Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
392/14.4.T8CHV-A.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
NULIDADE PROCESSUAL
CONVOLAÇÃO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

1. A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma;

2. A arguição da nulidade processual não pode ser convolada para nulidade do acórdão, não sendo caso do art. 193º, nº 3 nem do art. 5º, nº 5 do CPC.

Decisão Texto Integral:

Revista n.º 392/14.4T8CHV-A.G1.S1

Acordam na Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:

*

AA e outros vêm, nos termos dos arts 679º e 652º, nº 1, al. f) do CPC, arguir a nulidade prevista no art. 195º, nº 1 do mesmo diploma, por não cumprimento do princípio do contraditório previsto na art. 3º, nº 3, também do CPC, requerendo, a final, que, no cumprimento desta última disposição legal, os requerentes/recorrentes e o requerido/recorrido sejam notificados para se pronunciarem sobre a projectada decisão desta revista em sede de solução jurídica, que difere da da Relação.

Alegam que a apelação foi julgada procedente no Tribunal da Relação porque se considerou que na concorrência das duas sentenças indemnizatórias em causa, ambas transitadas em julgado, o pagamento duma delas preteria o pagamento da outra, como resulta das conclusões do acórdão, do seguinte teor:

“ (…)

II – Estando-se perante dano que dá lugar à existência de duas obrigações de indemnização distintas, não dispostas no mesmo plano (pois que não são solidárias), antes em planos diferentes, o cumprimento duma tem directa repercussão na outra.

 III – O dano sofrido na expropriação é a perda da propriedade, que se considerou ser uma casa com determinadas características; o dano a liquidar é a destruição parcial da casa.

IV - Logo, o dano é, pelo menos parcialmente, o mesmo (sendo que na expropriação é mais amplo).

V - O lesado é credor de duas obrigações distintas de indemnização não para obter duas indemnizações pelo dano sofrido, mas para mais eficazmente se defender contra o risco de ver frustrada qualquer delas.

VI - Paga a indemnização decorrente da expropriação, ocorreu posteriormente facto extintivo da obrigação exequenda que emergia da sentença condenatória [a aqui exequenda] o que constitui fundamento atendível de oposição à execução baseada em sentença, nos termos do artº 729º, al. g), do CPC.”

No entanto, prosseguem os recorrentes, a fundamentação, acima sintetizada, foi completamente arredada em sede do acórdão do Supremo que não concedeu a revista com dois fundamentos jurídicos radicalmente diferentes dos exarados pelo Tribunal da Relação, sendo aqueles sumariados no acórdão da seguinte forma:

“ I- A indemnização expropriativa avaliada com base no valor da construção do prédio expropriado (já demolido), não abrange, necessariamente, o custo da reconstrução de tal prédio em que o expropriante foi condenado previamente numa acção declarativa;

II – Porém, não indo os exequentes ter qualquer custo com a reconstrução, que não é possível efectuar, verifica-se, por força do disposto no art.º 790º, n.º 1 do cód. Civil, uma impossibilidade objectiva (resultante de um acto dos poderes públicos) da obrigação exequenda, que constitui fundamento da oposição previsto na alínea g) do art.º 729º do CPC;

III – Ainda que se entendesse que não havia extinção da obrigação exequenda por impossibilidade objectiva, sempre se verificaria um manifesto abuso de direito, na medida em que não deixaria de repugnar à consciência ético-jurídica dominante que os exequentes tivessem vindo dar à execução uma sentença em que reclamam o custo da reconstrução que não iriam puder efectuar devido à expropriação do terreno;

IV – O abuso de direito, nos termos do art.º 334 do Cód. Civil configurando uma excepção peremptória que impede a realização coactiva da prestação, também constituiria fundamento de oposição à execução nos termos da alínea g) do art.º 729º do CPC”

Consideram, assim, que o Supremo optou por uma nova solução em termos de direito com fundamentos (extinção da obrigação por impossibilidade objectiva e abuso de direito em modalidade diferente da constante do acórdão do Tribunal da Relação), diferentes dos do acórdão recorrido, sem dar às partes a possibilidade de se pronunciarem.

E na verdade têm razão.

Como resulta das conclusões acima transcritas, o Supremo enveredou por fundamentos de direito não expressamente considerados na Relação. O que constitui uma decisão-surpresa, em resultado do não cumprimento do princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3 do CPC.

Porém os requerentes arguiram a nulidade do art. 195º, nº 1 do CPC, com a consequente nulidade do acórdão.

O que convoca a questão de saber se a decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art. 195º, n.º 1 do CPC ou uma nulidade da sentença, neste caso, do acórdão, nos termos dos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, nº 1, e 685º do mesmo diploma.

Propendemos para a segunda posição, de acordo com a orientação de Miguel Teixeira de Sousa, expressa em vátios escritos do seu blog do IPPC.

Assim, e como se dá nota no acórdão do STJ de 23.6.2016, proc. nº 1937/15.8T8BCL.S1, em www.dgsi.pt: no escrito datado de 10.5.2014, no referido Blog, em comentário ao Ac.R. de Évora, de 10.4.2014, o referido processualista observou que ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, essa “nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão” Também em escrito datado de 23.3.2015, em comentário ao Ac. da R. do Porto, de 2.3.2015 concluiu que “o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afecta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual) ”; como aí se refere, até esse momento, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”, e que “o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria”.

Ainda no escrito de 20.5.2020, em comentário a acórdão da Relação do Porto, apreciou assim: “O vício decorrente da falta da audição prévia das partes é - como é indiscutível e indiscutido -- o proferimento de uma decisão-surpresa; há, assim, uma decisão-surpresa, mas não uma "nulidade-surpresa"; basta este aspecto linguístico para justificar que o vício não é a nulidade processual, mas antes a decisão-surpresa; esta expressão indicia um desvalor da decisão, pelo que não é compreensível desconhecer este desvalor e recorrer ao da nulidade processual (e menos ainda pretender duplicar o desvalor da decisão-surpresa com o da nulidade processual); acresce que o CPC trata diferentemente as nulidades processuais (arts. 186º e ss.) e as nulidades da decisão (arts. 615º, 666º, n.º 1, e 685º), pelo que fica por justificar como é que, contra a sistemática do CPC, uma decisão viciada é uma nulidade processual;-- O objecto do recurso é (sempre) uma decisão (não pode ser outra coisa); há uma decisão recorrida, mas não uma "nulidade recorrida"; logo, o objecto do recurso é a decisão-surpresa, o que significa que o recorrente tem de fundamentar a interposição do recurso num vício dessa decisão; em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia, dado que conhece de matéria que, perante a omissão da audição das partes, não podia conhecer (arts. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC).”

Por último, no escrito de 22.9.2020 do mesmo Blog, escreveu: “(...) A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa). Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência. Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.”

Portanto, seja qual for a perspectiva que se adopte - a consunção da nulidade processual pela nulidade da decisão por excesso de pronúncia - ou a consideração de apenas um vício, o da decisão, será sempre este último que deverá ser atacado.

Ora, em rigor, os requerentes não arguiram a nulidade do acórdão, nos termos arts. 615º, 666º, n.º 1, e 685º do CPC: fundamentaram a nulidade do acórdão apenas nos efeitos da nulidade processual previstos art. 195º, nº 2 do CPC. E não é possível convolar a nulidade processual para nulidade do acórdão: o caso não se integra na previsão do art. 193º, nº 3 do CPC, nem se pode subsumir à do art. 5º, nº 5 do mesmo diploma.

Sumário:

1. A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma;

2. A arguição da nulidade processual não pode ser convolada para nulidade do acórdão, não sendo caso do art. 193º, nº 3 nem do art. 5º, nº 5 do CPC.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em indeferir a arguição da nulidade processual e manter o acórdão proferido.

Custas pelos reclamantes.

*

                                       Lisboa, 13 de Outubro de 2020

                    O relator António Magalhães

                                          

(Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020 de 13.3., atesto o voto de conformidade dos Srs. Juízes Conselheiros Adjuntos Dr. Jorge Dias e Dr.ª Maria Clara Sottomayor, que não puderam assinar).