Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/08.7YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: SILVIA PIRES
Descritores: ADOPÇÃO
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PRINCÍPIOS DA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL DO ESTADO PORTUGUÊS
NOME
ALTERAÇÃO
INCOMPETÊNCIA
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 11/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: REVISTA
Legislação Nacional: ARTºS 1988º, Nº 2, C. CIVIL; 1095º, 1096º, 1099º E 1100º, DO CPC; 77º DA LOFTJ.
Sumário: I – Enquanto a competência para apreciação do pedido de revisão e confirmação da sentença estrangeira pertence aos Tribunais da Relação (artº 1095º do CPC), já a competência para apreciação do pedido de mudança de nome na sequência de adopção pertence aos tribunais da 1ª instância (artº 77º, nº 1, da LOFTJ), pelo que os dois pedidos não podem ser cumulados, atenta a incompetência deste tribunal, em razão da hierarquia, para apreciar o último pedido – artº 31º, nº 1, CPC.

II – O fundamento do reconhecimento das sentenças estrangeiras reside na necessidade de assegurar a estabilidade e a continuidade das situações jurídicas internacionais, o qual deve também ser perseguido através da consagração de normas de conflito que indiquem pelo método da escolha da conexão mais estreita ou mais significativa o direito material aplicável às situações plurilocalizadas.

III – No nosso regime actual o reconhecimento das sentenças estrangeiras dá-se por via de revisão predominantemente formal, não existindo, em regra, um controlo de boa aplicação do direito pelo tribunal estrangeiro.

IV – São requisitos necessários cumulativos para a confirmação da sentença estrangeira, os enumerados nas diversas alíneas do artº 1096º do CPC, podendo o pedido ser impugnado com os fundamentos referidos no artº 1100º do mesmo diploma.

V – O artº 1096º, al. f), do CPC, na sua actual redacção (que lhe foi conferida pelo D. L. nº 329-A/95, de 12/12) exige que a sentença a rever não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

VI – A ordem pública internacional do Estado Português (valores essenciais do Estado Português) não se confunde com a sua ordem pública interna.

VII – Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro.

VIII – O facto da adoptante mulher ter 1 ano menos que a idade exigida para a adopção em Portugal e o facto dos adoptantes (ambos portugueses) se encontrarem casados entre si há menos tempo do que o exigido pela lei portuguesa, não é suficiente para se poder afirmar, com segurança, que a adopção decretada (de uma criança liberiana, nascida em 20/10/2006) não garante o ingresso da criança adoptada em ambiente favorável ao normal desenvolvimento da sua pessoa, pelo que o reconhecimento de uma sentença (proferida na República da Libéria) que decretou a adopção de uma criança por um casal de portugueses (em que ela tem apenas 24 anos e em que são casados apenas há dois anos), não é manifestamente incompatível com a ordem pública internacional portuguesa.

Decisão Texto Integral:
Requerentes: A...
                       B...

Requerida: C...

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Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Os requerentes interpuseram a presente acção especial de revisão de sen­tença estrangeira, pedindo a revisão e a confirmação da sentença proferida em 21 de Setembro de 2007, pelo Tribunal das Sucessões, do Distrito de Nimba, República da Libéria, que decretou a adopção de D... pelos requerentes.
Pedem ainda, invocando o disposto no art.º 1988º, n.º 2, do C. Civil, que o adoptado passe a chamar-se E....
Citada a requerida não foi deduzida oposição.

Cumprido o disposto no art.º 1099º, nº 1, do C. P. Civil, o Magistrado do M.º P.º e os requerentes apresentaram alegações, defendendo o deferimento da pretensão formulada.

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Incompetência do tribunal para apreciação do pedido de alteração do nome do adoptado
Com o pedido de revisão e confirmação de sentença estrangeira os reque­rentes cumulam um pedido de alteração do nome do adoptado, na sequência da adopção.
Nos termos do art.º 470º, do C. P. Civil, é possível a cumulação de pedi­dos, desde que sejam compatíveis e não se verifiquem as circunstâncias que impe­dem a coligação.
Uma das circunstâncias impeditivas da coligação é a da ofensa das regras de competência em razão da hierarquia (art.º 31º, n.º 1, do C. P. Civil),
Ora, enquanto a competência para apreciação do pedido de revisão e con­firmação da sentença estrangeira pertence a este tribunal da Relação (art.º 1095º, do C. P. Civil), já a competência para apreciação do pedido de mudança de nome na sequência de adopção pertence aos tribunais de 1ª instância (art.º 77º, n.º 1, da LOFTJ), pelo que os dois pedidos não podem ser cumulados, atenta a incompetência deste tribunal, em razão da hierarquia, para apreciar o último pedido.
Essa incompetência determina a absolvição da instância da requerida, relativamente ao pedido de alteração do nome do adoptado (art.º 101º e 288º, a), do C. P. Civil).
Relativamente ao pedido de revisão de sentença estrangeira, o tribunal é competente, o processo é o próprio, as partes são legítimas e inexistem quaisquer outras excepções ou nulidades que obstem ao conhe­cimento do mérito da causa.

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OS FACTOS
Encontram-se provados os seguintes factos:

I – B... (doc. de fls. 63).
II – A..., (doc. de fls. 65).
III – Os Requerentes casaram catolicamente um com o outro no dia 21.8.2005 (doc. de fls. 76).
IV – Por sentença proferida em 21 de Setembro de 2007, pelo Tribunal das Sucessões, do Distrito de Nimba, República da Libéria, foi proferida a seguinte decisão:
Decisão Judicial Sobre a Adopção:
Considerando que, o Sr. A... e a Sr.ª B..., de Scarlepea, Distrito de Nimba, República da Libéria, preencheram um requerimento perante este Tribunal, procurando a autori­zação para a ADOPÇÃO de D..., nascido a 20 de Outubro de 2006, em Buutuo, Distrito de Nimba, e tendo o Tribunal assentido, após a análise da declaração de aceitação assinada pelos requerentes por intermédio do seu repre­sentante legal, conclui-se a existência de factos suficientes que sustentam as alega­ções expostas no pedido dos requerentes e que a adopção da criança citada vai ao encontro do interesse e bem estar de D....
DECIDE-SE E ORDENA-SE, POR  ESTE MEIO, que de aqui em diante o filho primogénito de F... e de G..., D..., deve para os devidos efeitos e propósitos ser a CRIANÇA ADOPTADA dos REQUERENTES supra mencionados, a criança citada deve ser conhecida, conside­rada e chamada de D..., e para efeitos de sucessão e demais fins legais, determina-se que o seu estatuto será o mesmo como se a criança tivesse nascido para os requerentes do compromisso do sagrado matrimónio.
DECIDE-SE E ORDENA-SE MAIS AINDA, POR ESTE MEIO, que o citado Decreto do Tribunal seja gravado e registado no gabinete dos registos das acções judiciais do Distrito de Nimba, República da Libéria. (doc. de fls. 26 a 28).
V – Na altura em que foi proferida a sentença referida em IV, os reque­rentes encontravam-se na Libéria, em missão humanitária (facto alegado na p.i. e não impugnado).

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O DIREITO

Estamos perante um caso de adopção internacional típica em que a hete­rogeneidade da situação jurídica resulta na transferência da criança do seu país de origem para o país dos adoptantes. Como vem sucedendo num ritmo crescente, numa manifestação dos actuais desequilíbrios geográficos e económicos entre os países pobres do sul e os países ricos do norte, da adopção internacional resulta normalmente a deslocação duma criança duma região do globo sub-desenvolvida para uma região com melhores índices de qualidade de vida.
Se a massificação deste fenómeno motivou já a intervenção limitativa dos legisladores nacionais [1], quer dos países de origem, quer dos países de destino da criança, e a realização de convenções internacionais bilaterais ou multilaterais [2], com vista a melhor controlar este tipo de adopções, a mudança radical do ambiente de vivência da criança, provocada pela sua transferência para um mundo completa­mente diferente daquele onde nasceu e começou a crescer, exige um reforço das cautelas na admissão ou validação concreta das adopções internacionais de modo a que não se registem desvios à promoção do superior interesse da criança [3].
Neste caso, encontramo-nos perante um pedido de revisão e confirmação de sentença proferida por tribunal da Libéria de adopção de criança liberiana por casal português, residente em Portugal e que, na altura em que foi proferida aquela sentença, se encontrava, temporariamente, na Libéria em missão humanitária.
Confirmar uma sentença estrangeira, após ter procedido à sua revisão, é reconhecer-lhe no Estado do foro, os efeitos que lhe cabem no Estado de origem como acto jurisdicional, nomeadamente efeitos constitutivos relativamente ao estado das pessoas.
O fundamento do reconhecimento das sentenças estrangeiras reside na necessidade de assegurar a estabilidade e a continuidade das situações jurídicas internacionais, o qual deve também ser perseguido através da consagração de normas de conflito que indiquem pelo método da escolha da conexão mais estreita ou mais significativa o direito material aplicável às situações plurilocalizadas [4].
O direito português admite desde a Reforma Judiciária de 1837 [5], o princí­pio segundo o qual as sentenças estrangeiras são admitidas a desenvolver na ordem jurídica do foro os efeitos que lhes competem no país de origem, desde que obedeçam a determinados requisitos e condições, devendo para isso, salvo se existir convenção internacional em contrário, serem revistas e confirmadas por tribunal português.
No nosso regime actual o reconhecimento das sentenças estrangeiras dá-se por via de revisão predominantemente formal, não existindo, em regra, um controlo da boa aplicação do direito pelo tribunal estrangeiro.
São requisitos necessários cumulativos para a confirmação da sentença estrangeira, os enumerados nas diversas alíneas do art.º 1096º, do C. P. Civil, podendo o pedido ser impugnado com os fundamentos referidos no art.º 1100º, do mesmo diploma.
No presente caso não foi deduzida qualquer impugnação.
Atenta a matéria da sentença em revisão e o país que a emitiu, não exis­tem normas convencionais internacionais aplicáveis à pretensão deduzida (a Libéria não subscreveu a XXXIII Convenção de Haia sobre a protecção de crianças e a cooperação em matéria de adopção internacional de 29 de Maio de 1993), vigorando o regime geral de revisão de sentenças estrangeiras previsto nos art.º 1094º e seg., do C. P. Civil.
A presente sentença em revisão não suscita dúvidas sobre a sua autentici­dade e é perfeitamente inteligível (art.º 1096º, a), do C. P. Civil).
Dos documentos de autentificação da sentença resulta que a mesma é definitiva no país que a proferiu, devendo considerar-se que transitou em julgado (art.º 1096º, b), do C. P. Civil).
Respeitando a sentença em revisão a matéria de adopção, a mesma não é da competência exclusiva dos tribunais portugueses, pois não consta das alíneas do art.º 65º – A, do C. P. Civil, e nada indicia que tenham sido criadas intencionalmente situações de facto ou de direito com o intuito fraudulento de evitar a competência do tribunal competente, até porque a criança adoptada havia nascido e residia no país onde foi proferida a sentença em causa, e os adoptantes encontravam-se na altura nesse mesmo país em missão humanitária (arte 1096º, n.º 1, c), do C. P. Civil).
Não é conhecida qualquer causa em tribunal português que permita a invocação da excepção de litispendência ou de caso julgado, relativamente à decisão em revisão (art.º 1096º, d), do C. P. Civil).
Não há qualquer indício que no processo onde foi proferida a decisão em revisão não tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, tendo em consideração a natureza do processo em causa (art.º 1096º, e), do C. P. Civil).
O art.º 1096º, f), do C. P. Civil, na sua redacção actual, que lhe foi confe­rida pelo Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, exige que a sentença a rever não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Portu­guês.
A redacção anterior deste preceito exigia que a sentença a rever não con­tivesse decisões contrárias aos princípios da ordem pública portuguesa, reprodu­zindo, desde a reforma do C. P. Civil de 1961, o disposto no art.º 1102º, nº 6, da versão original do C. P. Civil de 1939 [6].
Embora Alberto dos Reis [7] tivesse logo frisado que a ordem pública portu­guesa referida no n.º 6, do artigo 1102º, correspondia à chamada ordem pública internacional e não à ordem pública interna [8], pelo que não abrangia necessariamente todas as normas imperativas integrantes do direito português, nem sempre a jurisprudência conseguiu evitar a identificação da ordem pública portu­guesa com esse tipo de normas, o que resultava numa excessiva exigência na revisão de sentenças estrangeiras.
A alteração da redacção da alínea f), do art.º 1096º, do C. P. Civil, seguiu fielmente a formulação proposta por Ferrer Correia e Ferreira Pinto [9], passando a referir como limite à revisão de sentenças estrangeiras, a ordem pública internacio­nal do Estado Português, quando resulte que esta é manifestamente posta em causa com o reconhecimento da sentença estrangeira.
Como já acima se referiu, a ordem pública internacional do Estado Por­tuguês não se confunde com a sua ordem pública interna. Enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional res­tringe-se aos valores essenciais do Estado português [10]. Só quando os nossos interes­ses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro.
Como não é possível delimitar com precisão quais os valores essenciais de um Estado, sendo a ordem pública internacional um conceito indeterminado, de conteúdo variável, sujeito às evoluções da consciência jurídica da comunidade, será perante uma sentença estrangeira concreta que o julgador terá a difícil missão de verificar se a mesma afronta de forma intolerável (manifesta) os valores fundamentais do nosso sistema jurídico. Só quando o resultado dessa sentença choque fla­grantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico é que não se deverá reconhecer a sentença estrangeira.
No presente caso encontramo-nos perante uma sentença proferida por um tribunal da Libéria que em 21-9-2007 decretou a adopção dum criança liberiana, nascida em 20-10-2006, por um casal português (ela com 24 anos e ele com 32 anos) casados em 21-8-2005.
A ser reconhecida a sentença estrangeira de adopção produzirá em Portugal os efeitos que lhe são atribuídos pela ordem jurídica onde ela foi proferida, devendo, contudo, na prática, tais efeitos inserirem-se num dos dois modelos de adopção previstos pela lei portuguesa [11]. Assim, se a adopção decretada pelo tribunal estrangeiro resulta, por um lado, numa integração do adoptado como membro de pleno direito da família dos adoptantes, sem quaisquer restrições ou limitações, e, por outro lado, num corte radical de todos os laços que o ligavam à sua família natural, ela deve ser considerada uma adopção plena, produzindo todos os efeitos reconhecidos pela lei portuguesa a este tipo de adopção [12].
Tendo, neste caso, a sentença do Tribunal da Libéria, declarado que “…para efeitos de sucessão e demais fins legais, determina-se que o seu estatuto será o mesmo como se a criança tivesse nascido para os requerentes do compro­misso do sagrado matrimónio”, devemos considerar que estamos perante uma sentença constitutiva de uma relação de adopção plena, atento o disposto no art.º 1986º, do C. Civil. O facto do adoptado não ter perdido, nos termos da sentença em revisão, como efeito automático da adopção, os apelidos de origem, ao contrário do que sucede na adopção plena portuguesa (art.º 1988º, n.º 1, do C. Civil), não assume uma dimensão de tal modo significativa que justifique o afastamento da qualificação da adopção decretada como adopção plena, no âmbito do ordenamento jurídico português.
A adopção como fonte de relações familiares semelhantes à filiação após ter previsão em todas as Ordenações [13], por ter caído em desuso a partir do século XVI, foi omitida no Código de Seabra [14], só voltando a merecer a atenção do legisla­dor com o Código Civil de 1966, o qual impunha rigorosas condições à sua consti­tuição, as quais só foram atenuadas com a revisão de 1977 do direito de família no Código Civil [15].
Durante o período de vigência do Código de Seabra recusou-se por diver­sas vezes o reconhecimento de sentenças estrangeiras de adopção com o fundamento que esse instituto não era admitido em Portugal, pelo que as mesmas contrariavam a ordem pública portuguesa [16].
Sendo hoje a adopção admitida pela nossa ordem jurídica como fonte de relações familiares semelhantes à da filiação, a sentença cuja confirmação se requer apenas coloca a questão de saber se a circunstância do pretendido reconhecimento da sentença liberiana resultar numa adopção duma criança por um casal em que a mulher tem idade inferior à actualmente exigida pela art.º 1979º, do C. Civil, para alguém poder adoptar uma criança (25 anos), e do casamento dos adoptantes ter também uma duração inferior à exigida pelo mesmo art.º 1979º (4 anos), afronta manifestamente a nossa ordem pública internacional.
Na versão original do Código Civil de 1966, para que fosse decretada a adopção plena exigia-se que os adoptantes fossem casados entre si há mais de 10 anos (art.º 1981º) e que cada um tivesse mais de 35 anos (art.º 1974º, c)).
Com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, passou a exigir-se que os adoptantes casados tivessem mais de 25 anos e o casamento tivesse uma duração superior a 5 anos, atenuando-se, assim, o rigor das condições para a adopção de crianças (art.º 1979º, n.º 1, do C. Civil).
O Decreto-lei nº 185/93, de 22 de Maio, baixou ainda mais o tempo de duração do casamento para 4 anos.
Estando hoje afastada a ideia de protecção da prole natural, o requisito duma idade mínima dos adoptantes superior à idade estabelecida para a capacidade de exercício de direitos [17] visa assegurar uma decisão de adoptar devidamente amadurecida e ponderada e a garantia duma boa educação do adoptado através da maturidade e experiência de vida do adoptante [18].
O requisito da duração do casamento [19] visa não só evitar decisões precipi­tadas enquanto o nascimento de filhos do casamento aparece como mais provável, mas também procura a inserção do adoptado num ambiente familiar já dotado duma certa experiência, permanência e estabilidade [20].
Esta última exigência tem sido contestada por alguma doutrina e um acórdão do S.T.J. de 28-7-1981 chegou mesmo a admitir que duas pessoas casadas há menos de 5 anos (tempo de duração do casamento então previsto no art.º 1979º, n.º 1, do C. Civil) pudessem adoptar uma criança desde que tivessem idade superior à exigida para a adopção singular que, na altura, era de 35 anos (art.º 1979º, n.º 2, do C. Civil). Alega-se que, tendo sido abandonado o requisito do casal adoptante não ter filhos naturais, deixou de fazer sentido esta exigência, além de que, com o duplo requisito idade/duração do casamento, para os casais de adoptantes torna-se, inexpli­cavelmente, a adopção mais difícil para um casal do que para uma pessoa solteira [21].
Se as normas que exigem uma idade mínima para a adopção conjunta e um período mínimo de tempo de duração do casamento são normas imperativas, ditadas por interesses públicos, que não admitem a sua derrogação pela vontade dos particulares, já não se pode dizer que o estabelecimento destes limites nos marcos referidos corresponda a um interesse basilar da nossa ordem jurídica.
Na verdade, se é um valor fundamental actual inerente ao instituto da adopção o ingresso duma criança numa nova família, capaz de lhe propiciar educa­ção, conforto, segurança e tudo aquilo que ela necessita para o normal desenvolvi­mento da sua pessoa, o que obriga à previsão de medidas que impeçam a adopção por pessoas imaturas ou por casais com uma relação conflituosa ou insuficiente­mente estabilizada, tal valor não exige impreterivelmente que a idade para adoptar não possa ser inferior a 25 anos, nem que o casal adoptante deva estar casado há pelo menos 4 anos.
Tais limites de segurança são simples índices de maturidade e de estabili­dade do casamento que a realidade pode desmentir, e a sua fixação resulta duma opção de política legislativa controversa.
Entendeu o nosso legislador mais recente que o estabelecimento de tais limites eram os adequados a, abstractamente, evitar a possibilidade de adopções por pessoas sem condições para assegurar o mencionado interesse público inalienável, o que não significa que a ultrapassagem desses marcos, só por si, represente uma ofensa intolerável ao valor que a sua fixação pretendeu salvaguardar.
O facto dos membros de um casal terem idades inferiores às estabelecidas no artigo 1979º, n.º 1, do C. Civil, ou o seu casamento não ter ainda atingido a duração prevista no mesmo dispositivo, não corresponde a uma necessária ofensa do referido valor fundamental que preside ao instituto da adopção.
Relativamente à idade dos adoptantes, só quando esta se situe em núme­ros de tal modo baixos que se revele inequivocamente afastada a possibilidade de poder ser proporcionada à criança adoptada uma educação satisfatória, segundo as regras da experiência comum, é que se poderá dizer que o reconhecimento da sentença estrangeira de adopção viola um valor essencial da nossa ordem pública internacional. E quanto ao tempo de duração do casamento (requisito não adoptado pela maioria das legislações e objecto de contestação entre nós) pode dizer-se que é uma exigência dispensável na garantia do ingresso da criança num ambiente propício ao seu crescimento saudável.
Neste caso, a sentença estrangeira em revisão decretou a adopção duma criança por um casal em que o marido tinha 32 anos e a mulher 24 anos, tendo casado um com o outro há 2 anos e 1 mês à data da decisão.
Perante as considerações acima adiantadas não oferece dúvidas que o facto da adoptante mulher ter 1 ano menos que a idade exigida para a adopção em Portugal e o facto dos adoptantes se encontrarem casados há menos tempo do que o exigido pela lei portuguesa, não é suficiente para se poder afirmar, com segurança, que a adopção decretada não garante o ingresso da criança adoptada em ambiente favorável ao normal desenvolvimento da sua pessoa, pelo que o reconhecimento da sentença em revisão não é manifestamente incompatível com a ordem pública internacional portuguesa, mostrando-se também verificado o requisito previsto na alínea f), do artigo 1096º, do C. P. Civil.
Por estas razões deve ser confirmada a sentença revista.

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DECISÃO
Pelo exposto:
– declara-se revista e confirmada a sentença proferida em 21 de Setembro de 2007, pelo Tribunal das Sucessões, do Distrito de Nimba, República da Libéria, que decretou a adopção plena de D..., por A... e B....
– absolve-se da instância a requerida, relativamente ao pedido de altera­ção do nome do adoptado.

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Custas pelos requerentes.
Valor tributário da acção: € 3.740,98.

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Oportunamente comunique-se à C.R.C. competente.
                                            
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                                                            Coimbra, 18 de Novembro de 2008.


[1] No nosso direito interno o Decreto-lei n.º 185/93, de 22 de Maio, que aprovou o novo regime jurídico da adopção, introduziu os actuais artigos 23 a 27º, tendo a Lei n.º 31/2003, aditado o artigo 26º - A, e alterado a redacção do nº 1, do artigo 26º, regulando estas disposições alguns trâmites da colocação no estrangeiro de menores residentes em Portugal com vista à adopção e a adopção por residentes em Portugal de menores residentes no estrangeiro, no quadro das Convenções de que Portugal seja subscritor.

[2] Vg. a XXXIII Convenção de Haia sobre a protecção de crianças e a cooperação em matéria de adopção internacional de 29 de Maio de 1993, a qual foi aprovada por Portugal, estando em vigor no nosso país desde 1 de Julho de 2004.

[3] Sobre o tratamento jurídico das adopções internacionais vide, sobretudo, Nuno Ascensão e Silva, em A constituição da adopção de menores nas relações privadas internacionais: alguns aspectos, ed. de 2000, da Coimbra Editora.

[4] Vide, sobre o fundamento e papel do reconhecimento das sentenças estrangeiras na harmonia jurídica internacional, Ferrer Cor­reia, em La reconaissansse et l´exécution des jugements étrangers, en matière civile et commerciale (droit compare)”, em Estudos vários de direito, pág. 106 e seg., e em O reconhecimento das sentenças estrangeiras no direito brasileiro e no direito português, na R.L.J., Ano 116., pág. 33 e seg.
    Sobre os interesses no reconhecimento de sentenças estrangeiras no domínio da adopção vide, Mónica Herranz Ballesteros, em La busqueda de la armonia internacional de soluciones. Un objectivo a cualquier precio en matéria de adopcion internacional ?, em Derecho de família ante el siglo XXI: aspectos internacionales, pág. 487 e seg..

[5] Anteriormente a doutrina pronunciava-se no sentido da ineficácia das decisões estrangeiras. Foi o artigo 216º, da Reforma Judi­ciária, quem pela primeira vez consagrou a possibilidade da confirmação dos “processos estrangeiros”. Estas regras passaram para os artigos 44º e 567º, da Novíssima Reforma Judiciária de 1841, que já se referiam à revisão e confirmação das “sentenças estrangeiras”. Tal matéria transitou depois para o Código de Seabra (art.º 31º) que remetia para o Código de Processo Civil, tendo o C. P. Civil de 1876 procedido à sua regulação nos art.º 805º e 1087º e seg., e o C. P. Civil de 1939, inicialmente nos art.º 50º e 1100º e seg., e com a reforma de 1961, nos artigos 1094º e seg..
[6] Já o art.º 1088º, n.º 5, do C. P. Civil, de 1876, exigia que a sentença não contivesse decisões contrárias aos princípios de direito público português, ou ofensivas dos princípios da ordem pública.

[7] Em Processos Especiais, vol. II, pág. 175, da ed. de 1956, da Coimbra Editora.

[8] Já assim entendia a doutrina no domínio do C. P. Civil de 1876, ao interpretar a expressão princípios de ordem pública (art.º 1088º, n.º 5), apresentados como limite à revisão de sentenças estrangeiras. Vide, neste sentido, Machado Villela, em Tratado Elementar de Direito Internacional Privado, livro I, pág. 677 e 560 e seg., da ed. de 1921, da Coimbra Editora.

[9] Em Breve apreciação das disposições do anteprojecto do Código de Processo Civil que regulam a competência internacional dos tribunais portugueses e o reconhecimento das sentenças estrangeiras, na Revista de Direito e Economia, 1987, pág. 25 e seg.

[10] Vide, sobre o conceito de ordem pública internacional do Estado português, Ferrer Correia, em Lições de direito internacional pri­vado, pág. 559, da ed. de 1973, da Universidade de Coimbra, Isabel Magalhães Collaço, em Direito internacional privado, Lições ao 5º ano jurídico de 1957-1958, vol. II, pág. 323 e seg., da ed. de 1958, da AAFDL, Baptista Machado, em Lições de direito internacional privado, pág. 253 e seg., da ed. de 1974, da Atlântida Editora, Marques dos Santos, em Direito internacional privado, pág. 183 e seg., da ed. de 1987, da AAFDL, Gonçalves de Proença, em Direito internacional privado (Parte geral), pág. 197 e seg., da ed. de 1998, da Universidade Lusíada, Carlos Fernandes, em Lições de direito internacional privado, pág. 293 e seg., da ed. de 1994, da Coimbra Editora, e Rui Moura Ramos, em L’ ordre public internacional en droit portugais, em Estudos de Direito internacional privado e de direito processual civil internacional, pág. 245 e seg., da ed. de 2002, da Coimbra Editora.
[11] Vide, neste sentido, Rui Moura Ramos, em L´adoption internationale, no BMJ – DDC, n.º 37/38 (1989), pág. 31.

[12] Vide, neste mesmo sentido, Rui Moura Ramos, na ob. e loc. cit. na nota anterior.

[13] Nestas legislações antigas a adopção estava centrada no interesse da pessoa do adoptante, procurando-se através dela assegurar a perpetuação da família e a transmissão do nome e do património.
    Sobre a história antiga da adopção em Portugal vide Braga da Cruz, em Algumas considerações sobre a perfilatio, no BFDUC, Vol. XIV, pág. 460 e seg., Paulo Merêa, em Sobre a adopção no século XII, no BFCUC, vol. XXXI, pág. 372 e seg., e Sinopse histórica da adopção, no BFDUC, vol. XXXII, pág. 162 e seg., e Almeida Costa, em A adopção na história do direito português, no BFDUC, vol. XLIV, pág. 271 e seg..

[14] Lê-se na Apostila à censura do Senhor Alberto de Morais Carvalho sobre a primeira parte do Projecto do Código Civil (de Seabra):
…a adopção ousa criar uma paternidade fictícia a exemplo da paternidade natural…A adopção não corresponde a necessidade alguma do coração humano. Corresponderá à necessidade de ter uma posteridade ou de amá-la ? Quem poderá amar por ficção ? Corresponderá ao desejo de transmitir a propriedade a certa pessoa predilecta ? Tudo isso se pode conseguir pela faculdade testamentária, sem necessidade de entrar num caminho tortuoso, e não contrário à razão e à natureza  (In Apostila n.º I, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1958, pág. 44).

[15] Sobre a adopção na versão original do C.C. de 1966, vide Capelo de Sousa, em A adopção. Constituição da relação adoptiva, separata do volume XIX, do BFDUC, de 1973.

[16] Vide, efectuando uma resenha desta jurisprudência, Rui Moura Ramos, em Sucessão e coexistência de métodos ao longo do tempo: a adopção no direito internacional português, em Estudos de Direito internacional privado e de direito processual civil internacio­nal, pág. 266-269, da ed. de 2002, da Coimbra Editora.

[17] Segundo Nuno Ascensão Silva, na ob. cit., pág. 77-78, notas 127-128, esta idade é de 21 anos nos direitos inglês e brasileiro (basta que um dos cônjuges tenha essa idade), de 25 anos, nos direitos escandinavos, belga, espanhol (basta que um dos cônjuges tenha esta idade) e alemão (basta que um dos cônjuges tenha esta idade e o outro 21 anos), de 30 anos, nos direitos grego e austríaco (28 anos para a mulher). Nos direitos da maior parte dos países da antiga área socialista a idade mínima corresponde à idade da maioridade. No direito francês não existe idade mínima para as adopções conjuntas, exigindo-se apenas um prazo de 5 anos de duração do casamento.

[18] Vide, neste sentido, Capelo de Sousa, na ob. cit., pág. 90, Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil anotado, pág. 519-520, da ed. de 1995, da Coimbra Editora, e Nuno Ascensão e Silva, na ob. cit., pág. 75, nota 118.

[19] Segundo Nuno Ascensão Silva, na ob. cit., pág. 74, nota 115, este requisito não existe em muitos sistemas jurídicos como no direito inglês, alemão, austríaco, belga, israelita e brasileiro. No direito francês e suíço exige-se um período de 5 anos, e no direito Italiano um período de 3 anos.

[20] Vide, neste sentido, Capelo de Sousa, na ob. cit., pág. 175-176, Cunha Barbosa, em A nova disciplina do instituto da adopção no Código Civil Português, em Reforma do Código Civil, pág. 234, da ed. de 1981, da Ordem dos Advogados, Rodrigues Bastos, em Notas ao Código Civil, vol. VII, ed. do autor de 2002, Pereira Coelho, na R.L.J., Ano 115, pág. 318-319, e Nuno Ascensão Silva, na ob. cit., pág. 74.
[21] Vide Rodrigues Bastos, em Direito da Família segundo o Código Civil de 1966, vol. VI, pág. 62, da ed. do autor de 1980, Pires de Lima e Antunes Varela, na ob. cit., pág. 521, Nuno Ascensão Silva, na ob. cit., pág. 74-75, e o acórdão do S.T.J. citado no texto, relatado por Manuel dos Santos Carvalho, publicado no BMJ n.º 309, pág. 353 e seg..