Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8592/2006-2
Relator: ISABEL CANADAS
Descritores: ERRO NA FORMA DO PROCESSO
PROCESSO COMUM
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - A forma de processo afere-se em função do tipo de pretensão formulada pelo autor e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida.
II - Ocorre o vício processual de erro na forma de processo quando a pretensão não seja deduzida segundo a forma geral ou especial de processo legalmente previstas. O mesmo só determinará a anulação de todo o processo, (como excepção dilatória) e a absolvição do réu da instância, nos casos em que a própria petição inicial não possa ser aproveitada para a forma de processo adequada (artºs. 199º, nº 1; 288º, nº 1, al. b); 493º, nº 2, e 494º, al. b), todos do C P C.)
III - Visando o autor o pagamento de uma quantia líquida, a título de «ressarcimento do que entende constituir seus prejuízos, decorrentes da utilização exclusiva por parte da Ré, sua ex-mulher, do imóvel património comum do casal que constituiu a casa de morada de família de ambos», não ocorre erro na forma de processo a escolha do processo comum para o efeito. Na verdade, não tendo o autor formulado qualquer exigência de prestação de contas e de eventual condenação no pagamento do saldo; carece de qualquer cabimento legal a aplicabilidade do processo especial de prestação de contas, uma vez que a quantia reclamada não é configurada como resultando de um qualquer acto de administração da Ré relativamente a bem comum do dissolvido casal.
(G.A)
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório

1. T instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra M, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe:
- a quantia de 19.500.000$00, como sua dívida ao A. relativa ao uso do prédio comum, equivalente a 50% do valor global das rendas vencidas desde Outubro de 2001, acrescida de juros legais, contados desde a data da citação até integral pagamento;
- mensalmente, a quantia de 125.000$00, como retribuição pelo uso do referido prédio, seja ou não a título de arrendamento, desde Novembro de 2001 até à efectivação da partilha;
- se assim se não considerar, o valor global das rendas vencidas, desde Outubro de 1988 até Outubro de 2001, relativa ao uso do citado imóvel, e vincendas à razão mensal de 250.000$00, devidas ao património comum indiviso.
Para tanto alegou, em resumo, que:
- A. e Ré foram casados um com o outro, tendo, por sentença de 30 de Setembro de 1999, sido decretado o divórcio e decidido que os efeitos patrimoniais do mesmo retrotraíam a 5 de Outubro de 1988;
- Do dissolvido casal existem diversos bens a partilhar, objecto de processo de inventário apenso à acção de divórcio;
- Do património comum fazem parte, entre outros, dois prédios urbanos identificados na petição inicial;
- O A. tem suportado, com bens próprios, diversos encargos com o património indiviso, de entre os quais se destacam os relativos aos prédios integrados no património comum;
- A Ré ocupa como sua própria morada um daqueles prédios urbanos, antiga morada de família do dissolvido casal, sem suportar qualquer encargo institucional;
- O outro prédio está inabitável, por alta de condições de utilização e segurança;
- O valor mensal do arrendamento do prédio ocupado pela Ré é de, no mínimo, 250.000$00.

2. Pessoal e regularmente citada, a Ré contestou, defendendo-se por excepção dilatória, mediante arguição da ineptidão da petição inicial, consubstanciada na falta de causa de pedir, nos seguintes termos: o A. reclama a quantia de 19.500.000$00 a título de “50% do valor global das rendas vencidas desde Outubro de 19888 a Outubro de 2001” e relativas ao prédio comum, mas não invoca qualquer contrato de arrendamento que lhe servisse de título; por outro lado, o A., apesar de considerar “os lucros não percebidos pelo património comum do casal e relativos ao imóvel que a Ré ocupa nos últimos 12 anos” como “lucros cessantes”, invocando, assim, implicitamente a responsabilidade civil da Ré, não indica qualquer facto concreto, ilícito e culposo imputável à Ré e gerador dos prejuízos.
Termina pela absolvição da Ré da instância.

3. Replicou o A., sustentando, no essencial, que: não invoca qualquer contrato de arrendamento, pois não é essa a base da sua pretensão, mas antes o regime do artº. 1406º (os bens referidos na petição inicial são comuns, e está impedido de usufruir do prédio que a Ré ocupa, pelo que tem direito a metade do valor locatício do mesmo); caso o tribunal entenda que não será de aplicar o aludido artº. 1406º, estão reunidos todos os requisitos do regime do enriquecimento sem causa (a Ré está, injustificadamente, a enriquecer à custa do A.).

4. Realizada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a arguida excepção dilatória de nulidade de todo o processo, decorrente da ineptidão da petição inicial (por falta de causa de pedir), e que, oficiosamente, «com base em erro na forma processual utilizada pelo Autor», anulou todo o processo e absolveu a Ré da instância.

5. Inconformado com tal despacho incidente sobre o erro na forma do processo, interpôs o A. recurso de agravo do mesmo - que foi recebido com o regime de subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cfr. despacho de admissibilidade de fls. 68)-, tendo formulado, a rematar a respectiva alegação recursória, as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. Com a presente acção, o Autor visou obter o ressarcimento do que entende constituir seu prejuízo, decorrente da utilização exclusiva por parte da Ré, sua ex-mulher, do imóvel integrado no património comum do casal dissolvido, o qual constituía a casa de morada de família de ambos, na sequência da decretação do divórcio, por sentença de 30-09-1999, com efeitos patrimoniais reportados a 5-10-1988;

2ª. O critério para resolver a questão do erro na forma de processo consiste em pôr o pedido formulado na acção em confronto com o fim, para que, segundo a lei o processo foi estabelecido, nos termos do artigo 460.º, n.º 2, do CPC;

3ª. O fim da acção de prestação de contas é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas de modo a obter a definição de um saldo e de determinar a situação do réu – de quite, de devedor, ou de credor – perante o titular dos interesses geridos, com apuramento do crédito para este eventualmente resultante da actuação daquele;

4ª. O processo especial de prestação de contas surge como impróprio para tutelar o direito reivindicado pelo Autor e inaplicável à luz do art.º 460.º, n.º 2 do CPC;

5ª. A acção de prestação de contas é tanto mais descabido “in casu” quanto o facto de ser pacífico entre as partes processuais, bastando para assim apurar a leitura dos respectivos articulados, que a R. não praticou quaisquer actos de frutificação do imóvel, não tendo cobrado quaisquer receitas nem efectuado despesas.

6ª. O Meritíssimo Juiz a quo efectua errada interpretação e aplicação dos artigos 460.º e 1014.º, do CPC, ao determinar que a acção especial de prestação de contas é adequada à pretensão expressa pelo Autor, aqui Recorrente.

7ª. A acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, surge como única fórmula processual apta e idónea a dar guarida ao pedido indemnizatório formulado pelo aqui Recorrente.

Conclui pela revogação da decisão recorrida, «ordenando-se o prosseguimento dos autos na instância».

6. A Ré não contra-alegou.

7. O Mmº. Juiz a quo manteve o julgado nos termos do despacho de sustentação tabelar de fls. 85.

8. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objecto do recurso

Conforme deflui do disposto nos artigos 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 2, ambos do Cód. Proc. Civil, o âmbito de intervenção do tribunal ad quem é delimitado em função do teor das conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida), só sendo lícito ao tribunal de recurso apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por imperativo do artº. 660º ex vi do artº. 713º, nº 2, do citado diploma legal.
Dentro dos preditos parâmetros, emerge das conclusões da alegação recursória apresentada que o objecto do presente recurso está circunscrito apenas à questão solvenda de saber se ocorre erro na forma de processo que importa a nulidade de todo o processo.

III. Fundamentação

1. Do contexto processual relevante:
1.1. No petitório, formula o A. pedido de condenação da Ré no pagamento:

- da quantia de 19.500.$00, como sua dívida ao A. relativa ao uso do prédio comum, equivalente a 50% do valor global das rendas vencidas desde Outubro de 2001, acrescida de juros legais, contados desde a data da citação até integral pagamento;

- mensalmente, da quantia de 125.000$00, como retribuição pelo uso do referido prédio, seja ou não a título de arrendamento, desde Novembro de 2001 até à efectivação da partilha;

- se assim se não entender, o valor das rendas vencidas, desde Outubro de 1988 até Outubro de 2001, relativa ao uso do citado imóvel, e vincendas à razão mensal de 250.000$00, devidas ao património comum indiviso.

1.2. O despacho saneador, ora sob recurso, é do seguinte teor, na parte respeitante ao conhecimento do erro na forma de processo:

« Quanto à forma de processo

Com a presente acção o Autor visa obter o ressarcimento do que entende constituir seus prejuízos, decorrentes da utilização exclusiva por parte da Ré, sua ex-mulher, do imóvel património comum do casal que constituiu a casa de morada de família de ambos, na sequência da decretação do divórcio, por sentença de 30-9-1999, com efeitos patrimoniais a 5-10-1988, correndo actualmente o respectivo processo de inventário.

A acção adequada à pretensão do Autor vem especialmente regulada no Código de Processo Civil, como acção de prestação de contas, nos artigos 1014º a 1019º, dispondo a primeira dessas normas que “a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que se venha a apurar.”

Com efeito tal é o que sucede no caso dos autos, em que o Autor pretende que a Ré seja condenada na quantia que reputa adequada, decorrente dos proveitos acrescidos da sua administração e gozo exclusivo de um imóvel que integra o património comum do casal e que é objecto de inventário, na sequência de divórcio de ambos, não estabelecendo a lei qualquer distinção quanto ao facto de o gozo ou administração ser, ou não, remunerado, ou quanto ao facto de a coisa administrada produzir um rendimento directo, de fonte externa, ou um rendimento meramente substitutivo.

Sendo certo que a acção de prestação de contas tanto pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las como por quem tenha o dever de prestá-las (art. 1014º do Cód. Proc. Civil), face ao que é alegado pelo Autor afigura-se que o respectivo processo é dependência do respectivo inventário e deverá correr no Tribunal onde corre o processo de inventário, nos termos do art. 1019º do Cód. Proc. Civil.

Ao propor acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário, quando a forma de processo adequada à sua pretensão, determinada pelo pedido e tendo em consideração a respectiva causa de pedir, seria a forma de processo especial – acção de prestação de contas, regulada no art. 1014º e seguintes do Cód. Proc. Civil, o Autor incorreu em erro na forma de processo, que constitui nulidade, de conhecimento oficioso do Tribunal, conforme decorre do art. 202º do mesmo diploma.

Dispõe o art. 199º do Cód. Proc. Civil que o erro na forma de processo importa a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei, bem como que não se devem aproveitar os actos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.

Sendo certo que todos os actos praticados no processo pela Ré são inaproveitáveis, sob pena de daí resultar ablação dos direitos que a lei lhe concede na acção de prestação de contas (cfr. art. 1014º-A, nºs 2 e 3 do Cód. Proc. Civil), afigura-se que também os actos praticados pelo Autor são inaproveitáveis, incluindo a petição inicial, atentos o objecto e a tramitação da acção de prestação de contas, bem assim o pedido que da mesma deve constar, conforme dispõe o art.1014º-A, nº1 do Cód. Proc. Civil, totalmente distinto dos pedidos formulados pelo Autor na presente acção.

Da insusceptibilidade de aproveitamento de qualquer dos actos praticados decorre a nulidade de todo o processo, que constitui excepção dilatória e é determinante da absolvição da Ré da instância (cfr. arts. 494º, al. b) e 288º, nº 1, al. b) do Cód. Proc. Civil), o que cumpre decidir.

Termos em que, com base em erro na forma processual utilizada pelo Autor, anulo todo o processo e absolvo a Ré da instância (arts. 199º, 202º e 288º, nº 1, al. b) do Cód. Proc. Civil)».


2. Apreciação do mérito do agravo
2.1. Enquadramento normativo preliminar
Consabido é que o erro na forma de processo ocorre nos casos em que a pretensão não seja deduzida segundo a forma geral ou especial de processo legalmente previstas.

Para tal efeito, em conformidade com o disposto no artº. 460º do Cód. Proc. Civil:
- em primeiro lugar, há que indagar se existe alguma forma especial de processo prevista nos artºs. 944º e segs. do Cód. Proc. Civil, ou em legislação especial ou avulsa, para o tipo de pretensão em apreço;
- não existindo forma especial, cumpre apurar se foi observada a forma de processo comum legalmente adequada (artºs. 461º a 464º do Cód. Proc. Civil).

Assim, perante a invocação de um determinado direito subjectivo e livremente escolhida pelo autor a pretensão que contra o réu pretende deduzir, deve aquele, de seguida, ajustar a sua estratégia aos instrumentos processuais criados e, de entre eles, escolher aquele que for legalmente o mais adequado, e, desde logo, a forma de processo..

Por outro lado, partindo da noção de pedido que se colhe dos artºs. 274º, nº 2, al. c) e 498º, nº 3, ambos do Cód. Proc. Civil - efeito jurídico pretendido pelo peticionante, como forma de tutela do seu interesse -, há que considerar que a respectiva formulação integra duas componentes:
- a componente substantiva do pedido, que consiste na afirmação postulativa do efeito jurídico material pretendido, devendo o autor, no caso das acções de condenação como a vertente, especificar a prestação em que o réu deverá ser condenado;
- a componente processual, consubstanciada na enunciação do tipo de actividade solicitada ao tribunal como modo específico de actuar o efeito jurídico pretendido (no caso das acções de condenação, providência jurisdicional de condenação), sendo que, da classificação das acções, quanto ao fim constante dos artºs. 4º e 45º, nº 2, do Cód. Proc. Civil, resulta uma tipologia dessa actividade.
Ademais, neste particular, importa, desde logo, não confundir a impropriedade da forma de processo com a inadequação da pretensão deduzida em relação ao fundamento invocado (a qual consubstancia uma situação de manifesta improcedência da acção).
Ou seja: a forma de processo é aferível em função do tipo de pretensão formulada pelo autor e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida.
Se a forma de processo empregue não for apropriada ao tipo da pretensão deduzida, ocorre o vício processual de erro na forma de processo; se a forma de processo seguida se adequar à pretensão formulada, mas esta não for conforme aos fundamentos invocados, estaremos, quando muito, perante uma questão de mérito conducente à improcedência da acção.
Quanto às consequências do erro na forma de processo: nos termos do artº. 199º do Cód. Proc. Civil, o erro na forma de processo importa apenas a anulação dos actos que não possam ser aproveitados para a forma estabelecida na lei, devendo o juiz mandar seguir, sempre que possível, a forma legalmente prescrita, com o aproveitamento dos actos já praticados, desde que não se traduzam em diminuição das garantias do réu, e a realização dos actos estritamente necessários ao normal prosseguimento da instância.
Nesta medida, o erro na forma do processo só importará em anulação de todo o processo, como excepção dilatória determinativa de absolvição do réu da instância, nos casos em que a própria petição inicial não possa ser aproveitada para a forma de processo adequada, nos termos conjugados dos artºs. 199º, nº 1; 288º, nº 1, al. b); 493º, nº 2, e 494º, al. b), todos do Cód. Proc. Civil.
Todavia, o artº. 265º-A do Cód. Proc. Civil, proclamando o princípio da adequação formal, impõe que o juiz, oficiosamente, ouvidas as partes, ajuste às especificidades da causa a tramitação processual legalmente prevista com as necessárias adaptações.
Aportando agora tal enquadramento normativo à pretensão concretamente formulada pelo A..

2.2. O caso concreto

No petitório:

- o A. especifica a prestação em que a Ré deve ser condenada (pagamento de uma quantia líquida por parte da Ré devida pelo uso de um prédio que integra o património comum do dissolvido casal / como «ressarcimento do que entende constituir seus prejuízos, decorrentes da utilização exclusiva por parte da Ré, sua ex-mulher, do imóvel património comum do casal que constituiu a casa de morada de família de ambos»);

- enuncia o tipo de prestação judiciária (declaração condenatória),
e indica como forma de processo declarativo, a comum ordinária.
A uma tal pretensão corresponde, de harmonia com a tipologia das acções constante do artº. 4º do Cód. Proc. Civil, uma acção declarativa de condenação.

E quanto à forma de processo?

Nos termos do artº. 460º do Cód. Proc. Civil, a forma de processo declarativo pode ser comum ou especial.

Importa, assim, averiguar, se existe alguma forma especial de processo para o tipo de pretensão em apreço.

No despacho saneador recorrido sustentou-se:

«Com a presente acção o Autor visa obter o ressarcimento do que entende constituir seus prejuízos, decorrentes da utilização exclusiva por parte da Ré, sua ex-mulher, do imóvel património comum do casal que constituiu a casa de morada de família de ambos, na sequência da decretação do divórcio, por sentença de 30-9-1999, com efeitos patrimoniais a 5-10-1988, correndo actualmente o respectivo processo de inventário.

A acção adequada à pretensão do Autor vem especialmente regulada no Código de Processo Civil, como acção de prestação de contas, nos artigos 1014º a 1019º, dispondo a primeira dessas normas que “a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que se venha a apurar.”

Com efeito tal é o que sucede no caso dos autos, em que o Autor pretende que a Ré seja condenada na quantia que reputa adequada, decorrente dos proveitos acrescidos da sua administração e gozo exclusivo de um imóvel que integra o património comum do casal e que é objecto de inventário, na sequência de divórcio de ambos, não estabelecendo a lei qualquer distinção quanto ao facto de o gozo ou administração ser, ou não, remunerado, ou quanto ao facto de a coisa administrada produzir um rendimento directo, de fonte externa, ou um rendimento meramente substitutivo.

Sendo certo que a acção de prestação de contas tanto pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las como por quem tenha o dever de prestá-las (art. 1014º do Cód. Proc. Civil), face ao que é alegado pelo Autor afigura-se que o respectivo processo é dependência do respectivo inventário e deverá correr no Tribunal onde corre o processo de inventário, nos termos do art. 1019º do Cód. Proc. Civil

Ora, resolvendo-se a questão do erro na forma do processo em face do pedido formulado na acção em confronto com o fim a que, segundo a lei, o processo especial se destina, averiguemos do objectivo do processo especial de prestação de contas.

A acção especial de prestação de contas - processualmente definida nos artºs. 1014º e segs. do Cód. Proc. Civil - tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

Procedendo ao aludido confronto do pedido formulado pelo A. com o fim para que, segundo a lei, o processo especial de prestação de contas foi estabelecido, concluímos que não há correspondência entre o pedido do A. e tal fim: o A. não formula qualquer exigência de prestação de contas e de eventual condenação no pagamento do saldo; a quantia que reclama não é configurada como resultando de um qualquer acto de administração da Ré relativamente a bem comum do dissolvido casal. Isto é, em momento algum, a afirmação volitiva do efeito jurídico material pretendido pressupõe a qualidade jurídica de obrigada à prestação de contas por banda da Ré.

Ao invés, alegando que, dissolvido o casamento por divórcio, os bens comuns, por força da retroação operada, passaram a estar sujeitos ao regime da compropriedade, pretende o A. ser indemnizado do uso exclusivo pela Ré da coisa comum.

E dado que a forma de processo depende da pretensão deduzida na acção - não interferindo no julgamento da excepção dilatória em apreço a circunstância de a contextualização da causa de pedir poder apontar para um pedido diferente daquele que foi concretamente formulado, o que consubstanciaria vício já não de ordem processual, mas substantiva -, não existindo forma especial, ao pedido formulado adequa-se o processo comum, sob a forma ordinária, atento o valor declarado para a presente acção, de acordo com o previsto nos artºs. 460º, nº 1; 461º e 462º, todos do Cód. .Proc. Civil, e artº. 24º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13.1.
Em jeito de conclusão: tendo o A., na acção proposta, formulado pedido de pagamento de uma quantia líquida, a título de «ressarcimento do que entende constituir seus prejuízos, decorrentes da utilização exclusiva por parte da Ré, sua ex-mulher, do imóvel património comum do casal que constituiu a casa de morada de família de ambos» e tendo escolhido a forma de processo comum, não há erro na forma de processo.
Como assim, procedem as razões do agravante, não podendo ser mantida a decisão recorrida.

IV. Decisão

Posto o que precede, acordam os Juízes desta Secção Cível da Relação de Lisboa em, concedendo provimento ao agravo, revogar, em consequência, o despacho saneador recorrido, na parte em que conheceu, oficiosamente, da excepção dilatória de nulidade de todo o processo, decorrente de erro na forma do processo.

Sem custas.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2007

(Processado e integralmente revisto pela relatora, que assina e rubrica as demais folhas)

(Isabel Canadas)
(Sousa Pinto)
(Maria da Graça Mira)