC, requerendo a adjudicação de 650,00 € mensais, para pagamento das prestações vencidas (150,00 €) e vincendas (500,00 €), o que foi deferido – notificando-se a entidade processadora para entregar tais 650,00 directamente à exequente/recorrida.
3) O recorrente aufere o vencimento ilíquido de 1.926,53 € mensais.


De seguida, passando a apreciar as razões invocadas pelo agravante, julgou totalmente improcedentes as oposições deduzidas, quer quanto à execução, quer quanto à penhora.


2.Inconformado, interpôs o executado recurso de revista, tendo como objecto todas as questões em que decaíra. Foi proferido despacho a qualificar tal recurso como de agravo em 2ª instância, convidando o recorrente a dar cumprimento aos ónus decorrentes da previsão contida no nº2 do art. 754º do CPC, abandonando aquele a impugnação deduzida em sede de oposição à penhora e procedendo à indicação de vários acórdãos que, na sua óptica, teriam adoptado soluções opostas à constante do acórdão recorrido, quanto às questões que fundamentavam a oposição à execução, apresentando alegação encerrada com as seguintes conclusões:


a) A dívida de alimentos cujo pagamento coercivo é reclamado pela exequente resulta de decisão proferida em acção de regulação do exercício do poder paternal;

b) A exequente instaurou, para a confiada finalidade, a execução especial por alimentos prevista no artigo 1118.° e seguintes do CPC;

c) Considerada a pretensão da exequente, existe erro na forma do processo, o qual existe quando se usa de uma forma de processo inidónea ou inadequada para fazer valer a sua pretensão;

d) Entendeu o Tribunal «a iUOT, sem razão, que a exequente podia optar por qualquer um dos meios - ou aquele previsto no artigo 189.° da OTM ou o meio previsto no artigo 1118.° e seguintes do CPC - pelo que a sua pretensão não padece de qualquer erro;

e) A regulação do exercício do poder paternal incide sobre três vectores - a guarda, as visitas e os alimentos (artigos1905.° e 1912.° do CC e artigo 180.° da OTM);

f) O artigo 189.° da OTM prescreve a forma que há-de ser observada quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em divida;

g) Trata-se de um meio pré - executivo, inscrevendo-se no seio de um processo especial;

h) O qual deve ser utilizado sempre que o obrigado a prestar alimentos devidos a menores não faça e seja possível a sua cobrança mediante o desconto nos vencimentos ou rendimentos nele referidos;

i) O recorrente é funcionário público, professor na Escola EB23 CC, em Vila do Conde;

j) Não se mostrando assim inviabilizado o recurso ao procedimento previsto no artigo 189.° da OTM;

k) É assim inadequado o procedimento utilizado pela exequente por via de a mesma ter de o fazer através daquele previsto no artigo 189.° da OTM, não sendo admissível a presente execução por alimentos, com o consequente erro na forma do processo;

I) Havendo lugar a processo especial, como é o caso - artigo 189.° da OTM - deverá ser esse o empregue/aplicado, não podendo subsistir a execução por alimentos deduzida pela exequente;

m) Deve ser anulado todo o processado e o recorrente absolvido da instância atenta a especificidade d regime instituído pelo artigo 189.° da OTM, decorrente da sua incompatibilidade com o previsto nos artigos 1118.° a 1121.° - A do CPC;

n) Devem ser devolvidas todas as quantias descontadas do vencimento do recorrente, porquanto a sua penhora assenta no pressuposto errado da utilização indevida, por parte da exequente, do procedimento previsto nos artigos 1118.° e sgs do CPC;

o) Violou o tribunal «a quo» o disposto nos artigos 460.°, 462.° e 464.° do CPC e artigo 189.° da OTM;

p) Sustenta-se que os fundamentos invocados pelo recorrente não se enquadram em nenhumas das circunstâncias previstas no artigo 814.° do CPC, designadamente nas suas alíneas g) ou h);

q) Discorda o recorrente de tal juízo decisório dado que, na petição rejeitada, alegou factos que corporizam (de forma suficiente) o fundamento de oposição enunciado na alínea g) do artigo 814 do CPC;

r) Entende o recorrente que o facto de não existir documento em que ambos revelem a sua disposição aceitando e acordando em que o pagamento das prestações estaria dependente da venda da fracção identificada no artigo 30.° da petição rejeitada, não seria bastante para inviabilizar, "in limine li tis", a deduzida oposição;

s) Sempre haveria que ter aqui em conta o disposto no artigo 364.° n.° 2 do Código Civil, já que é patente estar a exigência de documento na alínea g) do artigo 814.° do CPC apenas colimada à prova da declaração (formalidade "ad probationem");

t) Podendo o mesmo ser substituído por confissão expressa, nos termos do n.° 2 do mesmo normativo legal;

u) Pretende-se contar obter na oposição a confissão da exequente;

v) Propondo-se mesmo requerer o seu depoimento de parte com vista ao aludido objectivo;

w) 0 que sempre poderia livremente o recorrente invocar e defender caso o mecanismo legal utilizado fosse, como devia ser, o previsto no artigo 189.° da OTM, conjugado com o artigo 181.° do mesmo diploma legal;

x) Violou o Tribunal, a «quo» o disposto nos artigos 814.° alínea g) do CPC, 364.° n.° 2 do CC e 181.° e 189.° da OTM;

y) O que deve vir a final a ser determinado, admitindo-se a petição rejeitada, seguindo-se os demais termos até final;

z) Deve a decisão ora censurada ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta;

Não foram apresentadas contra-alegações.

3.Começa o recorrente por suscitar «questão prévia»,situada no âmbito do regime de subida do recurso, peticionando que, caso ao mesmo viesse a atribuir-se o regime de subida em separado, lhe fosse facultada oportunidade para instruir o recurso com os elementos necessários:tendo o recurso subido com efeito devolutivo e nos próprios autos do apenso de oposição à execução, considera-se prejudicado o requerido.

É aplicável ao presente recurso o regime anterior ao instituído pelo DL 303/07, já que a oposição deduzida constituía dependência de uma execução já pendente à data em que tal diploma legal iniciou a sua vigência.
Segundo dispõe o art. 923º do CPC, das decisões insusceptíveis de , nos termos do disposto no art. 922º, fundarem o recurso de apelação, cabe agravo só até à Relação, sem prejuízo da ressalva contida no n~2 do art. 754º:tal implica que o acesso ao Supremo está condicionado à invocação e demonstração pelo recorrente de que existe um efectivo conflito jurisprudencial, estando o acórdão recorrido em oposição com outro, proferido, nomeadamente por qualquer Relação.

Ora , relativamente à questão que o recorrente suscita em sede de interpretação das normas que regulam os fundamentos possíveis de oposição à execução de sentença, é manifesto que o aresto indicado não tem a menor conexão com a questão - aliás manifestamente improcedente – que o recorrente coloca: o que consta do sumário de tal aresto é que «deduzidos embargos de executado com fundamento na alínea h) do art. 813º do CPC ( alegando-se compensação de créditos ) , a circunstância de a petição não ter sido acompanhada do documento necessário à prova do alegado não justifica que a mesma seja liminarmente indeferida»; na verdade, a questão ali solucionada tem exclusivamente a ver com a separação entre os casos que justificam indeferimento liminar ou a formulação de um convite ao aperfeiçoamento da petição irregular – e não com o tema da tipificação dos fundamentos possíveis de oposição a uma execução de sentença.
Inexiste, pois, manifestamente qualquer conflito de acórdãos que possa legitimar a interposição do presente agravo.


4.Relativamenteà questão suscitada em sede da existência de invocado «erro na forma de processo», indica o recorrente múltiplos acórdãos das Relações em que alegadamente se teria acolhido solução oposta à adoptada nos presentes autos, conferindo-se necessária prioridade à cobrança coerciva do débito de alimentos através do específico procedimento regulado na OTM.
Nem todos esses arestos, indicados como fundamento do recurso, versam sobre a específica questão processual colocada: assim, o acórdão da RC de 17/10/06 incide sobre a problemática dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do Fundo de Garantia de Alimentos a Menores; o acórdão da mesma Relação de 22/5/01 incide sobre a questão da aplicabilidade dos limites legalmente previstos quanto à penhora de vencimentos à execução especial, nos termos do art. 1118º do CPC;
No entanto, é evidente que, pelo menos no acórdão da RE de 7/1/88, citado pelo recorrente em primeiro lugar, se adoptou claramente solução oposta à acolhida no acórdão recorrido, ao considerar que só nos casos em que não seja viável compelir o obrigado a alimentos ao cumprimento pela via do art. 189º da OTM se pode lançar mão da execução especial por alimentos – o que, sem mais, implica a verificação dos pressupostos do recurso fundado no art. 754º, nº2, do CPC.

Efectivamente, no nosso ordenamento jurídico estão previstas duas vias possíveis para se obter o cumprimento coercivo da obrigação de alimentos devidos a menor: a via executiva «normal»- embora as especificidades da tramitação da execução por alimentos envolvam a previsão de um processo «especial» - e uma via específica e particularmente simplificada, de natureza incidental relativamente ao processo em que foram judicialmente arbitrados os alimentos, expressa no procedimento regulado no art. 189º da OTM.
Trata-se, pois, de determinar qual a relação que intercorre entre essas duas formas procedimentais: poderá, nomeadamente considerar-se o procedimento regido pela OTM como um «processo especialíssimo», prioritário na sua aplicabilidade relativamente à via executiva autónoma? Ou, pelo contrário, entre estas duas formas de cobrança coerciva do débito de alimentos deverá antes ocorrer uma relação de alternatividade, conduzindo a que deva reconhecer-se ao credor de alimentos a faculdade de escolher qual o meio procedimental que considera , em concreto, mais favorável à realização da tutela jurisdicional pretendida?

Note-se que nesta, como em muitas outras matérias, deverá o intérprete e aplicador da lei basear-se predominantemente em critérios teleológicos, funcionalmente orientados pelos interesses em causa, e não por uma visão estritamente dogmático-formal das questões – o que conduz, de modo incontroverso, à conclusão de que o interesse fundamental a acautelar terá de ser necessariamente o do credor dos alimentos incumpridos : ou seja, a solução procedimental que venha a adoptar-se quanto a esta questão nunca poderá traduzir a criação de um injustificado e inadmissível entrave à plena realização de uma reintegração efectiva e plenamente eficaz dos direitos violados pelo incumprimento da obrigação alimentar , perspectivada como tradução de «especiais deveres de auxílio complementares do direito à vida» (cfr. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade,pag.208).

Como caracterizar o procedimento regulado no art.189 da OTM?
Trata-se de uma providência «pré-executiva» ( no sentido de que a mesma, embora direccionada para uma efectiva reintegração dos direitos violados- cfr.Remédio Marques, Aspectos Sobre o Cumprimento Coercivo da Obrigação de Alimentos, in Comemorações dos 35 Anos do CC, pag. 619- não passa pela instauração de uma instância executiva autónoma) , de natureza «incidental» relativamente à causa em que foram arbitrados os alimentos – conduzindo o referido art 189º a que, em última análise, tais processos se conformem como procedimentos «mistos», podendo comportar uma fase declaratória e uma subsequente fase executiva; por outro lado , as providências de cariz executório aí reguladas caracterizam-se pela sua linearidade e simplicidade, já que os «descontos » aí previstos se efectivam à margem das regras sobre a penhora, sem envolverem a específica tramitação caracterizadora do processo executivo propriamente dito.
Tal simplicidade procedimental tem, porém, como contraponto, uma substancial limitação do âmbito das medidas coercitivas possíveis, já que naturalmente apenas podem ser «agredidos» os rendimentos auferidos pelo devedor de alimentos, aí especificamente previstos, e não quaisquer outros bens de que este seja titular.

Implica esta limitação que a vantagem ligada à informalidade e simplicidade do procedimento previsto no citado preceito legal ( expressa na dispensa de instauração de uma instância executiva autónoma, com os custos que lhe vão normalmente associados ) é, até certo ponto, aniquilada com a drástica restrição no tipo de bens do devedor que podem ser «agredidos» com vista a realizar coercivamente o direito do credor; na verdade, se o credor dos alimentos em dívida puder e quiser optar pela via da execução especial, regulada no CPC, para além de poder obter, em termos sensivelmente análogos, a adjudicação de parte das quantias, vencimentos e pensões que o executado esteja percebendo para pagamento das prestações vencidas e vincendas, fazendo-se tal adjudicação independentemente de penhora, nos termos do art.1118º,poderá ainda, nos termos gerais, requerer a penhora de quaisquer outros bens de que seja titular o devedor, ficando as sobras da execução, no caso de efectivação da venda, afectas à garantia das prestações vincendas, nos termos do art. 1121º-A.

Ora, pelo menos nos casos em que se tenha acumulado um valor significativo de pensões em atraso e sejam conhecidos outros bens, susceptíveis de penhora,
do devedor é manifesta a vantagem do credor da prestação alimentar em lançar mão da acção executiva, já que esta lhe pode eventualmente assegurar uma rápida e plena obtenção dos montantes acumulados e em dívida, sem ter de se submeter ao moroso processo de só faseadamente ir recebendo o montante correspondente à dívida acumulada, através dos descontos mensais efectuados no vencimento auferido pelo devedor..

É esta a razão que manifestamente impede que, numa interpretação funcionalmente adequada, os « descontos»previstos no citado art. 189ºtenham necessária prioridade sobre a via executiva autónoma, de que só poderia lançar-se mão a título estritamente subsidiário: basta pensar na solução aberrante a que se chegaria num caso em que, estando acumulado um montante avultado de prestações já vencidas e não pagas, se verifica, por exemplo, que o devedor, além do seu vencimento, é titular de um depósito bancário que, só por si, permitiria realizar de imediato todas as prestações em dívida: qual o interesse que impede que, nesta situação , seja lícito ao credor lançar mão do processo executivo para aí, simultaneamente, obter o pagamento imediato das prestações atrasadas pelas forças do depósito bancário e a satisfação das prestações futuras através da adjudicação de uma parcela dos vencimentos ou salários auferidos pelo devedor?

Considera-se, deste modo, que o incidente «pré- executivo» regulado no art. 189º da OTM não pode configurar-se – atento o âmbito limitado dos bens do devedor que nele podem ser atingidos com vista à satisfação da prestação alimentar - como um processo «especialíssimo», relativamente à execução especial por alimentos, regida pelo CPC, cabendo , em consequência, ao interessado optar pela via procedimental que, em concreto, considere mais favorável a uma plena e eficaz realização coerciva do seu direito.


Nestes termos, nega-se provimento ao agravo, confimando a decisão recorrida, no que respeita à inverificação da excepção de erro na forma de processo.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 08 de Outubro de 2009

Lopes do Rego (Relator)
Pires da Rosa
Custódio Montes