Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5100/05.8TBSXL-B.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
MAIORIDADE
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: –Fixada a pensão de alimentos, a cargo do pai, durante a menoridade da filha, é parte legítima a mãe que, após a maioridade da mesma, interpõe incidente de incumprimento contra o outro progenitor, que cessou os pagamentos quando a filha perfez os 18 anos.

–A obrigação de alimentos fixada na menoridade mantém-se após o filho alcançar a maioridade e até que complete a sua formação educativa ou profissional e não tenha meios de se sustentar a si próprio.

–No caso dos autos, a filha, com 18 anos, vive com a mãe, que providencia ao seu sustento, ao pagamento dos estudos e demais despesas, sendo conferida legitimidade à mãe para intentar o incidente de incumprimento do outro progenitor, face à redacção do art. 989º nº 3 do CPC, dada pela Lei nº 122/2015 de 01/09.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


Veio nos presentes autos A [ Sara …..]  deduzir, contra B [ Rui ……], incidente de incumprimento do acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais relativo à filha de ambos C [ Joana …..] .

Foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Verifica-se que a jovem à data de interposição do presente Incumprimento de RRP já tinha atingido a maioridade.
Pelo que desde logo carecia a sua mãe de legitimidade para a representar em juízo.
Termos em que se indefere liminarmente a petição, com custas no mínimo a cargo da requerente, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.”

Inconformada recorre a requerente formulando as seguintes conclusões:
- A Recorrente apresentou incidente de incumprimento contra o progenitor da sua filha Joana, por forma a proceder à cobrança coerciva da pensão alimentícia devidas de Agosto a Outubro de 2018, no valor global de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros).
- O Tribunal a quo proferiu sentença, sem que, para tal tenha apresentado a devida fundamentação de direito.
- A sentença deverá ser considerada nula por falta de fundamentação de direito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, devendo proceder o presente recurso de apelação, bem como pela revogação da sentença e substituição da mesma por outra devidamente fundamentada.
- Caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se admite, sempre se deverá concluir pela má aplicação pelo Tribunal a quo relativamente à lei nº 122/2015, de 01 de Setembro, e do artigo 989º, nº 3, do Código de Processo Civil, quando entendeu pela ilegitimidade ativa da Recorrente.
- Considerando o disposto no artigo 989º, nº 3 do Código de Processo Civil, e o desiderato da lei nº 122/2015, de 01 de Setembro com as alterações introduzidas no Código Civil e no Código de Processo Civil, o Tribunal a quo deveria ter decidido pela legitimidade ativa da Recorrente para a interposição do incidente de incumprimento em causa, em substituição da sua filha, tendo em conta a inércia desta e o interesse direto na liquidação do crédito, atendendo ao facto de ser ela a progenitora que atualmente assume todos os encargos e despesas com a filha.
                                                                                                               
1– Deverá entender-se pela legitimidade ativa da Recorrente para exigir a liquidação dos alimentos em dívida, devidos e vencidos durante a menoridade da filha, bem como os devidos e vencidos após a sua maioridade, nos termos e para os efeitos dos artigos 1880.º e 1905.º ambos do Código Civil.
– Deverá, assim, decidir-se pela procedência do presente recurso de apelação, revogando a decisão apelada que seja substituída por outra a reconhecer a legitimidade da Requerente para deduzir o incidente de incumprimento em causa, exigindo o pagamento dos valores em dívida a título de alimentos.

Termos em que se impõe aos Venerandos Desembargadores que determinem a nulidade da Douta Sentença proferida, por falta de fundamentação de direito, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, com a sua consequente revogação, devendo ser a mesma substituída por sentença fundamentada que entenda pela legitimidade ativa da Recorrente para exigir o pagamento dos alimentos devidos à sua filha maior, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1880.º, 1905.º do Código Civil e nº 3 do artigo 989.º do Código de Processo Civil.

Para efeitos de matéria de facto, e tendo em conta o objecto presenre recurso, menciona-se que:
1)– A filha da requerente e do requerido, Joana ……, nasceu a 31/08/2000.
2)– O presente incidente de incumprimento deu entrada em juízo a 19/10/2018.

Cumpre apreciar.
Está em causa saber se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação de direito e, caso o não seja, se deveria ter considerado a requerente como parte legítima no processo.

Em relação à nulidade em questão, dispõe o art. 615º nº 1 b) do CPC:
“É nula a sentença quando (...) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Sobre isto tem havido uma certa unanimidade na jurisprudência, de que citamos, como mero exemplo, o acórdão desta Relação de Lisboa de 17/11/2009 (disponível no endereço electrónico da dgsi) nos termos do qual “a sentença só é nula por falta de fundamentação quando tenha falta absoluta de fundamentação mas já não quando a fundamentação é deficiente ou errada”.

Ora, como vimos acima no despacho recorrido, o Mº juiz a quo mencionou os factos que julgou relevantes, ou seja, aqueles que em seu entender justificavam o indeferimento liminar da petição: o facto de a Joana ....... ser já maior aquando da interposição do incidente de incumprimento.

Quanto à fundamentação de direito, o mesmo Mº juiz escreveu que face à situação de maioridade da Joana ....... a mãe, ora recorrente, carecia de legitimidade para representar a filha em juízo, o que conduzia ao indeferimento liminar da petição.

Concorde-se ou não com tal fundamentação e por mais sucinto que o despacho se mostre, o certo é que não padece de total falta de fundamentação, seja de facto, seja de direito.

Logo, improcede a invocada nulidade.

Quanto à legitimidade da requerente.

O nº 2 do art. 1905º do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 122/2015 de 01/09, dispõe que:
“Para efeitos do disposto no art. 1880º entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade,a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respectivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência”.

A referida Lei nº 122/2015 alterou igualmente o art. 989º do CPC, cujo nº 1 passou a ter a seguinte redacção:
“Quando surja a necessidade de se providenciar sobre alimentos a filhos maiores ou emancipados, nos termos dos artigos 1880º e 1905º do Còdigo Civil, segue-se, com as necessárias adaptações, o regime previsto para os menores”.

Quanto ao nº 3 do mesmo preceito tem a seguinte redacção:
“O progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores que não podem sustentar-se a si mesmos pode exigir ao outro progenitor o pagamento de uma contribuição para o sustento e educação dos filhos, nos termos dos números anteriores”.

A propósito das importantes alterações introduzidas pela Lei nº 122/2015, refira-se a pertinente análise de Gonçalo Oliveira Magalhães - “Julgar”, Março de 2018”:
“Sendo inequívoco que o titular do direito aos alimentos educacionais é o filho, à semelhança do que sucede durante a menoridade, as diversas situações analisadas suscitam dificuldades quanto à legitimidade do progenitor com quem aquele coabita, seja para prosseguir, no confronto com o outro progenitor, a acção destinada à fixação da pensão iniciado durante a menoridade, seja para, depois desta, intentar acção com a mesma finalidade ou recorrer aos procedimentos necessários à efectivação do direito anteriormente acertado.
O artigo 989º nº 3 do CPC, na redacção da Lei nº 122/2015 de 01/09, reconhece essa legitimidade quando se torne necessário providenciar judicialmente sobre alimentos aos filhos maiores que ainda não concluíram a sua formação profissional, o que pode ser dogmaticamente enquadrado na figura da legitimidade indirecta. Por identidade de razões, a legitimidade mantém-se quando se trate de prosseguir as acções intentadas durante a menoridade que devam prosseguir nos termos do art. 989º nº 2 (...)”.

Refira-se ainda, a título de exemplo, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 08/11/2018, do qual se transcreve a seguinte passagem:
“Para efeitos do art. 1880º do Código Civil, relativo a alimentos a filhos maiores ou emancipados (...) passou a entender-se que a pensão de alimentos fixada na menoridade se mantém até à idade de 25 anos.
Essas mesmas alterações produzidas pela Lei nº 122/ 2015 vieram ainda conferir legitimidade ao progenitor convivente com o filho maior para exigir do outro progenitor inadimplente, as quantias que se vencerem de alimentos fixadas durante a menoridade do filho de ambos, até ele atingir 25 anos de idade”.

E no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/06/2018 – disponível, como o anterior no endereço www.dgsi.pt  - pode ler-se:

“Na verdade, só através da maior amplitude dada aos meios processuais ao dispor do progenitor convivente com o filho maior se poderá ultrapassar a barreira da desigualdade contra a qual foram erigidas tais inovações e a que se refere a nota preambular justificativa da Proposta de Lei nº 975/XII/48 quando expressamente diz:
"Tem vindo a verificar-se, com especial incidência, que a obrigação de alimentos aos filhos menores cessa, na prática, com a sua maioridade e que cabe a estes, para obviar a tal, intentar contra o pai uma ação especial.
Esse procedimento especial deve provar que não foi ainda completada a educação e formação profissional e que é razoável exigir o cumprimento daquela obrigação pelo tempo normalmente requerido para que essa formação se complete.
Como os filhos residem com as mães, de facto são elas que assumem os encargos do sustento e da formação requerida.
A experiência demonstra uma realidade à qual não podemos virar as costas: o temor fundado dos filhos maiores, sobretudo quando ocorreu ou ocorre violência doméstica, leva a que estes não intentem a ação de alimentos. Mesmo quando o fazem, a decretação dos processos implica, por força da demora da justiça, a privação do direito à educação e à formação profissional.
Há, também, por consequência do descrito, uma desigualdade evidente entre filhos de pais casados ou unidos de facto e os filhos de casais divorciados ou separados.
A alteração legislativa proposta vai ao encontro da solução acolhida em França, confrontada, exatamente, com a mesma situação, salvaguardando no âmbito do regime do acordo dos pais relativo a alimentos em caso de divórcio, separação ou anulação do casamento, a situação dos filhos maiores ou emancipados que continuam a prosseguir os seus estudos e formação profissional e, por outro lado, conferindo legitimidade processual ativa ao progenitor a quem cabe o encargo de pagar as principais despesas de filho maior para promover judicialmente a partilha dessas mesmas despesas com o outro progenitor'.
Face ao exposto, temos para nós assistir legitimidade ativa à Requerente - progenitora convivente da filha maior - para, no caso em apreço, vir instaurar incidente de incumprimento com vista a exigir do progenitor obrigado o valor das prestações de alimentos devidas, para tanto bastando a ulterior demonstração no processo da já alegada inércia da filha maior.”

Estas correntes, quer doutrinais quer jurisprudênciais, a que aderimos inteiramente, levam-nos a discordar totalmente do despacho recorrido, já a requerente, mãe da agora maior Joana ….., intentou o presente incidente de incumprimento em seu próprio nome, no âmbito da designada legitimidade indirecta, sobre a qual Miguel Teixeira de Sousa – em estudo publicado no BMJ nº 292, pág. 53 e seguintes – refere que a mesma comporta duas espécies, a legitimidade substitutiva no caso da existência de um interesse próprio na tutela processual de uma situação subjectiva alheia e a legitimidade representativa, no caso de existência de um interesse alheio na tutela adjectiva de uma situação subjectiva alheia”.

Concluindo-se assim que:

Fixada a pensão de alimentos, a cargo do pai, durante a menoridade da filha, é parte legítima a mãe que, após a maioridade da mesma, interpõe incidente de incumprimento contra o outro progenitor, que cessou os pagamentos quando a filha perfez os 18 anos.
A obrigação de alimentos fixada na menoridade mantém-se após o filho alcançar a maioridade e até que complete a sua formação educativa ou profissional e não tenha meios de se sustentar a si próprio.
No caso dos autos, a filha, com 18 anos, vive com a mãe, que providencia ao seu sustento, ao pagamento dos estudos e demais despesas, sendo conferida legitimidade à mãe para intentar o incidente de incumprimento do outro progenitor, face à redacção do art. 989º nº 3 do CPC, dada pela Lei nº 122/2015 de 01/09. 

Termos em que se julga a requerente como parte legítima para os termos da causa, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se o prosseguimento do processo.
Sem custas.



LISBOA, 21/11/2019


António Valente
Teresa Prazeres Pais
Rui Vouga