Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16173/17.0T8LSB.L1-6
Relator: NUNO SAMPAIO
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DESPACHO LIMINAR
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O princípio do contraditório é estruturante do nosso direito processual, tanto assim que surge consagrado no art.º 3º do Código de Processo Civil como forma de evitar a chamada “decisão-surpresa”, constituindo inclusivamente uma manifestação do direito fundamental de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa.               
II – Da legislação processual e da lógica que lhe está subjacente resulta que um despacho liminar tem como antecedente directo, único e imediato uma petição inicial, um requerimento executivo ou um recurso.

III – A parte, quando o despacho liminar está previsto na tramitação, ao apresentar a sua pretensão e ao formular um pedido está ciente da possibilidade da sua imediata rejeição, o que afasta ou pelo menos desvirtua o conceito de decisão-surpresa.

IV – Consequentemente, numa execução não viola o princípio do contraditório o Juiz que indefere liminarmente o requerimento executivo sem prévia audição do exequente que, em sede de recurso – sempre admissível, nos termos do n.º 3 do art.º 853º do Código de Processo Civil –, terá a oportunidade de sustentar o seu ponto de vista.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório

Exequente/recorrente:
Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, com sede no Largo de São Domingos, n.º 14, 2º andar, em Lisboa.

Executado/recorrido:
M..., com domicílio ... em Lisboa.

Título executivo:
Certidão de Dívida de Contribuições emitida pela Direcção da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores.

Despacho recorrido:
Indeferiu a arguição de nulidade do despacho que indeferira liminarmente o requerimento executivo com fundamento na incompetência material do tribunal.

Conclusões da apelação:
1.º A CPAS arguiu “a nulidade do despacho/sentença proferido”, mas fê-lo com fundamento no disposto art.º 195.º, n.º 1 do CPC.
2.º Uma vez que não foi concedida, à ora recorrente, a possibilidade de se pronunciar, previamente à decisão, sobre a competência do tribunal, ao abrigo do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do CPC.
3.º E por isso a nulidade da decisão seria uma mera consequência da nulidade pela omissão de um acto processual essencial, nos termos do disposto no art.º 195.º, n.º 2 do C.P.C.
4.º Não tendo a ora recorrente sido previamente ouvida sobre a competência do tribunal para tramitar e julgar a presente acção, a decisão que julgou incompetente o tribunal em razão da matéria, tem de ser considerada uma decisão-surpresa.
5.º Pois essa questão da decisão-surpresa terá de ser vista em cada um dos processos de per si, como no presente caso.
6.º Não sendo admissível a chamada decisão-surpresa, tem a CPAS, previamente à decisão, de ser auscultada sobre a matéria (competência dos tribunais judiciais para cobrança coerciva das contribuições em dívida pelos seus beneficiários).
7.º Além disso, o princípio do contraditório visa, também, permitir que a parte possa carrear para os autos os elementos que achar pertinentes por forma a que o tribunal, quando decidir, o faça na posse do máximo de informação possível.
8.º Não tendo a CPAS sido ouvida previamente à decisão, foi violado o princípio do contraditório previsto no art.º 3.º, n.º 3 do CPC.
9.º Nestes termos deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça à CPAS o direito de se pronunciar sobre a questão da competência dos tribunais judiciais, para dirimir e julgar as execuções intentadas pela CPAS para cobrança das contribuições em dívida pelos beneficiários.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Questões a decidir na apelação:
Importa unicamente decidir se o tribunal recorrido, ao indeferir liminarmente o requerimento executivo, violou o princípio do contraditório por não ter facultado à exequente a possibilidade de previamente se pronunciar acerca da excepção de incompetência material.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

II - Apreciação do recurso

Factos provados relevantes para decisão da apelação:
1º A presente execução deu entrada e foi autuada em 11 de Julho de 2017.
2º Em 6 de Setembro do mesmo ano foi proferido despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo, por incompetência material dos juízos de execução enquanto tribunais comuns.
3º Em 21 de Setembro a exequente arguiu a nulidade deste despacho invocando a violação do princípio do contraditório e requerendo a sua notificação para se pronunciar sobre a competência do tribunal em razão da matéria.
4º A arguição de nulidade foi indeferida por despacho de 8 de Janeiro de 2018.

Enquadramento jurídico:

A exequente Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (doravante CPAS) arguiu, nos termos do n.º 1 do art.º 195º do Código de Processo Civil, a nulidade do despacho mediante o qual o julgador indeferiu liminarmente o requerimento executivo.
Em causa estava a violação do princípio do contraditório pelo facto do tribunal ter decidido sem previamente permitir à exequente pronunciar-se sobre a competência material do tribunal judicial, argumentando que se viu confrontada com uma decisão-surpresa.
A arguição de nulidade foi indeferida e é desse despacho que recorre de apelação a exequente.
É indiscutível que o princípio do contraditório é estruturante do nosso direito processual, tanto assim que surge consagrado no art.º 3º do Código de Processo Civil como forma de evitar a chamada “decisão-surpresa”, constituindo inclusivamente uma manifestação do direito fundamental de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa.         
Nos termos do n.º 3 do art.º 3º o juiz deve observar e fazer cumprir o princípio “ao longo de todo o processo”.
Porém, uma leitura literal pode sempre conduzir a resultados perversos e não visados pelo legislador perante a especificidade das situações concretas.
Cremos que um desses casos é o dos despachos liminares, independentemente de incidirem sobre uma petição inicial, um requerimento executivo ou um recurso.
A própria expressão logo inculca a ideia de que um tal despacho tem como antecedente directo, único e imediato um requerimento; e, no processo civil, quando uma parte formula um qualquer pedido está ciente da possibilidade da sua imediata rejeição, o que afasta ou pelo menos desvirtua o conceito de decisão-surpresa.
Sabendo disso e de todo um passado em que o despacho liminar constituiu a regra nas acções declarativas e executivas, o legislador não se limitaria ao enunciado geral do princípio no art.º 3º se tivesse em mente a prévia audição das partes antecedendo o despacho liminar (cuja designação seria outra...); teria previsto expressamente aquilo que seria um despacho preliminar ao despacho liminar.
Convenhamos que, em termos de política legislativa, seria uma forma de complicar a tramitação processual quando o objectivo prosseguido nas últimas reformas processuais tem sido precisamente o inverso.
Para assegurar o contraditório em tais circunstâncias o mecanismo teria de ser diverso; e assim sucede, tanto ao nível da apreciação liminar em primeira instância quer em sede de admissibilidade, ou não, de um recurso: conferir às partes a possibilidade de recorrerem ou reclamarem.
No caso específico da acção executiva a solução consta expressamente do n.º 3 do art.º 853º do Código de Processo Civil: “Cabe sempre recurso do despacho de indeferimento liminar, ainda que parcial, do requerimento executivo…
É quanto basta, do nosso ponto de vista, para se considerar assegurado o contraditório nos casos excepcionais em que o despacho liminar seja de indeferimento.
Este ponto de vista foi perfilhado em acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/02/2018 (processo n.º 5500/17.0T8CBR.C1 publicado, à semelhança dos subsequentemente citados, em www.dgsi.pt): “No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento (despacho preliminar), além do mais porque a lei prevê o contraditório diferido, dada ampla admissibilidade legal de recurso, independentemente do valor e da sucumbência, e em situação de igualdade das partes (…).A decisão-surpresa (art.3 nº 3 CPC) pressupõe que a parte não possa perspectivar como sendo possível, ou seja, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse prognosticado no processo”.
No mesmo sentido pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de de 24-02-2015 (processo n.º 116/4.6YLSB da secção do contencioso): “…não é admissível um despacho liminar prévio a um despacho liminar, seria uma decisão em si contraditória, porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faria qualquer sentido a parte ser ouvida preliminarmente sobre a aludida eventualidade de vir a ser produzida uma decisão de não admissão de recurso… A decisão surpresa, como os vocábulos indicam, faz supor que a parte possa ser apanhada em falta por uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível, não esteja prevista nem tivesse sido configurada por aquela…”.
Esta última ideia, idêntica ao excerto final da transcrição do aresto da Relação de Coimbra, tem especial importância no caso dos autos na medida em que a exequente já se viu confrontada inúmeras vezes com despachos idênticos ao proferido no tribunal a quo.
Com efeito, a execução deu entrada em juízo em Julho de 2017 e a incompetência dos tribunais comuns em razão da matéria já havia sido decidida, designadamente (porque só nos referimos a decisões publicadas), em acórdãos da Relação de Lisboa de 9/3/2017 (processo n.º 17398/15.9T8LRS.L1-2) e do Porto de 20/06/2016 (processo n.º 6988/16.2T8PRT.P1); e este esteve na origem do acórdão do Tribunal de Conflitos de 27/4/2017 (processo n.º 037/16), subscrito por seis Juízes Conselheiros, que atribuiu a competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal e que a exequente não poderia deixar de ter presente.
Perante isto, afirmar-se que a “questão da decisão-surpresa terá de ser vista em cada um dos processos de per si, como no presente caso” (cfr. a conclusão 5), é iludir a realidade, transformar cada processo num compartimento estanque quando a questão jurídica essencial está discutida e é do domínio público.
A possibilidade de aduzir novos argumentos, esgrimida no corpo das alegações, também não constitui justificação válida.
Concretamente afirma a exequente que poderia juntar aos autos um parecer, da Autoridade Tributária, em que esta alega não ter competência para instaurar este tipo de execuções por falta de norma habilitante para o efeito.
Porém, não é verdade que se trate de um novo argumento: foi apresentado e expressamente rebatido no citado acórdão de 9/3/2017 – recorde-se que é anterior à instauração da presente execução – e até vem referenciado no ponto II do respectivo sumário.
Também não colhe a tese, igualmente exposta no corpo das alegações, de que “não faria qualquer sentido que fosse o exequente a questionar, ab initio, a competência dos tribunais judiciais, quanto em muitos destes tribunais a questão nunca se colocou”.
Bem pelo contrário. Como até já se colocara a questão e havia sido julgada em sentido desfavorável em Relações e no Supremo Tribunal de Justiça, das duas uma: ou a exequente esperava pela decisão e interpunha recurso, ou antecipava-se como usualmente se faz com diversos outros pressupostos processuais, designadamente a legitimidade activa ou passiva.
A pior opção, com o devido respeito, foi aquela que a exequente tomou ao aguardar pelo despacho de citação e, quando se viu confrontada com o indesejado indeferimento liminar, esgrimiu com uma nulidade proveniente de uma decisão-surpresa manifestamente inapta a surpreendê-la.

III – Decisão
                                      
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.             
Custas pela recorrente.
                            
Lisboa, 10 de Maio de 2018
                                                                                     
Nuno Sampaio (relator)
Maria Teresa Pardal
Carlos Marinho