Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3329/2006-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
REVISÃO FORMAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: REVISTA E CONFIRMADA
Sumário: I – A revisão de uma sentença estrangeira está sujeita ao sistema de revisão formal ou da delibação, devendo levar-se em conta apenas a decisão nela contida, e não os respectivos fundamentos.
II – Não obsta a que se conceda a revisão a circunstância de o requerente apenas apresentar um certificado de divórcio, emitido por um tribunal estrangeiro, do qual apenas consta que nesse tribunal foi proferida sentença que dissolveu o casamento entre aquele e a requerida.

(RRC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

I – António […] intentou a presente acção de revisão de sentença estrangeira contra Maria […], pedindo que seja revista e confirmada a sentença do Tribunal Superior de Justiça de Ontário, Canadá, que se tornou definitiva em 24 de Julho de 2000.

Alegou, em síntese, que tal sentença dissolveu, por divórcio, o casamento que haviam celebrado um com o outro no dia 21 de Setembro de 1975, na Ermida de Nossa Senhora da Guia, freguesia das Angústias, Ilha do Faial, transcrito na Conservatória do Registo Civil de Calheta, Ilha de S. Jorge, e os demais factos conducentes à procedência do pedido formulado, para tanto juntando um denominado “certificado de divórcio”, emitido pelo Tribunal Superior de Justiça de Ontário.

A requerida, regularmente citada, não deduziu oposição.

Notificados nos termos e para os efeitos do art. 1099º, nº 1 do C. P. Civil – diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência -, o requerente nada disse, tendo o Exmo. Procurador – Geral Adjunto, por seu lado, vindo requerer a notificação daquele para juntar aos autos certidão da sentença revidenda, dizendo que, certamente por lapso, da certidão junta ao processo apenas consta que o divórcio foi decretado.

Ordenada e efectuada a notificação do requerente nos exactos termos solicitados, veio este dizer, através do requerimento de fls. 21, que o reproduzido naquele documento, por si junto com o requerimento inicial, é tudo quanto resta do processo de divórcio que correu termos nos Tribunais do Canadá, depois de microfilmado e destruído, tendo sido esta a informação que colheu na respectiva secretaria onde se deslocou para o efeito, já que vive no Canadá. E concluiu pedindo que, na impossibilidade de obter outro mais completo, o mesmo seja tomado em consideração.

Notificado para o efeito, nada disse o Exmo. Procurador – Geral Adjunto sobre o assim requerido.

Cumpre decidir.
 
II – O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia. Não existem vícios que anulem todo o processo. As partes, dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade. Não se verificam outras excepções dilatórias ou nulidades de que cumpra conhecer.

III – Importa, antes de mais, atentar no conteúdo do documento junto a fls. 6 e 7 – traduzido a fls. 5 – e que constitui, como dele expressamente consta, um “certificate of divorce”, para que depois se possa aferir da sua suficiência ou inidoneidade para demonstrar a verificação dos requisitos de que a nossa lei processual civil faz depender a revisão e confirmação de decisão proferida por tribunal estrangeiro.

É documento elaborado no Tribunal Superior de Justiça de Ontário, Canadá, por denominado “funcionário de registo”, dele constando que se destina a “certificar que o casamento de António […] e Maria […] (1), que foi celebrado na Ilha do Faial, Açores, Portugal, em 21 de Setembro de 1975, foi dissolvido por sentença deste tribunal que se tornou efectiva em 24 de Julho de 2000.”(sic)

Dúvidas não se levantam, pois, sobre a sua autenticidade.

Mas nele apenas se atesta a prolação de decisão que dissolveu, por divórcio, aquele casamento, nada se dizendo quanto aos fundamentos que terão estado na base da emissão de um tal comando decisório; ao fim e ao cabo, nele certifica-se tão só aquilo que nas sentenças, tal como são formalmente configuradas pela nossa lei processual civil – art. 659º -, constitui a sua conclusão, ou seja a decisão final – cfr. parte final do seu nº 2.

A falta de indicação dos fundamentos em que assentou a decisão será circunstância obstativa a que possam ter-se como verificados os requisitos enunciados no art. 1096º, nomeadamente nas suas alienas a) e f) ?

Tudo passa por saber que sentido deve ser dado, em sede interpretativa, ao preceito em causa quando fala em “documento de que conste a sentença” e, especialmente, em “inteligência da decisão” e em “decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do estado Português” – alíneas a) e f).

O legislador, ao referir-se à “decisão”, terá em mente a peça processual complexa, idêntica à que por ele se mostra delineada ao longo dos nºs 1, 2 e 3 do citado art. 659º, ou estará a reportar-se, diversamente, à parte decisória de peça processual dessa natureza?

A este propósito escreveu-se no acórdão do STJ de 8.07.2003 (2) o seguinte: “(…) como esclarece o Prof. Ferrer Correia (…) o que se pretende é que o tribunal ad quem possa compreender o que foi decidido (isto é, o dispositivo da sentença) ( …)”.

E continua “A extensão da exigência ou requisito estabelecido na al. a) do art. 1096º CPC aos fundamentos da decisão depende, na verdade, de que, nos termos da lei, haja efectivamente lugar ao reexame do mérito da causa mediante a apreciação dessa fundamentação.”

Nos Estados em que, acolhendo-se o princípio da extraterritorialidade das decisões judiciais, se reconhece eficácia a sentenças proferidas em país estrangeiro – reconhecendo-se que produzem os efeitos que lhes são próprios no Estado de origem, como sejam o efeito de caso julgado e o efeito de título executivo -, vêm sendo adoptados dois tipos de sistemas quanto ao modo como se efectiva esse mesmo reconhecimento: por um lado, o de pleno direito e, por outro, o sistema em que “o reconhecimento da sentença pressupõe a verificação prévia da sua regularidade, isto é, pressupõe a verificação no caso concreto das condições de que segundo a lei do país requerido depende a atribuição de eficácia às decisões de tribunais estrangeiros.” (3)

Este último sistema comporta duas modalidades, consoante se exija, ou não, a revisão de mérito: no primeiro caso está-se perante o denominado sistema de revisão de mérito, no segundo em face do sistema de revisão formal ou da delibação.

Estabelecendo o traço distintivo entre estas duas modalidades, escreveu Alberto dos Reis (4) “(…) na revisão formal o tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz a certos requisitos de forma, a certas condições de regularidade (se transitou em julgado, se foi proferida pelo tribunal competente, se as partes foram citadas, etc.); na revisão de mérito o tribunal vai mais longe: conhece do fundo ou mérito da causa, procede a novo julgamento tanto da questão de facto como da questão de direito.

E entre nós está instituído, desde há muito – desde o CPC de 1876 – o sistema da revisão meramente formal, embora com alguns desvios (5), sistema que de modo algum foi posto em causa, antes saiu reforçado, com as alterações introduzidas pela revisão do C. P. Civil operada em 1995/1996.

Essas alterações, no que ao art. 1096º respeita, repercutiram-se, nomeadamente, na redacção das suas alíneas c) e), f) e na eliminação da sua alínea g), cujo regime passou a constar, com alterações, do nº 2 do art. 1100º.

No que toca à alínea f), a sua nova redacção passou a estar em consonância com a terminologia usada no art. 22º do Código Civil, além de que a referência expressa, agora feita no preceito, à “decisão” “(…) vai no sentido de se dever tão somente tomar em linha de conta a decisão contida na sentença estrangeira e não os respectivos fundamentos, como era geralmente entendido na vigência da versão do anterior preceito, não só por tal ser mais compatível com o nosso sistema de controle das sentenças estrangeiras, que é fundamentalmente de revisão formal (ou de delibação), mas também porque o ter-se acrescentado o advérbio manifestamente tem por fito, como já se viu, limitar a intervenção da reserva de ordem pública internacional aos casos que assumem um grau particularmente grave de desconformidade do resultado concreto a que se chega com os valores fundamentais da ordem jurídica do foro. (6)

Já Alberto dos Reis, referindo-se a versão anterior do preceito, entendia que o que se exige “é que a sentença não contenha decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa. Há que atender, portanto, à decisão em si, à situação que a decisão cria e estabelece, e não aos fundamentos em que assenta. (7)

E a g) do art. 1096º, na redacção anterior, que continha exigência própria de uma revisão de fundo em matéria de direito, foi eliminada, como se disse já, assim deixando de constituir condição de confirmação da sentença estrangeira, passando a constar no nº 2 do art. 1100º, agora apenas como um dos fundamentos de oposição à revisão, a deduzir pelo interessado.

Sobre as alterações operadas nesta matéria pela reforma de 95/96 escreve António Marques dos Santos (8) “Em nosso entender, o sistema português de reconhecimento das sentenças estrangeiras acentuou, com esta reforma, o seu carácter de sistema de revisão predominantemente formal dada a menor importância que a lei reconhece ao “privilégio de nacionalidade”, que constava da antiga alínea g) do artigo 1096º. Com efeito, os actuais requisitos que são necessários para a confirmação que constam do art. 1096º do CPC têm praticamente todos carácter extrínseco ou formal e não há nenhum deles que implique qualquer controle do direito material que foi aplicado pelo tribunal sentenciador ou da apreciação da matéria de facto.”

Também no tocante à alínea a) do mesmo preceito – cuja redacção não foi tocada pela dita reforma – e ao sentido a atribuir à expressão “decisão” que nela é usada e a respeito da qual se exige que possua a característica da inteligência ou inteligibilidade, sempre se entendeu que estava em causa tão só o dispositivo da sentença, ou seja, aquilo que o tribunal estrangeiro decidiu e já não “a coerência lógica entre as premissas e a conclusão (9), “pois isso já seria, de certo modo, proceder a uma revisão de mérito, a qual tem carácter excepcional entre nós”. (10) 

Pode, pois, concluir-se que o legislador ao aludir a “decisão”, está a reportar-se à parte dispositiva da sentença, à parte onde se contém o comando nela emitido.

Daí que nada obste, a nosso ver, que no caso em análise em que apenas está certificada a decisão que dissolveu, por divórcio, o casamento celebrado ente o requerente e a requerida, se tenham como verificadas, como efectivamente estão, as exigências ínsitas nas alíneas a) e f) do art. 1096º - não há dúvidas sobre a autenticidade do documento de onde consta a decisão a rever que é perfeitamente inteligível, visto ser claro que no processo de onde foi extraída a certidão em causa foi dissolvido, por divórcio, o casamento celebrado entre as partes; e, por outro lado, o reconhecimento de tal comando decisório que decretou o divórcio, em si mesmo considerado, não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. (11)
 
E, não tendo sido suscitada nem resultando do exame do processo a sua falta, é de presumir a verificação dos demais pressupostos enunciados nas alíneas b) a e) do mesmo preceito. (12) 

Verificando-se, assim, todos os requisitos necessários para a confirmação da decisão, impõe-se dar procedência à pretensão do requerente.

III – Pelo exposto, revista a decisão, confirma-se a mesma para todos os efeitos legais.

Custas a cargo do requerente.

Cumpra-se, oportunamente, o disposto nos arts. 78º e 79º do Código do Registo Civil.

Lxa. 14.11.06

(Rosa Ribeiro Coelho)
(Arnaldo Silva)
   (Graça Amaral)



___________________________
1.-Segundo informa o requerente na petição inicial, a requerida vem usando no Canadá também o nome de Maria Goretti Fontes Blayer.

2.-Acessível em www.dgsi.pt ,nº convencional JSTJ000 (Relator Conselheiro Oliveira Barros)

3.-Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, I, pág. 464.

4.-Processos Especiais, vol. II, pág. 141.

5.-Ferrer Correia, na obra e local citados, Alberto dos Reis, obra citada, pág. 142 e António Marques dos Santos, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 110.

6.-Autor e obra citados em último lugar, a págs. 141.

7.-Obra citada, pág. 180.

8.-Obra citada, pág. 149

9.-Ferrer Correia, obra citada, pág. 477.

10.-António Marques dos Santos, obra citada, pág. 118-119

11.-Neste sentido, e em caso semelhante, cfr. o acórdão do STJ já mencionado.

12.-Alberto dos Reis, obra citada, pág. 163.