Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14727/17.4T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
EXERCÍCIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RP2019030814727/17.4T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 03/08/2019
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO EXECUTIVA
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 165, FLS 107-110)
Área Temática: .
Sumário: I - No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório previsto no art.º3º do CPC, não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento (despacho preliminar).
II - A decisão-surpresa prevista no nº3 do mesmo artigo ocorre se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo.
III - No caso dos autos, não pode de todo considerar-se que estamos em presença de uma questão jurídica inesperada ou surpreendente no apontado sentido, porquanto a questão da incompetência material dos tribunais judiciais, para além de conhecimento oficioso do tribunal, tem sido objecto de inúmeras decisões dos tribunais superiores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº14727/17.4T8PRT-A.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto
Relator: Carlos Portela (913)
Adjuntos: Des. Joaquim Correia Gomes
Des. Filipe Caroço

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.Relatório:
A B... com domicílio no ..., nº.., .º andar, Lisboa, veio instaurar Execução para Pagamento de Quantia Certa contra C..., advogada, com domicílio profissional na Rua ... nº.., 3º andar, Porto.
Na mesma e em síntese alegou que a executada não pagou as contribuições para a B... na qual está obrigatoriamente inscrita, devendo em 13 de Maio de 2107, a quantia de € 6.884,26, sendo € 6.166,80 de contribuições em dívida e € 717,46 de juros, conforme certidão emitida na mesma data.
A executada foi devidamente interpelada para efectuar o pagamento das contribuições em falta, o que não fez.
A certidão da dívida emitida pela Direcção da B... constitui título executivo nos termos do disposto no art.º703, nº1, alínea d) do CPC e do art.º81º, nº5 do Regulamento da B..., aprovado pelo D.L. nº119/2015 de 29 de Junho.
Terminou requerendo a citação da executada para proceder ao pagamento da quantia exequenda, acrescida das despesas com a presente execução, sob pena de prosseguimento da mesma, seguindo-se os ulteriores termos até final.
Tramitados os autos foi então proferido despacho no qual se entendeu que o presente processo de execução não tem natureza cível, envolvendo sim as bases gerais da Segurança Social, devendo por isso, ser tramitado pelos TAF.
Deste modo, foi declarado incompetente para conhecer deste processo, em razão da matéria, este Juízo de Execução do Porto e, em consequência e nos termos do disposto nos artigos 762º, nº2, alínea b), 96º, alínea a) e 99º, nº1 do CPC, rejeitado o requerimento executivo.
Em face de tal decisão veio a exequente B... apresentar requerimento no qual e em síntese alega estar-se perante a nulidade que decorre do facto da B... não ter sido previamente notificada para se pronunciar quanto à competência material do tribunal.
Por ser assim defende que o despacho em apreço bem como todos os actos subsequentes ao mesmo sejam anulados nos termos do disposto no art.º195º, nº2 do CPC.
Em face deste requerimento foi então proferido o seguinte despacho:
“Fls. 22 e ss:
O princípio do contraditório (art.3º, nº3 do Código de Processo Civil) implica que o juiz apenas profira decisão depois de ouvir a pessoa por ela afectada. Ora, no caso do indeferimento liminar da execução, o exequente já teve oportunidade de alegar os factos e juntar os documentos pertinentes no requerimento executivo, pelo que não há que o ouvir novamente. Se assim não fosse, nunca o Código de Processo Civil poderia prever um despacho de indeferimento liminar (que é isso mesmo – indeferimento logo seguido ao requerimento executivo, sem qualquer outra audição). A este propósito, pode ver-se o Ac. TCAS de 18/6/2015, proc.870/15, disponível na internet, em http://www.dgsi.pt.
Assim, não foi violado o princípio do contraditório e nenhuma nulidade foi cometida, pelo que indefiro a requerida anulação do processado.
Notifique.”.
Inconformada com esta decisão, da mesma veio recorrer a exequente B... apresentando desde logo e nos termos legalmente previstos as suas alegações.
Não foram apresentadas contra alegações.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação, emitiu-se despacho no qual se teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo dec subida adequados.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do presente recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela apelante/exequente nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor das mesmas conclusões:
1.º A B... arguiu "a nulidade do despacho/sentença proferido", mas fê-lo com fundamento no disposto art.º 195.°, n.º1 do CPC.
2.º Uma vez que não foi concedida, à ora recorrente, a possibilidade de se pronunciar, previamente à decisão, sobre a competência do tribunal, ao abrigo do disposto no art.º 3.°, n.º3 do CPC.
3.º E por isso a nulidade da decisão seria uma mera consequência da nulidade pela omissão de um acto processual essencial, nos termos do disposto no art.º 195.°, n.º 2 do CPC.
4.º Não tendo a ora recorrente sido previamente ouvida sobre a competência do tribunal para tramitar e julgar a presente acção, a decisão que julgou incompetente o tribunal em razão da matéria, tem de ser considerada uma decisão-surpresa.
5.º Pois essa questão da decisão-surpresa terá de ser vista em cada um dos processos de per si, como no presente caso.
6.º Não sendo admissível a chamada decisão-surpresa, tem a B..., previamente à decisão, de ser auscultada sobre a matéria (competência dos tribunais judiciais para cobrança coerciva das contribuições em dívida pelos seus beneficiários).
7.º Além disso, o princípio do contraditório visa, também, permitir que a parte possa carrear para os autos os elementos que achar pertinentes por forma a que o tribunal, quando decidir, o faça na posse do máximo de informação possível.
8.º Não tendo a B... sido ouvida previamente à decisão, foi violado o princípio do contraditório previsto no art.º 3º., nº 3 do CPC.
9.º Conforme, aliás, jurisprudência dos Tribunais da Relação de Lisboa, Porto e Coimbra, atrás citada.
10.º Nestes termos deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça à B... o direito de se pronunciar sobre a questão da competência dos tribunais judiciais, para dirimir e julgar as execuções intentadas pela B... para cobrança das contribuições em dívida pelos beneficiários.
Nestes termos e nos mais de direito deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que reconheça o direito da B... se pronunciar sobre a competência do presente tribunal para julgar a presente acção.
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Perante o antes exposto, resulta claro ser a seguinte a questão suscitada neste recurso:
A de saber se no caso foi cometida nulidade processual (a do art.º195º, nº1 CPC) pela omissão de prévia audição da exequente relativamente ao despacho de indeferimento liminar que foi proferido.
Para responder a esta questão importa considerar os elementos processuais antes melhor descritos no ponto I. desta decisão.
É sabido que no art.º590 nº1 do CPC está previsto o despacho de indeferimento liminar na acção declarativa “quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente aplicando-se o disposto no art.º560”.
Na execução compete ao juiz proferir despacho liminar, indeferindo liminarmente o requerimento executivo quando “ocorram excepções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso” (cf. o art.º726 nº1 e 2 b) CPC).
Ora a incompetência material do tribunal consubstancia uma excepção dilatória insuprível (cf. os artigos 577º e 578º do CPC) e como tal sobre ela não pode haver lugar ao despacho de aperfeiçoamento.
Segundo o disposto no artº3º, nº3 do CPC, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Sabe-se que o princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de – “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras” (cf. acórdão do Tribunal Constitucional nº177/2000, DR, II série, de 27/10/2000).
Conhece-se igualmente que a norma do referido nº3 do art.º3º do CPC, introduzida pela Reforma de 1995/96, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialéctica ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo.
Mais, a referida norma consagra expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, garantindo efectivamente às partes a sua participação efectiva no desenvolvimento de todo o litígio.
Por outro lado, tem-se entendido que a violação do contraditório gera nulidade processual, a apreciar nos termos gerais (art.º195º CPC - anterior art.º201º), por ser susceptível de influir no exame e decisão da causa (cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol.1º, 1999, pág.9; Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 48).
Ora no caso concreto, o que importa apurar é se a exigência de audição prévia também funciona (ou se funciona sempre) em relação ao despacho de indeferimento liminar.
Perante tal questão duas respostas têm vindo a ser dadas:
a) Uma no sentido de que o indeferimento liminar não é excepção, logo impõe-se sempre um despacho pré liminar de audição (cf. entre ouros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 29.01.2018, processo nº3550/17.6T8CBR.C1 e os Acórdãos da Relação de Lisboa de 10.05.2018, processo nº16173/17.0T8LSB.L1 e de 24.04.2018, processo nº15582/17.0T8LSB.L1.7, todos em www.dgsi.pt).
b) Outra segundo a qual, em caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor/exequente sobre o motivo do indeferimento (cf. entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2015, processo nº116/14.6YLSB, o Acórdão da relação de Coimbra de 27.02.2018, processo nº5500/17.0T8CBR.C1 e os Acórdão da Relação do Porto de 04.11.2008, proc. nº 0826336 e de 13.06.2018, processo nº1535/17.5T8PRT.P1, também todos eles em www.dgsi.pt).
Podemos desde já dizer que o nosso entendimento vai no sentido destas últimas decisões, sendo as razões que o justificam as seguintes:
Através da apresentação em juízo da petição ou requerimento inicial o autor exerce o direito de acção, iniciando-se a relação jurídico-processual apenas relativa ao autor, pois o “conflito de interesses que a acção pressupõe” (art.º3º, nº1 do CPC) só se inicia com o chamamento à “lide” do réu, e por conseguinte apenas a partir daqui é que nasce o que é costume designar-se por “estrutura dialéctica do processo”.
Ora, o despacho de indeferimento liminar é uma espécie dentro do género da “rejeição liminar”, e ocorre no caso de inviabilidade “lato sensu” da pretensão (onde se insere a falta insuprível de pressupostos processuais), em que a lei elenca taxativamente as causas relevantes da rejeição.
Sendo assim, a obrigação de prolação de um despacho prévio ao despacho de indeferimento liminar parece ser em si mesmo contraditório porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faz sentido a parte ser ouvida preliminarmente.
Em segundo lugar, não parece que se deva, em rigor, falar de “decisão surpresa “ na prolação de despacho de indeferimento liminar por falta insuprível de pressuposto processual porque é a própria lei que o prevê expressamente como causa específica de rejeição.
Na verdade, a lei adjectiva define as causas de indeferimento liminar, consubstanciando-se em situações de inviabilidade “lato sensu”, e como tal insupríveis, tornando inútil qualquer instrução e discussão posterior, patenteando-se, então, ser desnecessária a audição prévia sobre um projecto de indeferimento.
Acresce que nos casos de indeferimento liminar a lei concede ao autor a possibilidade de juntar nova petição, considerando-se a mesma proposta aquando da primeira (art.º560º e 690º, nº1 CPC). E isto porque a instância não se estabilizou.
Mais, nas situações de indeferimento liminar, a lei difere o contraditório na medida em que se prevê sempre a admissibilidade do recurso, independentemente do valor e da sucumbência e se determina que o réu seja citado para os termos do recurso e da causa (cf. os arts.629º, nº3, alínea c) e 641º, nº7 do CPC).
Daqui parece pois resultar a dispensa da audição prévia do autor, porque desnecessária, permitindo-se o contraditório diferido e em situação de igualdade.
Por outro lado, a decisão-surpresa prevista no art.º3º, nº3 do CPC pressupõe que a parte não possa perspectivar como sendo possível, ou seja, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse prognosticado no processo.
Dizendo de outra forma, a decisão-surpresa ocorre se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, surgindo, pois, a sua imprevisibilidade como marca definidora (cf. os Acórdãos do STJ de 27.09.2011, processo nº2005/03.0TVLSB.L1.S1) e de 4.06.2009, processo nº 09B0523), ambos em www.dgsi.pt).
Ora, na situação em apreço, não pode de todo considerar-se que estamos em presença de uma questão jurídica inesperada ou surpreendente no apontado sentido, porquanto a questão da incompetência material dos tribunais judiciais, para além de conhecimento oficioso do tribunal, tem sido decidida no sentido defendido na decisão recorrida (cf. entre outros os acórdão supra citados em b)).
Ou seja, tal questão não surge, neste contexto, como uma nova questão jurídica que justifique uma prévia intervenção jurisdicional de observância do disposto no nº 3 do art.º 3º do Cód. Processo Civil, não consubstanciando, pois, a decisão recorrida uma decisão-surpresa.
Em suma, constituindo a incompetência material do tribunal uma excepção dilatória insuprível (cf. os artigos 577º e 578º do CPC) não se pode afirmar que a recorrente não pudesse prognosticar o seu conhecimento oficioso por parte do Tribunal “a quo”.
Improcedem assim os argumentos recursivos da apelante B....
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Sumário (cf. art.º663º, nº7 do CPC)
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III. Decisão:
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e confirma-se o despacho recorrido.
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Custas a cargo da apelante/exequente B... (art.º 527º, nº1 e 2 do CPC).
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Notifique.

Porto, 8 de Março de 2019
Carlos Portela
Joaquim Correia Gomes (Vencida, seguindo a posição contrária)
Filipe Caroço