Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1884/19.4YRLSB.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :

Uma ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL, outorgada no TABELIÃO DE NOTAS que refere "Os contratantes reconhecem expressamente, o fato de estarem vivendo como se casados fossem, desde janeiro de 2005" e que, "Assim o disseram, dou fé, pediram-me e lhes lavrei este instrumento, o qual feito e lido em voz alta, foi achado conforme, aceitaram, outorgam e assinam, juntamente com as testemunhas, a todo ato presentes", é suscetível de ser revista e confirmada, nos termos dos arts. 978.º e ss. do CPC.
Decisão Texto Integral:

Processo nº 1884/19.4YRLSB.S1 - Revisão de Sentença Estrangeira
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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção.
1-AA, residente na Rua …, ..., República ..., intentou processo especial de revisão de sentença estrangeira, contra ..., residente na mesma morada, pedindo a revisão e confirmação da escritura de união estável exarada no 14° Tabelião de Notas da Comarca de ..., República ....
2-Citado, o requerido nada disse.
3-Facultado o processo para alegações, o Ministério Público e a requerente alegaram no sentido da confirmação da escritura revidenda.
4-Por decisão sumária, proferida no Tribunal da Relação, entendeu-se que “A escritura pública de união estável exarada no Tabelião (Notário), que se limite a atestar essa mesma união, sem que tenha sido proferida decisão, subsume-se a um meio de prova e, como tal, não pode ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal, ex vi art, 978/1 CC.
Pelo exposto, julga-se improcedente a ação de revisão de sentença estrangeira”.
5- Havendo reclamação, foi decidido, por maioria, em conferência: “Subscrevendo os fundamentos em que se alicerça a decisão singular proferida pela relatora, acorda-se, em conferência, confirmar a decisão reclamada, não se atendendo à reclamação”.
6- Havendo voto de vencido, com entendimento contrário, do seguinte teor: “A jurisprudência tem aplicado analogicamente este regime de reconhecimento às decisões de autoridades administrativas estrangeiras. E até a atos dessas autoridades que não contêm decisões, como é o caso de escrituras públicas de reconhecimento de uniões estáveis ….”.
Cita o Ac. da Relação de Lisboa de 17.12.2019, Proc. 2032/19.6YRLSB.7RL, que refere: “Deve a ação especial de revisão de sentença estrangeira que tem por base a escritura pública declaratória de união estável outorgada no ..., em conformidade com as regras exigidas pelo direito civil ..., e não se verificando qualquer dos óbices formais previstos no artigo 980°, alíneas a) e f) do Código de Processo Civil, ser objeto de revisão e confirmação pelo Tribunal da Relação competente, produzindo os seus efeitos perante o ordenamento jurídico português”.
Refere ainda, “Como diz Luís Lima Pinheiro "em última instância o que importa não é a natureza do órgão que profere a decisão mas os efeitos que produz segundo o Direito do Estado de Origem" (Direito Internacional Privado, Vol III, 2.2 ed., Almedina, Coimbra, 2012:492).
Ora de acordo com o Estado a quo os efeitos da escritura revidenda equiparam-se a um ato jurisdicional de reconhecimento de uma união de facto”.
7- Inconformada a requerente recorre de revista, concluindo:
“A. Nos termos do artigo 985, n.º 1, do CPC cabe recurso de revista do Acórdão do Tribunal Relação que incida sobre o mérito da causa;
B. O Acórdão recorrido julgou improcedente, com um voto de vencido, o pedido de revisão e confirmação de escritura de união estável celebrada no 14.º Tabelião de Notas da Comarca …, da República ..., por considerar que a mesma não constitui uma decisão, em sentido próprio, suscetível de reconhecimento;
C. Porém, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do próprio Tribunal da Relação de Lisboa, o conteúdo do artigo 978 do CPC tem amplitude suficiente para abranger decisões, ainda que não provindas de um órgão jurisdicional, quando no país estrangeiro seja outra a entidade a quem competem essas decisões;
D. A jurisprudência portuguesa tem vindo a proferir várias decisões de revisão e confirmação de escrituras de união estável outorgadas na República ..., motivo pelo qual a manutenção da recusa de revisão da escritura em causa nos presentes autos criaria uma situação de insegurança jurídica injustificável;
E. A escritura pública declaratória da união estável corresponde indiscutivelmente à prática de um ato administrativo, presidido por oficial dotado de fé pública, onde se procede efetivamente ao caucionamento do reconhecimento de direitos privados conferidos aos conviventes, pelo que deve ser equiparada a uma sentença, de acordo com a legislação ...eira e, como tal, deve ser considerada uma decisão sobre direitos privados abrangida pela previsão do art. 978, nº 1, do CPC;
F. A Recorrente e o Recorrido necessitam do reconhecimento da escritura de união estável revidenda na ordem jurídica portuguesa para que possam prosseguir com o processo de obtenção da nacionalidade portuguesa pelo Recorrido, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, pelo que, a recusa deste reconhecimento por motivos meramente formalistas, tem um impacto significativo e negativo na vida das Partes, que as colocaria num vazio legal sem forma de prosseguir com a sua pretensão legítima;
G. Pelo exposto, a escritura de união estável celebrada sob o regime da completa separação de bens no 14.º Tabelião de Notas da Comarca …., na República ... deverá ser revista e confirmada.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, por provado, revogando-se o Acórdão recorrido e confirmando-se na ordem jurídica portuguesa a escritura de união estável celebrada sob o regime da completa separação de bens no 14.º Tabelião de Notas da Comarca de …, da República ...”.
8-O Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça apresentou contra-alegações, concluindo: “Nos termos expostos, sem necessidade de quaisquer outros fundamentos, e como tem vindo a ser jurisprudência consolidada neste Supremo Tribunal de Justiça, entende o Mº Pº que deverá improceder o presente recurso, mantendo-se na íntegra o douto Acórdão recorrido”.
9- O recurso é admissível, nos termos do artigo 985, n.º 1 do CPC.
10- Dispensados os vistos, cumpre decidir.
11-Atentos o documento junto considera-se provado:
-Requerente e requerido outorgaram na Escritura Pública de Declaração de União Estável exarada no 14º Tabelião de Notas, Estado de ..., República ....
- Consta desse documento que:
“Os contratantes reconhecem expressamente, o fato de estarem vivendo como se casados fossem, desde janeiro de 2005, em União Estável, reconhecida como entidade familiar, pelo disposto no artigo 226 da Constituição Federal e artigo nº 1.723 do Código Civil ...”.
“Assim o disseram, dou fé, pediram-me e lhes lavrei este instrumento, o qual feito e lido em voz alta, foi achado conforme, aceitaram, outorgam e assinam, juntamente com as testemunhas, a todo ato presentes”.
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Conhecendo:
São as questões suscitadas pela recorrente e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 608, 635, nº 3 a 5 e 639, nº 1, do C.P.C. No caso em análise, a questão suscitada no recurso consiste em saber se a Escritura Pública Declaratória de União Estável, exarada no Estado de …., ..., junta aos autos, é suscetível de revisão, nos termos do disposto no art. 978, n.º 1, do CPC, para vigorar como sentença no Estado Português.
A Jurisprudência não tem decidido de forma uniforme, quer nos Tribunais da Relação, quer neste STJ, sobre situações similares à que é objeto destes autos.
A jurisprudência tem entendido, e bem, que no conceito de “decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro” (art. 978 do CPC), deve ser interpretada em sentido amplo para abranger decisões proferidas seja por autoridades judiciais, seja por autoridades administrativas.
Sobre esta questão seguimos o entendimento expresso no Ac. do STJ de 29-01-2019, no proc. nº 896/18.0YRLSB.S1(relatado pelo aqui adjunto).
Aí se refere que: “O Código Civil do ... de 2002 legitimou «como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família» (art. 1723º)”.
Uma relação de convivência entre duas pessoas (de sexos diferentes ou do mesmo sexo), configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família, pode ser formalizada através da escritura pública declaratória de união estável e esta pode ser posteriormente convertida em casamento.
Uma vez que foi emitida pela autoridade administrativa ...eira legalmente competente para o efeito, tal escritura pública tem, no ordenamento jurídico daquele país, força igual à de uma sentença que reconheça uma união estável e, assim, deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados abrangida pela previsão do art. 978, nº 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.
Na verdade, «[o] critério a ter em conta para a sujeição ao processo de revisão assenta na natureza da decisão – importando avaliar se a “decisão” estrangeira produz efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita –, mostrando-se não relevante o órgão de que emana, dado que cada Estado é livre em definir as matérias que cabem na competência dos tribunais, não se mostrando o respectivo critério uniforme em todos os Estados» -(Acórdão da RL de 10-11-2009 (p. 1072/09.8YRLSB-7). Também neste sentido, os acórdãos deste Tribunal de 25-06-2013 (p. 623/12.5YRLSB.S1) e de 12-07-2005 (p. 05B1880)).
Refere o art. 980 do CPC que: “Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
(…)
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
(…)
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Constata-se dos requisitos enunciados que, a revisão do conteúdo da dita “decisão” (escritura) estrangeira, com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional, envolve, tão só, a verificação da sua regularidade formal ou extrínseca, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma.
No acórdão que vimos seguindo se refere: “ Ora, relativamente à escritura em apreço, verifica-se que concorrem as condições indicadas sob as alíneas a) e f) do citado artigo, porque não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do documento onde a mesma consta nem sobre a sua inteligência e, ainda, porque o seu conteúdo (união de facto de pessoas do mesmo sexo), em si, não é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português. E também se não apura, através dos meios previstos no art. 984 do mesmo código, a falta de observância de qualquer um dos requisitos indicados sob as demais alíneas daquela outra norma (980), designadamente a d).
Realmente, o obstáculo que na decisão recorrida foi oposto à pretendida confirmação não se prende com o resultado desta, em si mesmo, mas com o que, eventualmente, poderia advir da aquisição da nacionalidade portuguesa, apenas com base na falada escritura, pelo requerente cidadão …, quando, diferentemente, um outro interessado na nacionalidade portuguesa que viva em Portugal apenas pode provar a união de facto para tal efeito por decisão judicial que diretamente a reconheça, tal como é previsto nos acima citados normativos.
Porém, mesmo não desconsiderando a probabilidade de «a finalidade última dos requerentes» ser a aquisição da nacionalidade portuguesa por um deles, sendo, pois, previdente o argumentado pela Relação, por ora, apenas vem pedida a revisão e confirmação da escritura e o certo é que só a apreciação dos termos em que, porventura, possa vir a ser materializada uma tal hipotética pretensão permitiria aferir se, em concreto, a mesma violaria o invocado princípio da igualdade”.
E, salienta o Ac. da Rel. de Lx., de 21-11-2019, no proc. nº 1899/19.2YRLSB-6 que, “a evolução do entendimento do que seja decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro, implica já a ultrapassagem da dicotomia intervenção constativa ou performativa do oficial público para exigir uma outra ordem de classificação: intervenção de oficial público com ou sem repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada.
Esta a fronteira a estabelecer para a admissibilidade da revisão, ultrapassada como está a da decisão judicial em sentido estrito e, bem assim, a da decisão de oficial público não tribunal.
Na verdade, a revisão de sentença estrangeira tem uma razão de ser que decorre desde logo do artigo 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: nenhuma decisão (…) tem eficácia em Portugal (…) sem estar revista e confirmada.
A tónica é colocada na eficácia em território português. Admitindo, como a jurisprudência portuguesa admite, o alargamento da noção de decisão judicial à decisão de órgão público caucionada nos seus efeitos pelo sistema jurídico, é esta dimensão performativa que importa – intervenção com efeitos no sistema jurídico em que é prevista e realizada. Dizendo de outro modo, a intervenção com repercussão performativa, para além do mero reforço da força probatória, é suscetível de revisão por ser este o ponto específico que a revisão visa: produção de efeitos na ordem jurídica.
A união estável é um facto e não um ato jurídico. A intervenção do oficial público prevista no sistema jurídico ... é constitutiva, no sentido de produzir efeitos na ordem jurídica, nomeadamente o declarativo da verificação da situação de união estável”.
Face ao exposto e, entendendo-se ser passível de revisão a decisão em análise, há-de ser revogado o acórdão recorrido.
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Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:
I- Uma ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL, outorgada no TABELIÃO DE NOTAS que refere “Os contratantes reconhecem expressamente, o fato de estarem vivendo como se casados fossem, desde janeiro de 2005” e que, “Assim o disseram, dou fé, pediram-me e lhes lavrei este instrumento, o qual feito e lido em voz alta, foi achado conforme, aceitaram, outorgam e assinam, juntamente com as testemunhas, a todo ato presentes”, é suscetível de ser revista e confirmada, nos termos dos arts. 978 e seguintes do CPC.
Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista e, por consequência, a revisão e confirmação, para produzir efeitos em território nacional, da escritura acima referida.
Sem custas o recurso de revista, sendo as custas da ação suportadas pelos requerentes que dela tiram proveito (art. 527º do CPC).

Lisboa, 08 de setembro de 2020

Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Nos termos do art. 15-A, do Dl. nº 10-A/2020 de 13-03, aditado pelo art. 3 do Dl. nº 20/2020 atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.
Maria Clara Sottomayor – Juíza Conselheira 1ª adjunta
António Alexandre Reis – Juiz Conselheiro 2º adjunto