Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
398/21.7YRLSB-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: SENTENÇA DE HOMOLOGAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA
REVISÃO E CONFIRMAÇÃO
LEI DA NACIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA-RECLAMAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.–Não incorre em nulidade, por vício de excesso de pronúncia, a sentença proferida cujo segmento do dispositivo, confirmando a sentença estrangeira que homologou a união estável declarada pelas requerentes, ressalvou que, relativamente a uma das requerentes, de nacionalidade brasileira, “a mesma não tem reflexos para efeitos de aquisição de nacionalidade portuguesa”.

2.–Indicando as requereres, expressamente, na petição inicial, que com a instauração da ação de revisão de sentença estrangeira têm em vista a aquisição da nacionalidade portuguesa por uma das requerentes, a instauração do presente processo especial não pode ser configurada nesses termos, que mais não traduzem senão uma via expedita de contornar as exigências que o legislador nacional impõe em matéria de aquisição da nacionalidade portuguesa, porquanto, pela própria natureza do processo especial de revisão, o reconhecimento das sentenças estrangeiras é feito por via do exequatur, traduzindo um controlo essencialmente formal, que é exatamente o inverso do que o legislador pretendeu com a Lei da Nacionalidade.

3.–Como resulta do art. 3.º, nº3 da Lei 37/81 de 3 de setembro, exige-se que a averiguação da situação de união de facto “há mais de três anos com nacional português” – requisito para a aquisição da nacionalidade portuguesa – seja feita em ação própria, sendo essa averiguação e apreciação objeto de controlo exclusivamente judicial, não estando sujeita a qualquer intervenção de autoridade administrativa e escapando à vontade das partes, que é ineficaz para produzir o efeito jurídico pretendido.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa.

 
I.RELATÓRIO:


AM e EC, melhor identificadas nos autos, intentaram a presente ação de revisão e confirmação da decisão que “reconheceu a existência de união estável entre as requerentes, com início em 09/04/1999”, ao abrigo do disposto no art. 978.º do CPC, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem.

Notificado nos termos do art. 982º, nº1, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de nada obstar ao deferimento da pretensão formulada.

Em 01-03-2021 proferiu-se decisão sumária, nos termos dos arts. 652.º, nº 1, alínea c) e 656.º, com o seguinte segmento dispositivo:
“Nestes termos, julga-se procedente a pretensão de revisão/confirmação da mencionada sentença, proferida em 14-01-2020, ressalvando-se, no entanto, que a mesma não tem reflexos para efeitos de aquisição de nacionalidade portuguesa pela requerente EC, nos termos supra assinalados.
Custas pelas requerentes.
Fixa-se à ação o valor tributário de 30.000,01€.
Notifique”.

Não se conformando, as requerentes reclamaram para a conferência, concluindo como segue:
“Pelo exposto, se requer que sobre a limitação dos efeitos da decisão proferida recaia um acórdão, submetendo o caso à conferência, a fim de ser declarada a nulidade da ressalva e a decisão produza todos os seus efeitos no ordenamento jurídico português”.
Alegam, para fundamentar esta pretensão, como segue:
1.- Nos presentes autos foi proferida decisão de deferimento da petição inicial, ressalvando-se, no entanto, que a mesma não tem reflexos para efeitos de aquisição de nacionalidade portuguesa pela requerente EC, no entendimento do tribunal, a presente sentença de confirmação/revisão não serve nem traduz qualquer reconhecimento judicial da situação de união de facto.
2.- Contudo, e salvo devido respeito, entendem as requerentes que tal limitação dos efeitos da decisão padece de nulidade, porquanto, efectivamente, a decisão com a referida ressalva ultrapassa o pedido formulado pelas requerentes.
3.- Com efeito, as requerentes têm interesse de confirmar a sentença estrangeira que reconheceu a existência de união estável pelo Tribunal brasileiro, para que se produzam os seus efeitos no ordenamento jurídico português, nomeadamente efeitos fiscais, de proteção social, direitos no trabalho, e. o., inclusive o de aquisição da nacionalidade portuguesa.
4.- Apesar do interesse da requerente EC na aquisição da nacionalidade portuguesa, não é admissível que os pressupostos para este pedido sejam apreciados cumulativamente com os requisitos para a confirmação/revisão da sentença estrangeira in causa. 
5.- Mesmo porque, confirmada/revista a sentença estrangeira que proferiu o reconhecimento da união de facto, caberá à requerente EC requerer, em processo próprio, a aquisição da nacionalidade portuguesa.
6.- Assim, a apreciação dos pressupostos para aquisição da nacionalidade portuguesa é da competência exclusiva da Conservatória dos Registos Centrais, nos termos do art.º 14º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa.
7.- O facto de a Lei da Nacionalidade exigir o reconhecimento judicial da união de facto não impossibilita que este reconhecimento seja realizado no país da residência da requerente e, posteriormente, confirmado/revisto pelo Tribunal português.
8.-Ainda assim, a admissibilidade da sentença confirmada/revista pelo Tribunal Português competirá à Conservatória dos Registos Centrais, nos termos do art.º 41º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa.
9.- Pelo que, em nosso entender, foi desrespeitado o estatuído nos artigos 609º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil, uma vez que a ressalva proferida no despacho, limitando o seu resultado, ultrapassa o pedido da inicial.
10.- No caso sub judice, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2011 (Paulo Sá), Processo n.º 987/10.5YRLSB, “o nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se basicamente no chamado sistema de deliberação, isto é, de revisão meramente formal. O que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz a certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Ou seja, desde que o tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que se proceda a um novo julgamento da causa”.
11.- Estamos, nesta medida, perante uma decisão ultra petitum, dado que, homologa à confirmação/revisão da sentença estrangeira, mas limita os seus efeitos especificamente para aquisição de nacionalidade portuguesa pela requerente EC, por entender que a mesma não cumpre os pressupostos da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro.
12.- Por isso, entendem as requerentes que a decisão que limita a apreciação dos termos em que, porventura, possa vir a ser materializada a pretensão da requerente EC, viola o princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa.
13.- De igual modo, a referida ressalva viola o art.º 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por restringir o gozo à um direito que caberia à requerente vir, a posteriori, pleitear.
14.- Pelo que, entendem as requerentes que a limitação dos efeitos da decisão proferida deve ser anulada, para que se produza todos os seus efeitos no ordenamento jurídico português”.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar, nos termos do art. 652.º, nº3.
 
II.FUNDAMENTOS DE FACTO
As reclamantes não impugnaram o julgamento de facto feito na decisão singular, em que se deu como provada a seguinte factualidade:
1.-AM, nasceu a 7 de março de 1975.
2.-EC, nasceu a 2 de setembro de 1964.
3.-Em 22-10-2019 as requerentes intentaram uma “Ação Declaratória de União Estável Homoafetiva”, junto do Poder Judiciário do Estado do Paraná, Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Foro Regional de Colombo, Vara de Família e Sucessões de Colombo, Processo n.º.
4.- Em 14-01-2020 foi proferida decisão que concluiu como segue:
“Diante do exposto, HOMOLOGO o acordo nos termos da petição do mov. 22.2, e, em consequência, DECLARO a existência de união estável entre AM e EC, com início em 09/04/1999, pelo que julgo extinto o processo com resolução do mérito (art. 487, inciso III, alínea b do CPC”.

III.FUNDAMENTOS DE DIREITO
As reclamantes não questionam o juízo formulado na decisão singular proferida, no que concerne à verificação dos pressupostos para a revisão/confirmação da sentença, questionando apenas o segmento de texto alusivo à ressalva feita.
Ponderando os termos da reclamação, cumpre apreciar se a decisão singular proferida sofre do vício apontado, de nulidade por excesso de pronúncia (art. 615.º, nº1, alínea e), para o que releva desde já lembrar a fundamentação jurídica expressa nessa decisão, que foi a seguinte:
Dispõe o art. 978.º, sob a epígrafe “[n]ecessidade da revisão”, que “[s]em prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada” – nº1; nos termos do nº 2 do mesmo preceito “[n]ão é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa”.
O art. 980.º estabelece os requisitos necessários para a confirmação de sentença estrangeira, que são os seguintes:
– Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
– Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
– Que provenha do Tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses;
– Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a Tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
– Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do Tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
– Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
Daqui decorre que o processo especial em causa, de revisão de sentenças estrangeiras, regulado no Título XIV do novo Cód. de Processo Civil, se aplica a todos os casos em que esteja em causa apreciação alusiva a uma sentença judicial.
Sem prejuízo, temos partilhado o entendimento que o processo regulado nos artigos 978º e seguintes é aplicável à dissolução do casamento por mútuo consentimento, realizada em sede administrativa, mormente por “escritura pública” que, nessa medida, pode ser objeto de confirmação [ [1] ] [ [2] ].
No caso, o que as requerentes pretendem é a confirmação de uma sentença, lendo-se nessa decisão, em sede de fundamentação, que “em 31/08/2013” as requerentes “firmaram escritura pública reconhecendo a união estável”, pelo que se trata, como aliás expressamente consignado na parte dispositiva da sentença aludida, de uma sentença de cariz homologatório.
Assim, a afirmação das requerentes, vertida no art. 5.º da petição inicial de que “[p]or sentença proferida em 14/01/2020 julgou-se procedente a existência de união estável entre as requerentes, com início em 9 de abril de 1999”, não se mostra inteiramente consentânea com a documentação junta aos autos; efetivamente, nesse processo e, mais precisamente, na aludida decisão não se procedeu a qualquer análise ou averiguação sobre a realidade dos factos declarados na referida escritura, limitando-se esse tribunal a constatar que as requerentes formalizaram o acordo consubstanciado na referida escritura, o que significa apenas o reconhecimento de que emitiram perante o notário as declarações dela constantes.

Referem ainda as requerentes, na petição inicial, como segue:
6.-A decisão transitou em julgado em 22 de janeiro de 2020.
7.-As requerentes têm interesse na revisão e confirmação da sentença de reconhecimento da existência de união estável, para que se produza os seus efeitos perante o ordenamento jurídico português.
8.-Posto que, a aquisição da nacionalidade portuguesa pela requerente A, cidadã brasileira, depende do reconhecimento judicial dessa situação, nos termos do art.º 3º, n.º 3 da Lei n.º 37/81, de 03 de outubro”.
Ora, afigura-se-nos que os presentes autos não se coadunam à finalidade assinalada.
Vejamos.
A união de facto vem regulamentada na Lei nº 7/2001, de 11 de maio, que inclui medidas de proteção do casal que vive em união de facto há mais de dois anos. No entanto e ao contrário do que acontece com o casamento, que é um ato registável na Conservatória do Registo Civil – sendo, aliás, o registo obrigatório –, inexiste processo similar relativamente às uniões de facto. Dito de outra forma, se uma/um requerente, que se arroga a nacionalidade portuguesa, solicitar numa Conservatória o Registo Civil o registo da união de facto, esse pedido está inevitavelmente condenado ao fracasso porquanto não estamos perante ato suscetível de registo, como decorre, a contrario sensu, do disposto no art. 1º do Código do Registo Civil, aprovado pelo DL n.º 131/95, de 06 de junho, com sucessivas alterações, sendo a última introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14/08 [ [3] ].

Em suma, no caso em apreço, mesmo admitindo, sufragando nessa medida o entendimento das requerentes, a admissibilidade de confirmação/revisão da mencionada sentença, ainda assim temos por evidente que não é viável a notificação aludida, ou seja, o cumprimento do art. 78º do CRC, pelos motivos apontados.

Por outro lado, aceitando que nada obsta à confirmação/revisão da mencionada sentença, homologatória, afinal, de uma escritura pela qual as requerentes, num outro Estado, acordaram reconhecer a união de facto entre ambas, isto é, que têm um vínculo entre si similar ao casamento, pelo menos para alguns efeitos jurídicos, mormente aqueles que dizem respeito à relação estabelecida inter partes, tal não significa que, com base na presente confirmação/revisão, uma das requerentes se arrogue o direito de adquirir a nacionalidade portuguesa, no caso a segunda requerente, que tem nacionalidade brasileira. Efetivamente, a Lei n.º 37/81, de 03 de outubro, com as várias alterações a que foi sujeita [ [4] ], estabelece requisitos e pressupostos próprios a que as partes estão sujeitas, nomeadamente a ora requerente, de nacionalidade brasileira, estabelecendo o art. 3º da mencionada lei, sob a epígrafe “[a]quisição em caso de casamento ou união de facto”, como segue:
1-O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio.
2-A declaração de nulidade ou anulação do casamento não prejudica a nacionalidade adquirida pelo cônjuge que o contraiu de boa-fé.
3-O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível” [[5]].
Relevando, ainda, o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa aprovado pelo Decreto-lei n.º 237-A/2006, de 14/12 [[6] ], mormente o seu art. 14º [[7]].
Em suma, em matéria de aquisição de nacionalidade portuguesa por parte de uma das requerentes a presente sentença de confirmação/revisão não serve nem traduz qualquer “reconhecimento judicial da situação de união de facto”, para o aludido efeito, ao contrário do que parecem entender as apelantes; é que, como a natureza do presente processo evidencia, o tribunal, nestes autos, exerce mera apreciação tendente à confirmação, mas não aprecia do mérito, de facto e/ou de direito, da pretensão formulada no processo em que é proferida a sentença cuja confirmação é pedida, sentença cujo mérito não é sindicada, a esse nível.
Com esta salvaguarda, entendemos que nada obsta à confirmação/revisão [[8]].
Tendo sido esta a fundamentação jurídica que antecedeu o dispositivo, cuja ressalva é agora objeto de crítica, passa a apreciar-se da invocada nulidade.
Nos termos do art. 615.º, nº1, alínea d), a sentença é nula por excesso de pronúncia que ocorre quando o juiz “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, tendo por contraponto a omissão de pronúncia.
“Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer”, constitui nulidade de sentença quer a falta de apreciação, isto é o “o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão”, quer a apreciação “de causas de pedir não invocadas” quer de exceções não deduzidas e que estejam na exclusiva disponibilidade das partes” [[9]].

Como acontece relativamente a outros vícios suscetíveis de afetar a sentença e que também são cominados com a nulidade, importa, no entanto, não confundir a omissão/excesso de conhecimento com as hipóteses em que o juiz se limita a expor o seu raciocínio, efetuando um juízo valorativo e considerando determinadas “linhas de fundamentação jurídica” [ [10] ]; está, então, em causa, eventual erro de julgamento e não qualquer vício de natureza formal que inquina a sentença”.

No caso, basicamente, as requerentes consideram na sua reclamação que o tribunal, ao decidir, exerceu os seus poderes excedendo o que lhe era pedido/permitido.

Afigura-se-nos que não têm razão.

As requerentes indicam expressamente, na petição inicial, que com a instauração da presente ação têm em vista, exatamente, a aquisição da nacionalidade portuguesa pela requerente A, como decorre dos arts. 6.º a 8.º e expressamente se salientou na decisão singular. Ora, a instauração do presente processo especial não pode ser configurada nesses termos, que mais não traduzem senão uma via expedita de contornar as exigências que o legislador nacional impõe em matéria de aquisição da nacionalidade portuguesa, porquanto, pela própria natureza do processo especial de revisão, o reconhecimento das sentenças estrangeiras é feito por via do exequatur, traduzindo um controlo essencialmente formal [[11]], que é exatamente o inverso do que o legislador pretendeu com a Lei da Nacionalidade; como resulta do art. 3.º, nº3 da Lei 37/81 de 3 de setembro, exige-se que a averiguação da situação de união de facto “há mais de três anos com nacional português” – requisito para a aquisição da nacionalidade portuguesa – seja feita em ação própria, sendo essa averiguação e apreciação objeto de controlo exclusivamente judicial, não estando sujeita a qualquer intervenção de autoridade administrativa e escapando à vontade das partes, que é ineficaz para produzir o efeito jurídico pretendido.

Assim sendo, ponderando a delimitação do pedido e da causa de pedir feita pelas requerentes, abarcando a pretensão formulada a dimensão que se assinalou, não podia esta Relação deixar de apreciar dessa questão, fazendo refletir no segmento dispositivo – exatamente aquele pelo qual, em regra, é aferido o efeito do caso julgado –, o resultado dessa análise.

Acrescente-se que a argumentação exposta na reclamação apresentada espelha o evidente propósito das requerentes contornarem o regime legal substantivo, de natureza imperativa, para aquisição da nacionalidade portuguesa, pretendendo afinal as requerentes, por via do presente processo, evitar a instauração da ação aludida (cfr. os arts. 3.º a 8.º); o que é particularmente grave, considerando que o tribunal brasileiro também não procedeu a qualquer averiguação sobre a realidade declarada pelas requerentes na aludida escritura, que o tribunal homologou, o que também foi assinalado na decisão singular.

Em todo o caso, cumpre salientar que com a decisão ora proferida não está esta Relação a antecipar qualquer juízo valorativo incidindo sobre eventual pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa que a segunda requerente entenda pertinente apresentar às entidades responsáveis, juízo que é da exclusiva competência destas.

No mais, a alegação vertida no art. 10.º da reclamação tem inteiro respaldo na decisão singular proferida, tanto assim que se julgou procedente o pedido de revisão, com a restrição apontada.
*

Por último, as requerentes invocam que a decisão, no segmento ora em causa, “viola o princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa” e “viola o art.º 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (cfr. os arts. 12.º a 14.º).
Não se alcança o sentido de tal invocação mas, independentemente dessa conclusão, impõe-se, em nótula, referência ao mecanismo de fiscalização de constitucionalidade previsto na Constituição da República Portuguesa (CRP), nos arts, 277.º e 280.º: a fiscalização sucessiva, concreta, por via da qual os tribunais podem apreciar e decidir sobre se quaisquer atos normativos são, ou não, inconstitucionais. O que desde logo significa que o que é objeto de análise é a conformidade de normas jurídicas com a Constituição e/ou a conformidade de determinada interpretação normativa com a Constituição [[12]] e não a conformidade constitucional de decisões judiciais, e muito menos de negócios jurídicos celebrados entre sujeitos [[13]].
A questão da (in)constitucionalidade pode ser apreciada oficiosamente pelo tribunal e/ou ser suscitada pelas partes; neste caso, impende sobre a parte o ónus de suscitação, que configura, aliás, pressuposto do recurso a que alude o art. 70º, nº1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15-11 (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, com sucessivas alterações) e que se concretiza pela oportuna e adequada alegação, no processo, da questão de constitucionalidade que pretende seja apreciada e conhecida – cfr. ainda o art. 72º da mesma lei.
Como se referiu no acórdão do TC de 12-04-2005, incidindo sobre questão alusiva à admissibilidade de recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, “seria necessário, para que se pudesse tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constitucionalidade tivesse sido suscitada durante o processo. O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo. Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995)” [[14]] [[15]].

No caso, o que se constata é que a invocada violação do art. 13.º da CRP não se mostra suficientemente densificada e concretizada, inviabilizando qualquer pronúncia desta Relação: as reclamantes não suscitam qualquer questão de constitucionalidade – com referência a uma norma ou a uma interpretação normativa – limitando-se a discordar da decisão reclamada.

Trata-se, pois, de alegação sem qualquer suporte ou fundamento, sendo evidente que as reclamantes se limitam a questionar o modo como se aplicou o direito infraconstitucional.
*

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a reclamação, mantendo-se a decisão singular proferida.  
Notifique.


Lisboa, 25-05-2021


Isabel Fonseca (relatora)
Maria Adelaide Domingos
Fátima Reis Silva



[1]Cfr., neste sentido, o acórdão do STJ de 12-07-2005, processo: 05B1880 (Relator: Moitinho de Almeida), acessível in www.dgsi.pt, como todos os demais arestos aqui referidos, em que se lê:
“A este respeito importa observar que, em muitos Estados, a dissolução do casamento por mútuo consentimento é feita em sede administrativa e que o processo regulado nos artigos 1094° e seguintes do Código de Processo Civil é, neste caso, aplicável (vejam-se, entre outros, o acórdão do STJ de 16 de Dezembro de 1999, revista n°55/99 e os acórdãos da Relação do Porto de 12 de Julho de 1983, na Col.Jur., 1983,IV,221, da Relação de Lisboa, de 10 de Julho de 1984, no BMJ,346,304, da Relação de Lisboa, de 3 de Junho de 1993, no BMJ,428,671 e da mesma Relação, de 28 de Janeiro de 1999, na Col.Jur., 1999,I,99).
[2]Já quanto ao pedido por vezes formulado, de confirmação/revisão de uma “Escritura Pública Declaratória de União Estável”, vide o acórdão do STJ de 10-12-2019, processo: 249/18.0YPRT.S2 (Relator: Ilídio Sacarrão Martins), assim sumariado:
“A declaração dos requerentes numa Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem em união de facto desde Julho de 2013, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal”.
Em sentido contrário, e dando nota das várias decisões, em sentidos divergentes, que têm sido proferidas pelos tribunais superiores cfr. o acórdão do TRL de 11-02-2020, processo: 3053/19.4YRLSB-1 (Relator: Fátima Reis Silva), assim sumariado:
1– A expressão decisão sobre direitos privados, constante do nº1 do artigo 978.º do Código de Processo Civil, deve ser interpretada por forma a abranger decisões proferidas, seja por autoridades judiciais, seja por autoridades administrativas.
2– A escritura pública declaratória de união estável, de acordo com o direito brasileiro, envolve o reconhecimento de uma entidade familiar, sendo constitutiva de parte relevante do respetivo regime e efeitos – caso seja estabelecido um regime diverso do da comunhão parcial de bens - e para todos os demais efeitos, nomeadamente previdenciais, sendo suscetível de ser levada a registo.
3- Não pode ser encarada como simples meio de prova e, em processo especial de revisão de sentença estrangeira, não é sequer invocada como tal.
4- Corresponde à prática de um ato administrativo em que a intervenção notarial assume a natureza de caucionamento do ato, permitindo que o mesmo desencadeie efeitos na ordem jurídica brasileira, tal como se tivesse sido objeto de declaração judicial em sentido estrito.
5 – É admissível a revisão e confirmação de escritura declaratória de união estável outorgada no Brasil”.
[3]Artigo 1.º
Objecto e obrigatoriedade do registo
1-O registo civil é obrigatório e tem por objecto os seguintes factos:
a)-O nascimento;
b)-A filiação;
c)-A adopção;
d)-O casamento;
e)-As convenções antenupciais e as alterações do regime de bens convencionado ou legalmente fixado;
f)-A regulação do exercício do poder paternal, sua alteração e cessação;
g)-A inibição ou suspensão do exercício do poder paternal e as providências limitativas desse poder;
h)-O acompanhamento de maiores e a tutela e administração de bens;
i)-O apadrinhamento civil e a sua revogação;
j)-A curadoria provisória ou definitiva de ausentes e a morte presumida;
l)-A declaração de insolvência, o indeferimento do respectivo pedido, nos casos de designação prévia de administrador judicial provisório, e o encerramento do processo de insolvência;
m)-A nomeação e cessação de funções do administrador judicial e do administrador judicial provisório da insolvência, a atribuição ao devedor da administração da massa insolvente, assim como a proibição da prática de certos actos sem o consentimento do administrador da insolvência e a cessação dessa administração;
n)-A inabilitação e a inibição do insolvente para o exercício do comércio e de determinados cargos;
o)-A exoneração do passivo restante, assim como o início e cessação antecipada do respectivo procedimento e a revogação da exoneração;
p)-O óbito;
q)-Os que determinem a modificação ou extinção de qualquer dos factos indicados e os que decorram de imposição legal.
2- Os factos respeitantes a estrangeiros só estão sujeitos a registo obrigatório quando ocorram em território português.
3- Quando os sujeitos da relação jurídica de filiação, adoção ou apadrinhamento civil estejam casados ou unidos de facto com pessoa do mesmo sexo, os assentos, averbamentos ou novos assentos de nascimento no registo civil são efetuados de forma idêntica à prevista nas leis em vigor para casais de sexo diferente.
[4]4 Assim, a Lei 2/2020 de 10/11, Lei 2/2018 de 05/07, Lei n.º 9/2015, de 29/07, Lei n.º 8/2015, de 22/06, Lei 1/2013, de 29/07, Lei 43/2013, de 03/07, Lei n.º 2/2006, de 17/04, Lei 1/2004, de 15/01, DL 322-A/2001, de 14/12 e Lei 25/94, de 19/08.
[5]Sublinhado nosso.
[6]Com as alterações do DL n.º 71/2017, de 21/06, DL n.º 30-A/2015, de 27/02 e DL n.º 43/2013, de 01/04.
[7]Artigo 14.º
Aquisição em caso de casamento ou união de facto mediante declaração de vontade
1- O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português, se, na constância do matrimónio, quiser adquirir a nacionalidade, deve declará-lo.
2- O estrangeiro que coabite com nacional português em condições análogas às dos cônjuges há mais de três anos, se quiser adquirir a nacionalidade deve igualmente declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto.
3- A declaração prevista no n.º 1 é instruída com certidão do assento de casamento e com certidão do assento de nascimento do cônjuge português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º
4- No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do nacional português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.
5- A declaração prevista na parte final do número anterior pode ser reduzida a auto perante funcionário de um dos serviços com competência para a recepção do pedido ou constar de documento assinado pelo membro da união de facto que seja nacional português, contendo a indicação do número, data e entidade emitente do respectivo bilhete de identidade.
[8]No acórdão do TRL proferido em 17-12-2020, processo: 1904/20.0.YRLSB-6 (Relator: Adeodato Brotas), em situação que temos por similar à dos autos, ainda que se tratasse, aí, de pedido de confirmação de uma escritura de união e não de uma sentença – distinção pouco relevante considerando que, no caso ora em análise, se trata, afinal da confirmação de uma sentença homologatória de escritura de união -, entendeu-se que se verificava uma exceção dilatória inominada. Assim, considerou-se aí como segue:
1– Instaurando um cidadão português e uma cidadã brasileira, ambos residentes no Brasil, acção de revisão de sentença estrangeira, pedindo que “sejam revistas e confirmadas as Escrituras Públicas Declaratórias de União Estável, celebradas pelos Requerentes, com todas consequências legais, designadamente para os fins do art.° 3º, da Lei n° 37/81, de 3/10 …”, tem de concluir-se que não têm interesse em agir.
2– E não têm interesse em agir porque:
(i)- A sentença de revisãode escritura de união estável não substitui a (necessária) acção declarativa para reconhecimento de vivência em união de facto por mais de três anos, a instaurar nos tribunais cíveis contra o Estado Português, como o exige o artº 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade;
(ii)- Além disso, a sentença de revisão/confirmação que viesse a reconhecer/confirmar a escritura de união estável, não teria eficácia de caso julgado em relação ao Estado Português, não produzindo, por isso, os mesmos efeitos da acção de declaração de vivência em união de facto, por mais de três anos, exigidos por aquele artº 3º nº 3 da mencionada Lei da Nacionalidade;
(iii)- Finalmente, conforme decorre do artº 978º nº 2 do CPC, se os requerentes pretendem aproveitar-se dessa escritura de união estável, que celebraram no Brasil, podem usá-la na acção a instaurar para a finalidade do artº 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade, nos termos dos artºs 365º nº 1 e 371º nº 1 do CC.
3– O interesse em agir apura-se, além do mais, pela necessidade de tutela judicial que é aferida, objectivamente, perante o direito subjectivo alegado pelo autor: o autor tem interesse em agir se da situação descrita e peticionada resulta que necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito.
4– Por isso, percebe-se que o interesse em agir, enquanto pressuposto processual, impõe algumas restrições ao exercício do direito à jurisdição ou da garantia de acesso aos tribunais, dado que condiciona esse recurso aos tribunais à efectiva necessidade de tutela judicial e à inexistência de qualquer outro meio, processual ou extraprocessual, para obter a realização do direito subjectivo alegado/pretendido pelo autor (sublinhado nosso).
[9]Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º,  3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, p.737.
[10]Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obr. e loc. citados.
[11]Como refere Alberto dos Reis, o sistema português enquadra-se na categoria dos sistemas mistos de revisão formal e revisão de mérito, submetendo-se a sentença estrangeira a um processo de revisão destinado a verificar se deve ser concedido o exequatur. “O tribunal nada mais faz de que verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir efeitos em Portugal”; “[d]onde, não se destina à afirmação ou reconhecimento de direitos ou deveres para além do que estritamente se mostra contido na decisão cuja confirmação se pretende (1982, Processos Especiais, Vol. II. 1982, Coimbra: Coimbra Editora, pp.142 e 204).
[12]Alude-se, obviamente, àquelas normas jurídicas que sejam convocadas para a solução propugnada, isto é, que constituam a ratio decidendi.
[13]Refere-se no acórdão do TC de 02-07-97, “[s]ó podem ser objecto de recurso de constitucionalidade visando a fiscalização concreta as normas jurídicas, não dispondo o Tribunal Constitucional de competência para tomar conhecimento de recursos em que se imputa a inconstitucionalidade às próprias decisões judiciais ou a actos administrativos ou políticos” (nº ACTC7708 Relator: Ribeiro Mendes), acessível no site respetivo.
[14]Proferido no processo nº 248/2005 (Relator: Maria Fernanda Palma), acessível no site respetivo.
[15]Quanto ao momento de arguição, o TC tem admitido que, nos casos em que o interessado não teve oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão final, possa ainda fazê-lo depois desta, em sede de recurso; mas esta jurisprudência do TC, que é uniforme, restringe essa possibilidade às situações em que a questão só surge por via da decisão e que só se coloca por força da mesma.