Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1746/21.5YRLSB-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
ESCRITURA DECLARATIVA
UNIÃO DE FACTO
OFENSA DA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL DO ESTADO PORTUGUÊS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2021
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.A ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira, que tem por objeto uma sentença homologatória de escritura declarativa de união de facto, é meio processual inadequado para preenchimento do requisito legal previsto no art. 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81 de 3 de outubro), para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa, uma vez que aí se pressupõe que deve ser instaurada ação no tribunal cível de primeira instância, contra o Estado Português, num processo que pressupõe a demonstração judicial dos factos em que se estriba o pedido, com amplo contraditório, o que não se compagina com a finalidade e tramitação próprias do processo previsto nos arts. 978.º e ss do CPC.

II.Sendo um dos requerentes casado e não separado judicialmente de pessoas e bens, circunstância que, na ordem jurídica portuguesa impede que a situação de união de facto produza efeitos (art. 2º, al. c) da Lei nº 7/2001, de 11-05), a revisão e confirmação da sentença revidenda ofenderia a ordem pública internacional do Estado Português (art. 980º, al. f) do CPC).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.–Relatório


A, português e brasileiro, e B, brasileira intentaram a presente ação de revisão de sentença estrangeira, pedindo a confirmação da sentença de homologação que teve por objecto a escritura pública de união estável que outorgaram.

Para tanto alegam[1], em síntese, que outorgaram “escritura de declaração de união estável” e posteriormente requereram a homologação judicial da mesma escritura,  tendo sido proferida sentença homologatória.

A instâncias do Tribunal vieram esclarecer que a propositura da presente ação visa a aquisição da nacionalidade portuguesa, nos termos previstos no art. 3º, nº 3 da Lei da Nacionalidade[2].

2.–Questão a decidir
As questões a decidir consistem em verificar se os autores dispõem de interesse em agir e, em caso afirmativo, se se encontram demonstrados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação do ato de direito estrangeiro que constitui objeto da presente ação.

3.–Os factos

3.1.- Factos provados
Com interesse para a decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1-O requerente A nasceu em 30-06-1981 e é filho de João ..... e de Júlia ......
2-Do assento de nascimento do requerente A consta, por averbamento, que o mesmo “adquiriu a nacionalidade portuguesa, nos termos do artigo 1º, nº 1, al. c), da Lei nº 37/81, de 3 de Outubro (…)”.
3-No dia 27-01-2001, em Tatuapé, estado de São Paulo, Brasil, o requerente A casou com Andreia .......  .
4-Em 08-04-2016 os requerentes A e B compareceram perante escrevente em funções no 28º Tabelião de Notas da referida cidade, e celebraram a “escritura de declaração de união estável” cuja cópia certificada se acha a fls. 28;
5-Da “escritura de união estável” referida em 4- consta que os requerentes declararam que “(…) mantêm relação de convivência pública, contínua, e duradoura, estabelecida com o objectivo de constituição de família, desde 19 de fevereiro de 2011, da qual não houve filhos, contribuindo ambos para a manutenção do lar, regendo-se a relação como entidade familiar para todos os efeitos de direito, sendo o domicílio do casal na Rua ..... de ..., nº ...., ..... ....., São Paulo – SP.”
6-Os requerentes intentaram no Centro Judiciário de Solução de Conflitos de Cidadania junto do Foro Central Cível da Comarca da capital do Estado de São Paulo um procedimento de mediação pré-processual, mediante requerimento datado de 19-02-2021, no qual expuseram o que segue:
“Os requerentes B (…) e A (…) vêm (…) DECLARAR que desde 19 de fevereiro de 2011 até à presente data, residem juntos e mantêm uma convivência pública e contínua, estabelecida com o intuito de constituição de família, fundada no mútuo respeito, lealdade, e assistência, caracterizando assim uma união estável e solicitam a homologação do presente acordo.”
7-No âmbito do procedimento referido em 6-, que recebeu o nº 1062926-59.2021.8.26.0100, em 25-06-2021 foi proferida sentença com o seguinte teor:
“HOMOLOGO, por sentença, o acordo a que chegaram as partes, para que produza seus jurídicos e legais efeitos, julgando extinto o expediente (...).
A decisão transita em julgado nesta data, uma vez que todas as partes concordam com o teor do acordo homologado.”

3.2.- Factos não provados
Inexistem.

3.3.-Motivação
A demonstração dos factos provados resultou dos seguintes documentos autênticos (juntos com os requerimentos com as referências nºs 547267, de 02-11-2021,  e 548977/40420289 de 10-11-2021)[3]:
- Certidão eletrónica do assento de nascimento do requerente Demetrius, onde constam averbamentos relativos à aquisição da nacionalidade portuguesa e ao seu casamento - fls. 39 v.-40;
- Certidão da “Escritura de união estável” – fls. 28;
- Certidão do procedimento de mediação pré-processual – fls. 31 a 33-

4.–Os factos e o direito

4.1.- Do processo de revisão de sentença estrangeira
Conforme se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2011 (Paulo Sá), p. 987/10.5YRLSB[4], “O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se basicamente no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal. O que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz a certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Ou seja, desde que o tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa”.

Trata-se, pois, de uma ação de simples apreciação com processo especial.

Nos termos do disposto no art. 980º do CPC, “para que a sentença seja confirmada é necessário:
a)-Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b)-Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c)-Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d)-Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e)-Que o réu tenha sido regularmente citado para ação nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f)-Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.”

Estabelece o art. 983º, nº 1, do CPC que: “O pedido só poder ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696º.” Por sua vez, o art. 984º determina que “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.”

Ora, como bem salienta o STJ no seu acórdão de 21-02-2006 (Oliveira Barros), p. 05B4168, o requerente está dispensado de fazer prova direta e positiva dos requisitos das als. b) a e) do art. 980º.
Assim, se em virtude da análise dos autos, ou por conhecimento decorrente do exercício das suas funções, o tribunal não apurar a falta dos mesmos, presume-se que existem, não podendo o tribunal negar a confirmação quando, por falta de elementos, lhe seja impossível concluir se os requisitos dessas alíneas se verificam ou não.
A prova de que não se verificam os requisitos das alíneas b) a e) do artigo 980º compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida, considerar-se que os mesmos se mostram preenchidos.[5]

No que respeita ao requisito da alínea a), o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do ato jurídico postulado na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na aceção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte a decisão revidenda, ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença.[6]

No que tange ao requisito da alínea f) (ordem pública internacional do Estado Português), os princípios da ordem pública internacional do Estado Português são princípios enformadores e orientadores, fundantes da própria ordem jurídica portuguesa, que de tão decisivos que são, jamais podem ceder. Por outro lado, tem-se em vista o resultado concreto da decisão, ou seja, o dispositivo da sentença e não os seus fundamentos.[7]

A ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efetuada por um sistema jurídico estrangeiro. Tal significa que só quando o resultado dessa sentença choque flagrantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico é que não se deverá reconhecer a sentença estrangeira.[8]

Conforme se refere no ac. RC de 03-032009 (Arcanjo Rodrigues), p. 237/07.1YRCBR, «A lei (…) não define o conceito de "ordem pública internacional", tratando-se de um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística.
O que releva, para o efeito, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indireta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.
Por conseguinte, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português terá que ser necessariamente aferido, não pelo conteúdo da decisão e o direito nela aplicado, mas pelo resultado do reconhecimento, o que implica um "exame global".
Não basta, por isso, que a solução dada ao caso pelo direito estrangeiro seja divergente da do direito interno português, exigindo-se que o resultado seja "manifestamente incompatível" com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (cf. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol., p. 584 e segs., vol. III, p.368 e ss.), MARQUES DOS SANTOS, Aspetos do novo Código de Processo Civil, "Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras", p. 140).”

4.2.-Da revisão e confirmação das escrituras de declaração de união de estável e de sentenças homologatórias proferidas em procedimentos de mediação pré-processual de reconhecimento de união estável
No caso vertente está em causa o reconhecimento da situação de união de facto entre os requerentes, que residiam no Brasil e atualmente residem em Portugal, situação essa reconhecida através de “Escritura declaratória de união estável“ e de sentença homologatória proferida no âmbito de “procedimento de mediação pré-processual de reconhecimento de união estável”, nos termos previstos no Direito brasileiro.
Neste contexto, tem sido amplamente debatida na jurisprudência a questão de saber se a mencionada escritura está sujeita ou não ao processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira previsto no art. 978º e ss. do CPC.

Este Tribunal e secção já teve oportunidade de se pronunciar sobre tal questão em dois acórdãos proferidos em 13-04-2021, p. 424/21.0YRLSB, e em 09-11-2021 ps. 1900/21.0YRLSB e 2016/21.4YRLBS (Carlos Oliveira), que os aqui relator e 1ª adjunta subscreveram nas qualidades de 1º e 2ª adjunta, respetivamente, e cuja fundamentação seguiremos muito de perto e por vezes mesmo textualmente.

Como salientou o ac. de 12-07-2005 (Moitinho de Almeida), P. 05B1880, reportando-se ao art. 1094º do CPC de 1961, que corresponde ao art. 978º do CPC atualmente em vigor, “o art. 1094º do CPC ao referir-se a decisões proferidas por tribunais estrangeiros não elege tanto como critério o órgão de que promana a decisão, mas antes a natureza da decisão, que, se for definitiva e tiver força de caso julgado, está sujeita a revisão e confirmação”. E no mesmo sentido se pronunciou o STJ de 25-06-2013 (Granja da Fonseca), p. 623/12.5YRLSB.S1. Portanto, o facto de a decisão revidenda não ser uma sentença não obsta, por si só, à procedência da presente ação.

Contudo, outros obstáculos se apresentam à procedência da presente causa.

A lei brasileira atribui à “união estável” um conjunto de efeitos jurídicos que vão muito para lá do que é estabelecido na realidade nacional. A este propósito, destaca-se o Código Civil brasileiro[9], refere-se em diversos preceitos legais a esta figura, dedicando-lhe especificamente alguns artigos no Livro IV do Direito de Família, a saber:
Art. 1.723.º: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1º- A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2º- As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável”.

Art. 1.724.º: “As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos”.

Art. 1.725.º: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.

Art. 1.726.º: “A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil”.

Art. 1.727.º: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”.

No entanto, não são estes efeitos os que estão em causa numa ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira. O que releva nestas ações são os efeitos jurídicos que as partes pretendem obter na nossa ordem jurídica pelo reconhecimento da própria situação jurídica de “união estável”, que só pode ser equiparada no direito português, pela sua intuitiva semelhança, à situação jurídica da “união de facto”. O mesmo se dirá relativamente a uma sentença homologatória de reconhecimento de união estável que tenha por objeto apenas as declarações das duas pessoas que vivem em união de facto.

Ora, a nossa lei não atribui à “união de facto” relevância jurídica para a constituição de relações de família ou para efeitos sucessórios.

A “união de facto” tem relevância no nosso ordenamento jurídico, mas essencialmente como “mera situação de facto”, suscetível de prova e função de cada instituto jurídico para o qual a mesma assume específica relevância efetiva.

Não existe em Portugal um estado civil para o “unido de facto”, não podendo invocar-se essa situação como “impedimento matrimonial” (v.g. Arts. 1600.º e ss do C.C.), nem sequer como impedimento para a constituição doutras uniões de facto. A admitir-se semelhante efeito tal constituiria um limite inaceitável ao direito constitucional de constituir família, sob a tutela do Estado (art. 67.º da C.R.P.) e, bem assim, ao seu inverso, a saber, o direito de não constituir família.

Em todo o caso, como referido, existem situações em que a união de facto assume relevância, não propriamente como “estado”, mas como “situação de facto” a que são atribuídos certos efeitos jurídicos. Sucede que, essas situações não podem estar compreendidas no âmbito específico das ações de revisão de sentença estrangeira.

Por um lado, porque os factos não estão compreendidos pela força do caso julgado da sentença (revidenda), como bem assinalava ANTUNES VARELA[10]. Por outro, porque o objeto das ações de revisão e confirmação de sentença estrangeira é diverso e centra-se na apreciação sobre a verificação de certos pressupostos formais que não incidem sobre a veracidade dos factos provados na sentença objeto de revisão.

Com efeito, como bem expôs no STJ de 21-03-2019 (Ilídio Sacarrão Martins), p. 559/18.6YRLSB “No caso dos autos, os requerentes apresentaram na petição inicial a Escritura Pública Declaratória de União Estável lavrada no Cartório do ...º Ofício de Notas da Tabeliã CC, perante entidade com competência para o efeito, segundo a lei brasileira.

Dispõe o artigo 1723º do Código Civil brasileiro, que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

O artigo 978º do Código de Processo Civil estabelece a necessidade da revisão nos seguintes termos:
1-Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.
2-Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.
«Sobre a amplitude do conceito de decisão para efeitos deste processo especial, Luís de Lima Pinheiro escreveu: “por “decisão” entende-se qualquer ato público que segundo a ordem jurídica do Estado de origem tenha força de caso julgado. Há que aferir perante o Direito do Estado de origem se a decisão foi proferida por um órgão público e se tem força de caso julgado”.
O acórdão do STJ de 25-06-2013 - a propósito da escritura pública prevista no artigo 1124º-A do Código de Processo Civil Brasileiro (Lei nº 5869, de 11-01-1973), através da qual se pode realizar a separação consensual dos cônjuges, e prevista no Artº 1580º do Código Civil Brasileiro -, decidiu que “os outorgantes não declaram a dissolução do vínculo conjugal. Pedem-na e o tabelião (notário) não se limita a testar as suas declarações, declara (decide) a dissolução, depois de verificados e preenchidos os requisitos legais”.

O caso dos presentes autos é diferente. Os requerentes não obtiveram na escritura uma decisão homologatória por parte do tabelião que possa servir de base à presente revisão. Apenas declararam que “vivem como se casados fossem desde 15.03.1992, convivência que se mantém duradoura, pública e contínua”.

Por conseguinte, estamos perante um simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, ou seja, de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal, pelo que a mencionada escritura invocada pelos requerentes, fica excluída do processo de revisão de sentença estrangeira - artigo 980º nº 2 do CPC.

Num caso muito similar ao dos presentes autos, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 28-02-2019 decidiu:
“O direito brasileiro não exige uma decisão judicial para o reconhecimento da união de facto e o direito português não exige que a prova seja feita por uma declaração da junta de freguesia competente. Em todo o caso, a prova feita por uma declaração da junta de freguesia não tem uma força superior à de uma escritura pública.

Como escrevem os Professores Francisco Manuel Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “A prova da união de facto é normalmente testemunhal; mas a possibilidade de prova documental não deve excluir-se.

Interpretando com largueza o termo vida no artº 34º nº 1, do Decreto-Lei nº 135/99, de 22 de Abril, que regula o modo como “os atestados de residência, vida e situação económica dos cidadãos” devem ser passados pelas juntas de freguesia, pode admitir-se que a junta de freguesia da residência dos interessados passe atestado comprovativo de que uma pessoa vive ou vivia em união de facto com outra. […]

Não se tratando, porém, normalmente, de facto atestado “com base nas perceções da entidade documentadora” (artº 371º nº 1, C.Civ), o documento não faz prova plena, podendo provar-se que o facto não é verdadeiro, pois a união de facto não existiu ou não existiu durante determinado período. O documento prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação.

Entre a força probatória da declaração emitida pela junta de freguesia e da escritura pública há uma relação de semelhança — como a declaração emitida pela junta de freguesia, a escritura “prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”.

Terminando, como no referido acórdão de 28.02.2019, “nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem (muito menos) a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o ato composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” - com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada / revista”.»

Em sentido idêntico se havia pronunciado o ac. STJ 28-02-2019 (Nuno Pinto de Oliveira), p. 106/18.0YRCBR.S1 (citado no primeiro) e posteriormente o ac. STJ 09-05-2019 (Nuno Pinto de Oliveira), p. 828/18.5YRLSB.S1, bem como o ac. STJ 12-11-2020 (Maria do Rosário Morgado), p. 95/20.0YRPRT.S1.
Neste sentido decidiram igualmente os acs. RL 17-10-2019 (Teresa Prazeres Pais), p. 1268/19.4YRLSB-8, e RL 24-10-2019 (António Moreira), p. 1531/19.4YRLSB-2.

Em sentido inverso, admitindo expressamente que uma escritura de união estável outorgada no Brasil pode ser objeto de revisão, no âmbito de processo de revisão de sentença estrangeira, cfr. acs. RL 24-10-2019 (Pedro Martins), p. 2403/19.8YRLSB.L1-2, RL 21-11-2019 (Pedro Martins), p. 1429/19.6YRLSB-2; 11-12-2019 (Luís Filipe Pires de Sousa), p. 1807/19.0YRLSB-7; RL 21-05-2020 (José Maria Sousa Pinto), p. 190/20.6YRLSB, RL 11-02-2021 (Laurinda Gemas), p. 221/21.2YRLSB-2; RL 28-09-2021 (Micaela Sousa), p. 1274/21.9YRLSB-7; bem como os acs. STJ 29-01-2019 (Alexandre Reis), p. 896/18.0YRLSB.S1; RL 28-09-2021 (Micaela Sousa), p. 1274/21.9YRLSB e STJ 08-09-2020 (Jorge Dias), p. 1884/19.4YRLSB.S1.

Nestes dois últimos arestos, o STJ entendeu que numa ação que tem por objeto a revisão e confirmação de escritura declarativa de união estável não cabe à Relação apreciar se a sentença que proferir pode ou não constituir instrumento bastante para obtenção da nacionalidade portuguesa.

Com todo o respeito que esta posição nos merece, dela discordamos por considerarmos que nas ações de simples apreciação a finalidade visada com a propositura da ação desempenha um papel preponderante.

Com efeito, nos termos do disposto no art. 10º, nº 2 do CPC, as ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação, ou constitutivas.

Por seu turno, estabelece a al. a) do nº 3 do mesmo preceito que as ações de simples apreciação “têm por fim” “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto”.

Sobre as ações de simples apreciação já dizia ALBERTO DOS REIS[11]:
“[n]a ação de simples apreciação não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica […]”

Por seu turno, RODRIGUES BASTOS[12] acrescentava que “as ações de simples apreciação visam unicamente a obter a declaração de existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
(…)
As ações desta espécie destinam-se, pois, a acabar com a incerteza, obtendo uma decisão que declare se existe ou não certa vontade da lei, ou se determinado facto ocorreu; com isso se satisfaz; as respetivas decisões não são exequíveis. A incerteza a que nos referimos deve ter carater objetivo; não interessa a simples dúvida existente no espírito do Autor, desde que não se projete no exercício normal dos seus direitos.”

Na mesma sequência, dizia MANUEL DE ANDRADE[13]:
«Não basta a dúvida subjetiva do demandante ou o seu interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais. Importa que a incerteza resulte de um facto exterior; que seja capaz de trazer sério prejuízo ao demandante, impedindo-o de tirar do seu direito a plenitude das vantagens que ele comportaria (…)”, podendo tal facto exterior “ser a negação de um direito do demandante (direito de propriedade…).”»

Finalmente, acrescenta PAES DO AMARAL[14]: “A dúvida tem que ser objetiva e não subjetiva. Tem de ser fundamentada em factos concretos, não sendo suficiente que exista apenas na mente do autor. Por outro lado, não basta que a ação tenha por objeto a discussão de uma questão de cariz meramente académico.
[…]
A gravidade da dúvida depende do prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza pode gerar.”

Por outro lado, referem ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO DA NÓVOA[15]: “(…) não basta qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza  acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na ação.
(…)
(…) nas ações de simples apreciação a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objetiva e grave.
Será objetiva a incerteza que brota de factos exteriores, de circunstâncias externas e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor. As circunstâncias exteriores geradoras de incerteza podem ser da mais variada natureza, desde a afirmação ou negação dum facto, o ato material de contestação dum direito, a existência dum documento falso, até a um ato jurídico (…) etc.
A gravidade da dúvida medir-se-á pelo prejuízo(material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor.
(…)
Só quando a situação de incerteza, contra a qual o autor pretende reagir através da ação de simples apreciação, reunir os dois requisitos postos em destaque: a objetividade, de um lado; a gravidade, do outro – se pode afirmar que há interesse processual.”

Ou seja: Qualquer ação de simples apreciação pressupõe uma situação de dúvida ou incerteza. No caso das ações de revisão de sentença estrangeira, tal pressuposto tem uma natureza particular, na medida em que o que as motiva não é propriamente a dúvida ou incerteza jurídicas, mas antes a necessidade de revisão ou confirmação da sentença emitida por tribunal estrangeiro, para que a mesma possa produzir efeitos no nosso país.

Mas tal pressupõe a definição e ponderação dos efeitos jurídicos que o requerente pretende obter na ordem jurídica nacional.

Nesta conformidade, ponderando os fundamentos de ambas as teses acima expostas, cremos ser de acolher o primeiro entendimento, por nos convencerem totalmente os argumentos em que se estriba, os quais se aplicam ao caso concreto.

Com efeito, afigura-se-nos de particular importância especificar qual o interesse em agir das partes neste tipo de ações, pois por regra, estando em causa o reconhecimento duma situação de “união de facto”, não vislumbramos que outra eficácia jurídica própria terão as declarações prestadas perante o notário, para além de servirem de mero meio de prova da existência duma mera situação de facto, à qual a nossa lei também pode reconhecer certos efeitos jurídicos, para certos e determinados casos aí concretizados.

E a mesma conclusão se impõe perante a sentença homologatória proferida no âmbito de procedimento pré-processual de conciliação.

No caso dos presentes autos os requerentes referem expressamente, a presente ação foi intentada com a finalidade de habilitar a requerente Bruna a requerer a atribuição da nacionalidade portuguesa, nos termos do disposto nos arts. 3º, nº 3 da Lei da Nacionalidade[16], e 14º, nº 2 do Regulamento da Nacionalidade[17].

Estas disposições legais estabelecem expressamente que o estrangeiro que coabite com cidadão nacional em condições análogas às dos cônjuges pode requerer a atribuição da nacionalidade portuguesa, desde que obtenha previamente o reconhecimento judicial da situação de união de facto.

Esse reconhecimento judicial da situação de união de facto para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa só pode fazer-se através de ação judicial a interpor no tribunal cível (de primeira instância), contra o Estado Português.

Uma tal ação judicial pressupõe a demonstração judicial dos factos em que se estriba o pedido, com amplo contraditório, razão pela qual a presente ação de revisão de sentença estrangeira não constitui o meio próprio para atingir tal desiderato. Neste sentido cfr. acs. RL 25-10-2018 (Adeodato Brotas), p. 25835/17.1T8LSB.L1-6, RP 18-12-2018 (Ana Paula Amorim), p. 184/18.1YPRT, e RL 25-05-2021 (Isabel Fonseca), p. 398/21.7YRLSB-1.

A esta luz, e considerando que os requerentes declaram expressamente, no requerimento inicial, que a propositura da presente ação se destina a instaurar processo de aquisição da nacionalidade junto da Conservatória de registo civil, verifica-se que a presente ação é absolutamente inidónea à prossecução da finalidade que determinou a sua propositura.

Acresce que à luz da ordem jurídica portuguesa o requerente é casado, não se encontrando sequer separado de pessoas e bens[18].

Ora, nos termos do disposto no art. da Lei nº 7/2011, de 11-05[19], a situação de união de facto só pode produzir efeitos na ordem jurídica nacional se as pessoas que vivem em união de facto forem solteiras, viúvas ou, sendo casadas, se achem separadas de pessoas e bens.

Tal significa que à luz da ordem jurídica portuguesa, não pode ser reconhecida a situação de união de facto dos requerentes, o que significa que também por este motivo a revisão da sentença brasileira que homologou a escritura de união estável que outorgou com a requerente ofenderia a ordem pública internacional do Estado Português e por si só, obsta à à revisão e confirmação da sentença revidenda – art. 980º, al. f) do CPC.

Termos em que se conclui pela improcedência da presente ação.

5.–Das custas
Face à total improcedência da presente ação, as custas serão suportadas pelos requerentes - art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
Não obstante, e uma vez que a forma de processo especial em que nos movemos não comporta julgamento, acham-se os requerentes dispensados do pagamento da segunda prestação da taxa de justiça - art. 14º-A, al. b) do Regulamento das Custas Processuais.

6.–Decisão
Pelo exposto, acórdão os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar esta ação totalmente improcedente.
Custas pelos requerentes, com dispensa do pagamento da segunda prestação da taxa de justiça. [20]


Lisboa, 07-12-2021



Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa (votei  o acórdão, pelas razões que adiante se expõem)

Votei o acórdão, porquanto resulta dos factos apurados que, à luz da ordem jurídica portuguesa, o requerente é casado, o que impede que a situação de união de facto possa produzir efeitos na ordem jurídica nacional.
Não acompanho, porém, a orientação que fez vencimento quanto à falta de interesse em agir dos requerentes face à inviabilidade deste meio processual para efeitos de obtenção da nacionalidade portuguesa, dado que, conforme sustentei no acórdão proferido em 28 de Setembro de 2021, no processo n.º 1274/21.9YRLSB, de que fui relatora, uma escritura pública de declaração de união estável outorgada no Brasil pode, a meu ver, ser objecto de um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos regulados pelo artigo 978º e seguintes do Código de Processo Civil, sem que na aferição da verificação dos pressupostos da sua confirmação deva ser atendida a probabilidade de a finalidade última dos requerentes ser a aquisição da nacionalidade portuguesa por um deles, posto que venha apenas pedida a revisão e confirmação da escritura, pois, ainda que possa não ter utilidade mediata ou imediata para os requerentes, não há razões para não admitir que vigore em Portugal.
Micaela Sousa




[1]A exposição dos factos que sustentam o pedido e a causa de pedir não foi feita de forma articulada, desrespeitando por isso o disposto no art. 147º, nº 2 do CPC.
[2]Vd. requerimento com a refª 548977/40420289, de 10-11-2021. A afirmação reporta-se, obviamente, à requerente Bruna, visto que o requerente Demetrius já é cidadão português.
[3]Os documentos emitidos por autoridades brasileiros mostram-se devidamente autenticados mediante aposição da apostilha a que se reporta a Convenção de Haia de 05-10-1961 relativa à supressão de formalidades de autenticação de documentos oficiais emitidos em país estrangeiro.
[4]Todos os acórdãos citados na presente decisão se acham disponíveis para consulta em http://www.dgsi.pt e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/. A versão digital da presente decisão contém hiperligações para os acórdãos nela citados.
[5]Neste sentido cfr. ac. STJ de 12-07-2005 (Moitinho de Almeida), p. 05B1880.
[6]Ac. STJ de 29-03-2011 (Fonseca Ramos), p. 214/09.8YRERVR.S1.
[7]Cf. acs. RL de 14-11-2006 (Rosa Ribeiro Coelho), p. 3329/2006-7; e de 13-07-2010 (Rui da Ponte Gomes), p. 999/09.1YRLSB-8.
[8]Cfr. ac. RC de 18-11-2008 (Sílvia Pires), p. 3/08.7YRCBR. Sobre a ordem pública internacional, cf. ainda acs. STJ de 21-02-2006 (Oliveira Barros), p. 05B4168; de 26-05-2009 (Paulo Sá), p. 43/09.9YFLSB, e de 23-10-2014 (Granja da Fonseca), p. 1036/12.4YRLSB.S1.
[9]Aprovado pela Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
[10]“Manual de Processo Civil”, 2.ª Ed., Coimbra Editora, 1985, p. 716
[11]“Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, pp. 21-22.
[12]“Notas ao Código de Processo Civil”, vol. I, 3ª edição, Almedina, p. 51
[13]“Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, p. 81
[14]“Direito Processual Civil”, ´15ª edição, reimpressão 2020, p. 136.
[15]“Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª Ed., 1985, pp. 186-187.
[16]Lei nº 37/81, de 03-10, alterada pela Lei n.º 25/94, de 19-08; pelo DL n.º 322-A/2001, de 14-12; pela Lei Orgânica n.º 1/2004, de 15-01; pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04; pela Lei n.º 43/2013, de 03-07; pela Lei Orgânica n.º 1/2013, de 29-07; pela Lei Orgânica n.º 8/2015, de 22-06; pela Lei Orgânica n.º 9/2015, de 29-07; e pela Lei Orgânica n.º 2/2018, de 05-07.
[17]Vd, requerimento com a refª 548977/40420289, de 10-11-2021, fls. 37 ss.
[18]Ponto 3- dos factos provados.
[19]Alterada pelas Lies nºs 23/2010, de 30-08; 2/2016, de 29-02; 49/2018, de 14-08; e 71/2018, de 31-12.
[20]Decisão produzida por meios informáticos, com aposição de assinatura eletrónica – vd. certificado aposto no canto superior
esquerdo da primeira página.