Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
214/09.8YRERVR.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO
LEI ESTRANGEIRA
REQUISITOS
SENTENÇA
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
DIREITO PROCESSUAL CIVL
Doutrina: - Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, pág.141.
- António Marques dos Santos, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 110 e 139.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 659.º, 1096.º, ALÍNEAS A) E F), 1100.º,Nº.2
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 22.º, 1773.º, NºS.1 E 3, 1781.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 5.6.86, 19.6.86 E 31.1.2002, IN BMJ 358º, PÁGS. 428 E 460 E CJ, I, PÁG. 68, RESPECTIVAMENTE;
-DE 28.06.2001, IN CJSTJ, 2001, II, 140;
-DE 21.2.2006, PROCESSO N.º 05B4160, WWW.DGSI.PT ;
-DE 3.7.2007, PROCESSO N.º.3908/2006-7, WWW.DGSI.PT ;
-DE 3.7.2008, PROCESSO N.º08B1733, WWW.DGSI.PT ;
Sumário : I) - O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é, em regra, de revisão meramente formal, o Tribunal português competente para a revisão e confirmação deve verificar se o documento apresentado como sentença estrangeira revidenda satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa.

II) – A excepção à referida regra só ocorre se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, caso em que a impugnação também pode ser fundada na circunstância de que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos da lei portuguesa – artigo 1100º, nº2, do Código de Processo Civil.

III) – O Tribunal português com competência para a revisão e confirmação tem de adquirir, documentalmente, a certeza do acto jurídico postulado na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na acepção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte a decisão revidenda, ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença que consta do art.659º do Código de Processo Civil.

IV) No direito interno português, o divórcio, após a Lei 61/2008, de 31.10, no que respeita aos requisitos substantivos é agora menos exigente, prescindindo de prova de culpa, podendo ser decretado sem o consentimento de um dos cônjuges; no divórcio sem culpa (no fault), a dissolução do casamento não requer a prova da culpa na violação dos deveres conjugais de um ou outro cônjuge.

IV) – A certidão de divórcio emitida pelo Tribunal de Magistratura Federal da Austrália – Federal Magistrates Court of Austrália, em Sydney, – afirmando que o casamento celebrado entre A (marido) e B (mulher), onde se lê – “Eu, o/a abaixo-assinado(a), certifico, em relação ao casamento solenizado no dia vinte e três de Abril de 1977, que a sentença de divórcio proferida por este Tribunal no dia dezoito de Outubro de 2007 transita em julgado no dia dezanove de Novembro de 2007”, vale como sentença no direito interno português, dela se colhendo que foi decretado o divórcio entre a recorrente e o recorrido, pelo que nada impede a sua revisão e confirmação para vigorar no direito interno português.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, residente em …, …, na Austrália, veio, nos termos do artigo 1094º e seguintes do Código de Processo Civil, requerer a revisão e confirmação de sentença estrangeira, contra:

BB, residente no ..., nº .., Alcochete – Setúbal, alegando:

O Requerente e a Requerida casaram um com o outro, no dia 23 de Abril de 1977.

Por sentença proferida pelo Tribunal de Magistratura Federal de Sidney, Austrália, em 18 de Outubro de 2007, foi decretado o divórcio entre Requerente e Requerida.

A decisão transitou em julgado, no dia 19 de Novembro de 2007.

Após alegar que a mencionada sentença não colide com os princípios da ordem jurídica portuguesa e que se encontram preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 1096º, do Código de Processo Civil, concluiu que deve a acção ser julgada procedente.

Juntou documentos.

Foi a Requerida legalmente citada e deduziu oposição, alegando:

A certidão de divórcio proferido pela Justiça Australiana é manifestamente insuficiente para que tal sentença possa ser revista e confirmada em Portugal, pois não se encontram preenchidos os requisitos previstos no artigo 1096º, do Código de Processo Civil.

Desde logo, a certidão junta, limita-se a referenciar a data da sentença e respectivo trânsito e não a sentença em si, assim como não especifica a motivação do divórcio, pelo que se desconhece se é ou não contrária à lei portuguesa, não constando da certidão se foi ou não interposto recurso da mesma.

Termina, dizendo que não deve a sentença ser revista e confirmada.

Convidado o Requerente a juntar, aos autos, certidão da sentença integral da sentença que decretou o divórcio, veio o mesmo integrar os documentos que foram emitidos pela Justiça Australiana, devidamente traduzidos, tendo sobre os mesmos a Requerida tomado a posição já anteriormente descrita.

Notificado, novamente, o Requerente para juntar aos autos certidão da sentença que decretou o divórcio, veio o mesmo informar que está impossibilitado de o fazer, pois que a Justiça Australiana só passa certidão dos documentos que já estão juntos aos autos.

Foi dado cumprimento ao normativamente disposto no artigo 1099º do Código de Processo Civil.

O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer, nada opondo à confirmação.



A Relação de Évora, por Acórdão de 10.9.2010 –, fls.163 a 168, sentenciou:

“Atentando em quanto se procurou deixar esclarecido, acorda-se nesta Relação em conceder a revisão para o efeito de confirmar, como se confirma, a sentença proferida pelo Tribunal de Magistratura Federal de Sidney – Austrália, datada de 18 de Outubro de 2007, a fim de que a mesma produza efeitos em Portugal. Comunique, oportunamente, à Conservatória do Registo Civil de Alcochete onde o casamento se encontra registado sob o Assento nº 20, de 27 de Abril de 1977.”


Inconformada, a requerida BB interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. O ora Recorrido intentou acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira de divórcio, alegando em suma que, a sentença foi proferida pelo Tribunal competente, e que esta não ofende as disposições do direito privado, encontrando-se preenchidos os requisitos exigidos pelo Código Civil Português para que fosse pedido e decretado o divórcio.

2. Nessa medida, veio a ora Recorrente opor-se à revisão e confirmação da sentença estrangeira porque a certidão de divórcio é manifestamente insuficiente para que tal sentença possa ser revista e confirmada em Portugal, uma vez que não se encontram preenchidos os pressupostos no artigo 1096º do Código de Processo Civil.

3. Isto porque, o documento junto denominado “certidão de divórcio” não consubstancia uma verdadeira sentença, pois não é possível observar a inteligência da decisão, nem tão pouco é compreensível o seu objecto e alcance, peio que, não é possível com base em tal documento aferir se a motivação do divórcio é contrária ou não à Lei Portuguesa e se foi ou não interposto recurso de tal decisão.

4. Em virtude da falta de junção da sentença revidenda foi o Recorrido notificado para proceder à sua junção, tendo sido suspensa a instância por três meses para esse efeito, sendo que este veio informar os autos que estava impossibilitado de proceder à junção de certidão de sentença que decretou o divórcio, em virtude do Tribunal Australiano apenas emitir certidão dos documentos já juntos aos autos.

5. No caso vertente, salvo melhor e douta opinião, sempre se dirá que ocorreu um erro na apreciação das provas, uma vez que, se procedeu à revisão e confirmação de uma sentença estrangeira, que nunca foi trazida aos autos pelo Recorrido, pois sempre seria de lhe exigir que, documentalmente viesse aos autos justificar a sua afirmação, nomeadamente requerendo a junção de documento da embaixada da Austrália a atestá-lo ou, ainda, documento emitido por parte do referido Tribunal a declarara impossibilidade.

6. Acresce que, apesar de invocar tal impossibilidade o recorrido não procedeu à junção de documento emitido pelo Tribunal Australiano a atestar tal argumento, muito pelo contrário, apenas procedeu à junção de uma declaração do seu anterior mandatário (que salvo o devido respeito – vale o que vale), no âmbito do processo divórcio.

7. De igual forma, e salvo o devido respeito, que é muito pelo causídico em causa, a mera declaração do anterior advogado do recorrido não permite ao Tribunal com a segurança jurídica exigida para a regulação das relações pessoais e patrimoniais em causa, aferir da efectiva situação jurídica dos cônjuges, (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2007 – “O alcance da força probatória dos documentos particulares é circunscrito à materialidade das declarações neles produzidas, já que apenas fazem prova plena da conformidade da vontade declarada e não de quaisquer outros factos, por isso, a força probatória daqueles documentos esgota-se no seu teor, nos factos compreendidos na declaração.”)

8. Assim, no caso concreto, exigia-se que o Requerente tivesse tentado por todas as vias ao seu alcance, obter documento, com força probatória bastante, no sentido de corroborar a sua afirmação de que estava impossibilitado de juntar a sentença que decretou o divórcio, sendo que noutros casos tal diligência foi adoptada, em que o requerente procedeu à junção de certidão do Tribunal Australiano a confirmar tal impossibilidade, apesar de existir jurisprudência no sentido de que basta a mera certidão de divórcio emitida pelo Tribunal Australiano para se proceder à competente revisão e confirmação da sentença revidenda. (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 03-07-2007 que refere que “De novo notificado para o mesmo fim, para comprovação da mesma situação de impossibilidade, o requerente juntou um documento oficial emitido pela “Federal Magistrates Court of Austrália” no qual se declara que “a prática dos Tribunais passando decretos com a anotação de que o decreto é absoluto”. Em vez disso, o Tribunal, em conformidade com a Secção 56ª da Lei da Família de 1975, passa certificados indicando a data em que a decisão de divórcio tem efeito”. Mais se refere que “o certificado é o único documento passado pelo Tribunal que tem valor de prova que o casamento terminou.”).

9. Sucede que, no caso em apreço, tal documento oficial não foi junto aos autos pelo Recorrido, pelo que, sempre se dirá, que não foi feita prova bastante pelo ora Recorrido no que concerne a impossibilidade de apresentação da certidão da sentença revidenda, uma vez que, não demonstrou ter envidado quaisquer esforços nesse sentido.

10. Por outro lado, importa salientar, o voto vencido do Exmo. Sr. Relator Pimentel Marcos no Acórdão que fundamentou a decisão do Tribunal da Relação de Évora, com o qual a ora Recorrente está totalmente de acordo, o qual vem expressar a sua discordância quanto à revisão e confirmação de uma sentença inexistente. […].

11. Sempre se dirá que esta decisão já esteve na mente do Tribunal da Relação de Évora, ao suspender a instância pelo período de três meses para que o Recorrido procedesse à junção da documentação necessária, concretamente, a sentença revidenda ou então certificado que atestasse tal impossibilidade, e ao proferir despacho que o ordenou.

12. Ora, das duas hipóteses apresentadas, o Recorrido não procedeu em conformidade a nenhuma delas, quer isto dizer que a certidão de divórcio que serviu de base, nos presentes autos, à revisão e confirmação de uma sentença, nem sequer sustenta ser suficiente para atestar o divórcio e seu trânsito em julgado, sem necessidade de mais documentação (sentença).

13. É que, das duas uma: ou a sentença existe, e pode ser confirmada, ou a sentença não existe, e não se pode confirmar uma inexistência jurídica! O erro na apreciação das provas observa-se sempre que, sob condição de ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência de um facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, tal não suceda. (cfr. Artigo 1094º, n.º1, do Código de Processo Civil que “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro ou por árbitros no estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada”.)

14. Resulta da lei que sempre que está em causa uma decisão/sentença estrangeira, a mesma tem de ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal, porém, no caso vertente, nunca foi apresentada qualquer “sentença’’, mas uma mera declaração emitida pelo escrivão do Tribunal Australiano, equivalente à nossa certificação de que determinado processo correu termos em determinado tribunal, e que serve apenas de certificação do documento que segue depois, em anexo.

15. A “certidão de divórcio” junta pelo Recorrido não permite ao Venerando Tribunal com a segurança jurídica exigida, para a regulação das relações pessoais e patrimoniais em causa, aferir da efectiva situação jurídica dos cônjuges, até porque o âmbito da acção de divórcio pode existir pedido reconvencional, e podem não ter sido os motivos invocados pelo Requerente, na petição inicial que juntou a estes autos de revisão, devidamente traduzida, que fundamentaram a decisão de divórcio, assumindo especial relevância conhecer essas motivações.

16. Persistindo incertezas quanto às condições em que o divórcio foi decretado, se é que o foi, que só poderão ser aferidas em face da leitura do dispositivo da sentença ou seu sucedâneo, por forma a confirmar que aquelas razões não ofendem as disposições de direito privado português (Vide Artigo 18º da Oposição e Artigo 1096º alínea f) do Código de Processo Civil).

17. No mesmo sentido resulta de diversa jurisprudência que a sentença revidenda é um documento essencial, no âmbito do processo de revisão e confirmação, inclusive, num sistema formal como o português. […].

18. Assim a falta de sentença revidenda, ainda que exista nos autos certidão de divórcio não é prova bastante para a revisão e confirmação de uma decisão estrangeira, de modo a dar-lhe eficácia em Portugal, implicando por isso o não prosseguimento do processo, quer se esteja perante uma situação de divórcio litigioso, quer se trate de divórcio por mútuo consentimento, ainda assim é necessário ao Recorrido, a quem incumbe ónus da prova proceder à junção da sentença revidenda. […].

19. Nessa medida, deverão estar patentes os fundamentos da sentença a rever, de modo a determinar se a decisão estrangeira ofende ou não as disposições do nosso direito privado, sendo que no caso de incerteza, não sendo possível aferir a conformidade da decisão proferida com o nosso ordenamento, não pode a mesma ser revista ou confirmada. […].

20. No caso vertente, o Tribunal da Relação de Évora não poderia fazer uso da presunção e que bastaria a denominada “certidão de divórcio’’, para rever e confirmar sentencia proferida pelo Tribunal Australiano, uma vez que estamos perante uma situação de incerteza jurídica quanto à conformidade com o ordenamento jurídico português. Isto porque, a “certidão de divórcio” não comporta os requisitos mínimos para que não seja necessária a sentença revidenda, no caso específico da Justiça australiana e sem sentença revidenda nos autos, observa-se a revisão e confirmação de um acto inexistente!

21. Persistindo ainda dúvidas na lide quanto à autenticidade da documentação junta pelo Requerente, nomeadamente, a “certidão de divórcio” (cfr. art. 1096º a) do Código de Processo Civil), motivo pelo qual deve ser o Requerente convidado a vir demonstrar a veracidade do documento, que desde já se impugna para os devidos efeitos legais, nos termos do artigo 545º, nº2, do Código de Processo Civil.

22. Ora, no caso vertente, enfrentamos dois problemas basilares e que melindram directamente a Ordem a que nos referimos, em primeiro lugar, afigura-se impossível reconhecer uma sentença quando em juízo não existe sentença para ser reconhecida e em segundo lugar, reconhecer uma sentença (inexistente reitere-se), desconhecendo o seu conteúdo, faz-nos cair no risco de estar a reconhecer uma decisão que atente de modo imediato contra o Direito Material Português.

23. Face ao supra exposto e ainda à contínua falta de junção da decisão revidenda, não se poderá deixar de reiterar que não se encontram preenchidos os requisitos para confirmar ou rever uma sentença estrangeira.

24. Nessa medida, verifica-se a ofensa de uma disposição legal expressa que exige uma concreta prova para a existência de um facto, ou seja, no âmbito do processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, é essencial a junção aos autos da”sentença revidenda” para provar a existência do divórcio e conferir assim eficácia ao mesmo no nosso pais. […].

25. Face ao supra exposto, observando-se a falta da sentença revidenda no âmbito dos presentes autos, sempre se dirá que não é possível proceder à revisão e confirmação de um acto jurídico e inexistente, e dessa forma impossível ao Venerando Tribunal tomar conhecimento dela ou confirmar qualquer acto/facto jurídico que dela resulte.

26. Pelo que, o Tribunal da Relação incorreu em erro na apreciação da prova produzida nos autos, em virtude de ter confirmado uma sentença, da qual não teve conhecimento, sendo que resulta expressamente da lei que é documento essencial para esse efeito, sob pena de inviabilizar a decisão jurídica em causa.

Nestes termos deverá ser concedido provimento ao recurso, e em consequência, ser revogado o Acórdão proferido que confirmou a sentença estrangeira.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1) – O Requerente e a Requerida contraíram casamento um com o outro, no dia 23 de Abril de 1977.

2) – O Requerente juntou documentação emitida pelas Autoridades da Austrália onde se exara:

Tratando-se do casamento entre AA… e BB…, eu, o/a abaixo assinado(a), certifico, em relação ao casamento solenizado no dia vinte e três de Abril de 1977, que a sentença de divórcio proferida por este Tribunal no dia dezoito de Outubro de 2007 transita em julgado no dia dezanove de Novembro de 2007”.

3) – Nenhum outro documento relativo ao divórcio emitido por Autoridades Australianas foi possível obter pelo Requerente.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a sentença australiana pode ser revista e confirmada em Portugal, sustentando a recorrente que tal não é possível, desde logo, por o requerente não ter junto documento que possa ser considerado a sentença que decretou o divórcio entre si e o recorrido, na Austrália.

Trata-se de dois cidadãos portugueses residentes ao tempo na Austrália, que, nesse país, requereram o divórcio que, alegadamente foi decretado e cuja revisão e confirmação o recorrente marido requereu em Portugal, com a oposição da mulher que agora recorre do Acórdão que lhe foi desfavorável.

A recorrente, tal como na Relação, continua a sustentar que o documento emitido pelas autoridades australianas “certidão de divórcio”, não pode ser considerado uma sentença – deve ater-se ao conceito da lei portuguesa – e daí que não possa observar-se a inteligência da decisão, nem tão pouco é compreensível o seu objecto e alcance.

Nos termos do art. 1096º do Código de Processo Civil

“Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão.
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.”

Está em causa a al. a) e, pelo que ao diante diremos, a alínea f) do preceito citado, importando, nesta vertente, saber se o reconhecimento da decisão revidenda não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é, em regra, de revisão meramente formal (1).

Assim, o Tribunal português competente para a revisão e confirmação, deve verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa.

Nessa perspectiva, se o tribunal nacional verificar que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa – Alberto dos Reis – “Processos Especiais”, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, pág.141.

Este princípio de revisão formal é atenuado pelo estatuído no art. 1100º do Código de Processo Civil:

“1 – O pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 1096º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do artigo 771º.
2 – Se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.”

O Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28.06.2001, in CJSTJ, 2001, II, 140, decidiu:

“A expressão taxativa do nº1 do artigo 1100º do Código de Processo Civil, a propósito dos fundamentos de impugnação do pedido de revisão de sentença estrangeira, constitui natural decorrência do princípio mitigado de revisão formal, consagrado no sistema português”.

A excepção à referida regra só ocorre se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, caso em que a impugnação também pode ser fundada na circunstância de que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos da lei portuguesa – artigo 1100º, nº2, do Código de Processo Civil.
A actual redacção do art. 1096º do Código Civil – na redacção do DL 329-A/95, de 12.12 – suprimiu a alínea g) que estabelecia também, como requisito de revisão – “Que, tendo sido proferida contra português, não ofenda as disposições do direito privado português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo a regra de conflitos do direito português”.

A Reforma do Código de Processo Civil alterou, também, a al. f) daquele art. 1096º, cuja redacção anterior impunha relativamente à sentença revidenda: “Que não contenha decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa”.

A redacção ora vigente é: “Que não contenha decisão, cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português”.

O advérbio de modo “manifestamente”, significa que só se a decisão revidenda tiver um conteúdo que de modo clamoroso afecte os princípios de ordem pública internacional do Estado Português é que deve ser recusada a revisão e confirmação.

Por “princípios da ordem pública internacional do Estado português” devem entender-se aqueles que “de tão decisivos que são, não podem ceder, nem sequer nas relações jurídico-privadas plurilocalizadas” –Professor Marques dos Santos, in “Revisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras, Aspectos do Novo Processo Civil”, pág. 139.

Como se escreveu no Acórdão deste Supremo de 3.7.2008, in www.dgsi.pt – Proc.08B1733:

“Perante o direito processual anterior, entendia, maioritariamente, a jurisprudência que o nosso “sistema está enformado pelo princípio da revisão formal, só admitindo a revisão de mérito no caso da referenciada al. g) do art. 1096º do Código de Processo Civil, pelo que as disposições que esta alínea quer salvaguardar são aquelas que definem o respectivo direito e não as disposições que disciplinam a tramitação processual para que esse direito seja declarado pelos tribunais.
Esta mesma alínea visa proteger o próprio interesse do súbdito português, desobrigando-o de suportar as consequências de uma decisão proferida segundo uma lei diferente da sua lei natural” – (Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 5.6.86, 19.6.86 e 31.1.2002, in BMJ 358º, págs. 428 e 460 e CJ, I, pág. 68, respectivamente).
Isto significa que a revisão de mérito só teria lugar quando a decisão no tribunal estrangeiro fosse proferida contra português.
No preâmbulo do DL. nº 329-A/95, sobre este artigo, foi dito que se aperfeiçoou o teor da al. f), pondo-se a tónica no carácter ofensivo da incompatibilidade da decisão com a ordem pública internacional do Estado Português.
Daí que, na situação actual, o obstáculo à revisão e confirmação não é mais o ser proferida contra português, mas apenas a salvaguarda dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
A exigência deste requisito está em consonância com o art. 22º do Código Civil, que estabelece que não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português.
No caso de revisão de sentença, a mesma só não será concedida quando contiver decisão que conduza a um resultado manifestamente incompatível com esses princípios”. (sublinhámos).
Não compete ao Tribunal português apreciar do bem fundado da decisão e se a sua execução importa dificuldade para as partes; o critério é, em princípio, como dissemos, um critério de controlo formal.

O Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 21.2.2006, acessível in www.dgsi.pt – Proc. 05B4160 – considerou:

“A excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al.) do art.1096º Código de Processo Civil só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende.
Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português – núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, e que opera em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira.
O cabimento da reserva de ordem pública só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência”. (destaque nosso).

Dito isto, importa acentuar, desde logo, que o Tribunal recorrido actuou com prudência ao tomar sobre si – como não podia deixar de ser – a realização de diligências no sentido de instruir o recurso de revisão, mormente, ante a acérrima oposição da ora recorrente, que tendo sempre afirmado que a “certidão de divórcio” não pode ser considerada a sentença revidenda, e que não é inteligível, nem com base nela se sabe se os fundamentos do divórcio violam a lei e a ordem pública internacional do Estado português (é a isso que implicitamente se refere quando alude a que o tribunal português não pode controlar os fundamentos da decisão e logo saber se viola os referidos princípios), a recorrente nenhum contributo deu para o esclarecimento da situação, quedando-se numa inércia não construtiva.

Não saberá a recorrente quais os fundamentos do divórcio requerido na Austrália?

Não saberá quais os trâmites da lei australiana nem as formalidades para naquele país se obter o divórcio?

A recorrente reconhece que o divórcio foi decretado, pois, doutro modo, seria incongruente que pugnasse pela não revisão e confirmação em Portugal, pelo que não ignora o fundamento ou fundamentos invocados.

Os Tribunais têm por missão decidir com celeridade, justiça e legalidade, os interesses relevantes dos cidadãos, dentro dos limites das suas competências e, num tempo em que muito se censuram os procedimentos baseados em aspectos formais como via larga para o protelar das decisões, a actuação da recorrente, salvo o devido respeito, pela falta de colaboração, destoa.

Não é verdade que hoje, no direito interno português, o processo de divórcio – com alteração da lei substantiva – Lei 61/2008, de 31.10 – foi deveras facilitado no que respeita aos requisitos substantivos, admitindo-se o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges – art. 1773º, nºs 1 e 3, do Código Civil – com os fundamentos previstos no seu art.1781º – e também no que se refere ao processo?

Será que os tribunais portugueses, que acompanharam essa tendência de celeridade e reconhecimento presto das decisões estrangeiras, devem ser levados a grau tal de exigência formal – é essa a ênfase que a recorrente coloca na oposição – que não reconheçam decisões estrangeiras no caso de não observaram a complexa estrutura da sentença judicial tal como o direito português a define com as clássicas fases de relatório, fundamentos e decisão?

Respondemos negativamente, enfatizando que a revisão das sentenças estrangeiras é, em regra, revisão formal e daí que o Tribunal com competência para a revisão e confirmação, desde logo, tenha de adquirir documentalmente a certeza do acto jurídico postulado na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na acepção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte a decisão revidenda, mesmo que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença que consta do art.659º do Código de Processo Civil.

Há sistemas jurídicos em que o divórcio é decretado por decisão administrativa e não por uma sentença judicial.

Mais a mais se, oficiosamente, se diligenciou e solicitou a cooperação das partes no sentido de remover as dúvidas a esse respeito suscitadas, dúvidas que foram dissipadas, quer sobre a autenticidade do documento, quer sobre a inteligência da decisão.

Aqui chegados há que afirmar que a certidão de divórcio constante de fls. 9 [tradução em português], extraída do Processo número (P) SYC4272/2007 onde se refere que no Tribunal de Magistratura Federal da Austrália, em Sydney, entre AA (marido) e BB (mulher) e se lê - “Eu, o/a abaixo-assinado(a), certifico, em relação ao casamento solenizado no dia vinte e três de Abril de 1977, que a sentença de divórcio proferida por este Tribunal no dia dezoito de Outubro de 2007 transita em julgado no dia dezanove de Novembro de 2007”, vale como sentença no direito interno português dela se colhendo que foi decretado o divórcio entre a recorrente e o recorrido.

Essa certidão – original a fls. 10 em língua inglesa – foi emitida pela Federal Magistrates Court of Australia.

O divórcio foi decretado, e ante a inexistência de prova em contrário, a sentença australiana transitou em julgado dado o lapso de tempo decorrido.

No que respeita à pretensa ininteligibilidade da decisão à luz do direito interno português, mormente, quanto à insinuada ofensa dos princípios contrários à ordem pública internacional do Estado Português, importa afirmar que não faz sentido que a recorrente invoque tal argumento; ademais infere-se, do que alega nos arts. 17º e 18º da oposição, que o motivo do divórcio foi a violação dos deveres conjugais por parte do seu cônjuge.

Assim é que afirma: “Acresce que, se a motivação para o divórcio, decorrer da separação de facto dos cônjuges há mais de um ano…tal facto será da culpa exclusiva do ora Requerente, que face às suas condutas ofensivas do dever de respeito e fidelidade, forçaram a Requerida a sair da casa de morada de família na Austrália e retornar a Portugal, dado que não possuía meios económicos para se manter nesse país.”.

Se no actual direito interno português – art. 1781º do Código Civil – são fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, entre outros – “a) A separação de facto por um ano consecutivo; d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.”, podemos concluir que a recorrente sabe qual o fundamento do divórcio e que na Austrália é admitido o divórcio sem consentimento e sem culpa, tal como na lei portuguesa, mesmo que seja grave a infracção conjugal que implica ruptura definitiva da relação conjugal.

No divórcio sem culpa (no fault), a dissolução do casamento não requer a prova da culpa na violação dos deveres conjugais de um ou outro cônjuge.

As razões comuns para o divórcio (no fault) incluem, na comum das legislações estrangeiras que o admitem, a mera alegação de incompatibilidade conjugal, diferenças irreconciliáveis e insuperáveis.

O divórcio (no-fault) está em vigor na Austrália desde 1975 e a única coisa que o requerente precisa de provar é separação por 12 meses.(2)

Em caso em tudo semelhante ao caso sub judicio – estava em causa a revisão e confirmação de uma sentença de divórcio decretada por um tribunal australiano – a Relação de Lisboa, concedeu a revisão e confirmação.

Nesse Acórdão de 3.7.2007 (3), – Proc.3908/2006-7, in www.dgsi.pt – pode ler-se no respectivo sumário:

“Não se suscitando dúvidas sobre a autenticidade do documento emitido pelas autoridades australianas que certifica que a sentença de divórcio proferida pelo Tribunal daquele Estado em 17 Janeiro de 2006 produziu efeitos a partir de 18 Fevereiro de 2006, documento que aquele Estado emite destinado a comprovar o divórcio decretado judicialmente e não competindo, em sede de revisão de sentença, o controlo de mérito da decisão, está assegurada a observância do disposto no artigo 1096º.º,alínea a) do Código de Processo Civil, impondo-se conceder a revisão e confirmação da sentença proferida pelas autoridades australianas (ver artigo 365.º do Código Civil e Convenção da Haia sobre Revisão de Sentenças de Divórcio e de Separação de 1 de Junho de 1970)”.

Concluindo pela prova dos requisitos previstos no art. 1096º do Código de Processo Civil, e pela observância dos princípios jurídicos que lhes estão subjacentes, não se vislumbram razões para revogar o Acórdão sob censura.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela recorrente sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.


Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Março de 2011

Fonseca Ramos (Relator)
Salazar Casanova
Fernandes do Vale

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1)-Sobre as alterações operadas nesta matéria pela Reforma Processual de 1995/96 escreve António Marques dos Santos, in “Aspectos do Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 110: “Em nosso entender, o sistema português de reconhecimento das sentenças estrangeiras acentuou, com esta reforma, o seu carácter de sistema predominantemente formal dada a menor importância que a lei reconhece ao “privilégio de nacionalidade’’, que constava da antiga alínea g) ao artigo 1096º. Com efeito, os actuais requisitos que são necessários para a confirmação que constam do art. 1096° do Código de Processo Civil têm praticamente todo carácter extrínseco ou formal e não há nenhum deles que implique qualquer controle do direito material que foi aplicado pelo tribunal sentenciador ou da apreciação da matéria de facto”.
2)-Por pesquisa feita na internet no endereço http://translate.google.pt/translate?hl=pt-PT&langpair=en%7Cpt&u=http://www.nla.gov.au/oz/law.html constam aí instruções para o divórcio – Aplication for divorce-kit - onde se pode ver um formulário em tudo igual ao que consta de fls.59 a 64.
3)-Este Acórdão tem um voto de vencido a cuja argumentação se ampara a recorrente para defender a tese que expressou no recurso.