Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7165/22.9T8LSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: EXECUÇÃO
REJEIÇÃO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.A prolação de decisão de rejeição da execução, nos termos previstos no art. 734º do CPC, sem prévia audição das partes, configura uma decisão-surpresa, decorrente da omissão de um ato legalmente prescrito, a saber a observância do princípio do contraditório (art. 3º, nº 3 do CPC).

II.Quando o Tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, tendo essa omissão relevância para o exame ou decisão da causa verifica-se não só uma nulidade secundária (art. 195º do CPC), mas também a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, al. d)), uma vez que, ao proferir tal decisão, conhece de matéria que, naquelas cirduntâncias, não podia apreciar.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:



1.Relatório


Condomínio Sito na Rua da .....a n.º ...A a ...C intentou a presente execução para pagamento de quantia certa contra A [Maria …..] e B [Manuel …..].
Apresentou, como título executivo, uma ata da assembleia geral de condóminos.
No requerimento executivo, no campo intitulado “Factos”, fez constar o seguinte:
“No dia 26 de Fevereiro de 2022, realizou-se a assembleia de condóminos do prédio sito na Rua da ..... n.º ... a ...-C em Lisboa. Na acta de tal assembleia é mencionada a divida da Loja (fracção “A”) do mencionado prédio, propriedade de Maria ….., contribuinte n.º 1.......1, desde Janeiro de 2015 a Dezembro de 2021, no montante global de 7.035,69 euros.
Assim, até 2015 a dívida era de 2.310,00 euros, referente a quota ordinária, seguro de acidente trabalho, imposto municipal sobre imóveis, limpeza, despesas bancárias, litigâncias, obras e despesas extraordinárias, manutenção do prédio, conforme quadro da folha 5 da acta.
Relativamente ao mencionado Condómino com quotas em atraso foram deliberados os montantes supracitados como contribuições devidas ao Condomínio, fixando-se de forma discriminada as prestações em dívida, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 6.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 268/1994, de 25 de Outubro.
Assim, encontra-se em divida a importância total de 7.035,69 euros (sete mil e trinta e cinco euros e sessenta e nove cêntimos).
Quantia em dívida deve ser ainda adicionado os montantes que a exequente irá pagar a título de custas processuais bem como de honorários devidos ao agente de execução.”
Indicou como quantia exequenda o montante de € 7 035,69.
Na subsequente tramitação dos autos, procedeu o Sr. Agente de Execução a uma penhora de saldos bancários, tendo sido lavrado um auto de penhora datado de 19-04-2022.[1]
Mais tarde, procedeu-se à citação dos executados, o que relativamente à executada, sucedeu em 19-04-2022[2], e ao executado em 10-05-2022[3].
Posteriormente o exequente apresentou requerimento de cumulação sucessiva de execuções[4], tendo a executada deduzido oposição a tal pretensão, com fundamento na “inabilidade do título executivo”[5], após o que o exequente apresentou articulado de resposta a essa oposição[6].

Aberta conclusão, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«IDa execução intentada:
Veio o Condomínio Sito na Rua da ..... N.° ... A ...-C propor em 15.03.2022 ação executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo sumário, contra A e B , munido de ata de assembleia de condóminos.

IIDa ilegitimidade do exequente:
A legitimidade do exequente no caso do título assembleia de condóminos é atribuída pela norma especial prevista pelo art. 1437 n°. 1 do C. Civil, que dispõe que “o condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele”.
O n°. 2 da mesma norma estatui que “o administrador ase em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos”.
Assim, “Se ao administrador compete executar as deliberações da assembleia de condóminos, nos termos do art.° 1436.°, al. h), do Código Civil), por igualdade de razão, cumpre-lhe sustentar a existência, a validade e a eficácia dessas mesmas deliberações, em representação do condomínio. E percebe-se que assim seja por exemplo quanto munido de título executivo o administrador demande em execução o condómino faltoso e incumpridor da sua prestação perante o condomínio mesmo na circunstância em que em embargos deduzidos à execução contra ele movida pelo condomínio aquele excepcione a invalidade da deliberação que suporta o título executivo, nenhum sentido fazendo “repristinar” a vontade de cada um dos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação, citando-os do lado do exequente”(ac. TRL de 28.04.2022, proc. 26145/20.2T8LSB.L1-2, relatado Desembargador Vaz Gomes, disponível em dgsi.pt).
Esta redação da norma foi operada pela Lei n°. 8/2022 de 10 de janeiro e entrou em vigor no dia seguinte ao da publicação (cfr. o art. 9 - entrada em vigor), ou seja, em 11 de janeiro de 2022.
Nestes termos é aplicável à presente execução, que deu entrada em 15.03.2022.
Assim, passou a ser o administrador a ter de intentar a execução e já não o próprio condomínio (embora representado pelo administrador).
Ora, o que resulta é que a execução não foi proposta pelo administrador do condomínio em seu nome, mas pelo próprio condomínio.
A conclusão a retirar é, pois, que estamos perante uma situação de ilegitimidade do exequente.
*

A ilegitimidade constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. 577 al. e) e 578 do C. P. Civil: “A ilegitimidade é de conhecimento oficioso e não é sanável. (...) O tribunal que conheça da ilegitimidade deve proferir um despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo ou, se conhecida mais, tarde, ao abrigo do art. 734 CPC, deve absolver o executado da instância e extinguir a execução” (Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, p. 299).
Assim, cumpre conhecer da mesma, devendo rejeitar-se a execução, nos termos dos arts. 726 n°. 2 al. b) e 734 do C. P.Civil.

IIIDecisão:
3.1.- Pelo exposto, rejeita-se a execução.
3.2.-Custas pelo exequente, conforme o art. 527 do C. P. Civil.”
Inconformado, o exequente interpôs recurso de apelação, cujos fundamentos  culminou com as seguintes conclusões:

Conforme resulta da própria sentença (surpresa) recorrida, em sede de questões a decidir, importa apurar se a recorrente, enquanto condomínio tem legitimidade para ser parte (activa) na presente acção.

Assim, o Tribunal “a quo” considerou que a recorrente era parte ilegítima na presente acção e que a mesma deveria ter sido instaurada pela administração do condomínio, ou seja, o proprietário da fracção “K”, o Sr. OS..... .

Dispõe a alínea e) do artigo 12° do CPC que têm personalidade judiciária “o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.”

O n.° 1 do artigo 30° do CPC estabelece que o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, sendo esta exprimida pela utilidade derivada da procedência da acção (n.° 2). Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (n.° 3).

Presentemente dispõe o artigo 1437° do CC que “o condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele” (n.° 1). “O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos” (n.° 2).

O artigo 1437° do CC, anteriormente parecia regular a acção em juízo do administrador, em substituição do condomínio, ou seja, a possibilidade daquele ser parte num processo judicial. Regular-se-ia, assim, a legitimidade activa, tanto para demandar condóminos como terceiros (n.°1).

Porém, veio a tornar-se pacífico na doutrina e jurisprudência que o que se encontrava regulado neste artigo não era a legitimidade substancial do administrador, como configurada nos artigos 30° e seguintes do CPC, ou seja, o interesse em agir, mas sim a legitimidade processual/formal, no sentido de capacidade de representação do condomínio.

Para além da sentença em crise, o Tribunal a quo não questionou as Partes acerca de tal enquadramento jurídico-técnico, no sentido de ver realizado o aperfeiçoamento do título executivo, como aliás é apanágio da parte final do n.° 1 do artigo 734 do CPC.

Nem tão pouco identificou, em primeiro lugar, como foi possível tal entendimento, e não questionou ou possibilitou às Parte pronúncia sobre os mesmos, em segundo lugar.
10°
Limitou-se a confrontar o recorrente com a decisão.
11°
Ao fazê-lo, violou o n.° 3 do artigo 3° do CPC como o artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, violou frontalmente o principio do contraditório, estruturante do processo civil português, o que em si constitui uma nulidade processual que afecta de forma irremediável a decisão, influindo na decisão em causa, tornando-a nula, nos termos do n.° 1 do artigo 195° do CPC e que por isso, terá que ser declarada.
12°
Quanto à (in)existência de personalidade judiciária o Tribunal a quo entendeu que não existe personalidade judiciária do recorrente, pois considera que é o administrador, sem seu nome, a ter de intentar a execução e já não o próprio condomínio.
13°
No caso em apreço, o recorrente realiza, coercivamente, cobrança de quotas ordinárias e extraordinárias, tendo por título executivo uma acta de condominial, nos termos do n° 1 do artigo 6.° do Decreto-Lei n.° 268/94 de 25 de Outubro.
14°
A recorrente entende que o administrador tem, para além de outras funções, a de cobrar, executar e administração, sendo esta a sua actividade, a sua função instrumental e acessória.
15°
Num plano meramente teórico, não reconhecer o direito a iniciar uma acção judicial, por parte da administração do condomínio, para cobrança de créditos condominiais, seria um absurdo, uma incoerência do sistema jurídico em que se exigiria responsabilidade sem possibilidade de defesa.
16°
Uma acção judicial também deverá inserir-se no âmbito das funções da sua administração, mas sempre em representação do condomínio, e nunca em seu lugar.
17°
Ainda por mera cautela de patrocínio, admitindo-se no plano académico que inexiste personalidade judiciária do recorrente, tal vício é suprível, pelo que o dever de boa gestão processual, a boa-fé processual, a recíproca correcção a que o Tribunal a quo, e o bom-senso exigiria do Tribunal a notificação do recorrente para que viesse apresentar e demonstrar aos autos que a sua administração estava de acordo e que pretendia que a acção existisse e prosseguisse os seus termos.
18°
Ao não o fazer o Tribunal a quo cometeu um novo erro jurídico, erro que fere de morte a sentença proferida, e que, também, por esse motivo, justificaria uma revogação da sentença proferida na qual se conferisse tal possibilidade.
19°
Sumulando, entende-se que a decisão proferida deverá ser objecto de expressa revogação, substituindo-se por outra em que se reconheça plenamente a personalidade judiciária do recorrente, dando-se cumprimento aos mais elementares princípios de direito e à existência de uma causa justificativa para os termos em que a acção executiva foi apresentada.
20°
Caso assim não se entenda, deverá a decisão em crise ser revogada e substituída por outra que determine a notificação do recorrente para clarificar se a acção é proposta pelo Condomínio sito na Rua da ..... n.º ... a ...-C (Lisboa), representado pelo seu administrador o Sr. OS....., com residência na Rua da ..... n.º ... – 5º Esq. (Lisboa).

Não foram apresentadas contra-alegações.

Nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, foram colhidos os vistos.

2.Objeto do recurso

Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[7]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[8].
Assim, as questões a apreciar e decidir são as seguintes[9]:
- A nulidade processual decorrente da violação do princípio do contraditório Conclusões 3º a 11º;
- A personalidade judiciária – Conclusões 12º a 20º.

3. Fundamentação
3.1.-Os factos
Os factos a considerar são os descritos no relatório que antecede.

3.2.-Os factos e o direito
3.2.1.-Da nulidade decorrente da violação do princípio o contraditório
Insurge-se o apelante perante a circunstância de a decisão apelada ter sido proferida sem que as partes tivessem tido a oportunidade de se pronunciarem sobre a questão da ilegitimidade ativa.
Analisada toda a tramitação da presente execução, e como aliás já decorre do relatório que antecede, é manifesto que a questão da ilegitimidade ativa foi oficiosamente suscitada pelo Tribunal na decisão apelada, não tendo sido concedida às partes a possibilidade de sobre a mesma se pronunciarem.
A decisão apelada - recorde-se – foi proferida ao abrigo do disposto no art. 734º, nº 1 do CPC, o qual estabelece que “o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo”.
Nos termos do art. 3º, nº 3 do CPC “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Trata-se da consagração expressa do princípio do contraditório na vertente da proibição da prolação de decisões surpresa, garantindo aquele preceito às partes a sua efetiva intervenção no desenvolvimento de todo o litigio, sob pena de nulidade da decisão que o não respeite: é o que se chama de contraditório dinâmico.
Como bem se aponta no ac. STJ 17-06-2014 (Mª Clara Sottomayor), p. 233/2000.C2.S1, “deve esclarecer-se, (…), que se tem entendido que o art. 3.º do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado na Alemanha, país donde dimanou e tem longo historial, verificando-se importantes diferenças de regime entre o Código de Processo Civil português e o alemão.
O direito ao contraditório (Rechtliches Gehör), no direito alemão constitui um direito fundamental, baseado na dignidade da personalidade humana, e está consagrado no artigo 103.º, I, da Constituição Alemã, onde se afirma: «Perante o tribunal todos têm direito a ser ouvidos».
Este princípio constitucional tem seguimento nos §§139, n.º 2 e 278, n.º 3 da Zivilprozessordnung (Código de Processo Civil alemão), deles resultando que o legislador germânico confere ao direito ao contraditório uma dimensão que vai muito para além do que comporta, mesmo em interpretação extensiva, a lei portuguesa, até porque entre nós não existe preceito correspondente ao §139 da ZPO (cf. acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-06-2009, processo n.º 09B0523, relatado pelo Conselheiro João Bernardo).

A doutrina aceita, contudo, o princípio da proibição das decisões surpresa, enquanto proibição de decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes, entendendo que esta vertente do direito ao contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado. Neste sentido, antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra.”

Por seu turno, diz LEBRE DE FREITAS[10]:
“Por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que; a) formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão; b) oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar. Assim se garantia o desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorras da fiscalização recíproca das afirmações e provas feitas pelas partes.
A esta conceção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehör germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os  elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do principio do contraditório deixou assim de ser a defesa. no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”
Sobre esta matéria da proibição das decisões-surpresa, e em  comentário ao ac. STJ 02-06-2020 (Lima Gonçalves), p. 496/13.0TVLSB.L1.S1, sustentou MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA:[11]
“O CPC trata das nulidades processuais nos art.ºs 186.º a 202.º e das nulidades da sentença e do acórdão nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º. Perante isto, pode colocar-se a questão: por que motivo têm tratamento em diferentes lugares do CPC as nulidades processuais e as nulidades da sentença? Ou noutra formulação: dado que a sentença é um acto processual, qual o motivo para que a nulidade da sentença não esteja tratada em conjunto com as nulidades processuais? Ou noutra formulação ainda mais precisa: constando do art.º 195.º CPC uma regra geral sobre a nulidade dos actos, qual a justificação para que exista uma regulamentação específica sobre a nulidade da sentença?
A resposta tem a ver com a dupla perspectiva pela qual a sentença pode ser considerada (assim como qualquer outro acto processual) e é a seguinte: a sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
Disto decorre que uma sentença pode constituir uma nulidade processual, se for considerada na perspectiva da sentença como trâmite: basta, por exemplo, que ela seja proferida fora do momento apropriado na tramitação processual. Um exemplo (naturalmente académico): se, no procedimento comum, o juiz proferir uma decisão logo a seguir ao termo da fase dos articulados, verifica-se uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, porque foi praticado um acto que a lei, naquele momento, não permite.
Importa notar, no entanto, que, atendendo à diferença da sentença como trâmite e como acto, a nulidade processual do art.º 195.º CPC nada tem a ver com a nulidade da sentença dos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC. É fácil verificar que assim é.
A nulidade processual decorrente do disposto no art.º 195.º, n.º 1, CPC existe mesmo que a sentença não padeça de nenhum outro vício, nomeadamente daqueles que estão enumerados no art.º 615.º CPC. Quer dizer: a sentença pode conter toda a fundamentação exigível, pode não padecer de nenhuma contradição entre os fundamentos e a decisão, pode não conter nenhuma omissão ou nenhum excesso de pronúncia e pode não condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, mas, ainda assim, porque é proferida fora do momento adequado, verifica-se a nulidade processual imposta pelo art.º 195.º, n.º 1, CPC.
Voltando ao exemplo (académico) acima referido: o proferimento da sentença logo depois da fase dos articulados constitui uma nulidade processual; no entanto, essa sentença pode não padecer de nenhum dos fundamentos de nulidade enumerados no art.º 615.º, n.º 1, CPC.
O inverso também é possível (e é, aliás, a situação mais frequente): se a sentença é proferida no momento processualmente adequado, mas se a mesma não contém toda a fundamentação exigível, padece de uma contradição entre os fundamentos e a decisão, contém uma omissão ou um excesso de pronúncia ou condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, não há nenhuma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, embora se trate de sentença que é nula segundo o disposto nos art.ºs 615.º, n.º 1, 666.º e 685.º CPC.

Assente esta distinção básica entre a sentença considerada como trâmite e a sentença considerada como acto, importa tratar agora do problema relacionado com as decisões-surpresa e com a sua correcta solução jurídica. A questão a resolver é a seguinte: uma decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC ou uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC?
Segundo se pode imaginar, as dificuldades sentidas pela jurisprudência decorrem da circunstância de a decisão-surpresa resultar da omissão da audição prévia das partes e de, portanto, parecer que a ela está subjacente uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC. Há aqui, no entanto, uma confusão que importa procurar desfazer.
A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa).
Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência.
Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.
Note-se que, como se tem vindo a repetir neste Blog, esta solução é a única que é compatível com a impugnação da decisão-surpresa através de recurso e com o objecto do recurso. O objecto do recurso é sempre uma decisão, pelo que, se houvesse uma nulidade processual, a mesma não poderia constituir objecto de recurso e teria de ser reclamada no tribunal a quo.[…]
Uma última observação: é preciso ler com muito cuidado toda e qualquer doutrina e toda e qualquer jurisprudência que se tenha pronunciado sobre o problema antes de ter surgido no panorama legislativo português a temática da decisão-surpresa.
Efectivamente, não se pode dizer que já antes não houvesse casos que, agora, seriam enquadráveis na decisão-surpresa. O que faltava na altura era a visão de que a decisão-surpresa constitui, em si mesma, um vício processual autónomo e próprio.”
Deste breve excurso decorre, pois que a inobservância do princípio do contraditório subjacente à prolação de uma decisão surpresa pode ser enquadrada de dois modos diversos:
- como nulidade processual (secundária), nos termos previstos no art. 195º, nº 1 do CPC – vd., entre outros, os acs. RP 27-01-2015 (M. Pinto dos Santos), p. 1378/14.4TBMAI.P1; RG 19-04-2018 (Eugénia Cunha), p. 533/04.0TMBRG-K.G1; RP 02-12-2019 (Eugénia Cunha), p. 14227/19.8T8PRT.P1; e STJ 13-01-2005 (Araújo de Barros), p. 04B4031;
ou
- como nulidade da sentença, decorrente de excesso de pronúncia, nos termos previstos no art. 615º, nº 1, al. d) do mesmo código – vd. acs.; STJ 13-10-2020 (António Magalhães), p. 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1;
Contudo, alguma jurisprudência vem salientando que a preterição do direito ao contraditório seguida da prolação de sentença pode configurar simultaneamente uma nulidade processual, e uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia – vd., entre outros os acs. RP 15-12-2021 (Isoleta Almeida Costa), p. 2577/20.5T8AGD-A.P1; bem como e STJ 23-06-2016 (Abrantes Geraldes), p. 1937/15.8T8BCL.S1.
Cremos, porém, que a ponderação de tais situações como situações de concurso das duas nulidades, com eventual conjugação de regimes permite alcançar respostas satisfatórias àquelas interrogações, respeitando a letra e espírito dos preceitos que regulam as duas figuras.
Assim sendo, cremos ser de considerar que se poderá falar em concurso dos dois vícios nas situações em que a primeira nulidade por omissão de uma formalidade legal anterior à prolação da sentença não deva considerar-se sanada por falta de invocação atempada.
Tal sucederá em todas as situações em que tal nulidade apenas se revela com a prolação da sentença.
Aqui chegados, cumpre reconhecer que a jurisprudência maioritária tem entendido que no âmbito do processo executivo a prolação de despacho liminar não tem de ser precedida da prévia audição das partes. Neste sentido cfr, entre outros, os seguintes arestos:
-RC 27-02-2018 (Jorge Arcanjo), p. 5500/17.0T8CBR.C1;
-RL 10-05-2018 (Nuno Sampaio), p. 16173/17.0T8LSB.L1;
-RL 21-02-2019 (Maria José Mouro), p. 5568/17.0T8ALM.L1-2;
-RP 08-03-2019 (Carlos Portela), p. 14727/17.4T8PRT-A.P1;
-RE 11-04-2019 (Rui Machado e Moura), p. 1501/17.7T8SLV.E1;
-RL 24-09-2019 (Diogo Ravara), p. 8333/16.8T8ALM.L1.L1;
-RP 17-12-2020 (Jerónimo Freitas), p. 22665/19.0T8PRT.P1;
-RP 23-05-2022 (Fátima Andrade), p. 15598/20.9T8PRT.P1;
-RL 18-01-2023 (José Eduardo Sapateiro), p. 8095/21.7T8ALM.L1-4;
-RL 30-03-2023 (Gabriela de Fátima Marques), p. 15052/21.1T8LSB.L1-6;
-STJ 24-02-2015 (Ana Paula Boularot), p. 116/04.6YLSB;
Questão diversa reside em determinar se relativamente à prolação da decisão de rejeição da execução, prevista no art. 734º do CPC, também pode considerar-se dispensada a observância do princípio do contraditório.
A esta questão respondeu negativamente o ac. RG 28-01-2021 (Margarida Almeida Fernandes), p. 7911/19.8T8VNF.G1.
Subscrevemos inteiramente este entendimento.

Na verdade, como bem observaram os acs. primeiramente citados, a dispensa da observância do princípio do contraditório em sede de despacho liminar reside nas circunstâncias de o mesmo se consubstanciar num momento de apreciação judicial situado a montante da citação e de a lei processual propiciar às partes um contraditório diferido, em sede de recurso, prevendo-se expressamente a citação do executado para os termos da causa e do recurso (art. 641º, nº 7 do CPC).

O mesmo não se passa com a rejeição da execução nos termos previstos no art. 734º do CPC, que é proferida em momento subsequente à citação do executado ou ato equivalente.

Conclui-se, por isso, que a prolação de decisão de rejeição da execução com fundamento em vício que nenhuma das partes invocou e sobre a qual não teve oportunidade de se pronunciar configura uma nulidade simultaneamente do processo (art. 195º, nº 1 do CPC) e daquela decisão ((art. 615º, nº 1m al. d) do mesmo Código).

Em consequência, deve a decisão apelada ser anulada.

Note-se que nos casos de violação do p. do contraditório não se coloca a questão do o Tribunal da Relação se substituir ao Tribunal a quo, nos termos previstos no art. 665º do CPC, visto que a anulação dos efeitos de uma decisão surpresa pressupõe que todas as partes se possam vir a pronunciar sobre a questão, antes de a mesma ser apreciada.

Nesta conformidade, cumpre anular a decisão apelada, e anular a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra na qual o Tribunal a quo exponha a sua posição relativamente à eventual (i)legitimidade ativa, e determine o convite do exequente e dos executados para, querendo, se pronunciarem sobre a questão, após o que deve ser proferida nova decisão sobre a matéria.

3.2.2.-Da ilegitimidade ativa
Face ao exposto no ponto que antecede, fica prejudicada a apreciação da questão da ilegitimidade ativa.

3.2.3.-Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, considerando que a taxa de justiça já, se encontra assegurada, e que nenhuma das partes deu causa ao presente recurso, não tendo sido apresentadas contra-alegações, e não havendo encargos a satisfazer, importa concluir não haver quaisquer custas a satisfazer.

4.Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação procedente e, em consequência, anular a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra na qual o Tribunal a quo exponha a sua posição relativamente à eventual (i)legitimidade ativa, e determine o convite do exequente e dos executados para, querendo, se pronunciarem sobre a questão, após o que deve ser proferida nova decisão sobre a matéria.
Sem mais custas.


Lisboa, 26 de setembro de 2023


Diogo Ravara
Cristina Coelho
Micaela Sousa


[1]Vd. processado com referências datadas de 04-04-2022, 05-04-2022, 06-04-2022, 08-04-2022, 10-04-2022, e 19-04-2022, bem como auto com a refª 23215186, de 19-04-2022.
[2]Refª 32315376.
[3]Refª 32523796.
[4]Refª 32624606/42318695, de 20-05-2022.
[5]Refª 33198714/42927708, de 21-07-2022.
[6]Refª 33514288/43196187, de 08-09-2022.
[7]Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[8]Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[9]Entendemos que as conclusões 1ª a 4ª têm natureza meramente introdutória.
[10]Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 4.ª Edição, Gestlegal, 2017, pp. 126-127.
[11]“Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária” in Blog do IPPC, disponível no seguinte endereço:
https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html