Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22665/19.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
RESOLUÇÃO
JUSTA CAUSA
COMUNICAÇÃO
JUSTIFICAÇÃO
FACTOS ATENDÍVEIS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
FACTOS ESSENCIAIS
PETIÇÃO INICIAL
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP2020121722665/19.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O trabalhador deve fazer a comunicação da resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa por escrito, com a “indicação sucinta dos factos que a justificam” [n.º1, do art.º 395.º], sendo a partir dessa indicação que se afere a procedência dos motivos invocados para a resolução, já que “apenas são atendíveis para a justificar” os factos que dela constarem [n.º 3, do art.º 398.º].
II - Justamente porque na apreciação judicial da licitude da resolução apenas são atendíveis os factos que foram invocados para a justificar, mas também porque essa comunicação tem que permitir que para o empregador sejam perceptíveis os fundamentos invocados na resolução do contrato, a expressão “indicação sucinta dos factos”, embora possa sugerir outra leitura, deve ser entendida no sentido de que o trabalhador não está dispensado de concretizar, com o mínimo de precisão, os factos que estão na base da sua decisão.
III – O convite ao aperfeiçoamento de articulados, nos termos do nº 4 do art. 590º do CPC, é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual.
IV- Os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a pretensão material, integrando o núcleo essencial da causa de pedir. Visto noutro ângulo, são essenciais os factos de cuja verificação depende o atendimento do pedido. A sua falta importa que o pedido não possa ser julgado procedente.
V- O despacho de aperfeiçoamento justificar-se-ia e seria devido, desde que estivesse em causa suprir “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” [art.º 590.º n.º 2 al. b) e n.º4, do CPC], mas não é esse o caso, pois o que acontece aqui é inexistência absoluta da alegação dos factos que constituem a causa de pedir, isto é, faltam os factos de que a autora faz proceder os efeitos jurídicos pretendidos, importando tal a manifesta improcedência dos mesmos, logo, enquadrando-se a situação na previsão do n.º1, do artigo 590.º, devendo a petição ser liminarmente indeferida.
VI - No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento (despacho preliminar), além do mais porque a lei prevê o contraditório diferido, dada ampla admissibilidade legal de recurso, independentemente do valor e da sucumbência, e em situação de igualdade das partes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 22665/19.0T8PRT.P1
SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I.RELATÓRIO
I.1 B… intentou a presente acção declarativa com processo comum, emergente de contrato de trabalho, contra C… pedindo que julgada a acção procedente seja a Ré condenada a pagar-lhe “o valor de 29.073,00 Euros a título de danos patrimoniais e não patrimoniais e ainda a título de indemnização”.
Alegou, em síntese, o seguinte:
- Foi admitida para trabalhar para a Ré no dia 29 de Maio de 2001, conforme contrato escrito junto;
- Em 3 de outubro de 2018 enviou à Ré carta registada a comunicar a resolução do contrato de trabalho com justa causa;
- Foi alvo de irregularidades praticadas pela Ré nomeadamente quanto ao exercício do horário efectivo de trabalho, por os horários praticados serem elaborados sem atender às necessidades de trabalho e capacidades dos trabalhadores e sem atender à necessidade rotina e por reporte a 28 dias e sem contemplarem as necessidades do n.º de utentes (variável) nem o grau de dependência desses;
− Tal situação causava instabilidade à Autora, que quando laborava no turno da noite que devia terminar às 8h00m da manhã continuava a trabalhar até às 9h00m sem pagamento de horas extraordinárias e sem que as horas fossem remetidas para o banco de horas (excepto nos últimos 3 anos);
- Quando faltava um trabalhador, frequentemente a Autora era obrigada a permanecer no local de trabalho mais 4 horas enquanto a entidade empregadora procurava colmatar a falta, sem pagamento do trabalho suplementar;
- Dada a falta de pessoa reiteradamente foram preteridos os intervalos de descanso/refeições, não raras vezes tendo a Autora que trabalhar horas ininterruptamente, sem poder comer;
− Nos últimos anos foram acumulados no banco de horas os períodos de tempo prestados naqueles dias mas a contabilização efectuada não corresponde ao tempo trabalhado em excesso;
− Foi-lhe exigido a que preparasse e administrasse medicação sem ter habilitações para tal função;
− Foi colocada em situações de risco de saúde, sendo agredida por utentes dada a instabilidade mental dos mesmos, quando desempenhava as suas funções de auxiliar;
− Foi sujeita a interrogatórios sobre eventos que ocorreram na instituição Ré sem lhe ter sido dado conhecimento do conteúdo que era registado;
− No último ano (2018) foi repreendida por alegadamente ter assegurado a segurança e preservação da integridade física de uma utente que se estava a auto flagelar;
− Era frequentemente censurada por eventuais erros que ocorriam na administração da medicação, quando a Autora tinha advertido por diversas vezes que não possuía competência para preparar tal medicação;
− Foi humilhada perante toda a instituição por lhe ter sido exigido, sem fundamento, para poder continuar a trabalhar, a entrega imediata de todas as informações e exames clínicos, sem que o mesmo tivesse sido exigido aos demais trabalhadores, não tendo entregue os documentos por não lhe terem sido facultados pelo médico, acabando por não voltar a trabalhar;
− Desgostosa com toda a situação que lhe provocou doença psicológica (distúrbio de sono e perda de memória provocada pela medicação) e doenças do foro físico (hérnia L5 à qual foi operada em 2019 e outros problemas da coluna), provocadas pelo esforço físico em excesso a que foi submetida ao longo dos anos;
− Ao longo dos 17 anos viu falecer utentes sem lhe ter sido prestado apoio psicológico;
− Era obrigada a fazer formação fora do seu horário de laboral.
Afirma que por tudo o exposto “foram violados de forma culposa os deveres contratuais por parte da Entidade Empregadora, sendo a mesma grave por se referir a diversas obrigações estruturantes do vínculo laboral, o que tornou inviável a subsistência do mesmo”, para concluir o seguinte:
- Tem direito a receber da Entidade Patronal o valor de 21.573.00 euros (vinte e um mil, quinhentos e setenta e três euros) a título de indemnização, conforme preceitua o artº 396 do Código do Trabalho.
- Deve ainda a Ré à Autora a título de danos não patrimoniais, por toda angústia, ansiedade, tristeza que a levaram a uma profunda depressão e pelos danos físicos provocados, uma valor nunca inferior a 5.000.00 euros (cinco mil euros).
- Deve ainda ser pago à trabalhadora pelos diversos anos que trabalhou sem que lhe fossem pagas as horas extraordinárias e sem que lhe fosse atribuído intervalo de descanso, um valor nunca inferior a 2.500.00 euros (dois mil e quinhentos euros).
Recebida a acção, o Tribunal a quo proferiu despacho determinando a notificação da autora para vir juntar aos autos a carta de resolução do contrato de trabalho que dirigiu à demandada empregadora.
A autora correspondeu ao determinado e juntou a carta de resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa.
I.2 Subsequentemente, o Tribunal a quo proferiu despacho liminar, concluindo-o com a decisão seguinte:
- «(…)
Em conformidade, dada a manifesta falta de fundamento e improcedência da presente acção, nos termos do disposto no art. 590.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força da remissão efectuada pelo art. 54.º, n.º 1, do Cód. Proc. Trabalho, indefiro liminarmente a presente petição inicial.
Custas a cargo do Autora.
Valor da acção: O atribuído na petição inicial (€ 29.073,00).
(..)».
I.3 Inconformada com esta decisão a Autora interpôs recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram finalizadas com as conclusões seguintes:
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I.4 A Ré, citada para os termos do recurso, bem como da causa (art.º 641.º n.º 7, do CPC), apresentou contra-alegações, que sintetizou nas conclusões seguintes:
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XV. Deve pois o presente recurso improceder, mantendo-se o despacho proferido.
I.5 O Ministério Público junto desta Relação teve visto nos autos, para os efeitos do art.º 87.º3 do CPT, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, referindo não assistir razão à recorrente, uma vez que, tal como se decidiu, a comunicação de resolução do contrato de trabalho com justa causa não contém qualquer facto. E, mesmo que os pormenorizasse na petição inicial, o que nem aconteceu, tal seria inútil, dado que a falta de factos na comunicação a que se refere o n.º1 do art.º 395.º do CT, não pode ser suprida pela descrição dos mesmos naquele articulado inicial. A petição inicial deveria ser indeferida, como foi, conforme decidido no RP de 13-04-2015, proc. n.º 520/13.7TTGMR.P1.
Quanto ao mais, designadamente, o trabalho suplementar, como também entendeu o Tribunal a quo, inexistem factos alegados pela Autora, logo, devendo manter-se o decidido.
I.6 Foram colhidos os vistos legais e determinou-se a inscrição do processo em tabela para ser submetido a julgamento.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigo 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] a questão que se coloca para apreciação consiste em saber se o Tribunal a quo errou ao indeferir liminarmente apetição inicial, sem que previamente tenha observado o disposto no artº 3, nº3 do CPC, incorrendo em nulidade processual (art.º 195 do CPC).
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a apreciação do recurso são os que constam no relatório, acrescidos do conteúdo da carta de resolução do contrato de trabalho com justa causa, remetida pela A. à R, e junta aos autos, onde se lê o seguinte:
-«[…]
Serve o presente para comunicar a imediata resolução do contrato de trabalho em vigor há 19 anos, sob a categoria profissional de “Ajudante de acção directa”, com justa causa, nos termos do n.º 1 e das alíneas a), b), d) e f) do n.º 2 e alínea b) do n.º 3 do artigo 394.º do Código do Trabalho, pelos motivos infra descritos.
Sucede que são diversas as irregularidades na organização do serviço e do horário efectivo de trabalho da C1…, as quais recentemente vim a confirmar junto de entidade competente, bem como se vêm revelando outro tipo de violações do contrato de trabalho, as quais não podem mais ser ignoradas. Nomeadamente:
a) Sendo que os horários por turno carecem de aprovação do Ministério do Trabalho, certo é que esta nunca é colhida, estando o mapa de horário de trabalho ao cuidado de pessoa que não tem demonstrado a devida competência para o efeito. As sugestões de aperfeiçoamento do procedimento, apresentadas por auxiliares, nunca foram atendidas. Os turnos têm sido atribuídos sem atender à necessidade de rotina ou, pelo menos, adaptação às alterações súbitas dos períodos (manhã, tarde ou noite). Repare-se, designadamente, que os mapas são feitos do dia 1 ao 28, o que não tem qualquer razão nem fundamento, visto que apenas 1 mês por ano tem 28 dias. Também diz a lei aplicável que o mapa deve ser afixado anualmente, em local acessível, quando na verdade o mesmo é elaborado mensalmente ou de dois em dois meses, o que perpetua a instabilidade da vida profissional e pessoal;
b) Algumas vezes é exigido que, terminado o turno da noite às 08H00, se continue no serviço até às 09H00 por falta de pessoal, sem as horas extraordinárias remetidas para o banco de horas. Por outro lado, sempre que um funcionário não se apresenta ao serviço, os superiores hierárquicos solicitam a um dos auxiliares cujo turno esteja a findar que permaneça em serviço por mais 4 horas, ou as que forem possíveis, sendo que paralelamente é pedido a um dos colaboradores do turno seguinte que entre ao serviço 4 horas mais cedo, para colmatar todo o turno do faltoso;
c) Por conta da escassez de auxiliares em cada turno, situação que não deveria acontecer em nome do bem-estar e segurança dos utentes, têm sido reiteradamente preteridos os intervalos de descanso, de duração nunca inferior a 1 hora nem superior a 2 horas, de modo a que o trabalhador não preste mais de cinco horas de trabalho consecutivo, ou seis horas de trabalho consecutivo caso aquele período seja superior a 10 horas (artigo 213.º do Código do Trabalho). A redução do intervalo de descanso depende de autorização que nunca foi colhida, e os auxiliares – inclusive eu mesma – prestam o seu serviço de forma ininterrupta, o que coloca em crise a qualidade dos préstimos assim como a saúde dos trabalhadores. Não raras vezes os trabalhadores, tanto como eu, são obrigados a prestar 8 horas de serviço ininterrupto, se não mais, sem sequer parar 30 minutos para a refeição. A pausa de almoço não raras vezes consubstancia-se em cuidar dos utentes, por apenas um auxiliar, caso contrário o utente fica ao cuidado dos serviços administrativos;
d) Não é atendida a regra de a prestação de trabalho suplementar em dia útil, em dia de descanso complementar e em dia feriado conferir ao trabalhador o direito a um descanso compensatório remunerado correspondente a 25% das horas de trabalho suplementar realizado. Quando presto trabalho em dias de descanso semanal obrigatório, não sou remunerada, mas sim o período de trabalho prestado é acumulado no banco de horas, sem hipótese de escolha;
e) O banco de horas viola manifestamente a lei. Nele são incluídos os intervalos de descanso não usufruídos, trabalho suplementar, as horas adicionais ao turno por força da falta de um colaborador (explica supra) e a formação fora do horário de expediente. As horas comunicadas ao mesmo não são remuneradas, e é extremamente difícil usufruir das compensações;
f) Afigura-se mais do que clara a necessidade da presença de pelo menos três auxiliares, fundamentalmente no turno da tarde, para que se possa acorrer e controlar situações de irregularidades e percalços que têm sido constantes. Infelizmente a presença dos 3 elementos é rara de se verificar, provocando aos auxiliares presentes um enorme desgaste físico e psicológico. Esta ausência tem como consequência uma deficiente organização do serviço e falta de qualidade na prestação do mesmo, numa altura em que têm sido mais frequentes graves alterações comportamentais de alguns utentes, enquanto outros, por motivos de saúde, requerem uma vigilância apertada, ou, ainda, pela sua patologia, necessitam de serem mobilizados várias vezes ao longo do turno. Também acontece que alguns clientes apresentam planos alimentares específicos que requerem um maior número de refeições com horas impreterivelmente agendadas, agravando ainda mais as tarefas diárias;
g) Foi-me, desde sempre, exigida a função, que não compete à minha categoria profissional, da preparação diária da medicação de todos os Clientes ocupantes da C1…] (quando me caberia apenas a sua administração). Para além disso ainda me era exigida a preparação semanal da medicação de uma Cliente domiciliada que só usufrui dos nossos serviços durante o fim de semana;
h) Não posso compactuar com a forma desleixada como certas regras de higiene não são revistas. A título de exemplo, as escovas de cabelo partilhadas também são desinfectadas apenas uma vez por semana; a caixa de primeiros-socorros quase nunca está em conformidade com os procedimentos legais, faltando os acessórios que, por lei, deveriam constar na mesma e que fazem falta para acorrer a determinadas situações correntes; já aconteceu deixar de haver esponjas e toalhas para os banhos dos utentes.
i) Verificaram-se, por diversas vezes, situações de alteração do estado de saúde dos Clientes que são descritas e registadas no livro de comunicação interna e algumas vezes endereçadas por e-mail à responsável de serviço. No entanto, essas indicações deixadas pelos auxiliares somente em raras situações eram questionadas ou apuradas pelos superiores hierárquicos no imediato e “in loco”, e já aconteceu tal demora negligente implicar a exposição dos auxiliares e dos demais utentes a doenças que exigem superior cuidado, algumas das quais com claro agravamento do quadro clínico – só nestes casos extremos ou após reiteradas comunicações é que efetivamente os superiores intervinham no processo;
j) De acordo com a consulta informal e sem compromisso à Autoridade para as Condições do Trabalho, tomei conhecimento de que o método de avaliação que tem sido praticado não respeita as regras legais, o que prejudica directamente as minhas expectativas profissionais, porquanto em diversos itens incidia sobre a realização de funções que não correspondem à minha categoria profissional; salvaguardando as Ações de Formação, as quais considero importantes;
k) Fui sujeita a registos de ocorrências aos quais me foi vedado o acesso à informação ou conteúdo neles constantes, assim como nunca me foi solicitada a assinatura que validaria ou não o meu testemunho e dos restantes envolvidos, assim como as justificações que me foram prestadas não têm a mínima sustentação prática. Várias delas respeitam à referida gestão de medicamentos, que não cabe nas minhas funções, e mais recentemente fui repreendida por ter colocado em primeiro lugar a segurança e integridade física de uma Cliente em detrimento da minha, quando todos bem sabemos o quão é complicado e delicado tratar de uma menina autista com comportamentos agressivos espontâneos e, infelizmente, inconscientes. E porque não me cingi ao profissionalismo sem prescindir do uso do Bom Senso que era premente naquelas circunstâncias, acabei sendo fortemente agredida, evitando a auto-flagelação da utente e agravar ainda mais a situação, que já de si era grave. No caso em apreço, a utente atingiu por duas vezes o grau máximo de agressividade, havendo numa delas a necessidade de recorrer ao INEM e à chamada da PSP para intervirem, tendo os elementos destas tuas corporações sido testemunhas oculares não só do estado de total descontrolo da utente, bem como das agressões de que fui alvo – que o INEM não conseguiu socorrer, também eles alvo de agressões por parte da utente;
l) Foi-me exigida a entrega de toda a documentação concernente às minhas informações de saúde e clínicas e exames médicos, os quais são dados sensíveis e privados e, de acordo com o nosso ordenamento jurídico, estão especialmente protegidos, não havendo razão plausível nem legal para a entidade empregadora ter acesso incondicional às mesmas. Inclusive, face à recusa do meu Médico de Família de franquear o acesso a tais informações salvaguardadas pelo sigilo profissional, e tendo-o comunicado à terapeuta E… por e-mail, esta me respondeu pela mesma via que o caso havia sido remetido para a Medicina do Trabalho, bem como para o Departamento de Recurso Humanos;
m) Como já abordado, conforme a autonomia, ou falta dela, dos utentes, há um número mínimo de auxiliares a estarem ao serviço, o que não tem sido respeitado. No início do contrato, estavam sempre ao serviço de 3 a 4 auxiliares (salvo no turno da noite, que sempre foram 2). Hoje, nunca mais do que 2, se não estiver apenas 1. Certos esforços físicos têm sido exigidos a um só auxiliar;
n) Não obstante eu ter já sugerido soluções, certo é que até à data as instalações não têm saída de emergência nem rampas de acesso. É comum as propostas de melhoria dos serviços, assim como sugestões de acompanhamento médico dos utentes, serem ignoradas, o que compromete não só a eficiência do trabalho como também a saúde dos utentes;
o) Não recebi a devida indemnização pelos intervalos de descanso desrespeitados e a retribuição legal pelo trabalho suplementar. O subsídio atribuído pelo trabalho por turnos e pelo trabalho nocturno suscita sérias dúvidas na sua forma de cálculo;
p) Ainda no que respeita à retribuição, diz a lei que esta corresponde a prestação a que o trabalhador tem direito pelo seu trabalho. Tem-se verificado o pagamento de valor mais ou menos certo ao longo do ano, com a justificação unilateral – da entidade patronal – de que no final do ano se acertam os valores em comparação entre funcionários, porque alegadamente a cada ano todos teremos executado o mesmo número de horas nos mesmos períodos do dia. Ora, isso é, na prática, impossível, em especial considerando o trabalho suplementar exigido e outros acertos que, como já denunciado supra, violam a lei e o descanso dos trabalhadores. Também já verifiquei situações em que, perante o mesmo número de dias efectivos, fiz turnos da tarde e noite ao longo de um mês, e uma colega, fazendo turnos da manhã e da tarde, recebeu o mesmo do que eu. Sabendo do facto de o trabalho nocturno ter um acréscimo, este cenário é inaceitável. Quando pedido o devido esclarecimento, este nunca foi dado de forma bastante;
q) Enfim, as retribuições não respeitam os instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho e toda a legislação respeitante às relações laborais na IPSS;
r) A responsabilização das auxiliares, incluindo eu, tornou-se desumana, em prejuízo directo do bem-estar dos utentes. Por muito que nos desdobremos em esforço e empenho, basta um utente precisar de ser acompanhado até às urgências para que um terceiro colaborador que está em repouso venha fazer o tempo restante até ao regresso do auxiliar do hospital ou então mediante a antecipação de entrada ao serviço do colaborador do turno seguinte, o que interfere de forma impactante na vida pessoal e familiar dos colaboradores. Ainda assim, muito raramente nos negámos a fazê-lo, em nome dos utentes, mas também em prejuízo directo dos direitos dos trabalhadores. E, apesar de todo esse empenho, o respeito e consideração por este são quase nulos;
s) Enfim, a entidade empregadora tem incumprido deveres que lhe incumbem, como proporcionar boas condições de trabalho tanto do ponto de vista físico como moral, contribuir para a elevação do nível de produtividade do trabalhador, prevenir riscos e doenças profissionais, respeitar a autonomia técnica do trabalhador, cumprir a legislação aplicável e pagar pontualmente a retribuição, mais propriamente no que diz respeito a subsídio de turno e falta de horário constante e homologado ou acordado.
Neste pressuposto, sem prejuízo de ter apresentado os motivos de forma sucinta, é óbvia a violação culposa dos deveres contratuais da Entidade Empregadora, sendo a mesma grave por se referir a diversas obrigações estruturantes do vínculo laboral, o que torna inviável a subsistência do mesmo.
Fico assim a aguardar o envio, no prazo de cinco dias úteis, da Declaração Modelo 5044 da Segurança Social e do Certificado de Trabalho, sem prejuízo do pagamento dos créditos emergentes da cessação do contrato, acrescido da indemnização de antiguidade prevista no artigo 396.º do Código do Trabalho. Note-se que o acerto de contas por conta da cessação do contrato de trabalho deve incluir ainda, e em retroactivos, a compensação pelos intervalos de descanso não respeitados e trabalho suplementar não remunerado devidamente, assim como o vencimento que foi omitido por conta da alegada forma de cálculo das retribuições com acerto de contas anual.
Aceitarei os valores apresentados por V. Exas. desde que devidamente fundamentados e acompanhados por discriminação dos cálculos respectivos, estando disponível para amigavelmente chegar ao entendimento.
[…]».
II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
Na perspectiva da recorrente, o Tribunal a quo errou ao indeferir liminarmente a petição inicial, quando deveria ter proferido despacho de aperfeiçoamento, concedendo-lhe o benefício de apresentar outra petição ou de articulado onde corrigisse o inicialmente produzido. Ao não proceder assim, violou o disposto no artº3, nº3 do CPC, incorrendo em nulidade processual, nos termos previstos no art.º 195 do CPC.
Comecemos por atentar na fundamentação da decisão recorrida:
A Autora B… intentou a presente acção de processo comum laboral contra C…, alegando:
[A descrição que consta nesta parte é a que se levou ao ponto inicial do relatório do presente acórdão, para onde se remete]
Com base em tais factos peticiona a condenação da Ré a pagar-lhe o montante global de € 29.073,00, correspondente a:
− € 21.573,00 a título de indemnização conforme preceitua o art. 396.º do Cód. do Trabalho;
− valor não inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, por toda a angústia, ansiedade, tristeza que levaram a uma profunda depressão e danos físicos causados;
− valor nunca inferior a € 2.500,00, pelos diversos anos que trabalhou sem que lhe fossem pagas as horas extraordinárias e sem que lhe fosse atribuído intervalo de descanso.
Após notificada pelo tribunal para o efeito, a Autora juntou a carta que alega ter enviado a resolver o contrato de trabalho, a qual se encontra junta a fls. 14 e 15, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Fundamenta a Autora o pedido de condenação da Ré no pagamento de € 21.573,00 na verificação de justa causa de resolução do contrato de trabalho, ou seja, no disposto nos arts. 394.º e 396.º, ambos do Código do Trabalho.
Nos termos do disposto no art. 395.º, n.º 1, do Código do Trabalho, a resolução do contrato de trabalho com justa causa está dependente do cumprimento de uma formalidade pelo trabalhador: o envio de comunicação escrita a resolver o contrato à entidade empregadora contendo a indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos.
Por seu turno, resulta do disposto no n.º 3 do art. 398.º do Código do Trabalho que na acção em que é suscitada e tem que ser apreciada a questão da (i)licitude da resolução apenas são atendíveis para justificar a resolução os factos constantes da comunicação escrita da resolução efectuada pelo trabalhador à entidade patronal.
Ora, a comunicação em causa é a que a Autora, após notificação para tal pelo tribunal, juntou a fls. 14 e 15.
Da leitura da mesma resulta de forma absolutamente cristalina que não foram aí alegados quaisquer factos concretamente descritos e identificados no tempo: o que consta da carta enviada são, na melhor das hipóteses, descrições genéricas de procedimentos existentes na instituição (por exemplo, quanto à elaboração dos mapas de trabalho feitos do dia 1 a dia 28; quanto à desinfecção de escovas de cabelo partilhadas apenas uma vez por semana), sendo na grande maioria alegações genéricas e conclusivas, desprovidas do necessário e indispensável suporte factual, ou seja, da alegação concreta e circunstanciada no tempo e lugar dos actos praticados e factos ocorridos que fossem passíveis de suportar as conclusões invocadas.
Não se sabe nem é possível saber, face ao teor da carta, os dias e horas em que a Autora prestou trabalho além do seu horário de trabalho (o qual também não é alegado); os dias e horas em que trabalhou 8 horas seguidas sem qualquer pausa; quando lhe foi exigida a entrega de documentação clínica e por quem; em que consiste em concreto a 'deficiente organização do serviço', quais os factos de onde se pode retirar a conclusão da 'falta de qualidade do serviço prestado'; etc, etc, quanto a todos as alegações conclusivas que constam da carta que a Autora alega ter sido enviada à Ré a resolver o contrato.
Não existem, assim quaisquer factos na referida comunicação, o que não pode ser suprido com a alegação factual que pudesse ter sido feita na acção (mas que, diga-se, também não foi, como resulta da leitura da petição inicial, no essencial supra referida).
Conclui-se, assim, pela manifesta improcedência do pedido de pagamento da indemnização peticionado com fundamento da existência de justa causa de resolução do contrato.
No que concerne ao pedido de condenação da Ré no pagamento de valor não inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, por toda a angústia, ansiedade, tristeza que levaram a uma profunda depressão a título de indemnização por danos morais e assédio, verifica-se igualmente que na petição inicial apenas são referidos juízos conclusivos sem qualquer suporte factual quer quanto aos factos integradores da conduta da Ré, quer quanto aos danos.
Quanto ao pedido de condenação da Ré no pagamento de valor nunca inferior a € 2.500,00, pelos diversos anos que trabalhou sem que lhe fossem pagas as horas extraordinárias e sem que lhe fosse atribuído intervalo de descanso, também não existem quaisquer factos alegados passíveis de suportarem tal pedido.
A Autora não indica qual era o seu horário de trabalho, não alega as horas e dias concretos em que tal trabalho suplementar foi prestado: o que alega é genericamente que ao longo dos anos prestou trabalho suplementar sem lhe ser pago ou que foi integrado no banco de horas 'sem a contabilização efectuada corresponder ao tempo de trabalho realizado em excesso' (ver arts. 15.º a 17.º da petição inicial).
Nos termos do artigo 226.º do CT, considera-se trabalho suplementar o prestado fora do horário de trabalho, sendo este, nos termos do artigo 200º, nº 1 do CT, a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal.
Acresce ainda que este (horário de trabalho) não se confunde e distingue-se do período normal de trabalho, correspondendo este ao tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido por número de horas por dia e por semana – artigo 198º do CT.
À Autora incumbe a alegação dos factos essenciais e necessários que fundamentam a sua pretensão. No caso do pedido de remuneração por trabalho suplementar, incumbe-lhe desde logo a alegação do seu horário de trabalho e a indicação dos dias e das horas em concreto em que terá sido ultrapassado aquele.
Tal alegação não consta dos autos.
A causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão material deduzida na acção.
Conforme referido no artigo 552.º, n.º 1, al. d) e e), do Cód. Proc. Civil, na petição inicial o autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção, e formular o pedido.
Alberto dos Reis, in Código Processo Civil Anotado, Vol II, pág. 351, esclarece que "…a narração há-de conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido".
Assim, é sobre o autor (no caso, a Autora), que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito – art. 5.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, devendo esta traduzir o conjunto dos factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil, factos esses que devem ser concretos, de modo a preencherem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte [Vide Teixeira de Sousa in As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 123].
Ora, na petição inicial não existe qualquer factualidade concreta alegada passível de permitir ao tribunal concluir, com base em factos alegados e face à sua subsunção ao direito, pela existência de uma actuação ilícita e culposa geradora de danos concretos devidamente alegados nem pela existência de trabalho suplementar (o que necessariamente pressupunha a alegação dos dias e horas concretas em que foi prestado esse trabalho para além do horário de trabalho da Autora, que também não foi alegado).
Sobre o juiz apenas recai o dever de convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (art. 590.º, n.º 4, do CPC, ex vi art. 54.º, n.º 1, do Cód. Proc. Trabalho), com o que não se confunde a necessidade de convidar as partes a alegar os factos que possam constituir fundamento dos direitos que pretende fazer valer em tribunal: a alegação dos factos é um ónus da parte, e o tribunal não se pode substituir à mesma nessa tarefa (art. 5.º, n.º 1, do CPC).
Conclui-se, assim, pela inexistência de factos alegados pela Autora passíveis de poderem, em abstracto, suportar os pedidos de condenação da Ré no pagamento de valor não inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais e no pagamento de valor nunca inferior a € 2.500,00, pelos diversos anos que trabalhou sem que lhe fossem pagas as horas extraordinárias e sem que lhe fosse atribuído intervalo de descanso, geradora igualmente da manifesta improcedência dos mesmos.
(..)».
Discordando, contrapõe a autora, no essencial, que articulou nos artigos 1º a 30º, da petição inicial, os factos que constituem a causa de pedir. O Tribunal recorrido deveria ter prolatado despacho de aperfeiçoamento, permitindo-lhe corrigir o articulado inicialmente produzido. O indeferimento liminar constitui decisão surpresa, enfermando de nulidade por violação do artº3, nº3 do CPC. O Tribunal a quo fez uma interpretação e aplicação precipitada do direito, colocando em causa o direito constitucional da apelante, de acesso aos tribunais nos termos do artº20 da Constituição da Republica Portuguesa.
Conclui, defendendo que a decisão de indeferimento, constitui uma nulidade prevista no artº 195 do CPC, que como tal vem arguir.
Por seu turno, a Ré, aderindo à decisão recorrida, refere que não há violação do princípio do contraditório, ou de qualquer direito ou princípio inerentes, sendo que cabia à recorrente alegar factos, quer em sede de resolução quer em sede de petição inicial, fundamentando o pedido e causa de pedir, o que não ocorreu. A recorrente, limita-se a efectuar alegação de factos difusos, que não se encontram minimamente circunstanciados no tempo, quando deveria ter indicado os factos que sustentam a resolução com justa causa, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos mesmos, nos termos do artigo 395º, nº 1 do Código de Trabalho.
Na carta limita-se a efectuar uma série de alegação e opiniões, sem qualquer alegação de factos concretos e nunca atendendo à especificação temporal dos mesmos. O mesmo ocorre na petição inicial e não seria passível de suprir a deficiência da comunicação.
Também o peticionado em sede de horas extraordinárias carece em absoluto de fundamentação, pois em nenhum momento a Autora explica que horas suplementares foram prestadas e em que datas, nem tão pouco o seu horário de trabalho.
As falhas são de tal forma graves, que nenhum esforço encetado pelo tribunal a quo poderia corrigi-las, pelo que a fim de respeitar os princípios da economia processual e da verdade material, não teria outra hipótese que não fosse a do indeferimento liminar.
Por último, importa ainda assinalar que o Tribunal a quo pronunciou-se sobre a arguida nulidade processual, constando do despacho o seguinte:
-«Arguição de nulidades efetuada no recurso:
Não existe qualquer nulidade decorrente de contradição na decisão proferida: o entendimento do tribunal foi de que o dever de convidar a esclarecer ou concretizar apenas existe quanto há insuficiência ou imprecisão na matéria de facto alegada, não existindo tal dever quando não foi invocada matéria factual capaz de suportar a pretensão deduzida.
A lei prevê o indeferimento liminar da petição inicial – art. 54.º, n.º 1, do Cód. Proc. Trabalho, e art. 590.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil – e este pode ser proferido sem necessidade de prévia notificação a dar a conhecer à parte que o tribunal pretende proceder a tal indeferimento liminar, em todos os casos em que é desnecessário o exercício de contraditório. Ora, entende o tribunal que, quando está em causa uma interpretação jurídica – como aqui sucede −, sem que exista qualquer matéria desconhecida da parte que justifique contraditório para apresentação de argumentos distintos dos já manifestados (é óbvio, no caso sub judice, que a autora tem entendimento distinto do entendimento do tribunal, face ao teor da petição inicial apresentada), a prévia notificação da autora nada poderia acrescentar aos termos da discussão da questão jurídica em causa, sendo assim manifesta a desnecessidade de prévio contraditório, e não se confundindo a dispensa de prévio contraditório por desnecessário, no caso em análise em que foi efetuado o indeferimento limiar da petição inicial por manifesta falta de fundamento e improcedência, com a violação do princípio do contraditório (neste sentido, vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-04-2019, processo n.º 700/18.0T8FNC-A.L1-7, disponível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ, no seguinte endereço eletrónico:
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3124ec49beeff336802583ef004e7d89?OpenDocument).
Em conformidade, nos termos do disposto no art. 617.º, n.º 1, do CPC (ex vi art. 1.º, n.º 2, al. a), do CPT), considerando que não existem as invocadas nulidades, indefiro as mesmas».
Diremos desde já que acompanhamos a fundamentação do tribunal a quo, entendendo-se que aprecia a questão nas vertentes que se impunham, fazendo-o com clara e suficiente argumentação, bem assim aplicando correctamente o direito.
Significa isto, como decorrência lógica, que não se reconhece razão à recorrente autora.
Não obstante, importa que justifiquemos este entendimento.
II.2.1 Por uma questão de lógica na sistematização das questões, começaremos pela relativa à comunicação da resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador com invocação de justa causa.
O trabalhador pode fazer cessar o contrato de trabalho imediatamente, isto é, sem necessidade de aviso prévio, sempre que se verifique uma situação de justa causa [n.º1 do art.º 394.º do CT/09].
A justa causa para a resolução do contrato de trabalho pode ser fundada num comportamento ilícito do empregador ou resultante de circunstâncias objectivas, relacionadas com o trabalhador ou com a prática de actos lícitos pelo empregador [respectivamente, n.º2 e n.º3 do art.º 394]. No primeiro caso diz-se que a resolução é fundada em justa causa subjectiva; e, no segundo, que é fundada em justa causa objectiva.
Interessa-nos aqui a primeira dessas duas espécies, que tem na sua base um comportamento do empregador que se reconduza a um acto ilícito, nomeadamente, uma das situações referidas nas alíneas do n.º2, do art.º 394.º do CT/09, que se passam a transcrever:
[a)] Falta culposa de pagamento pontual da retribuição;
[b)] Violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador;
[c)] Falta culposa de condições de segurança e saúde no trabalho;
[d)] Lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador:
[e)] Ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, praticado pelo empregador ou seu representante.
A resolução tem de ser comunicada ao empregador nos 30 dias subsequentes ao conhecimento pelo trabalhador dos factos que a justificam (n.º1 do art.º 395.º, CT/09).
No que respeita à forma, o trabalhador deve fazer a comunicação da resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa por escrito, com a “indicação sucinta dos factos que a justificam” [n.º1, do art.º 395.º], sendo a partir dessa indicação que se afere a procedência dos motivos invocados para a resolução, já que “apenas são atendíveis para a justificar” os factos que dela constarem [n.º 3, do art.º 398.º, CT].
Justamente porque na apreciação judicial da licitude da resolução apenas são atendíveis os factos que foram invocados para a justificar, mas também porque essa comunicação tem que permitir que para o empregador sejam perceptíveis os fundamentos invocados na resolução do contrato, a expressão “indicação sucinta dos factos”, embora possa sugerir outra leitura, deve ser entendida no sentido de que o trabalhador não está dispensado de concretizar, com o mínimo de precisão, os factos que estão na base da sua decisão [Cfr. Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 3.ª Edição, Principia, 2012, Parede – Portugal, p. 533].
No mesmo sentido, Maria do Rosário Palma Ramalho, referindo-se ao art.º 395.º do Código do Trabalho, observa que «Nos termos desta norma, a declaração de resolução deve ser emitida sob forma escrita e com a indicação sucinta dos respetivos factos justificativos (art.º 395.º n.º 1). Apesar da referência da lei ao carácter “sucinto” desta indicação, a descrição clara dos factos justificativos da resolução é importante, uma vez que, em caso de impugnação judicial da resolução, são estes factos os únicos atendíveis pelo tribunal, nos termos do art.º 398.º n.º 3» [Tratado de Direito do Trabalho, Parte II - Situações Laborais Individuais, 6ª Edição, Almedina, Coimbra, p.949)
Partilhando o mesmo entendimento, ao tratar do procedimento para resolução do contrato, João Leal Amado defende que «Não é, pois, indispensável proceder a uma descrição circunstanciada dos factos, bastando uma indicação sucinta dos mesmos, de modo a permitir, se necessário, a apreciação judicial da justa causa invocada pelo trabalhador», para depois, em nota de rodapé, acrescentar que «Isso mesmo resulta do n.º 3 do art.º 398.º, norma relativa à impugnação da resolução pelo empregador, na qual se esclarece que em tal ação judicial apenas são atendíveis para justificar a resolução os factos constantes da comunicação escrita prevista no art.º 395.º, n.º 1» [Contrato de Trabalho, Noções básicas, 2016, Almedina, Coimbra, p. 384].
Esse entendimento é pacífico na jurisprudência dos tribunais superiores, como o ilustra o Acórdão do STJ de 14-07-2016 [Proc.º 1085/15.0T8VNF.G1.S1, Conselheiro Pinto Hespanhol, disponível em www.dgsi.pt], invocado pela Ré nas suas contra-alegações, em cujo sumário consta o seguinte:
1. A carta de resolução do contrato enviada pelo trabalhador à empregadora em que se faz consignar como justa causa da resolução, apenas, a «falta de pagamento do trabalho suplementar prestado e da retribuição legal» e o «incumprimento das obrigações legais relativas ao tempo de trabalho e descanso do trabalhador», não especifica qualquer facto concreto, mas antes afirmações de natureza conclusiva, reproduzindo fórmulas legais.
2. A indicação dos factos concretos e da temporalidade dos mesmos, na carta de resolução do contrato de trabalho, mostra-se indispensável para, além do mais, se aferir se o direito foi exercido no prazo legal, condição formal de que, também, depende a licitude da resolução.
3. A verificada preterição dos requisitos de natureza procedimental previstos no n.º 1 do artigo 395.º do Código do Trabalho, determina a ilicitude da resolução operada pelo trabalhador, ainda que por razões meramente formais, incorrendo este, nos termos dos artigos 399.º e 401.º do mesmo Código, em responsabilidade perante a empregadora».
Assinala-se que também esta Relação já se pronunciou várias vezes nesse sentido, designadamente, nos Acórdãos – disponíveis em www.dgsi.pt – que se passam a indicar, constando nos respectivos sumários quanto a este ponto o seguinte:
i) de 29-05-2017 [Proc.º 2364/15.2T8PRT.P1, relatado pelo aqui relator e com intervenção do mesmo colectivo]:
- A exigência do n.º 1 do art.º 395.º do CT/09, de que a comunicação ao empregador da resolução do contrato de trabalho seja feita “por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam”, constitui uma formalidade ad substantiam.
II - A falta da indicação sucinta dos factos que justificam a resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa, não gera a invalidade da declaração extintiva, mas obsta imediatamente a que possa ser reconhecida a alegada justa causa, determinando a sua irregularidade, com as consequências fixadas nos artigos 399.º e 401.º do CT.
ii) de 20-11-2017 [Proc.º 10948/14.0T8PRT.P1, relatado pelo aqui 1.º adjunto e com intervenção da 2.ª adjunta]:
-«[..]
IV – Invocações vagas não permitem ter por devidamente cumprida a exigência, que resulta do n.º 1 do artigo 395.º, do CT/2009, de indicação, ainda que sucinta, dos factos que justificam a justa causa invocada para a resolução do contrato, sendo que é essa indicação que delimita, depois, a invocabilidade em juízo dos factos suscetíveis de serem apreciados para efeitos de apreciação da justa causa.
[..]».

iii) de 07-12-2018 [Proc.º 1953/17.5T8VFR.P1, relatado pelo aqui relator e com intervenção deste mesmo colectivo]:
I - O trabalhador deve fazer a comunicação da resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa por escrito, com a “indicação sucinta dos factos que a justificam” [n.º1, do art.º 395.º], sendo a partir dessa indicação que se afere a procedência dos motivos invocados para a resolução, já que “apenas são atendíveis para a justificar” os factos que dela constarem [n.º 3, do art.º 398.º].
II - Justamente porque na apreciação judicial da licitude da resolução apenas são atendíveis os factos que foram invocados para a justificar, mas também porque essa comunicação tem que permitir que para o empregador sejam perceptíveis os fundamentos invocados na resolução do contrato, a expressão “indicação sucinta dos factos”, embora possa sugerir outra leitura, deve ser entendida no sentido de que o trabalhador não está dispensado de concretizar, com o mínimo de precisão, os factos que estão na base da sua decisão.
[…]».
iv) de 09-03-2020 [proc.º 688/19.5T8VNG-A.P1, relatado pelo aqui 1.º adjunto e com intervenção da 2.ª adjunta]:
I- A exigência de fundamentação pelo trabalhador dos motivos para a resolução do contrato com invocação de justa causa (n.º1 do art.º 395.º, do CT/09), não tem de ser exaustiva e sim apenas sucinta, o que, traduzindo-se é certo num grau de exigência menor em comparação com o que ocorre com o despedimento promovido pelo empregador, não equivale, porém, a dizer que se baste com a invocação de menções meramente genéricas, antes impondo, diversamente, que haja uma materialização da alegação em factos concretos, que o trabalhador deve descrever, ainda que, como se disse e resulta da lei, o faça de forma concisa, mas suficiente para evidenciar um quadro fáctico suficientemente revelador da impossibilidade de manutenção da relação contratual.
[..]».
Revertendo ao caso, percorrendo a carta em que a autora comunicou à Ré a resolução do contrato de trabalho, tal como concluiu o tribunal a quo, é forçoso constatar que não há a mínima concretização factual e temporizada, através da alegação de factos objectivos e precisos, relativamente a qualquer um dos pontos que dela constam, visando sustentar a alegada justa causa de resolução.
Dito de outro modo, a carta de resolução é extensa, mas consiste num rol de enunciações genéricas, afirmações conclusivas e juízos de valor, dirigidos a toda uma relação laboral iniciada em Maio de 2001, sem que se encontrem alegados factos objectivos, precisos e devidamente delimitados no tempo, não cumprindo de todo a indicação sucinta dos factos que justificam a resolução do contrato de trabalho.
Significa isso, que para a Ré é impossível perceber os concretos factos que possam ser susceptíveis de sustentar as razões genericamente invocadas pela autora para resolver o contrato de trabalho com invocação de justa causa, desde logo, para aferir se o alegado direito foi exercido tempestivamente, ou seja, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento pela trabalhadora de factos que a justificam (n.º1 do art.º 395.º, CT/09).
Mas para além disso, não tendo o alegado direito sido reconhecido pela Ré na sequência da recepção daquela comunicação, por isso ficando dependente de apreciação judicial na presente acção, a falta absoluta de indicação sucinta dos factos que justificam a resolução do contrato de trabalho implica, necessária e irremediavelmente, a improcedência da pretensão da autora.
Com efeito, importa ter presente, nos termos do disposto no n.º1 do art.º 5.º do CPC, [Às] partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles que se baseiam as excepções invocadas”.
E, conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Dito de outro modo, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova [cfr. Acórdão de 23.9.2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Bravo Serra; e, mais recentemente, reiterando igual entendimento jurisprudencial: de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
Como elucida o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2014, “Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes” [Proc.º n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1, Conselheiro Mário Belo Morgado, disponível em www.dgsi.pt].
Assim, as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão.
Ora, sendo a partir do conteúdo da comunicação dirigida pelo trabalhador ao empregador que se afere a procedência dos motivos invocados para a resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa, já que “apenas são atendíveis para a justificar” os factos que dela constarem [n.º 3, do art.º 398.º, CT], constatando-se que a carta dirigida pela autora à Ré empregadora limita-se a enunciar alegações conclusivas que se reconduzem ao fulcro da questão jurídica em discussão, o que vale por dizer, todas elas insusceptíveis de prova, a conclusão forçosa é, como se deixou dito, o inevitável fracasso da acção.
Acresce assinalar, que sendo apenas atendíveis os factos alegados, ainda que sucintamente, na carta de resolução [n.º 3, do art.º 398.º, CT], o trabalhador não pode, a jusante, vir na acção suprir a falta de alegação de factos concreto e precisos. Se o fizer, esses factos simplesmente não poderão ser atendidos pelo Tribunal, o que vale por dizer que a alegação é inócua.
Não é o caso, visto que a autora alegou nos mesmos termos conclusivos que caracterizam a carta de resolução, na medida em que sintetizou o conteúdo daquela para a petição inicial. Mas para além disso, a limitação imposta pelo n.º3, do art.º 398.º do CT, importa outra consequência lógica, nomeadamente, quando a comunicação da resolução não contenha os factos necessários devidamente concretizados, não é admissível o aperfeiçoamento da petição inicial para suprir aquela falta.
Não tem, pois, razão a autora quando vem defender - sem sequer ter aduzido argumentos jurídicos para sustentar essa posição-, que o Tribunal a quo “deveria ter prolatado despacho de aperfeiçoamento”, permitindo-lhe corrigir o articulado inicialmente produzido.
O despacho de aperfeiçoamento seria possível e justificar-se-ia, para suprir “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” [art.º 590.º n.º 2 al. b) e n.º4, do CPC], mas desde que a carta de resolução satisfizesse a necessidade de conter, pelo menos, a indicação sucinta dos factos que justificam a resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa e o alegado na petição inicial tivesse ficado aquém daquela alegação.
Não é isso que acontece e, logo, improcede este argumento.
II.2.2 A conclusão a que se chegou é igualmente válida no que concerne aos pedidos formulados nos artigos 32 e 33, da petição inicial, onde se lê o seguinte:
32. Deve ainda a Ré à Autora a título de danos não patrimoniais, por toda angustia, ansiedade, tristeza que a levaram a uma profunda depressão e pelos danos físicos provocados, uma valor nunca inferior a 5.000.00 euros (cinco mil euros)».
33. Deve ainda ser pago à trabalhadora pelos diversos anos que trabalhou sem que lhe fossem pagas as horas extraordinárias e sem que lhe fosse atribuído intervalo de descanso, um valor nunca inferior a 2.500.00 euros (dois mil e quinhentos euros).
Como bem refere o Tribunal a quo “na petição inicial não existe qualquer factualidade concreta alegada passível de permitir ao tribunal concluir, com base em factos alegados e face à sua subsunção ao direito, pela existência de uma actuação ilícita e culposa geradora de danos concretos devidamente alegados nem pela existência de trabalho suplementar (o que necessariamente pressupunha a alegação dos dias e horas concretas em que foi prestado esse trabalho para além do horário de trabalho da Autora, que também não foi alegado).
Na verdade, no que concerne ao pedido de indemnização por danos materiais, refere a autora no artigo 27 da PI, o seguinte: “ Desgostosa com toda esta situação, que lhe provocou uma doença psicológica (distúrbio do sono e perda de memória provocada pela medicação), e doenças do foro físico (Hérnia na L5 à qual foi operada em 2019 e outros problemas na coluna), provocadas pelo esforço físico em excesso a que foi submetida ao longo dos anos”.
Retira-se dessa alegação, por um lado, atento o uso da expressão “Desgostosa com toda esta situação”, que quanto à alegada doença psicológica a autora está a procurar afirmar um nexo de causalidade com as alegações produzidas nos artigos anteriores, o que vale por dizer, com as invocações que fez na carta de resolução do contrato de trabalho e que sintetizou na petição inicial; e, por outro, no que respeita às alegadas doenças de foro físico, que procura relacioná-las, também em termos de causa efeito, com o “esforço físico em excesso a que foi submetida ao longo dos ano”, ou seja, desde o início da relação laboral em 2001, suportando-se igualmente no alegado na aludida carta de comunicação e trazido em versão sintetizada à petição inicial.
A procedência deste pedido dependeria sempre da verificação dos respectivos pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente, para além do facto ilícito e culposo, a verificação de danos não patrimoniais com gravidade bastante para serem merecedores da tutela do direito (art.º 496º nº 1 do CC) e o respectivo nexo de causalidade.
Sobre o que se deve entender por danos não patrimoniais, elucida Antunes Varela que, ao lado dos danos pecuniariamente avaliáveis “há outros prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização” [Das Obrigações em geral, Vol. I., 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1980, p. 496].
O Código Civil admite a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, mas limitando-a àqueles “que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” [art.º 496.º/1 CC].
Em anotação ao artigo 496.º do CC, Pires de Lima e Antunes Varela, observam que “[A] gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”, deixando igualmente nota, em linha com o entendimento da jurisprudência do STJ que sinalizam, que “[O]s simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos morais” [Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 499].
Atendendo a este quadro legal, conforme é entendimento pacífico da jurisprudência, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, “em direito laboral para haver direito à indemnização com fundamento em danos não patrimoniais, terá o trabalhador que provar que houve violação culposa dos seus direitos, causadora de danos que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, o que se verificará, em termos gerais, naqueles casos em que a culpa do empregador seja manifesta, os danos sofridos pelo trabalhador se configurem como objectivamente graves e o nexo de causalidade não mereça discussão razoável” [Ac. STJ de 15-12-2011, Recurso n.º 588/08.87TTVNG.P1.S1 - 4.ª Secção, Conselheiro Pereira Rodrigues, disponível em sumários de acórdãos de 2011,www. stj.pt.; e, Ac. STJ de 19 de Abril de 2012, proc.º 1210/06.2TTLSB.L1.S1 , Conselheiro Gonçalves Rocha, disponível em www.dgsi.pt].
Por último, importa referir que de acordo com as regras gerais sobre o ónus de prova, sobre o trabalhador recaí o ónus de alegar provar a existência dos danos não patrimoniais, bem como a sua gravidade o nexo de causalidade com o facto ilícito (artigo 342º, nº 1 do CC), para se poder fixar o montante da indemnização segundo equidade (art.º 496.º/4 CC).
Ora, para fazer essa prova, necessariamente teria a trabalhadora autora que alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.
Contudo, se à petição inicial foi trazida uma síntese do alegado na carta de resolução e se nessa comunicação não se encontra concretização fáctica nem contextualização temporal, mas apenas alegações conclusivas, juízos valorativos e considerações pessoais da autora, logo se vê que não há o mínimo suporte factual para esse pedido.
O mesmo é de dizer quanto às alegadas “horas extraordinárias e sem que lhe fosse atribuído intervalo de descanso”. As alegações possíveis de serem relacionadas com essa pretensão constam dos artigos da petição inicial seguintes:
15. Nunca, ao longo de 17 anos de serviço prestado, e após ter laborado em dia de descanso complementar ou feriado, lhe foi atribuído o respectivo dia para descansar.
16. Nos últimos anos, foram-lhe acumulados no banco de horas, os períodos de tempo prestados naqueles dias.
17. Contudo a contabilização dos tempos no banco de horas, não corresponde ao tempo de trabalho realizado em excesso, ou seja, não foram incluídas as horas correspondentes ao tempo de descanso não usufruídos, as tais horas que trabalhou por força das faltas dadas por outros trabalhadores competências/conhecimento, e por se tratar de uma situação que poderia colocar em risco a integridade física dos utentes.
Como é consabido, o ónus da prova da prestação de trabalho suplementar impende sobre o trabalhador, por se tratar de facto constitutivo do direito reclamado, conforme prescreve o artigo 342º, nº 1 do CC. Assim, para que essa prova seja possível é, pois, indispensável que alegue os factos essenciais que consubstanciem a causa de pedir, nomeadamente, a indicação do horário de trabalho, com menção das horas de início e do termo do período normal de trabalho diário, os respectivos intervalos, a concretização das horas de trabalho prestado fora dos horários de trabalho estabelecidos, quando tal ocorreu e, ainda, de que foi realizado com o conhecimento e sem oposição da entidade empregadora.
Aquelas alegações inequivocamente conclusivas, genéricas e vagas, sintetizam igualmente o alegado na comunicação de resolução, aí com maior extensão, mas como se disse, também sem a necessária concretização factual e contextualização temporal.
Vale isto por dizer que a autora não alegou os factos essenciais que constituem a causa de pedir para sustentar estes pedidos, como lhe era devido (art.º 5.º1, do CPC).
Mas como estes pedidos, apesar de terem por base alegações usadas para sustentar a resolução do contrato de trabalho, podem também ser formulados e apreciados autonomamente, caso em que não ficam limitação imposta pelo n.º3, do art.º 398.º do CT- apenas o ficando enquanto fundamento usado para a resolução do contrato de trabalho – aprofundaremos a questão relativa ao dever de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, para tanto servindo-nos do Acórdão desta Relação, de 18-05-2020 [Proc.º 3376/19.2T8VNG-B.P1, disponível em www.dgsi.pt], relatado pelo aqui relator e com intervenção dos também aqui excelentíssimos adjuntos, em cuja fundamentação se escreveu o seguinte:
-«[..]
Para o caso em apreço relevam o n.º2, al. b) e, por via deste, o n.º4, importando, num primeiro passo, completar a referência acima feita, para assinalar que a redacção do n.º4, correspondente ao n.º3, do pretérito art.º 508.º, foi objecto de uma alteração significativa na sua parte inicial, passando a dizer que “[I]ncumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (..)», numa afirmação da atribuição ao juiz de um «(..) poder vinculado, que o juiz tem o dever de exercer quando ocorram nos articulados “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” (..)», constituindo a omissão do despacho nulidade processual, sujeita ao regime dos artigos 195.º, 197.º, 199.º, 200.º n.º3 e 201.º, do CPC [cfr. José Lebre de Freitas, ibidem]
É entendimento pacífico e unânime na doutrina e jurisprudência que “O convite ao aperfeiçoamento de articulados, nos termos do nº 4 do art. 590º do CPC, é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual” [Ac. STJ de 6/6/2019, proc.º 945/14.0T2SNT-G.L1.S1, Conselheira Rosa Ribeiro Coelho, disponível em www.dgsi.pt].
Sobre os limites do aperfeiçoamento, com vista ao suprimento das deficiências ou imprecisões factuais mediante a apresentação de um novo articulado, em entendimento expresso face ao anterior n.º3, do art.º 508.º do CPC, mas que se mantém inteiramente válido, elucida J. P. Remédio Marques, que o “novo articulado não pode conter uma nova fisionomia processual”, não podendo “implicar a alteração substancial dos factos inicialmente apresentados e deficientemente expostos ou concretizados”, isto é, não pode “servir para modificar o objecto definido pelo autor na petição e nem para alargar a defesa constante da contestação: a parte convidada pelo juiz apenas pode tornar mais clara uma concretização ou exposição factual ambígua; apenas pode tornar mais inteligível essa concretização ou exposição, mais completa, mais exacta, menos prolixa. (..) E nem pode conduzir ao suprimento de factos essenciais, ou seja os factos que integram a própria causa de pedir não alegada ou concretizada pelas partes, como não pode visar preencher a falta de uma defesa (..)”. Para depois rematar, dizendo que por esta via não pode “suprir-se uma ineptidão da petição inicial (..) mas, apenas, outras irregularidades ou deficiências puramente processuais, que não aspectos substantivos materiais. Por exemplo, a omissão do núcleo essencial da causa de pedir não é suprível por via de um despacho (..) de aperfeiçoamento” [A Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2011, p. 529].
No mesmo sentido pronuncia-se unanimemente a jurisprudência dos tribunais superiores, referindo-se no sumário do citado acórdão de 6/6/2019, do STJ, que “Está manifestamente fora do seu âmbito providenciar pela formulação de pedido que constitua uma pretensão diversa ou ampliada da deduzida pelo autor na petição inicial”, afirmação melhor complementada na respectiva fundamentação ao afirmar-se que “[O] aperfeiçoamento permitido pelo art. 590º é, como vimos, panaceia para irregularidades de natureza formal que afetem os articulados ou para insuficiência ou falta de concretização na alegação dos factos, realidades absolutamente distintas de pretensões que as partes hajam formulado”.
A petição inicial é a peça processual pela qual o autor propõe a acção, para tanto cabendo-lhe alegar os fundamentos de facto e de direito da situação jurídica invocada, ou seja, “os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção”, e concretizar quais os efeitos jurídicos que pretende fazer valer através da acção, deduzindo o respectivo pedido, ou pedidos, contra o réu [art.º 552.º 1/al. d) e e), do CPC].
Ocorre a ineptidão da petição inicial quando esta contém deficiências que comprometem irremediavelmente a sua finalidade, o que determina a nulidade de todo o processo (art.º 186.º 1 do CPC) e conduz à absolvição da instância [art.ºs 576.º 1 e2; 577.º al. b); e, 278.º 1 al. b), do CPC].
Através da figura da ineptidão da petição inicial pretende-se evitar que o tribunal seja colocado na situação de impossibilidade de julgar correctamente a causa.
As causas de ineptidão da petição inicial são as que constam enunciadas no n.º2, do art.º 186.º do CPC, nomeadamente:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
Numa noção consensualmente aceite pela doutrina e pela jurisprudência, entende-se por causa de pedir o acto, ou facto jurídico, em que o autor se baseia para formular o seu pedido ou, noutras palavras, o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar [Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código do Processo Civil, Vol. 2.º, Coimbra Editora, pp. 369/375; e, Antunes Varela, Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 245].
Sobre a contradição entre o pedido e a causa de pedir, elucida Alberto dos Reis [Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição – Reimpressão, Coimbra editora, 1982, pp. 309] o seguinte:
- “O pedido deve ser o corolário ou a consequência lógica da causa de pedir ou dos fundamentos em que assenta a pretensão do autor, do mesmo modo que, num silogismo, a conclusão deve ser a emanação lógica das premissas. Se, em vez disso, o pedido colidir com a causa de pedir, a ineptidão é manifesta”.
Os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a pretensão material, integrando o núcleo essencial da causa de pedir. Visto noutro ângulo, são essenciais os factos de cuja verificação depende o atendimento do pedido. A sua falta importa que o pedido não possa ser julgado procedente. E, quanto a estes, é pacífico não ser admissível o convite ao aperfeiçoamento».
Nesse mesmo sentido, no Ac. TRL de 24-01-2019 [Proc.º 573/18.1T8SXL.L1-6, Desembargador Manuel Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt], consigna-se no respectivo sumário o seguinte:
I – O princípio da cooperação deve ser conjugado com os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento, por iniciativa do juiz, da omissão de indicação do pedido ou de alegação de factos estruturantes da causa de pedir.
II - O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir.
III - Tal convite, destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada.
IV - As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC).
Repetindo-nos, o despacho de aperfeiçoamento justificar-se-ia e seria devido, desde que estivesse em causa suprir “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” [art.º 590.º n.º 2 al. b) e n.º4, do CPC], mas não é esse o caso, pois o que acontece aqui é inexistência absoluta da alegação dos factos que constituem a causa de pedir, isto é, faltam os factos de que a autora faz proceder os efeitos jurídicos pretendidos, importando tal a manifesta improcedência dos mesmos, logo, enquadrando-se a situação na previsão do n.º1, do artigo 590.º, devendo a petição ser liminarmente indeferida.
Em conclusão, também quanto a estes pedidos não tem razão a recorrente ao defender que o Tribunal devia ter proferido despacho de aperfeiçoamento.
II.2.3 Para sustentar a arguida nulidade processual prevista no art.º 195 do CPC, prossegue a recorrente defendendo que o indeferimento liminar constitui decisão surpresa, enfermando de nulidade por violação do artº3, nº3 do CPC, colocando em causa o direito de acesso aos tribunais, com garantia constitucional nos termos do artº20 da CRP.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-02-2015 [Proc.º 116/14.6YLSB, Conselheira Ana Paula Boularot], a propósito de questão próxima, afirma-se, no que aqui releva o seguinte:
Estipula o artigo 3º, nº2 do NCPCivil que “Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.», acrescentando o seu nº3 que «O juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Este segmento normativo consagra expressamente o principio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, garantindo efectivamente às partes a sua participação efectiva no desenvolvimento de todo o litigio, cfr Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 8.
[…]
Queremos nós dizer, que estas circunstâncias especiais consignadas na Lei e que podem levar à prolação de um despacho liminar de não recebimento do recurso, são incompatíveis com qualquer audição prévia do Recorrente com vista ao mesmo: de facto não é admissível um despacho liminar prévio a um despacho liminar, seria uma decisão em si contraditória, porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faria qualquer sentido a parte ser ouvida preliminarmente sobre a aludida eventualidade de vir a ser produzida uma decisão de não admissão de recurso…
A decisão surpresa, como os vocábulos indicam, faz supor que a parte possa ser apanhada em falta por uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível, não esteja prevista nem tivesse sido configurada por aquela, o que no caso não aconteceu, já que a decisão tomada estava, como está, perfeitamente delineada em termos legais, cfr a propósito da decisão surpresa e da violação do principio do contraditório o AC STJ de 14 de Maio de 2002 (Relator Lopes Pinto), in www.dgsi.pt.
Não se verifica, pois, a arguida nulidade do processado, nos termos do artigo 195º, nº1 do NCPCivi».
Acompanhando o argumento base que sustenta o entendimento afirmado pelo STJ, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27-02-2018 [Proc.º 5500/17.0T8CBR.C1, Desembargador Jorge Arcanjo, disponível em www.dgsi.pt], conclui-se, conforme elucida o respectivo sumário, o seguinte: “No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento (despacho preliminar), além do mais porque a lei prevê o contraditório diferido, dada ampla admissibilidade legal de recurso, independentemente do valor e da sucumbência, e em situação de igualdade das partes».
Subscrevemos esta posição, justificada com clara e elucidativa fundamentação, que por isso mesmo nos permitimos transcrever:
O art.590 nº1 CPC prevê o despacho de indeferimento liminar na acção declarativa “quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram de forma evidente excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente aplicando-se o disposto no art. 560”.
[…]
Dispõe o art.3 nº3 do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
O Tribunal Constitucional tem defendido que o princípio do contraditório se integra no direito de acesso aos tribunais, consagrado no art.20 da CRP. Tal como se sublinhou no Acórdão nº 358/98 (Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998),“o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20 nº1, da Constituição”.
O princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de – “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras” (cf. acórdão do TC nº 177/2000, DR, II série, de 27/10/2000).
A norma do nº3 do art.3º do CPC, introduzida pela Reforma de 1995/96, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialéctica ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo.
A uma concepção válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehõr” germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo (cf. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto”, 1996, pág. 96).
O art.3 nº3 do CPC consagra expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, garantindo efectivamente às partes a sua participação efectiva no desenvolvimento de todo o litigio, designando-se de “contraditório dinâmico“.
Por outro lado, tem-se entendido que a violação do contraditório gera nulidade processual, a apreciar nos termos gerais (art.195 CPC - anterior art.201), por ser susceptível de influir no exame e decisão da causa (cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol.1º, 1999, pág.9; Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 48).
Coloca-se, porém, a questão de saber se a exigência de audição prévia também funciona (ou se funciona sempre) em relação ao despacho de indeferimento liminar.
Duas soluções têm sido apontadas:
a) Uma no sentido de que o indeferimento liminar não é excepção, logo impõe-se sempre um depacho pré-liminar de audição (cf., por ex., decisões singulares da RC de 5/12/2017 (proc. nº 6097/17) e de 29/1/2018 (proc. nº3550/17), disponíveis em www dgsi.pt).
b) Outra corrente para quem, em caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor/exequente sobre o motivo do indeferimento (cf Ac STJ de 24/2/2015, proc. nº116/14.6YLSB, Ac RP de 4/11/2008, proc. nº 0826336, Ac RL 27/9/2017, proc. nº 10847/15, Ac RL de 9/11/2017, proc. nº 1375/04, Ac TCA do Sul de 18/6/2015, proc. nº08710/15, disponíveis em wwwdgsi.pt).
Adere-se, em tese geral, a esta orientação, com base nos seguintes tópicos de argumentação:
Através da apresentação em juízo da petição ou requerimento inicial o autor exerce o direito de acção, iniciando-se a relação jurídico-processual apenas relativa ao autor, pois o “conflito de interesses que a acção pressupõe” (art.3 nº1 CPC) só se inicia com o chamamento à “lide” do réu, e por conseguinte apenas a partir daqui é que nasce o que é costume designar-se por “estrutura dialéctica do processo”.
O despacho de indeferimento liminar é uma espécie dentro do género da “rejeição liminar”, e ocorre no caso de inviabilidade “lato sensu” da pretensão (onde se insere a falta insuprível de pressupostos processuais), em que a lei elenca taxativamente as causas relevantes da rejeição.
Neste contexto, a imposição de um despacho prévio ao despacho de indeferimento liminar parece ser em si mesmo contraditório porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faz sentido a parte ser ouvida preliminarmente (cf. argumento do Ac STJ de 24/2/2015).
Em segundo lugar, não parece que se deva, em rigor, falar de “decisão surpresa “ na prolação de despacho de indeferimento liminar por falta insuprível de pressuposto processual porque é a própria lei que o prevê expressamente como causa específica de rejeição.
Com efeito, a lei postula as causas de indeferimento liminar, consubstanciando-se em situações de inviabilidade “lato sensu”, e como tal insupríveis, tornando inútil qualquer instrução e discussão posterior, patenteando-se, então, ser desnecessária a audição prévia sobre um projecto de indeferimento.
Depois, nos casos de indeferimento liminar a lei concede ao autor a possibilidade de juntar nova petição, considerando-se proposta aquando da primeira (art.560 e 690 nº1 CPC), precisamente porque a instância não se estabilizou.
Nas situações de indeferimento liminar, a lei difere o contraditório na medida em que se prevê sempre a admissibilidade do recurso, independentemente do valor e da sucumbência e se determina que o réu seja citado para os termos do recurso e da causa (arts.629 nº3 c) e 641 nº7 CPC). Daqui parece resultar a dispensa da audição prévia do autor, porque desnecessária, permitindo-se o contraditório diferido e em situação de igualdade.
A decisão-surpresa (art.3 nº3 CPC) pressupõe que a parte não possa perspectivar como sendo possível, ou seja, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse prognosticado no processo. Mas como se decidiu no Ac STJ de 17/6/2014, proc. nº 233/2000, em www dgsi.pt, “o art.3 do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado no direito alemão, mas apenas como possibilidade de, em plena igualdade as partes, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”».
No mesmo sentido pronunciou-se também esta Relação do Porto, em acórdão de 08-03-2019 [Proc.º 14727/17.4T8PRT-A.P1, Desembargador Carlos Portela, disponível em www.dgsi.pt], constando do respectivo sumario:
-«I - No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório previsto no art.º3º do CPC, não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento (despacho preliminar).
II - A decisão-surpresa prevista no nº3 do mesmo artigo ocorre se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo.
[..]».
Como viemos afirmando, no caso em apreço, percorrida a petição inicial constata-se não existirem de todo factos alegados susceptíveis de constituírem a causa de pedir, isto é, faltam os factos de que a autora faz proceder os efeitos jurídicos pretendidos, importando tal, como se sabe, a manifesta improcedência dos pedidos. A situação enquadra-se, pois, na previsão do n.º1, do artigo 590.º, do CPC, devendo a petição ser liminarmente indeferida.
Assim sendo, em consonância com o entendimento sustentado e seguido nos arestos acima invocados, com o qual concordamos e que tem aqui inteira aplicação, conclui-se não enfermar a decisão recorrida da nulidade processual prevista o art.º 195.º 1, do CPC, nem tão pouco consubstanciar qualquer violação ao art.º 20.º n.º1, da CRP.
Por conseguinte, improcede o recurso, improcedendo a arguida nulidade processual (art.º 195.º n.º1, do CPC).
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente, em consequência confirmando a decisão recorrida.

Custas a cargo da autora, atento o decaimento (art.º 527.º2, CPC).

Porto, 17 de Dezembro de 2020
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira