Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | JOÃO BERNARDO | ||
Descritores: | TÍTULOS HONORÍFICOS DIREITOS DE PERSONALIDADE MORTE SUCESSÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ20090331005232 | ||
Data do Acordão: | 03/31/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | 1 . O Supremo Tribunal de Justiça pode sindicar a vertente jurídica da aquisição probatória levada a cabo pela Relação. 2 . Os títulos honoríficos, mormente as ordens honoríficas, devem ser integrados nos direitos de personalidade. 3 . Obnubilando, enquanto se mantiver o valor imaterial dos agraciamentos, os direitos de propriedade sobre as condecorações, insígnias ou distintivos que os simbolizam. 4 . Valendo, por isso, o regime dos artigos 70.º e seguintes do Código Civil, em detrimento dos próprios da propriedade, posse, sucessão em geral, comodato e afins. 5 . O valor imaterial pode manter-se depois da morte do agraciado. 6 . Podendo, neste caso, as pessoas referidas no artigo 71.º, n.º2 e atento o artigo 81.º, n.º2, haver de terceiro as condecorações respectivas, mesmo que, antes, tenham sido voluntariamente entregues àquele. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I – No Tribunal de Vila Nova de Famalicão, AA intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra: BB. Alegou, em síntese, que: Alguns anos depois da morte de sua avó, PB, a sua mãe, AB, entregou ao réu, a seu pedido, e por empréstimo fundado numa relação de amizade, as condecorações recebidas por aquela como actriz de teatro; Tais condecorações fazem parte da herança daquela sua avó, relativamente à qual, ela, autora, desempenha as funções de cabeça-de-casal. Pediu, em consequência, a condenação dele a restituir-lhe as referidas condecorações e, bem assim, a pagar-lhe 5.000$00 por cada dia em que se recuse a efectuar a dita entrega a título de sanção pecuniária compulsória. Contestou o réu, alegando que as ditas condecorações lhe foram doadas pela falecida AB, estando na posse das mesmas há já mais de 30 anos, sendo, como tal, seu possuidor e dono, motivo pelo qual deverá improceder o pedido da autora. II – A acção prosseguiu a sua tramitação e, na altura própria, foi proferida sentença em que absolveu o réu do pedido. Em resumo, entendeu-se que teve lugar um contrato de doação das condecorações, assistindo ao réu, como donatário, a propriedade delas. III – Apelou a autora e com êxito porquanto o Tribunal da Relação do Porto julgou a acção procedente, condenando o réu nos pedidos. Alterou a matéria de facto – em termos que infra se vão referir – e, corolariamente, entendeu que não teve lugar o dito contrato de doação e que não teve o réu posse que conduzisse à usucapião. IV – Pede revista agora este. Conclui as alegações do seguinte modo: 1 - Analisada a causa de pedir em contraposição com o pedido, o facto da herança se achar indivisa associado ao facto de os bens a restituir pertencerem à herança, nunca poderia ser pedido como foi a restituição das condecorações e a sua entrega à autora (a titulo individual) e a aplicação ao réu de sanção pecuniária compulsória a favor da autora. 2 - A autora não podia pedir a restituição das condecorações para si própria, como pediu, tinha de formular pedido para restituição das condecorações para a herança. 3 - A herança não se confunde com a autora, não obstante esta ter alegado que desempenhava cargo de cabeça de casal, que não veio a ser demonstrado. 4 - Há contradição relevante entre pontos de facto decisivos, o que se invoca nos termos e para os efeitos do art. 729, n.º 3, do Código de Processo Civil. 5 - Na resposta ao quesito primeiro refere-se que as condecorações foram entregues pela mãe da Autora à mãe do Réu e no quesito 36 refere-se que as condecorações foram entregues ao réu. 6 - A ser considerado a matéria de facto do quesito primeiro o réu nunca interveio directamente no alegado contrato de depósito e este nem sequer lhe é oponível. Aliás, 7 - A versão trazida aos autos cai pela base pois que 8 - A autora alega ter entregue as condecorações ao réu. 9 - O Tribunal recorrido fez um uso indevido de normas adjectivas (mormente do art. 712 CPC) o que constituiu matéria de direito e assim pode ser conhecida por este tribunal. 10 - Analisadas as conclusões da apelação, nunca o tribunal recorrido poderia ter revalorado toda a prova produzida, como valorou. 11 - O recurso deveria ser rejeitado quanto à matéria de facto ou, a apelante convidada a corrigir a sua apelação, tal matéria ser sujeita a contraditório antes da pronúncia do tribunal. 12 - Por último, a resposta à matéria de facto quesitada de n.º 14 a 20 da base instrutória, permite-nos concluir que houve inversão do titulo possessório, porquanto 13 - O recorrente aquando da criação do Museu do Teatro, recebeu correspondência da recorrida a solicitar a devolução das condecorações tendo, de imediato negado tal devolução, arrogando-se de dono das mesmas. 14 - Tal comunicação do recorrente nunca foi repelida pela mãe da autora que não usou de qualquer meio de defesa e 15 - Desde essa data até ao arrolamento decorreram mais de 19 anos tendo o recorrente exercido tal posse publica, ininterruptamente, pelo que 16 - Os actos de posse comprovados nos autos preenchem os requisitos que levam à aquisição por usucapião. 17 - No acórdão recorrido, entre outras, foram desrespeitados os comandos ínsitos ao disposto nos art. 3°, 690-A, 712.º CPC e art. 1185.º, 1187.º, 1205.º, 1263.º, al. d) e 1265.º CC. Termos em que deve revogar-se o acórdão recorrido, substituindo-o por um outro que julgue procedente por provado o presente recurso e, por via disso, ser julgada improcedente por não provada a presente acção, com a consequente absolvição do aqui recorrente. Não houve contra-alegações. V – 1 Na sequência que impõe o artigo 659.º do Código de Processo Civil, aplicável, “mutatis mutandis” aos acórdãos proferidos em recurso, há agora que fixar as questões que cumpre solucionar. Estas são delimitadas pelas conclusões das alegações e, ante estas, chamamos para a primeira linha a questão referida nos pontos 9.º a 11.º pelas discussões que levanta sobre os limites de conhecimento deste Supremo Tribunal. Por regra, plasmada no artigo 26.º da LOFTJ (n.º3/99, de 13.1, ainda aqui aplicável), só conhece de direito. Concretamente, no que respeita ao recurso de revista, está balizado pelo que resulta dos artigos 721.º, n.ºs 2 e 3, 722.º, n.ºs 1 e 2 e 729.º, todos do Código de Processo Civil. Esta regra projecta os seus efeitos no regime do artigo 712.º, mormente no seu n.º6. Perante ele, já se entendeu que a decisão factual tomada pela Relação era, nas suas várias vertentes, insindicável por este Tribunal. Não haveria, a respeito dela, sequer, recurso e, se o houvesse, por outras razões, não poderia ele alcançar tal questão. Não cremos, no entanto, que seja de acolher esta posição radical. Nos termos do artigo 722.º, n.º1, no recurso de revista, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admissível o recurso nos termos do n.º2 do artigo 754.º. No que respeita aos fundamentos acessórios exige-se, pois, a admissibilidade de recurso nos termos do artigo 754.º, n.º2. Só que, este 754.º, n.º2 reporta-se unicamente aos agravos continuados, tendo, em nossa opinião, o legislador deixado aqui uma lacuna relativa aos casos em que o recorrente de revista pretenda alegar a violação da lei processual cometida, em primeira mão, pela Relação. No preenchimento desta lacuna, e no que agora nos importa de invocação de violação da lei do processo quanto à aquisição factual, há que atender – até considerando o disposto no n.º3 do artigo 8.º do Código Civil - à jurisprudência, particularmente numerosa, que vem sendo proferida por este tribunal, no sentido de que continua a poder ser conhecida por este tribunal a vertente jurídica da aquisição da prova. Assim, os Ac.s de 31-01-2006 - Revista n.º 4044/05,1.ª Secção, 21-02-2006 - Revista n.º 4362/05 - 1.ª Secção, 21-03-2006 - Revista n.º 324/06 - 1.ª Secção, 18-05-2006 - Revista n.º 1009/06 - 1.ª Secção, 12-09-2006 - Revista n.º 1986/06 - 1.ª Secção, 08-05-2007 - Revista n.º 759/07 - 1.ª Secção, 26-06-2007 - Revista n.º 1735/07 - 1.ª Secção, 05-07-2007 - Revista n.º 1990/07 - 1.ª Secção, 05-07-2007 - Revista n.º 2199/07 - 2.ª Secção, 20-09-2007 - Revista n.º 2411/07 - 2.ª Secção, 25-09-2007 - Revista n.º 90/07 - 1.ª Secção, 27-09-2007 - Revista n.º 1982/07 - 2.ª Secção, 04-10-2007 - Revista n.º 2723/07 - 2.ª Secção, 08-11-2007 - Revista n.º 2626/07 - 7.ª Secção, 03-05-2005 - Revista n.º 268/05 - 1.ª Secção, 14-09-2006 - Revista n.º 2384/06 - 2.ª Secção e 11-09-2007 - Revista n.º 1812/07 - 6.ª Secção. Temos, pois, o caminho livre para conhecer da questão constante das aludidas conclusões 9.ª a 11.ª V – 2 Para além da acabada de analisar, e, se não houver prejudicialidade, deparam-se as questões consistentes em saber se: A autora não podia pedir a restituição das condecorações para si própria, mas tão-só para a herança; Para isso, havia de ter demonstrado que era cabeça-de-casal e não demonstrou; Há contradição relevante entre a matéria de facto quanto à pessoa a quem foram entregues as condecorações; Deve entender-se que teve lugar inversão do título possessório e, consequentemente, aquisição por usucapião a favor do réu. VI – 1 Na 1.ª instância, foi considerada provada a seguinte matéria de facto: 1. No dia 10/05/1967 faleceu, no estado de viúva, Maria ....PB, também conhecida por PB, uma das maiores actrizes do teatro nacional. 2. PB foi a única a receber as seguintes condecorações: Ordem de Santiago e Espada, Ordem de Cristo, Medalha de Prata da Cidade de Lisboa, Ordem do Cruzeiro do Sul e Ordem de Cidadã Carioca. 3. PB casou com CC e teve duas filhas, AB e ASB, esta falecida em 10/11/53, no estado de solteira. 4. PB, o réu, e sua mãe partilharam em vida da artista de alguma amizade. 5. AB casou com JC em 08/12/26, sendo que desse casamento nasceram quatro filhos, SC, AC, AQ e a autora AA. 6. JC faleceu em 13/01/74, AC faleceu em 27/12/98, SC faleceu em 27/12/69, e AC faleceu em 15/12/95. 7. As condecorações referidas em 2 estavam em casa do réu. 8. Em 19/06/99, a autora enviou uma carta ao réu, junta a fls. 21 a 23 dos autos arrolamento apensos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais. 9. Em 27/06/99, o réu respondeu à autora, enviando-lhe uma carta, junta a fls. 106 e segs. do apenso de certidão vindo da Relação, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais. 10. Em inícios do ano de 1974, aquela AB, mãe da autora, declarou querer dar ao réu e a sua mulher, entretanto falecida, as condecorações em causa na presente acção, para isso entregou-as ao réu, que, por sua vez aceitou tão generosa oferta da mãe da autora, recebendo-as, umas directamente, outras por intermédio de sua mãe, que residia em Lisboa. 11. Tais declarações de vontade da mãe da autora, AB, que o réu tratava carinhosamente por "LL": foram acompanhadas da entrega das condecorações ao réu. 12. Por si e por seus antepossuidores, há mais de 30 anos, que o réu vem fruindo de todas as utilidades, suportando os respectivos encargos e despesas, o que faz por conhecimento e à vista de toda a gente, sem qualquer interrupção temporal, convicto de que exerce um direito próprio e de que não lesa direitos alheios. 13. Procede o réu à manutenção das condecorações, limpando-as, tendo-as no interior da sua casa de habitação, num lugar próprio, numa virtude, à vista de qualquer pessoa que frequente a sua habitação. 14. Onde, para além das condecorações em causa, tem uma colecção particular de objectos diversos, valiosos ou não, todos eles ligados à vida de gente famosa, de várias áreas de intervenção, desde as artes à politica. 15. Só no decurso do ano de 1979, quando foi instalado o Museu Nacional do Teatro, o réu recebeu correspondência da mãe da autora, que, arrependida, invocando amizade, solicitava a devolução das condecorações para serem entregues ao Museu, o que o réu sempre negou. 16. O réu sempre esteve convicto de exercer um direito próprio de proprietário, pois que as condecorações, bem como outros objectos da PB, foram-lhe oferecidos pela mãe da autora que era a única e legitima possuidora das mesmas. 17. O réu e a sua mãe sempre tiveram vida muito próxima das gentes do teatro, entre estas, a gloriosa PB e a sua família. 18. Tal amizade de anos e o gosto que o réu e sua mãe tinham pelas artes, entre elas o teatro, fez com que a mãe da autora, AB, dispusesse das condecorações que consagraram a vida artística da PB, a seu favor. 19. A PB, a mãe da autora, a mãe do réu o próprio réu partilharam durante a vida da artista e posteriormente de laços fortes de amizade e de afectividade. 20. Dá-se aqui por integralmente reproduzida toda a correspondência junta aos autos, nomeadamente as cartas datadas de 11/06/1967, 29/09/1967, 01/05/1979, 13/05/1979, 13/07/1979 e 07/06/1980. VI – 2 Perante esta enumeração, a Relação escreveu o seguinte: “ Importa desde logo e em primeiro lugar referir relativamente à matéria de facto que se considerou provada por remissão, designadamente no ponto número 20 da sentença que, de acordo com o que já por inúmeras vezes vimos afirmando os documentos para os quais se remete não são factos em mesmos, mas contêm-nos, pelo que, assim sendo, importa na sua fixação retirar e extrair dos documentos as referências a que os mesmos se reportam e releva-los em termos processuais de molde a evitar o vício que resulta da referência global aos mesmos sem concretização do respectivo conteúdo como se indica, sobretudo porque no caso os mesmo são objecto de apreciação valorativa e interpretativa para formação de convicção na decisão da matéria de facto: "20. Dá-se aqui por integralmente reproduzido toda a correspondência junta aos autos, nomeadamente as cartas datadas de 11/06/1967, 29/09/1967, 01/05/1979, 13/05/1979, 13/07/1979 e 07/06/1980. " Assim retira-se dos documentos em causa o seguinte: A) Da carta de 11/06/1967 enviada pela filha AB à mulher do Réu entretanto falecida ME e tratada pelo diminutivo de N...: "Com dois abraços muito amigos venho agradecer-lhe o sacrifício da vossa vinda a Lisboa para assistir ao funeral da mãe. Nunca poderei esquecer essa prova de carinho. Podem crer que perderam uma grande amiga. Envolvia-os a todos numa grande ternura. O BB era como se fosse um neto. Admirava e estimava muito a N..., enternecia-se sempre que falava nos seus pequenos. Sinto-me desfeita. Por vezes receio não conseguir levar esta luta até ao fim. Creiam-me sempre dedicada amiga. AB" B) De 29/9/1967 Enviada pela filha da falecida artista à Mãe do Réu "Querida F... Perdoe-me essa lembrança .... Junto vai um diadema da Mãe embora já sem pedras, talvez o queira para o seu "museu". Também lhe mando uma caixinha de costura. Era a que a Mãe tinha sempre no camarim. Beija-a com ternura a amiga de sempre. AB" C) A carta (bilhete) de 1/5/1979 constante a fls. 111 do 2° volume do processo de arrolamento: " 1/5/1979 BB Perdoe-me vir maça-lo mas as circunstancias a isso me obrigam. Vai finalmente fazer-se o Museu do Teatro pelo qual esperei doze anos. .... Tive um telefonema da ARC que será a organizadora pedindo-me objectos pertencentes a minha Mãe. O pouco que me resta vou mandar para lá mas há que pensar no mais importante. As condecorações. Creia que me choca profundamente ter de as pedir, eu que as depositei na sua mão, recordando a grande ternura que minha Mãe nutria por si, mas mais me chocaria saber que uma artista que como nenhuma outra deu 76 anos da sua vida ao teatro, seria mal representada nesse museu. Você sabe que seria triste o público supor que aquela que foi alguém era a única que nunca teria sido condecorada, quando afinal ela possuía todas as condecorações que uma artista pode possuir E por sentir que você sentirá isto como eu, venho pedindo-lhe perdão, apelar para o carinho que você lhe dedicava, pedindo-lhe (palavra cortado pelo punho da própria) rogando-lhe que mas restitua para que o nome da minha Mãe se perpetue como merece." D) A carta de 7/6/1980 da Mãe do Réu F... Com um abraço a F...envia as preciosidades que foram da PB e inesquecível amiga. Agradeç( o? ) a entrega ao Dr. P... como combinamos e o favor de conferir e deixar ao seu cuidado um documento de recepção. E) Carta resposta datada de 13 de Maio de 1979 inserta de fls. assinada pelo Réu do seguinte teor: Exmo Sr.ª D. AB. Revíamos muitas vezes, sensibilizados e comovidos, as preciosas recordações da sua inigualável carreira artística. Da sua invulgar personalidade, umas mais antigas anteriores a nós, outras por ela directamente oferecidas a minha mulher e a mim, e ainda outras por minha mãe a nós confiadas. Desde o disco, a fotografias, cartas programas dedicatórias, lembranças, bibelots, roupas, objectos de cena, quadros e até móveis tudo fora confiado ao cuidado honesto da séria zelosa guarda, com a sublinhada certeza de preservação e da continuidade que nos orgulhamos de merecer. Quis a LL, e tenho no meu coração gravadas, com particular carinho e na memória bem vivas as suas palavras, relevar ainda e uma vez mais, o afecto e a confiança em minha mulher e em mim tal reconhecidas, o que de novo muito nos honrou, vendo em nós, também a garantia de defesa desse glorioso passado, ao depositar em nossas mãos as valiosas condecorações, incontestavelmente merecidas através da luminosa e brilhante vida de sua inolvidável Mãe F) Carta de 13/7/1979 dirigido pela mãe do Réu à mãe da Autora (LL) " Querida LL ( ... ) Quero e já devia informá-Ia que o BB anda apoquentado por ninguém descobrir onde a N... pôs a chave da vitrine para com mais rigor dizer a (?) respeito das condecorações. Tem mandar vir alguém que arrombe para fazer uma chave. Ando muito triste e apoquentada, mas é o pão nosso de cada dia. Um abraço amigo da sempre dedicada F..." G) carta de 19 de Junho de 1999 dirigido ao Réu pela Autora "Caro BB Com pesar porque minha Mãe AB faleceu. Com alegria porque finalmente descobri o lugar onde se encontram as condecorações de PB - o que me introduz sem mais delongas, no citado assunto. ( ... ) E assim com a confiança de me estar a dirigir ao portador das condecorações de minha Avó, efectuo um pedido e o favor de me passar a tarefa de ser a guardiã dos ditos objectos a fim de lhes ser dado o lugar que efectivamente merecem, isto é num Museu, onde todas as pessoas possam testemunhar a gratidão pública que em tempos, foi conferida a PB. ( ... ) Agradeço-Ihe assim todo!!. tempo que tomou conta desses bens preciosos, agradecimento esse verdadeiro e sentido, colocando-me à inteira disposição para me deslocar à sua residência a fim de proceder à sua devolução, na certeza de que faço questão de o compensar por todos os gastos que esta missão lhe poderia ter causado e que é o mínimo a fazer" H) Carta resposta do Réu de 27 de Junho de 1999 à Autora: "Exm.ªs Sr.ª D. LN (..) Como aquilo que refere não se encontra de modo algum dentro destes conceitos ( DEVOLUÇÃO) porque me foi oferecido pela Senhora sua Mãe em pleno uso de todas as suas faculdades e naturais direitos como única filha e herdeira viva e previsto pela sua ilustre A vá, a Gloriosa e Insigne Actriz PB, muito honrado me senti pelo privilégio de receber tal oferta de tão grande significado pelo seu valor artístico, comovendo-me a sua confiança na minha pessoa e o reconhecimento de uma responsabilidade e mérito que muito me orgulham e que certamente não terá encontrado noutra pessoa ..... " VI – 3 Depois de assim discorrer, a Relação analisou a fundamentação das respostas aos pontos da B.I. e concluiu nos seguintes termos: “Assim cabe dizer que depois de analisados os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas bem como os documentos juntos, este Tribunal com a fundamentação que infra será exposta nos termos do artigo 653.º n.º 2 considera provada a seguinte matéria: 1.º Em virtude dessa amizade, e alguns anos após a sua morte, a sua filha AB, acedendo a um pedido do R., colocou na mão do mesmo, as condecorações recebidas por PB, bem como, mais alguns objectos pessoais e de teatro da referida artista? Provado apenas que a filha AB mãe da Autora entregou à mãe do Réu as condecorações recebidas por PB, bem como, mais alguns objectos pessoais e de teatro da referida artista. 2.º As ditas condecorações e restantes objectos foram emprestados para o R. efectuar um museu pessoal na sua residência, segundo alegações do mesmo, conforme documento 6 do citado arrolamento? Provado apenas o que consta da resposta ao quesito anterior. 3.° Temporariamente? Provado. 4.° Com a obrigação de os devolver? Provado. 5.º Só alguém fora das suas faculdades faria a doação de objectos tão pessoais e tão memoravelmente valiosos? Provado apenas o que consta da resposta ao quesito 1.º e que as condecorações são objectos de carácter pessoal e de valor histórico. 6.° As condecorações em causa, desligadas do seu valor imaterial, representam por si só um elevado valor monetário, dificilmente calculável, dado algumas das quais já não se poderem executar e serem em metal e pedras preciosas? Provado que as condecorações em causa tem um valor monetário ou venal indeterminado. 7.º Em inícios do ano de 1974, aquela AB, mãe da A declarou querer dar ao Réu e a sua mulher, entretanto falecida, as condecorações em causa na presente acção? Não provado. 8.° Para isso entregou-as ao Réu? Provado apenas que as entregou à mãe do Réu. 9.º Que, por sua vez aceitou tão generosa oferta da mãe da A ? Provado apenas que o R. testemunhou a "sensibilidade e gratidão à mãe da A. por recebê-Ias". 10.º Recebendo-as o Réu da mãe da A, umas directamente, outras por intermédio de sua mãe, que residia em Lisboa? Provado o que consta das respostas aos quesitos 1.º e 8.º. 11.º De imediato por escrito, por carta datada de 15 de Abril de 1974 ? Não provado. 12.º E posteriormente, quando se encontrou pessoalmente com a mãe da A ? Não provado. 13.º Tais declarações de vontade da mãe da A. AB, que o Réu tratava carinhosamente por "LL", foram acompanhadas da entrega das condecorações ao Réu? Provado apenas que a mãe do Réu e o Réu tratavam a mãe da Autora por LL. 14.º Acresce que sempre por si e por seus antepossuidores, há mais de 3, 6, 10, 15, 20, 25 e 30 anos que o Réu vem fruindo de todas as utilidades, suportando os respectivos encargos e despesas, o que faz por conhecimento e á vista de toda a gente, sem qualquer interrupção temporal, convicto de que exerce um direito próprio, de que não lesa direitos alheios? Provado apenas que desde data indeterminada anterior a 1979 mas posterior ao decesso da PB o Réu fruiu das utilidades das condecorações, suportando os respectivos encargos e despesas, o que faz por conhecimento e à vista das pessoas que frequentavam a sua casa, com interrupção temporal proveniente do decretamento do arrolamento apenso aos autos até à sua restituição como resulta dos autos. 15.° Procede o Réu à manutenção das condecorações, limpando-as? Provado. 16.° Tem as mesmas no interior da sua casa de habitação? Provado. 17.º Num lugar próprio, numa vitrine, à vista de qualquer pessoa que frequente a sua habitação, no seu museu "casa do artista"? Provado apenas que num lugar próprio, numa vitrine à vista de qualquer pessoa que frequente a sua habitação. 18.º Onde para além das condecorações em causa tem uma colecção particular de objectos diversos, valiosos ou não, todos eles ligados á vida de gente famosa, de várias áreas de intervenção, desde as artes à politica ? Provado que tem uma colecção particular de objectos diversos, valiosos ou não, ligados à vida de gente famosa, de várias áreas de intervenção, desde as artes à politica. 19.º Só no decurso do ano de 1979, quando foi instalado o Museu Nacional do Teatro, o Réu recebeu correspondência da mãe da A, que arrependida, invocando a amizade, solicitava a devolução das condecorações para serem entregues ao Museu? Provado que depois do dia 1/5/1979 por virtude da instalação do Museu do Teatro o Réu recebeu correspondência da mãe da A, a carta referida em C) em que solicitava a entrega das condecorações. 20.° O que o Réu sempre negou? Provado apenas que o R. respondeu nos termos da carta referida em E) de 13/5/1979. 21.º Mais tarde, foi a mãe do Réu, e este, contactados por pessoas ligadas ao museu Nacional do Teatro para aí colocarem as condecorações e outros objectos que lhes haviam sido oferecidos? Não provado. 22.º O Réu sempre esteve convicto de exercer um direito próprio de proprietário, pois que as condecorações, bem como, outros objectos da PB foram-lhe oferecidos pela mãe da A, que era a única e legitima possuidora das mesmas? Não provado. 23.º O Réu e a sua mãe sempre tiveram vida muito próxima das gentes do teatro, entre estas, a gloriosa PB e a sua família ? Provado que tiveram a amizade referida em 4. da matéria de facto assente. 24.º Tal amizade de anos e o gosto que o Réu e sua mãe tinham pelas artes, entre elas o teatro, fez com que, a mãe da Ao, AB, dispusesse das condecorações que consagraram a vida artística da PB, a seu favor? Não provado. 25.º A mãe da Ao, AB, dizia não ter em nenhum dos seus familiares directos a confiança suficiente para preservar os objectos razão pela qual os ofereceu ao Réu para. que este os preservasse? Não provado. 26.° Daí que a família da Ao não tenha - porque deu em tempos - os objectos de tão insigne actriz ao Réu? Não provado. 27.º A PB, a mãe da Ao, a mãe do Réu o próprio Réu partilharam durante a vida da artista e posteriormente de laços fortes de amizade e de afectividade? Provado o que consta da matéria de facto assente sob o n.º 4. 28.º A própria PB, a filha, AB, quando vinham ao norte, pernoitavam e tomavam as refeições na casa do Réu, na Quinta de ..., mesmo quando a PB vinha em digressão para actuar no Porto? Não provado. 29.º Outros objectos que pertenceram á PB - bem como a outros artistas e pessoas consagradas - que são propriedade do Réu foram adquiridos por este e por sua mãe? Não provado. 30.º Outros ainda foram oferecidos por aquela, por familiares e por outros artistas, e, integram espólio da Quinta de ...? Provado apenas o que consta da resposta ao quesito 18°. 31.º A A. outros familiares e terceiros interessados sempre souberam que as ditas condecorações estavam como sempre estiveram, desde há mais de vinte e cinco anos, em casa do Réu por lhe serem dadas umas e outras vendidas pela D. AB ? Provado apenas que a Mãe da Autora sabia que as condecorações foram entregues à mãe do Réu. 32.º Tanto assim que tais pessoas por diversas vezes e modos solicitaram à mãe do Réu que acedesse ao Museu Nacional do Teatro, quando este veio a ser Instalado, por entenderem ser o lugar próprio para as mesmas? Não provado. 33.º A A. como cabeça de casal não relacionou tais condecorações na relação de bens que apresentou? Não provado. 34.º Nunca a mãe da A. (AB) ou a própria PB pernoitaram em casa do R. ou da família deste? Não provado. 35.º Nunca a dita amizade chegou a tanto, nem era costume de PB ficar alojada em casa de pessoas que não fossem familiares? Não provado. 36 ° As condecorações foram entregues ao Réu para este as guardar e cuidar? Provado.” VI – 4 Feita a alteração factual, vem, assim, da Relação, provada a seguinte matéria de facto: 1.º No dia 10/05/1967 faleceu, no estado de viúva, Maria PB, também conhecida por PB, uma das maiores actrizes do teatro nacional. 2.º PB foi a única a receber as seguintes condecorações: Ordem de Santiago e Espada, Ordem de Cristo, Medalha de Prata da Cidade de Lisboa, Ordem do Cruzeiro do Sul e Ordem de Cidadã Carioca. 3.º PB casou com CC e teve duas filhas, AB e ASB, esta falecida em 10/11/53, no estado de solteira. 4.º PB, o réu, e sua mãe partilharam em vida da artista de alguma amizade. 5.º AB casou com JC em 08/12/26, sendo que desse casamento nasceram quatro filhos, SC, AC, AQ e a autora AA. 6.º JC faleceu em 13/01/74, AB faleceu em 27/12/98, SC faleceu em 27/12/69, e AC faleceu em 15/12/95. 7.º As condecorações referidas em 2 estavam em casa do réu. 8.º Em 19/06/99, a autora enviou uma carta ao réu, junta a fls. 21 a 23 dos autos arrolamento apensos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais. 9.º Em 27/06/99, o réu respondeu à autora, enviando-lhe uma carta, junta a fls. 106 e segs. do apenso de certidão vindo da Relação, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais. 10.º A filha AB, mãe da Autora, entregou à mãe do Réu as condecorações recebidas por PB, bem como, mais alguns objectos pessoais e de teatro da referida artista. 11.º Temporariamente. 12.º Com a obrigação de os devolver. 13.º As condecorações são objectos de carácter pessoal e de valor histórico. 14.º As condecorações em causa têm um valor monetário ou venal indeterminado. 15.º A mãe da A. entregou as condecorações à mãe do Réu. 16.º O R. testemunhou a "sensibilidade e gratidão à mãe da A. por recebê -Ias". 17.º A mãe do Réu e o Réu tratavam a mãe da Autora por LL. 18.º Desde data indeterminada anterior a 1979 mas posterior ao decesso da PB o Réu fruiu das utilidades das condecorações, suportando os respectivos encargos e despesas, o que faz por conhecimento e à vista das pessoas que frequentavam a sua casa, com interrupção temporal proveniente do decretamento do arrolamento apenso aos autos até à sua restituição como resulta dos autos. 19.º O réu procede à manutenção das condecorações, limpando-as. 20.º Tem as mesmas no interior da sua casa de habitação. 21.º Num lugar próprio, numa vitrine à vista de qualquer pessoa que frequente a sua habitação. 22.º O réu tem uma colecção particular de objectos diversos, valiosos ou não, ligados à vida de gente famosa, de várias áreas de intervenção, desde as artes à política. 23.º Depois do dia 1/5/1979 por virtude da instalação do Museu do Teatro o Réu recebeu correspondência da mãe da A, a carta referida em C) em que solicitava a entrega das condecorações. 24.º O R. respondeu nos termos da carta referida em E) de 13/5/1979. 25.º O R., a autora e sua mãe tiveram a amizade referida em 4. da matéria de facto assente. 26.º A Mãe da Autora sabia que as condecorações foram entregues à mãe do Réu. 27.º As condecorações foram entregues ao Réu para este as guardar e cuidar. …………………………. VII – A primeira das questões, referidas em V, diz respeito à alteração factual levada a cabo pela Relação. Decidido ali que este Supremo Tribunal pode conhecer da vertente jurídica relativa a tal alteração, temos a constatação de que esta vem atacada de dois modos: Um atinente aos limites de conhecimento do próprio Tribunal da Relação, face ao conteúdo das alegações da recorrente no recurso de apelação; Outro, perante os meios de prova que o mesmo tribunal teve em conta para proceder à alteração. O primeiro impõe-nos um exame atento das alegações e respectivas conclusões que a autora carreou da 1.ª para a 2.ª instância. Ali – como pode ver-se de folhas 361 e seguintes – a autora insurge-se contra os factos, dados como provados, que integram ou contribuíram para o acolhimento da figura da doação, sustentando que não tiveram lugar. Nas próprias conclusões das alegações, refere que “não há fundamento ou intenção para a doação ter ocorrido” e que “os factos constantes dos documentos (os referidos no artigo 20.º da sentença e os juntos aos autos em 21.9.2006) demonstram precisamente que o recorrido recebeu as condecorações em depósito e não por doação.” É certo que o artigo 690.º-A tem uma redacção compreensivelmente exigente em ordem a não permitir uma impugnação indiscriminada ou confusa da matéria factual, principalmente quando haja gravação da prova. Mas não devemos perder de vista a orientação deste Tribunal plasmada nos Acórdãos de 1.10.1998 (BMJ 480, 348), 16.10.2002, 26.11.2003 e 24.1.2007 (estes três em www.dgsi.pt) no sentido de conferir ao exigente texto legal alguma elasticidade. Por isso, no caso presente, sem prejuízo de considerarmos que a recorrente poderia ter sido mais precisa, entendemos que, atento todo o quadro factual apurado, se impõe um juízo de suficiência mínima. Assente que a impugnação factual vinha configurada em termos mínimos de exigência legal, havia a Relação que dela conhecer. O objecto desse conhecimento havia sido traçado pela pretensão de afastamento dos factos que conduzissem à doação e, entre estes, tínhamos os que directamente a ela se reportavam (cfr-se o ponto 10.º da enumeração factual fixada na 1.ª instância) e tínhamos os que suportavam aqueles. Sendo instrumentais, a sua própria inserção na B.I. será discutível, mas, se inseridos e se atacada a vertente factual da doação, não se pode considerar que o Tribunal da 2.ª instância tenha exorbitado o objecto do recurso, ao tomar, também sobre eles, posição. No que respeita aos meios de prova que tal Tribunal teve em consideração, há que aproximar o n.º do artigo 690.º-A do artigo 712.º, n.º2 e, fazendo a aproximação, passamos a ter lei expressa no sentido de que, oficiosamente, podia – e, se relevantes, devia - atender a quaisquer outros meios de prova que tenham servido de fundamento à decisão. VIII – Passemos agora à questão seguinte, das enumeradas em V – 2. Argumenta o recorrente que a autora não podia pedir a restituição das condecorações para si própria, mas tão-só para a herança. Como é sabido, a petição inicial tem várias partes, integrando, nomeadamente, a narração e o pedido. Este surge, assim, na sequência lógica, daquela, de sorte que se houver contradição entre o pedido e a causa de pedir (necessariamente constante da narração) o artigo 193.º, n.º2 b) considera a peça processual inepta. Esta sequência lógica leva mesmo a que, em caso de dúvida, se interprete este tendo em conta os factos constantes de narração que o integram. Assim o entendeu, até recentemente, este Tribunal (Acórdão de 4.12.2008, no referido sítio) e cremos mesmo que outro entendimento não será curial. Ora, na parte narrativa da petição, a autora refere, além do mais, que “como se a A. e os legítimos herdeiros de PB não fossem merecedores da memória da artista sua avó… em conclusão, as citadas condecorações pertencem aos herdeiros de PB dos quais a A. é a cabeça-de-casal…” (artigos 26.º e 27.º), de sorte que o pedido há-de ser entendido como reportado à qualidade que a autora invoca. De qualquer modo, com a construção que vamos fazer infra, irreleva que ela tenha agido como cabeça-de-casal ou como neta da agraciada. IX – Por isso, a questão seguinte – reportada à invocação de que a autora não demonstrou ser cabeça-de-casal – não pode beneficiar o recorrente. Mas, mesmo que pudesse, sempre haveria a considerar que não foi tal questão objecto de discussão da 1.ª para a 2.ª instância – até porque não servia à recorrente – e, se o recorrido quisesse valer-se dela, como agora pretende, tinha que lançar mão da ampliação recursiva prevista no artigo 684.º-A, n.º1 ainda do Código de Processo Civil. Seja como for, sempre se acentuará que o cabeçalato, excepto nos casos previstos na lei, resulta automaticamente desta, e que a autora, ao traçar o quadro de sucessão de sua avó, integrou-se na previsão dos n.ºs 1 c) e 2 do artigo 2080.º, agora do Código Civil (Diploma a que pertencem os preceitos que se vão referir sem menção de inserção), nada mais tendo a demonstrar. X – A invocada contradição, na matéria de facto, entre a pessoa a quem foram entregues as condecorações também não releva. O entendimento que mais favoreceria o réu, seria o da entrega a ele e, mesmo dando isso de barato, não lhe assiste razão como vamos explanar. XI – Resta a questão da inversão do título de posse. A inversão do título de posse está prevista nos artigos 1263.º d), 1265.º e 1290.º. A situação de precariedade que caracterizava o apossamento passa a integrar uma situação de posse, mesmo prescricional. Para isso – e independentemente do regime destes preceitos - a natureza do próprio instituto exige que a realidade a respeito da qual se pretende a inversão, esteja compreendida no objecto da posse. E, como vamos ver, não valem, sequer, para o nosso caso, considerações sobre a posse. XII – 1 As condecorações que recebeu PB têm natureza algo diferente entre si. As duas primeiras correspondem a títulos honoríficos, a terceira diz respeito ao mérito como cidadã de Lisboa e as quarta e quinta tiveram a sua origem no Brasil. Para o que aqui nos importa, não vemos razão para deixar de considerar extensivas, “mutatis mutandis”, às demais o regime das ordens honoríficas. Vêm elas de muito longe na nossa história e caminharam, paredes-meias, com os títulos nobiliárquicos. Com o advento da República, a Constituição de 1911, dispôs, no artigo 3.º, n.º3 que: A República Portuguesa não admite privilégio de nascimento, nem foros de nobreza e bem assim as ordens honoríficas com todas as suas prerrogativas e regalias. Esta posição extremada não durou muito tempo e, logo a propósito da intervenção na 1.ª Guerra Mundial, foram admitidas condecorações militares. As referências honoríficas foram expressamente permitidas no Código de Registo Civil de 1932, mas foi com o Decreto-Lei n.º44 721, de 24.11.1962, que veio a lume a Lei Orgânica das Ordens Honoríficas Portuguesas. Um diploma que, complementado com o Decreto n.º45 498, de 31.12.1963 – o Regulamento das Ordens Honoríficas Portuguesas – constituiu uma sistematização bastante completa da matéria. A Revolução de 25 de Abril mexeu no regime jurídico das Ordens Honoríficas, dissolvendo os respectivos conselhos, suspendendo a nomeação de novos vogais e chanceleres e admitindo a concessão de agraciamentos, só a título excepcional (Decreto-Lei n.º 94/75, de 1.3). Em 30.4.1985, foi publicado novo diploma, o Decreto-Lei n.º132/85, que visou fazer cessar o regime criado pelo Decreto-Lei n.º 94/75. Diploma esse que nunca chegou a ser regulamentado, tendo antes dado lugar ao Decreto-Lei n.º414-A/86, de 15.12 (também denominado Lei Orgânica das Ordens Honoríficas Portuguesas) que, com o seu “Regulamento”- Decreto- Lei n.º71-A/86, de 15.12 - se mantém, com ligeiras, e aqui não importantes, revogações, actualmente em vigor. XII – 2 Dos factos provados no ponto 2, infere-se que PB foi agraciada em vida. Tendo falecido em 1967, o diploma a ter em conta – por aplicação directa ou consagração do que já vinha sendo praticado anteriormente – será, primordialmente, o de 1962, supra referido. Mas, no que aqui nos importa, os sucessivos diplomas não procederam a alterações relevantes, de sorte que vamos atentar também nos que, posteriormente, vieram a lume. Aquele Decreto-Lei n.º44 721 dispunha, no artigo 1.º, n.º1, que: As ordens honoríficas destinam-se a distinguir os cidadãos portugueses que se notabilizaram por méritos pessoais, por feitos cívicos ou militares ou pelos serviços prestados à colectividade. Depois, seguia-se um parágrafo dedicado à atribuição a estrangeiros. Este artigo 1.º passou incólume para o Decreto-Lei n.º132/85 e veio a constituir o artigo 1.º do diploma actualmente vigente. Mas, neste, introduziu-se a expressão – consagrando, aliás, o que já vinha sendo entendimento pacífico anterior – “em vida ou a título póstumo.” Constando do preâmbulo deste mesmo normativo o seguinte: “As ordens honoríficas portuguesas radicam numa tradição secular, praticamente desde os alvores da nacionalidade. Ao longo dos tempos têm servido, essencialmente, para traduzir o reconhecimento da Nação e do Estado para com os cidadãos que se distinguem pela sua acção em benefício da comunidade nacional ou mesmo da Humanidade.” De acordo com todos os diplomas, as ordens honoríficas dividem-se em: Antigas ordens militares; Ordens nacionais; Ordens de mérito civil. As primeiras são: Da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito; De Cristo, De Avis e De Sant’iago da Espada (e não “Santiago e Espada”, como foi alegado e provado). As nacionais são: Do Infante D. Henrique; Da Liberdade (em substituição da antiga Ordem do Império). As de mérito civil são: Do Mérito; Da Instrução Pública; Do Mérito Agrícola e Industrial. A concessão de graus de todas as ordens honoríficas é da exclusiva competência do Presidente da República e reveste a forma de alvará, a publicar na 2.ª série do Diário da República. A investidura de portugueses em qualquer das ordens honoríficas depende de prestação dum compromisso de honra. Da concessão, será passado um diploma de agraciamento. Os agraciados têm direitos previstos no artigo 37.º e seguintes do Decreto-Lei actualmente vigente e os deveres consignados no artigo 44.º (como defender e prestigiar Portugal em todas as circunstâncias e regular o seu procedimento, público e privado, pelos ditames da honra). XII – 3 Desta resenha completada, se necessário, pelo exame mais detalhado dos referidos diplomas, emerge uma ideia segura: Na concessão das ordens honoríficas está presente, primacialmente, o valor imaterial da distinção conferida ao agraciado. A redacção dos referidos artigos 1.º, o demais constante de vários outros preceitos, tudo até corroborado pelo ataque de que foram alvo nos primórdios da República e da Revolução do 25 de Abril, encerra, necessariamente, a ideia de distinguir pessoas, de as afastar do comum das outras. Mais emergindo daí, que as insígnias, distintivos ou condecorações valem enquanto elementos da distinção acabada de referir. Os direitos a estas inerentes, mormente o direito de propriedade que passa a assistir ao agraciado, deve ser considerado obnubilado pelo contexto, muito mais vasto, do que o correspondente à materialidade deles. Decerto que, ou pelo decurso do tempo, com concomitante esquecimento, ou por outra razão, pode perder relevância o agraciamento, passando a assumir foros de autonomia, os ditos objectos e vindo, então, ao de cima, o seu valor enquanto tais, nomeadamente o seu valor de troca. Em vendas de antiguidades, p. ex., podem-se comprar “condecorações” sem se saber sequer quem foi o condecorado. Vale ali apenas o valor venal ou de colecção. No nosso caso, não teve lugar qualquer desligamento entre as condecorações (em sentido material) e as distinções que foram concedidas a PB. Com a entrega, o réu colocou-as num lugar próprio, (uma vitrine à vista de toda a gente), integrando uma colecção particular de objectos, valiosos ou não, ligados à vida de gente famosa. E a autora pretende-as, não para usufruir do seu valor material, ou para as expor em qualquer exposição de objectos de ourivesaria, mas para as fazer exibir no Museu do Teatro. Ali não estarão, essencialmente, peças de ouro e outros metais valiosos, mas antes, nelas, estará a memória da grande actriz que foi PB. Cremos, então, que a presente causa não poderá ser resolvida com recurso às regras próprias da propriedade, da posse, da sucessão em geral, do comodato ou de outras afins. Louvamo-nos, antes, no pensamento de Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, I, Tomo III, 180) já, por sua vez, recolhido de Paulo Cunha, de que os títulos honoríficos integram direitos de personalidade. Assim como no de Capelo de Sousa (O Direito Geral de Personalidade) que, depois de considerar que o artigo 50.º, n.º2 do Código de Registo Civil admite, nos actos de registo, a referência aos títulos honoríficos, fundamentalmente, aos relativos às ordens honoríficas (página 251, nota de pé de página 574), escreve, agora a páginas 301: “Entre os bens mais preciosos da personalidade moral tutelada no artigo 70.º Código Civil figura também a honra, enquanto projecção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes da sua mera pertença ao género humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esforço pessoal. Repare-se que o bem da personalidade ora referido reside na aludida projecção e de certo modo na respectiva titularidade.” Para, novamente em nota de pé de página, esclarecer: “Projecção essa que, partindo do ser e do comportamento do indivíduo alcança uma intelecção e uma atitude comportamental sociais de respeito, de apreço, por vezes objectivada, v.g. em prémios, medalhas, diplomas, ordens e condecorações, pese embora a relatividade destes símbolos.” É, pois, nos direitos de personalidade que temos de nos situar. XIII – Não sem algumas dúvidas, diga-se. Nos termos do artigo 71.º, n.º1, os direitos de personalidade gozam de protecção depois da morte do seu titular, mas não se concebe que surjam depois da morte. Como refere Menezes Cordeiro (agora a páginas 78), “os direitos de personalidade correspondem a aspectos específicos de uma pessoa, efectivamente presentes e susceptíveis de serem disfrutados pelo próprio… o bem de personalidade opera como algo de “egoísta” ou “introvertido”. Ora, como vimos em XII – 2, e, no diploma vigente, expressamente, a lei permite o agraciamento a título póstumo. Não cremos ser este argumento decisivo para o afastamento da posição que tomámos. O agraciamento em vida não é, por natureza, igual ao feito a título póstumo. Os deveres e direitos que assistem ao agraciado, não têm sentido neste segundo caso. Pode-se, então, a nosso ver, incluir, nos direitos de personalidade, os agraciamentos havidos em vida e deixar de fora os levados a cabo a título póstumo. O regime jurídico destes poderá, então, corresponder, na medida em que isso for possível, ao daqueles, não por integração no conceito, mas por analogia. XIV – Outro problema reside na constatação de que o enquadramento dos títulos honoríficos, nomeadamente das ordens honoríficas, em qualquer dos direitos de personalidade em especial previstos no nosso código levanta dúvidas. Menezes Cordeiro, no lugar apontado, quere - os no direito à identidade ou, recolhendo ainda a terminologia de Paulo Cunha, na vertente deste, consistente no direito à individualização e Capelo de Sousa aponta, primacialmente, para a integração no direito à honra. Se tiverem notoriedade, poder-se-ia considerar – como pretende o primeiro daqueles Ilustres Autores, na referida página 180 – por interpretação extensiva, no regime do pseudónimo (artigo 74.º). Seria duvidosa tal inclusão, mas ficam de fora os casos – como o nosso – em que não se provou a notoriedade. Seja como for, não importa aqui tomar posição quanto à opção por um ou outro dos direitos de personalidade especiais, quer porque nada impede a integração em mais do que um, quer porque, se denegada a essa integração, seria de considerar a figura do direito geral de personalidade, que a maioria admite (veja-se uma enumeração em Pedro Vasconcelos, Direito de Personalidade, 62) e que já foi admitida por este Tribunal no Ac. de 27.6.1995 (BMJ 448, 378) e pelo Tribunal Constitucional (Ac. de 18.1.1984, no BMJ 340, 177). XV – PB faleceu e, com o falecimento, acrescentaram-se algumas questões. Não se tratou dum agraciamento a título póstumo, pelo que não valem aqui as considerações que fizemos em XIII. Trata-se antes de saber qual o regime jurídico post mortem. Nem, com a morte, passaram a deixar de ter sentido ou relevância os agraciamentos (verdadeiramente, até “As árvores morrem de pé…”), caso em que passariam as condecorações a valer apenas como objectos materiais. Pelo contrário. Com o decesso, cessou a personalidade jurídica dela e gerou-se, necessariamente, um fenómeno sucessório, mas cujas regras não são as das sucessões em geral (assim Galvão Teles, Direito das Sucessões, 63). Valem, antes, as regras do artigo 71.º, com as suas discussões sobre o que verdadeiramente tutelam. É certo que o preceito está redigido – como a epígrafe refere – para os casos de ofensa à memória de pessoa falecida. Com extensão, visto o artigo 71.º, aos casos de ameaça de ofensa. Não cremos, todavia, que se deva entender, a partir daí, que a tutela post mortem dos direitos de personalidade só abranja os casos de pura ofensa ou ameaça de ofensa. Esta tutela post mortem teve como referência inicial o célebre processo relativo às fotografias do cadáver de Bismark e, logo então, se tutelaram os “sentimentos jurídicos naturais” dos familiares, não se situando a questão na ofensa à memória do falecido ou ameaça dela que as fotografias em si não encerravam (cfr-se Menezes Cordeiro, ob. e vol. citados, 194 e 458). Entenda-se o preceito como criador dum bem autónomo, consistente na memória do falecido ou como consubstanciador de direito dos vivos, sempre as razões que permitem às pessoas neles referidas reagir contra a ofensa ou ameaça de ofensa, valem também para que tais pessoas disponham das condecorações com que o falecido foi agraciado, enquanto estas forem encaradas como símbolos do agraciamento. É inócuo, pois, que o réu as tenha guardado com especial cuidado e intenção, não se perfilando qualquer possibilidade de ofensa à memória da agraciada. XVI – Quanto ao acto de entrega das condecorações, vale, assim, o artigo 81.º, mormente o regime de livre revogabilidade do n.º2. A filha da agraciada entregou as condecorações a terceiro, limitando a protecção post mortem do direito de personalidade, mas esta limitação voluntária é sempre revogável. Compreende-se, aliás, bem esta disposição, assim interpretada: a recordação dos antepassados, nomeadamente dos que se distinguiram, pode, numa fase ou para uns, ser pouco ou nada relevante, mas ter, posteriormente, para outros ou até para os mesmos, importância merecedora de tutela que o direito não deve ignorar. Não cabem aqui as regras da posse, da usucapião, do comodato ou outras situadas no mesmo plano. XVII – Face a todo o exposto, ainda que com fundamentação diferente da da Relação, nega-se a revista. Custas pelo recorrente. Lisboa, 31 de Março de 2009 João Bernardo (relator) Oliveira Rocha Oliveira Vasconcelos |