Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
221/21.2YRLSB-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
ESCRITURA PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Uma “escritura pública declaratória de união estável” lavrada em Tabelionato de Notas brasileiro é um ato equiparado a sentença, podendo ser objeto de processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos dos artigos 980.º e seguintes do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
AAA, de nacionalidade portuguesa e brasileira, e BBB, de nacionalidade brasileira, ambos residentes no, Brasil, Código Postal 00000-000, intentaram, de comum acordo, a presente ação com processo especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo a confirmação da escritura pública pela qual foi formalizada a sua união estável.
O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do art. 982.º do Código de Processo Civil, alegou o seguinte:
1. Pretendem os requerentes a revisão e confirmação de “Escritura Declaratória de União Estável” realizada em cartório notarial brasileiro.
2. Tem vindo a consolidar-se no STJ jurisprudência – cfr acórdãos de 21/03/2019, rel. Sacarrão Martins e de 9/05/2019, rel. Nuno Pinto de Oliveira) - no sentido de considerar que os actos em causa não podem ser objecto de revisão e confirmação por não se reconduzirem a verdadeiras decisões, mesmo considerando o sentido mais amplo do conceito, por conterem, tão só, um mero “enunciado assertivo ou constatativo” limitando-se o notário a atestar o que lhe declaram os requerentes sem acrescentar qualquer actividade decisória ainda que meramente homologatória.
3. Não se vislumbrando razões de ordem doutrinal e/ou jurisprudencial que sustentem a discordância com tal entendimento importa concluir, desde logo em homenagem ao princípio da certeza e segurança jurídicas, que a pretensão dos requerentes não tem condições para obter vencimento.
Nestes termos deverá negar-se indeferir-se o pedido de revisão e confirmação da “Escritura Declaratória de União Estável” formulado pelos requerentes.
Os Requerentes também alegaram, reiterando a sua pretensão, nos seguintes termos:
1.º Diante da consolidação do entendimento Jurisprudencial, incluindo o Tribunal da Relação de Lisboa, ficou evidente expressamente a caracterização da Escritura Pública Brasileira em Notário / Tabelião como Sentença Estrangeira, pelas peculiaridades que lhe são próprias.
2.º Diversos são os casos recentes em que isso foi reafirmado, apesar da Respeitável Resistência do Douto Ministério Público em alguns deles.
3.º Em processo igual, por conta de escritura pública de união estável (de facto) brasileira perante notário, este Advogado impetrou Reconhecimento de União Estável pelas vias ordinárias, qual seja o Tribunal de Família de Lisboa. No processo em questão, o Magistrado extinguiu o processo por incompetência absoluta, vez que o Tribunal da Relação de Lisboa havia expressado o seu entendimento, de modo em que, obrigatoriamente, o processo deveria se dar por Revisão de Sentença Estrangeira.
4.º Na oportunidade, foi assim indicado pelo Magistrado: (…)
5.º A Procuradoria da República, no mesmo processo, assim peticionou: (…)
6.º Evidentemente uma das maravilhas do Direito é o debate de ideias e entendimentos diversos. Todavia, chega-se a um instante no qual deve-se manter a estabilidade das decisões em virtude da Segurança Jurídica. No processo em Primeira Instância em questão, que foi impetrado no início de 2020, um pouco antes havia o eventual entendimento de que a Escritura Pública brasileira não poderia ser considerada como Sentença Estrangeira. Inclusive foi por esta razão que o presente Patrono impetrou nas vias normais ordinárias, que são mais demoradas.
7.º Ocorre que, durante o processo houve consolidação do entendimento pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com vários julgados. Na ocasião, o Douto Magistrado do Ministério Público também afirmou categoricamente que a Escritura Pública Brasileira é sentença estrangeira e o processo obrigatoriamente deveria ser a Revisão de Sentença Estrangeira.
8.º Diversos julgados foram apresentados, tanto na petição inicial deste processo, como neste despacho do Douto Magistrado da Primeira Instância.
9.º Desta forma, não há dúvidas, seja pela Jurisprudência do Tribunal da Relação, em consonância com a devida interpretação dos julgados do STJ, seja pelo entendimento também da Instância Ordinária e de Magistrado do Ministério Público de origem, no qual ambos decretaram a incompetência absoluta do feito naquela via e afirmaram, afirmando categoricamente ser o presente caso, Escritura Pública Brasileira, uma Sentença Estrangeira.
10.º Deve, então, o processo presente ser considerado perfeito e avançar para a decisão da confirmação da Sentença Estrangeira.
(…) ANEXO I
Por precaução, de forma a contestar respeitosamente o argumento do Ministério Público, sobre eventual entendimento do STJ, convém juntar trechos do Acórdão Relevante unânime sobre o tema: 1429/19.6YRLSB-2 (…)”
*
O Tribunal é competente, o processo é o próprio, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas, não ocorrendo nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
Cumpre decidir se estão verificados os requisitos necessários para que a escritura pública constante do documento junto com a Petição Inicial possa ser revista e confirmada ou se, ao invés, ocorre algum motivo que obste a que possa ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados
Atento o teor dos documentos juntos aos autos, está provado que:
1. A Requerente, AAA, nasceu em 8 de julho de 1972, em Cáceres, Mato Grosso, Brasil, tem a nacionalidade portuguesa e foi casada com CCC, de quem se separou judicialmente, por sentença de 14-01-2000, e depois se divorciou, tendo o estado civil de divorciada, conforme certidão do assento de nascimento n.º 186 da Secção Consular da Embaixada de Portugal em Brasília - Brasil e n.º 62412/2010 da Conservatória dos Registos Centrais - Lisboa e decisão sumária de 08-07-2019 no processo n.º 1496/19.2YRLSB da 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa pela qual foi confirmada a sentença de 20-04-2010 que decretou a conversão em divórcio da aludida separação (docs. 2 e 3 juntos com a PI).
2. Ambos as sentenças transitaram em julgado e foram revistas e confirmadas, conforme averbamento n.º 1 de 13-02-2020, no respetivo assento de nascimento (doc. 2 junto com a PI).
3. O Requerente, BBB, nasceu em 25 de julho de 1976, em Cáceres, Mato Grosso, Brasil, tendo o estado civil de solteiro (docs. 1 e 2 juntos com o requerimento de 01-02-2021).
4. Em 13 de abril de 2007, foi outorgada pelos Requerentes e lavrada, a fls. 014/015 do Livro n.º 940, no Cartório do Sétimo Ofício Serviço Notarial e Registral de Imóveis da Comarca de Cuiabá do Estado de Mato Grosso - Brasil, a “escritura pública de pacto antenupcial com separação total de bens na constância da União Estável” cuja certidão foi junta com a PI como doc. 1, aqui se dando por reproduzido o seu teor, pela qual aqueles, após terem sido identificados como sendo os próprios, do que foi dada fé, declararam que usando da faculdade que lhes confere a lei, de estipularem antes da união estável que ora contraem, o que lhes aprouver em relação a seus bens, pela presente escritura e nos melhores termos de direito, declaram adotar, como de fato e adotado tem, o regime da separação total de bens (…) Porém, a fim de preservar a natureza do presente pacto de união estável como sendo da separação total de bens (…) Pactuam os cônjuges que no caso de separação litigiosa ou consensual não caberá a nenhuma das partes, indenização a título de alimentos, se a separação se der nos primeiros 20 (vinte) anos da união ora formalizada.”
Enquadramento jurídico
Os requisitos necessários para a confirmação de sentença estrangeira estão previstos no art. 980.º do CPC (a que pertencem os demais artigos adiante indicados sem menção em contrário), o qual preceitua:
Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Atento o disposto no art. 983.º, n.º 1, o pedido de confirmação só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no art. 980.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do art. 696.º.
Relativamente às condições indicadas nas alíneas a) e f) do citado art. 980.º, impõe o art. 984.º que o tribunal verifique oficiosamente se as mesmas ocorrem e que também recuse a confirmação se dos autos concluir que não estão preenchidos os requisitos das demais alíneas daquele artigo.
De salientar que a alínea a) respeita à autenticidade do documento de que conste a sentença e à inteligência da decisão; a alínea f) à compatibilidade do seu conteúdo com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Estamos, assim, perante uma atividade de controlo da regularidade formal ou extrínseca da sentença estrangeira, que dispensa a apreciação dos seus fundamentos de facto e de direito.
Da análise da documentação junta aos autos, que serviu de suporte à factualidade considerada provada, não resultam dúvidas acerca da autenticidade e inteligibilidade da escritura pública a confirmar.
Tão pouco nos parece, em face do exame do processo, que faltem os demais requisitos enunciados nas alíneas b) a e) do art. 980.º.
Na verdade, a decisão a confirmar, de reconhecimento da união estável, é sem dúvida compatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, cuja legislação também consagra uma figura equivalente: a união de facto.
Não desconhecemos, contudo, a divergência jurisprudencial em torno da questão de saber se pode ser concedida a revisão e confirmação a uma escritura pública declaratória da união estável. Aliás, o parecer do Ministério Público dá conta disso mesmo.
Importa, por isso, que façamos algumas considerações a este propósito, em ordem a justificar a nossa decisão que é, como já adiantámos, em sentido afirmativo. Embora reconhecendo que ambas as correntes têm argumentos válidos, parecem-nos mais fortes os que sustentam a tese que sufragamos.
Seguiremos de perto a fundamentação explanada no acórdão de 23-01-2020, proferido no processo 3106/19.9YRLSB-2, relatado pelo ora Relatora e em que intervieram os ora Desembargadores-Adjuntos (com um voto de vencido do ora 2.º Desembargador-Adjunto).
Começando por salientar que não se descortinam razões sólidas para afirmar a falta de interesse em agir por parte dos Requerentes, sobretudo tendo em conta a vasta panóplia de efeitos jurídicos possivelmente decorrentes da união estável, uma vez reconhecida (incluindo, em face da lei brasileira, no tocante às matérias de herança e meação, pensão por morte, direito de habitação, modificação do sobrenome, averbamento nos assentos nos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais, bem como no Registro Geral de Imóveis).
Conforme já referimos, a união estável encontra na lei portuguesa uma figura próxima (não exatamente igual), a união de facto, que está consagrada na Lei n.º 7/2001, de 11-05. No art. 1.º, n.º 2, desta Lei consta a seguinte definição: “A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.”
Além do art. 3.º desta Lei, outros diplomas legais vêm atribuindo importantes efeitos jurídicos à união de facto, com destaque para o art. 3.º da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 03-10), cujo n.º 3 preceitua: “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”
No direito brasileiro, a união estável começou por estar prevista no art. 226, § 3º, da Constituição Brasileira de 1988, que veio a ser regulado pela Lei n.º 8.971/94, de 29 de dezembro de 1994. Posteriormente, esta foi substituída pela Lei n.º 9.278/96, de 10 de maio de 1996.
O Código Civil brasileiro, aprovado pela Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, refere-se em diversos preceitos legais a esta figura, dedicando-lhe especificamente alguns artigos no Livro IV do Direito de Família, a saber:
“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.
Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.”
A jurisprudência dos tribunais brasileiros sobre as diversas questões jurídicas suscitadas pela figura da união estável é vasta, conforme evidenciado pela compilação de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça do Brasil que pode ser consultada em https://www.conjur.com.br/dl/jurisprudencia-teses-uniao-estavel.pdf.
Como é sabido, a união estável é uma situação jurídica de facto, que não se confunde com o contrato de casamento, nem altera o estado civil, embora possa converter-se em casamento e ser acompanhada da celebração de contrato escrito.
Sendo certo que, em face dos múltiplos efeitos jurídicos de que a união estável se reveste, poderá acontecer que, mais tarde ou mais cedo, os conviventes ou companheiros venham a pretender prevalecer-se da mesma, deparando-se com a dificuldade em fazer a respetiva prova.
Para tanto, a lei brasileira permite-lhes lançar mão da via judicial ou extrajudicial.
No primeiro caso, deverão intentar uma ação judicial (meramente declaratória – cf. artigos 19.º e 20.º do Código de Processo Civil brasileiro, Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015), na qual será proferida uma sentença declaratória dessa união estável. A este propósito, refira-se que já teve a ora Relatora, sem oposição do Ministério Público, oportunidade de conceder a revisão a uma sentença de um tribunal brasileiro proferida numa ação em que, sem produção de qualquer prova e com base apenas no declarado pelos requerentes na petição inicial, foi reconhecida a existência da união estável (processo n.º 2645/18.3YRLSB desta 2.ª Secção). Na jurisprudência brasileira, veja-se sobre esta matéria, a título meramente exemplificativo, o acórdão do Tribunal de Justiça Minas Gerais, que, negando provimento ao recurso de apelação, manteve a decisão recorrida que reconheceu a existência da união estável da autora com o falecido pai dos réus (desde uma determinada data até ao falecimento do mesmo), pois, não obstante a decisão de indeferimento de prova testemunhal, considerou tratar-se de facto incontroverso, uma vez que os próprios réus o admitiam, a relação mantida entre a autora e o pai deles - disponível para consulta em https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/116344528/apelacao-civel-ac-10024121363329001-mg/inteiro-teor-116344586?ref=juris-tabs
No segundo caso (isto é, a via extrajudicial), a união estável poderá ser “formalizada” [mas não necessariamente constituída, já que a constituição pode ser anterior, nisto se distinguindo claramente do casamento] por duas maneiras:
- Por meio de “contrato de união estável”, celebrado por documento escrito assinado por ambos os companheiros ou conviventes – por se tratar de um documento particular, somente produz efeitos entre os contratantes; estes estipulam a data de início da convivência, o regime de bens e as regras aplicáveis em caso de dissolução da união estável, podendo incluir outras cláusulas de acordo com a sua vontade; pode ser levado a registo pelos contratantes no Ofício de Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas para ter publicidade perante terceiros (que assim já não poderão alegar desconhecimento dessa relação jurídica);
- Através de “escritura pública de declaração de união estável”, lavrada (e arquivada) no Tabelionato de Notas (por notário oficial) – a união estável assim oficializada beneficia da publicidade perante terceiros nos termos constantes da escritura pública (é o chamado efeito erga omnes); desta forma, à semelhança da sentença, não fica nenhuma dúvida quanto à sua existência.
De salientar que a união estável tem como requisito a inexistência de impedimentos matrimoniais, pois, conforme previsto no artigo 1723, § 1º do Código Civil brasileiro, todas as regras impeditivas previstas no artigo 1521 do mesmo Código (impedimentos legais aplicáveis ao casamento) são aplicáveis à união estável. Precisamente para verificação desses requisitos e identificação dos conviventes ou companheiros, estes deverão comparecer perante o tabelião, apresentando os necessários documentos: documento de identidade (original); cadastro de pessoa física; comprovativo de endereço; certidão de estado civil emitida em até 90 dias (certidão de nascimento ou casamento).
Acresce que os conviventes deliberam sobre o regime de bens, além de outras declarações de acordo com a sua vontade, não sendo necessária a presença de testemunhas.
A certidão de escritura pública, dita declaratória de união estável, é o documento emitido pelo Tabelionato de Notas que certifica e dá fé pública à Declaração de União Estável ora lavrada. Trata-se de um documento público declaratório firmado pelos conviventes no Tabelionato de Notas, que oficializa a união estável (cf. artigos 215.º a 218.º do Código Civil Brasileiro). É este documento que, nessa parte e medida, é equiparado a uma sentença, à semelhança do que acontece com a escritura pública de divórcio lavrada em Tabelionato de Notas brasileiro, parecendo-nos inaceitável equipará-lo a qualquer outro documento de menor força probatória como, por exemplo, a declaração da Junta de Freguesia a que se refere o art. 2.º-A da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio.
Ainda que pela escritura pública declaratória de união estável os outorgantes também possam definir regras aplicáveis à sua relação, como regime de bens, cláusulas, pagamento de pensão, titularidade de bens, isso não deve obstar à possibilidade da sua revisão e confirmação, à semelhança do que sucede, aliás, com as escrituras públicas de divórcio, que, para além do divórcio, também podem incidir sobre outros aspetos, designadamente a partilha dos bens do casal, sendo certo que a revisão destas últimas vem sendo concedida nos tribunais superiores portugueses, sem que tenhamos notícia de jurisprudência em contrário.
Diga-se, aliás, que a dissolução da União Estável também pode ser reconhecida judicial ou extrajudicialmente. No primeiro caso, a dissolução será declarada pelo Poder Judiciário brasileiro em ação judicial; no segundo, a dissolução será feita no Tabelionato de Notas, mediante uma escritura pública de Dissolução de União Estável aí lavrada. De referir, aliás, que a dissolução da união estável apenas poderá ser formalizada no Tabelionato quando seja consensual e os conviventes não possuam filhos menores ou maiores incapazes, concordando os conviventes com os termos da separação, como partilha de bens, eventual pensão alimentícia, guarda de filhos, etc.
Na jurisprudência, no sentido que defendemos (possibilidade de revisão e confirmação de escritura pública declaratória de união estável), merece especial destaque o acórdão do STJ de 29-01-2019, proferido no processo n.º 896/18.0YRLSB.S1 (disponível em www.dgsi.pt):
“I - A escritura pública, lavrada em cartório do Registo Civil situado no Brasil, que reconhece a “união estável e de endereço comum” entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença.
II - Verificados os requisitos previstos no art. 980.º do CPC, e não relevando saber se a referida escritura é suficiente para atribuir nacionalidade portuguesa ao membro com nacionalidade brasileira, como pretendido, deve a mesma ser revista e confirmada por tribunal português.”
Destacamos também, na Relação de Lisboa, além do aludido acórdão, os três acórdãos em que a ora Relatora interveio como 2.ª Adjunta citando, pelo seu interesse, passagens dos respetivos sumários, de 24-10-2019, no proc. n.º 2403/19.8YRLSB.L1-2, 21-11-2019, no proc. n.º 1429/19.6YRLSB-2 (citado pelos Requerentes) e 11-12-2019, no proc. n.º 2778/19.9YRLSB (os dois primeiros disponíveis em www.dgsi.pt). Assim, refere-se no sumário do primeiro: “Uma escritura declaratória de união estável brasileira pode ser objecto de um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira dos arts. 980 e seguintes do CPC”; no sumário do segundo acórdão, por sua vez, afirma-se o seguinte: “O processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira dos arts. 978 e seguintes do CPC é aplicável também a actos relativos a direitos privados resultantes de um procedimento da ordem jurídica estrangeira em que esteja prevista uma qualquer intervenção de uma autoridade não jurisdicional (por exemplo, uma entidade administrativa ou religiosa), como a tomada ou a aceitação das declarações dos interessados (caso das escrituras públicas brasileiras declaratórias do divórcio, dos divórcios acordados perante os notários colombianos ou aceites e registados pelos presidentes de câmara  japoneses ou das escrituras públicas brasileiras declaratórias das uniões estáveis).”
Neste segundo acórdão é feita uma análise alargada da legislação e jurisprudência a respeito desta matéria, pelo que, por economia, remetemos para o elenco que do mesmo consta, indicando ainda, sem um propósito de exaustão, os seguintes acórdãos da Relação de Lisboa (todos disponíveis em www.dgsi.pt):
- de 21-11-2019, no proc. n.º 1899/19.2YRLSB-6:
1. A evolução do entendimento do que seja decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro, implica já a ultrapassagem da dicotomia intervenção constativa ou performativa do oficial público, para exigir uma outra ordem de classificação: intervenção de oficial público com ou sem repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada.
2. No caso da escritura declaratória de união estável, a intervenção do oficial público prevista no sistema jurídico brasileiro autoriza, nomeadamente, o registo da situação de união de facto e a usufruição de direitos e privilégios atribuídos em razão dessa situação.
3. Envolvendo mais do que o mero reforço da força probatória, é susceptível de revisão por ser este o ponto específico que a revisão visa: produção de efeitos na ordem jurídica.
4. Mesmo a pressupor que a revisão solicitada tem como fito a inscrição em registo civil da situação de união de facto, entende-se que a atribuição de competência exclusiva visa apreciar a verificação dos requisitos de inscrição em registo, ao que se não destina a presente acção de revisão.
- 11-12-2019, no proc. n.º 1807/19.0YRLSB-7:
I. Na ordem jurídica brasileira, a união estável é erigida à qualidade de entidade familiar, podendo ser constituída por escritura pública perante tabelião de notas, constituindo essa escritura um verdadeiro contrato, designadamente com disposições sobre as relações patrimoniais entre os companheiros. Esse contrato pode ser objeto de registo, colhendo então efeitos perante terceiros.
II. A lei processual brasileira equipara a extinção consensual da união estável aos casos de divórcio consensual, podendo efetuar-se todos por escritura pública, a qual não depende de homologação judicial.
III. À nossa ordem jurídica não é estranha a noção de um «órgão jurisdicional» que consista em profissional do direito que aja sob o controlo de um tribunal, desde que ofereça garantias no que respeita à sua imparcialidade e ao direito de todas as partes a serem ouvidas, e desde que as suas decisões nos termos da lei do Estado-Membro onde estão estabelecidos possam ser objeto de controlo por um tribunal e tenham força e efeitos equivalentes aos de uma decisão de um tribunal na mesma matéria (art. 3º, nº2, do Regulamento nº 2016/1104, do Conselho de 24.6.2016, atinente às parcerias registadas).
IV. Sendo admissível a formalização da união estável no Brasil através de escritura pública perante tabelião, a intervenção e controle feitos pelo tabelião consubstanciam a intervenção de uma entidade administrativa que cauciona o ato, ao qual são atribuídos efeitos precípuos pela ordem jurídica brasileira.
V. A intervenção do notário/tabelião de notas, no âmbito da escritura da união estável, é ainda uma intervenção integrante de uma função pública transferida pelo Estado por meio de delegação administrativa sui generis, assumindo a intervenção do notário a natureza de caucionamento do ato em causa.
VI. A intervenção notarial permite que o ato despolete efeitos na ordem jurídica brasileira, tal como se tivesse sido objeto de declaração judicial em sentido estrito, estando mesmo a atividade notarial sujeito à fiscalização do Poder Judiciário. Em suma, a outorga da escritura de união estável perante o notário, a função deste e o controlo da atividade notarial pelos tribunais no Brasil são suscetíveis de equivaler aos requisitos de ato jurisdicional impostos pelo art. 3º, nº2, do Regulamento nº 2016/2014, do Conselho de 24.6.2016, tendo a intervenção de oficial público repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada.
VII. Por todas estas razões, deve admitir-se a revisão de escritura pública de união estável realizada no Brasil.
- 23-01-2020, no proc. n.º 2718/19.5YRLSB-2 (relatado pela ora 1.ª Adjunta, com um voto de vencido do ora 2.º Adjunto): A escritura pública lavrada em Tabelionato de Notas brasileiro, pela qual foi declarada a «União Estável» entre os Requerentes que nela outorgaram, é equiparada à decisão sobre direitos privados a que alude o artigo 978.º, n.º 1, do CPC, pelo pode ser objeto de processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira.
- de 21-05-2020, no proc. n.º 190/20.6YRLSB-2: Uma escritura pública declaratória de “união estável” lavrada na República Federativa do Brasil pode ser confirmada no âmbito do processo especial de revisão de sentença estrangeira previsto nos art.º 978.º ss. do CPC.
- 04-02-2020, no proc. n.º 2490/19.9YRLSB-7: Uma escritura pública de declaração de união estável outorgada no Brasil pode ser objecto de um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos regulados pelo artigo 978º e seguintes do Código de Processo Civil.
Em conclusão, consideramos que a escritura pública em apreço é um ato equiparado a sentença. A sua consagração no direito brasileiro surge, à semelhança da escritura de divórcio, na senda da desjudicialização, dando aos conviventes a necessária segurança jurídica e evitando a propositura, em tribunais do Brasil, de ação judicial (meramente declaratória), numa situação em que inexiste qualquer litígio entre os mesmos, únicos interessados em ver declarada a união estável, incluindo a data do seu início.
Destarte, é de confirmar a escritura pública em análise pela qual foi formalizado o reconhecimento da união estável dos Requerentes, para que a mesma passe a ter plena eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Atento o proveito que da procedência da ação resulta para os Requerentes, são responsáveis pelo pagamento das custas processuais, como, aliás, já fizeram, quanto à taxa de justiça (artigos 527.º e 529.º do CPC).
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente ação e, em consequência, conceder a revisão e confirmar a escritura pública lavrada em 13 de abril de 2007, a fls. 014/015 do Livro n.º 000, no Cartório do Sétimo Ofício Serviço Notarial e Registral de Imóveis da Comarca de Cuiabá do Estado de Mato Grosso - Brasil, pela qual foi formalizado o reconhecimento da união estável dos ora Requerentes AAA e BBB, que assim passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Mais se decide condenar os Requerentes no pagamento das custas processuais.
Valor da causa: 30.000,01 €
D.N.

Lisboa, 11-02-2021
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues
Arlindo Crua, vencido, conforme declaração de voto infra

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Declaração de voto de vencido [1]:

Contrariamente à solução que obteve vencimento, perfilhamos o entendimento por nós expresso em aresto desta Secção e Relação de 23/05/2019 - Revisão de Sentença Estrangeira nº. 247/19.6YRLSB -, onde citámos o douto Acórdão do STJ de 28/02/2019 - Relator: Nuno Pinto Oliveira, Processo nº. 106/18.0YRCBR.S1, in www.dgsi.pt -, no qual se referenciou que “o teor do art. 978.º, n.º 2, do Código de Processo deixa claro que a confirmação/revisão da escritura declaratória de união estável não é necessária para que tenha eficácia em Portugal.
Independentemente de ser ou não confirmada/revista, a escritura declaratória de união estável prevista pelo direito brasileiro sempre será um simples meio de prova, sujeito à apreciação de quem haja de decidir sobre o reconhecimento de direitos constituídos pela união de facto”, pois, “em princípio, a prova da união de facto pode ser feita «por qualquer meio legalmente admissível»”, conforme decorre do art. 2.º-A, n.º 1, da Lei n.º 7/2001, na redacção da Lei n.º 23/2010.
Acrescenta, então, o mesmo douto aresto, que, “esclarecido que a confirmação ou revisão não é necessária, deve determinar-se se é ou não possível — se a escritura pública pode ou não pode ser confirmada ou revista.
O alcance do termo decisão relevante para efeitos do art. 978.º foi apreciado, designadamente, pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 2013, no processo n.º 687/12.1YRLSB.S1, e de 25 de Junho de 2013, no processo n.º 623/12.5YRLSB.S1, concluindo-se em cada um dos acórdãos que abrange casos de “emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório”, e casos em que não há exactamente uma emissão formal de vontade — em que há, tão-só, “um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”.
Ora nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem (muito menos) a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o acto composto pelas declarações dos Requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” — com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada / revista”.
Apesar dos argumentos sufragados em sentido contrário, doutamente expostos, na decisão maioritária, mantemos, todavia, o entendimento que na escritura pública cuja revisão ora se pretende inexiste qualquer emissão formal de vontade da entidade administrativa, in casu do Tabelião, ainda que de natureza ou carácter meramente homologatório, ou mesmo que as declarações dos Requerentes, ali Declarantes, tenham sido caucionadas administrativamente pela ordem jurídica em que foram produzidas [2] [3].
Donde, sempre ajuizaríamos pela impossibilidade de concluir pela existência de uma decisão susceptível de revisão e consequente confirmação, o que determinaria juízo de total improcedência do presente processo especial.
                                                                                     O Desembargador Adjunto 
Arlindo José Colaço Crua
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[1] A presente pronúncia é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2] Efectivamente, a escritura “prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”.
[3] Em idêntico sentido, o recente douto Acórdão do STJ de 10/12/2019 – Relator: Ilídio Sacarrão Martins, Processo nº. 249/18.0YPRT.S2, in www.dgsi.pt .