Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1198/05.7TJLSB-J.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: INVENTÁRIO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ÓBITO DA REQUERIDA
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: No âmbito de processo de prestação de contas que corre termos por apenso a um processo de inventário por óbito, intentado por interessados na partilha da herança contra a cabeça-de-casal, a ocorrência do falecimento da requerida e subsequente habilitação de três das então requerentes como sucessoras da falecida não gera a impossibilidade superveniente da lide (art. 277º, al. e) do CPC) se para além das habilitadas há mais um requerente que não é sucessor da primitiva requerida e o decesso desta ocorreu depois de a mesma ter apresentado contas, que foram impugnadas por dois dos primitivos requerentes.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.–Relatório


A  e  B intentaram a presente ação declarativa de prestação de contas, com processo especial contra C [ Eneida ..... ].
Esta ação foi intentada por apenso aos autos de inventário aberto por óbito de José ....., e visava a prestação de contas respeitante ao exercício, pela requerida, das funções de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do mencionado defunto, reportando-se ao exercício das mesmas funções nos anos de 2013 e 2014.
Apresentados os autos a despacho, foi determinada a intervenção principal de Graça ..... e de Teresa ....., na qualidade de “co-herdeiras”[1]. Estas passaram, por isso, a ocupar nos presentes autos a posição de requerentes, juntamente com os iniciais demandantes.
Não obstante, apesar de citadas, não se manifestaram.
Citada a requerida, a mesma apresentou contas[2].
Tais contas foram impugnadas pelos requerentes A e B [3].
Em 07-01-2016, no âmbito da audiência prévia, determinou o Tribunal a quo a apensação, para efeitos de tramitação conjunta, dos apensos B, F, e H, pelo que o período a que se reportam as contas a prestar nos presentes autos passou a ser o relativo aos anos de 2005 a 2014[4].
Realizou-se prova pericial, tendo o Sr. Perito nomeado apresentado o competente relatório[5].
A requerida veio a falecer em 13-10-2019[6], tendo sido determinada a sua substituição processual nos autos de inventário, nos quais foram reconhecidas, como suas sucessoras, as suas filhas Graça ..... e Teresa ....., e a sua neta Ana Rita .....  .
Aquando do seu falecimento, a primitiva requerida C já não era cabeça-de-casal, porquanto, por decisão proferida em 20-07-2018, havia sido removida do cargo, que foi atribuído à interessada Graça[7]. Esta também veio a ser removida, por decisão proferida em 28-05-2020, tendo sido substituída nesse cargo pela interessada Ana Rita......[8].

Posteriormente, em 30-12-2020, foi nestes autos proferido despacho com o seguinte teor[9]:
“Tendo falecido a interessada C, efetuou-se a competente substituição processual, nos autos principais (Inventário).
Dado o carácter dependente dos autos de prestação de contas, não haverá que proceder a qualquer habilitação, porquanto todos os herdeiros de C têm já intervenção no Inventário.
De todo o modo, o falecimento da Requerida tem implicações processuais nos presentes autos, na medida em que se coloca a questão de saber se e em que termos a obrigação de prestação de contas será transmissível e, em caso afirmativo, quem deverá suceder à Requerida.
Finalmente, acaso de conclua que todos os herdeiros sucedem à Requerida, coloca-se o problema de saber se os presentes autos poderão, ou não, manter autonomia em relação ao Inventário, na medida em que a obrigação de prestação de contas se transmitirá para todos os herdeiros, ocorrendo a respectiva extinção, por confusão.

Sobre estas matérias, por todos, com muito interesse:
-  douto acórdão   do  Supremo   Tribunal      de Justiça     de          22-03-2018,          disponível    inhttp://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/81DEFAFCEB1179EB80258259004256E7;
-  douto acórdão   do  Supremo   Tribunal     de Justiça     de          16-06-2011,          disponível    in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954fDce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2b6c253ea5c91bc8802578c300530acb?OpenDocument; 
- douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-11-2005, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/0/21984fa16dd76562802570ec0045896e?OpenDocument;
- douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-05-2017, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/494E19E77B9072888025814D0055ABC8.

Assim, ponderando a aplicabilidade das regras decorrentes da acima citada Jurisprudência ao caso dos autos, o que implicará a extinção da instância, e por forma a assegurar o contraditório, convido os interessados nos presentes autos para, em dez dias, se pronunciarem, querendo, quanto à questão dos efeitos substantivos e processuais decorrentes para os presentes autos do falecimento da Requerida C - cfr. artigo 3.°, n.° 3 do Código de Processo Civil.”
Notificadas as partes, apenas os requerentes A e B se pronunciaram, concluindo nos seguintes termos[10]:
“Deverá o douto Tribunal determinar o prosseguimento dos presentes autos, o que desde já se requer a V. Ex.ª, nada obstando a que seja proferida uma decisão final sobre o mérito da causa, a qual releva, ademais, nas relações internas entre os interessados na partilha dos bens que se encontram por partilhar por morte de José ..... e C .”
Seguidamente foi proferida decisão com o seguinte teor[11]:
“A e B, habilitados como herdeiros de ISABEL ....., intentaram acção de prestação de contas contra:
a então cabeça-de-casal da herança de José ....., C, relativamente ao período temporal de 2013 e 2014.
A Requerida C apresentou contas, tendo falecido em 13-10-2019 (cfr. assento de óbito junto com o Req. com a Ref.a 33848331 do processo principal).
Sucederam à Requerida as suas filhas Graça ..... e Teresa ....., e a sua neta Ana Rita ....., em representação da sua filha Isabel acima melhor identificada (cfr. despacho de 18-05-2020 do processo principal).
Notificados os interessados para se pronunciarem quanto aos efeitos substantivos e processuais do falecimento da Requerida, na pendência dos autos, os interessados A e B tomaram posição no sentido do prosseguimento dos autos, tendo alegado que assim deveria ocorrer por se ter esgotado a fase dos articulados (Req. com a Ref.a 37752165 de 18-01-2021).

Vejamos.
No caso sob apreciação, as herdeiras da Requerida substituem-na na sua posição processual, como Requeridas.

Ora,
“No caso da herança (e da administração da herança), existe uma norma a dizer que o “cargo de cabeça-de-casal não é transmissível em vida nem por morte” (art. 2095.° do C. Civil) [5]; entendendo-se, porém, que uma coisa é o cargo de cabeça-de-casal - que não se transmite e que se extingue com a sua morte - e outra, diversa, a obrigação de prestar contas que, tendo natureza eminentemente patrimonial, constitui objecto de sucessão e se transmite aos herdeiros (do cabeça-de-casal).
Entendimento, com que se concorda, em que recorrentemente se cita a passagem em que o Dr. Lopes Cardoso (In Partilhas Judiciais, Vol. III, pág. 57, 37 ed.) diz que a obrigação de prestar contas “é transmissível via hereditária, incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça-de-casal que dela não se desobrigou.” - cfr. douto acórdão do TRC de 02-02-2016, disponível in dgsi.
Nos termos expostos, ocorre confusão entre as posições activas e passivas nos presentes autos, na medida em que a Requerente B e as interessadas Graça e Teresa, por força do falecimento da Requerida terão que assumir a representação desta última, na uma vez que o dever de prestar contas se transmitiu para aquelas, por sucessão.
Ora, funcionalmente, a acção de prestação de contas pressupõe a existência de uma relação jurídica em que, do lado activo, o autor tem o direito de exigir contas e, do lado passivo, o réu tem o dever de as prestar.
No caso, por força do óbito, a 2.a Requerente as suas cointeressadas têm que aceitar a causa, no estado em que se encontra, por força da substituição processual operada.
Por seu turno, o 1.° Requerente não pode exigir contas desacompanhado da 2.a Requerida, por força do que dispõe o artigo 2091.° do Código Civil.
Assim, não tendo sido confessada a existência de qualquer saldo, haverá que reconhecer a extinção da presente instância, por impossibilidade da lide, o que se decide.
Pelo exposto, os autos extinguem-se, por impossibilidade superveniente dos subsequentes termos da lide, na medida em que ocorre confusão entre os titulares do direito de exigir contas e as titulares do dever de as prestar, uma vez que aqueles sucedem à Requerida nos presentes autos.
Decisão
Pelo exposto, decido:
a)-reconhecer que as herdeiras de C, a saber, as suas filhas Graça ..... e Teresa ....., e a sua neta Ana Rita ..... a substituem nos presentes autos;
b)-julgar extinta a presente instância, que corre sob o apendo J por impossibilidade da lide.
Custas pela herança de C, uma vez que a impossibilidade não é imputável aos interessados.
Valor da causa: 30.000,01€.
Notifique e dê baixa.
Conclua o apenso D.”

Inconformados com tal decisão, vieram os requerentes A e B interpor o presente recurso de apelação, cuja motivação sintetizaram nas seguintes conclusões[12]:
I.Vem o presente recurso vem interposto da sentença proferida em 02/08/2021 pelo Tribunal a quo, na parte em que vem decidida extinção dos autos pela impossibilidade superveniente dos termos subsequentes da lide, na medida em que ocorre "confusão” entre as posições passivas e activas nos autos, o que determina a impossibilidade de prossecução do interesse do Recorrente Francisco por virtude dessa mesma "confusão” e com recurso à norma do artigo 2091.° do Código Civil.
II.–Não podem os Recorrentes conformar-se com a decisão recorrida, porquanto a mesma traduz uma condenação profundamente injusta, assente em manifestos erros de aplicação do direito e com possíveis efeitos ruinosos sobre a vida pessoal dos Recorrentes.
III.–Em conformidade, vem pelo presente a Recorrente apresentar Recurso de Apelação, com efeito meramente devolutivo, subida imediata e nos próprios autos, nos termos conjugados do disposto nos artigos 631.° n.° 1, 638.° n.° 1, 644.° n.° 1, alínea a), 645.° n.° 1, alínea a), e 647.° n.° 1, todos do CPC.
IV.–José ..... faleceu no dia 12/01/1989, deixando a suceder-lhe, as suas 3 (três) filhas, fruto desse casamento: Isabel ....., Graça ..... e Teresa ....., bem como para além da cônjuge sobreviva - Eneida Pereira - a que cube o exercício, por determinação legal, do cargo de cabeça-de-casal.
V.–A herdeira Isabel ..... faleceu em 18/03/2011, deixando a suceder-lhe, para além do seu cônjuge - A, a sua filha B, ora Recorrentes.
VI.–Os Recorrentes, habilitados como herdeiros de Isabel ....., intentaram acção de prestação de contas contra a então cabeça-de-casal da herança de José ....., C .
VII.–A ali Requerida, A ali Requerida, C, apresentou contas em 06/07/2015 (Cfr. Requerimento com a Ref.a 5739689), as quais foram contestadas por B e A  (Cfr. Requerimento com a Ref.a 6811285).
VIII.–Em 13/10/2019, já concluída a fase dos articulados nestes na pendência destes autos de prestação de contas, C faleceu.
IX.–O Tribunal a quo determinou que, por consequência da substituição das herdeiras Ana Rita ....., Teresa ..... e Graça ..... em relação à posição processual de C, ocorre "confusão” entre as posições activas e passivas.
X.–Essa identidade de posições não pode ser aceite, por claramente inexistente, concluindo-se que o Tribunal enquadrou mal a situação do Recorrente A enquanto herdeiro da pré-falecida (em relação a C) Isabel ..... .
XI.–O pré-falecimento de Isabel ..... em relação a C, faz com que a divisão da herança de José ..... não se faça nos mesmos termos que a divisão da herança de C.
XII.–O direito a quinhoar do Recorrente A limita-se, tão só, à proporção do direito de Isabel ..... na herança de José ....., nada lhe sendo devido do produto do acervo da herança de C.
XIII.–A esta realidade acresce o facto de as próprias Interessadas Teresa ....., Graça ..... e Rita ....., serem herdeiras de C em posições diversas no plano quantitativo, já que a interessada Graça tem mais quota percentual na herança de C. O que significa que subsiste um interesse bem relevante das demais herdeiras de C na continuação destes autos, pois o valor a suportar pela interessada Graça ..... será superior.
XIV.– O Recorrente A não é herdeiro nem de José ....., nem de C, sendo apenas herdeiro de Isabel ....., filha de José ....., entretanto falecida, nas condições em que foi judicialmente reconhecido.
XV.–O Recorrente A, nessa qualidade de herdeiro de Isabel ....., exige que lhe sejam prestadas as contas devidas pela administração que esteve a cargo e responsabilidade de C, enquanto cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de José ....., por reputar esse apuramento essencial para o efeito de se poder determinar, na sua integralidade, a parte do saldo dessas contas que lhe cabe enquanto interessado no acervo hereditário de José ..... .
XVI.–Assim, a conclusão a tirar é só uma: para além das herdeiras de C, Ana Rita ....., Teresa ..... e Graça ....., também o Recorrente A tem um interesse próprio e diferenciado, agora de todos os herdeiros de José ..... e C, na medida em que, do resultado dessas contas dependerá, para todos os efeitos, a determinação dos valores a que tem direito a título de frutos do património hereditário de José ..... .
XVII.–Configurados os termos da prestação de contas em causa desta forma, que é a única que respeita a lei, a posição das herdeiras Ana Rita ..... e Teresa ..... perante a herdeira Graça ..... não é a mesma, apesar de serem todas herdeiras de C, subsistindo uma margem de diferenciação entre posições activas e passivas que justifica a continuação destes autos.
XVIII.–Tudo apurado, dúvidas não se impõem sobre a necessidade de continuação dos autos e, bem assim, do apuramento das contas devidas pela administração que esteve a cargo e responsabilidade de C.
XIX.–Quanto ao interessado A, compete aos herdeiros de C cumprir essa obrigação, uma vez que a administração dos bens da herança gerou receitas e despesas, cujo saldo deverá ser repartido necessariamente pelo Recorrente A.
XX.–Conclui-se que o Tribunal a quo erra ao dizer que o Recorrente Francisco não pode exigir contas desacompanhado da Recorrente Rita ....., por força do que dispõe o artigo 2091.° do Código Civil, cometendo, assim, evidente erro de Direito. Desde logo porque, a aplicação daquela norma seria não mais do que violar a posição do Recorrente A enquanto herdeiro de Isabel ..... que em nada se assemelha, como se verifica por tudo o que ficou dito, com a posição de herdeira da Recorrente Rita ..... .
XXI.–O Recorrente A, à semelhança dos demais interessados, no caso os herdeiros de C, tem o direito a exigir, o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
XXII.–A par com tudo o que ficou acima dito, sempre se dirá que a questão de saber se e de que forma a obrigação de prestar contas é transmissível nem se deveria colocar, já que, e salvo melhor opinião, as contas do exercício em causa já se encontravam apresentadas judicialmente, no momento do óbito de C, ficando os autos pendentes da decisão sobre o mérito e a legalidade das mesmas.
XXIII.–Estando o Tribunal a quo, à data da prolação da Sentença recorrida, munido de factos suficientes para avançar para a decisão de mérito, determinando a necessária produção da prova em bom e integral cumprimento do disposto no n.°5 do artigo 945.° do CPC, o que manifestamente preteriu.
XXIV.–Em face do exposto os Recorrentes não podem compadecer-se com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, e da qual se recorrem, motivo pelo qual deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, o que expressamente se requer!

Culminaram as suas conclusões sustentando: “requer-se a V.a Ex.a se digne julgar procedente o presente recurso e, consequentemente:
(…) Revogue a sentença recorrida, por traduzir um manifesto erro de aplicação do Direito,
(…) Na sequência da revogação da decisão recorrida, deverá o Venerando Tribunal ad quem ordenar a baixa dos presentes autos à 1.a instância, para aí serem apreciadas e validadas, de facto e de direito, as contas prestadas seguindo o processo os seus ulteriores termos.“

Não foram apresentadas contra-alegações.

2.– Objeto do recurso

Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[13]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, está vedado a este Tribunal o conhecimento de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[14].
Por outro lado, as questões suscitadas pelo recorrente devem ser apreciadas de acordo com a ordem de precedência lógica e cronológica que resulta do regime legal a aplicar.
No caso vertente, nos arts. 58. a 60 da motivação do recurso os apelantes aludem vagamente a uma nulidade da sentença. Porém, as conclusões de recurso são absolutamente omissas quanto a esta matéria.
Nesta conformidade, a única questão a apreciar e decidir reside em determinar se na sequência do falecimento da primitiva requerida e da habilitação das requerentes Ana Rita ....., Graça ....., e Teresa ..... se verificou a impossibilidade superveniente da lide.

3.–Fundamentação

3.1.–Os factos
Os factos a considerar são os que resulta do relatório que antecede.

3.2.–Os factos e o Direito
3.2.1.-Da impossibilidade superveniente da lide
Estipula o art. 277º, al. e) do CPC que a instância se extingue com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
Interpretando este normativo, haverá que ponderar, desde logo, que o mesmo se reporta a situações em que o evento que gera a impossibilidade ou inutilidade da lide tem natureza superveniente, ou seja, relevam para este efeito os eventos ocorridos após a propositura da ação.
Distinguem-se, pois, estas situações daqueloutras em que a impossibilidade ou inutilidade da lide decorrem de factos anteriores à propositura da ação. Em tais situações, quando muito, poderá falar-se em impossibilidade ou inutilidade originária.
A impossibilidade ou inutilidade originária da lide também conduz à extinção da instância. Porém, o fundamento dessa extinção já não é o previsto no art. 277º al. e) do CPC.
Com efeito, alguma jurisprudência tem sustentado que pelo menos parte das situações como tal qualificáveis configuram a verificação de uma exceção dilatória inominada, que conduz à extinção da instância por absolvição do réu da instância (vd. corpo do art. 577º e art. 576º, nº 2 do CPC) Neste sentido cfr. acs. RG 15-03-2018 (José Flores), p. 632/17.8T8GMR.G1; e RL 07-01-2020 (José Capacete), p. 1363/19.0T8LSB.L1-7.
Já noutros arestos, tem-se assimilado tal vício ao da falta de interesse em agir, embora com enquadramento legal idêntico, ou seja, por referência ao regime das exceções dilatórias inominadas –vd. ac. RL 03-12-2014, (Jerónimo Freitas), p. 233/14.2TTCSC.L1-4.

Finalmente, tal vício poderá ainda, noutras situações, configurar uma exceção perentória, que conduz à absolvição do réu do pedido (art. 576º, nº 3 do CPC). Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando se apure que o direito invocado pelo autor e que constitui o núcleo essencial da causa de pedir se extinguiu antes da propositura da ação.

No que tange aos conceitos de inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, diremos que, como aponta LEBRE DE FREITAS[15], tais figuras se manifestam quando “por um facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida”.

Quanto à distinção entre a impossibilidade e a inutilidade, afigura-se que as duas figuras se distinguem quanto aos efeitos. Assim, a impossibilidade da lide ocorre quando determinado facto gera um efeito absolutamente impeditivo da continuação da tramitação da causa, ao passo que a inutilidade tem lugar quando determinado facto tem por efeito a impossibilidade de a lide vir a obter o seu efeito útil.

Por outro lado, importa reter que, como salientou o ac. STJ 21-02-2013 (João Bernardo), p. 2839/08.0YXLSB.L1.S1, “a inutilidade superveniente da lide é uma realidade absoluta, não se podendo extinguir a instância nos casos em que a utilidade existe, ainda que mínima ou pouco provável”.

O mesmo se dirá, evidentemente, da impossibilidade superveniente da lide.

Quanto às causas da impossibilidade superveniente da lide apontam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE SILVA[16] que “a impossibilidade superveniente da lide pode derivar de três ordens de razões: impossibilidade subjetiva nos casos de relações subjetivas pessoais que se extinguem com a morte do titular da relação, não ocorrendo sucessão nessa titularidade; impossibilidade objetiva nos casos de relações jurídicas infungíveis em que a coisa não possa ser substituída por outra ou o facto prestado por terceiro; impossibilidade causal quando ocorre a extinção de um dos interesses em litígio (v.g. por confusão).“

Já a inutilidade – dizem os mesmos autores[17] – “decorre em geral dos casos em que o efeito pretendido já foi alcançado por via diversa, sendo o caso mais típico o do pagamento da quantia peticionada ou, em geral, o cumprimento espontâneo da obrigação em causa ou a entrega do bem reivindicado”.

No caso dos autos, o evento invocado pelo Tribunal a quo para concluir pela impossibilidade da lide foi o falecimento da requerida, o qual ocorreu indiscutivelmente depois da propositura da presente ação, o que significa que é indubitável a sua natureza superveniente.

Perante este facto, entendeu o Tribunal a quo que o decesso da requerida gerou a impossibilidade superveniente da lide, o que fez sustentado em três argumentos:
- a habilitação das suas filhas Graça ..... e Teresa ....., bem como da sua neta Ana Rita ....., que terá gerado a extinção, por confusão entre as posições ativas e passivas nos presentes autos, na medida em que estas três interessadas manteriam simultaneamente as qualidades de interessadas na partilha e requerentes e sucessoras da cabeça-de-casal e requeridas;
- o requerente A não pode exigir contas desacompanhado das demais interessadas na partilha;
- não foi confessada a existência de qualquer saldo.

Vejamos então.

Os presentes autos tramitam uma ação de prestação de contas na qual foi peticionado que a falecida C prestasse contas do seu exercício das funções de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu falecido marido, tendo o âmbito temporal das contas a prestar sido fixado entre os anos de 2005 a 2014.

A doutrina e a jurisprudência têm assinalado, de modo uniforme e pacífico, que na ação de prestação de contas em que a obrigação de prestar contas decorre do exercício das funções de cabeça-de-casal (art. 2079º a 2093º do Código Civil), são partes legítimas todos os interessados na partilha da herança.

Com efeito, como diz LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[18], “No que tange à legitimidade ativa, em processo de inventário é necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão produza o seu efeito útil normal (…) Deste modo, não pode um herdeiro – desacompanhado dos demais - requerer a prestação de contas do cabeça-de-casal, devendo provocar a intervenção dos demais pelo incidente de intervenção provocada.
(…)
A regra em sede de ação de prestação de contas é a do litisconsórcio necessário natural, ativo e passivo.
(…)
Se apenas um herdeiro requeresse a prestação e contas pelo cabeça-de-casal, ficaria a porta aberta à possibilidade de outros herdeiros instaurarem nova demanda, em que poderia obter decisão diferente.
(…) a prestação de contas supõe e exige litisconsórcio necessário, já que o entreleçamento das posições dos vários interessados vai a tal ponto que, pela própria natureza da relação jurídica nada de definitivo se pode senão para todos e entre todos”.

No mesmo sentido cfr. acs. RC 02-05-2000 (Hélder Roque), p. 15/2000; RC 24-06-2014 (Sílvia Pires), p. 373-A/2001.C1; RL 28-01-2016 (Ezagüy Martins), p. 9840/09.4TBOER-A.L1-2; e RG 28-06-2018 (Conceição Bucho), p. 155/09TBTMC-A.G1.

Como já fizemos referência, logo no início da tramitação da presente causa foi determinada a intervenção principal das filhas do de cuius, Sras. Graça ..... e Teresa .....[19].
Em consequência de tal decisão, as mesmas passaram a assumir a posição processual de co-requerentes, a par dos iniciais requerentes, A e Ana Rita .....(arts. 316º e 319º, e 320º do CPC).
Posteriormente, em consequência do falecimento da requerida, no âmbito do processo de inventário foram habilitadas, como suas herdeiras, as interessadas Ana Rita ....., Graça ..... e Teresa ..... (que à data já tinham nestes autos a qualidade de requerentes).

Assim, à data da prolação da decisão apelada eram partes principais nos presentes autos as seguintes pessoas:
a)–Requerentes:
i.- A
ii.- Ana Rita .....
iii.- Graça .....
iv.- Teresa .....

b)– Requeridas:
i.-Ana Rita .....
ii.-Graça .....
iii.-Teresa .....

Como referiu o Tribunal a quo na decisão recorrida, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que muito embora as funções de cabeça-de-casal não se transmitam por via sucessória, as obrigações emergentes do exercício de tais funções podem ser objeto de sucessão mortis causa.

Ora, uma das obrigações que pode transmitir-se nos termos supra expostos é a obrigação de distribuir rendimentos da herança por todos os herdeiros e pelo cônjuge meeiro, nos termos previstos no art. 2092º do CC.

No o caso vertente, a falecida cabeça de casal chegou a prestar contas, tal como requerido pelos iniciais requerentes, embora estes não tenham aceite tais contas, razão pela qual o processo prosseguiu para instrução e julgamento, tendo sido levada a cabo uma perícia.

Assim, à data do falecimento da inicial requerida, e com vista à conclusão do presente processo, faltava realizar a audiência final, à qual se seguiria a natural prolação da sentença, apreciando as contas prestadas, e decidindo.

Na sequência das alterações subjetivas da instância acima referidas, as interessadas Graça ....., Teresa ....., e Ana Rita ..... passaram a ter, simultaneamente, as posições de requerentes e requeridas, ou seja, de credoras de 50% dos eventuais saldos positivos emergentes da administração dos bens da herança do falecido José, a repartir na proporção dos respetivos quinhões, e devedoras da obrigação de pagar tais saldos.

Neste contexto, entendeu o Tribunal a quo que tais créditos e obrigações se extinguiram por confusão, nos termos previstos no art. 868º do CPC.

E como apontou o Tribunal a quo, a jurisprudência tem entendido que a confluência das posições de sucessor do autor da herança e do cabeça-de-casal falecido na pendência de ação de prestação de contas pode levar à extinção das posições de credor e devedor inerentes às apontadas qualidades, conduzindo à extinção da instância por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide – cfr. acs. RG (António Beça Pereira), p. 524/11.4TBAMR-C.G1; STJ 29-11-2005 (Custódio Montes), p. 05B3342; STJ 16-06-2011 (Tavares da Silva), p. 3717/05.0TVLSB.L1; e STJ 22-03-2018 (Roque Nogueira), p. 861/08.5TBBCL-E.G1.S1; .

Não obstante também tem sido afirmado que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, nos termos acima gizados, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes – vd. ac. STJ 17-11-2021 (Nuno Pinto de Oliveira), p. 391/17.4T8GMR.G1.S1.
Subscrevemos convictamente este último entendimento.

Aliás, cremos que o último aresto citado não se distancia dos fundamentos dos demais, dado que em todos estes se apreciaram situações em que a confusão operava relativamente a todas as partes da causa.

Deve, pois, entender-se que a extinção das referidas posições jurídicas, por confusão, só poderá suceder quando atinja todos os requerentes no processo de prestação de contas, sob pena de um tal entendimento conduzir a uma injustificada supressão do direito previsto no art. 2092º do CC relativamente ao interessado que não é sucessor do cabeça-de-casal.

No caso vertente o requerente e interessado A não é herdeiro do de cuiús, mas é herdeiro de uma filha do falecido José ....., que concorria à herança deste, por ter falecido em data posterior.

Nessa medida, mesmo não sendo herdeiro do de cuius,o interessado A  tem direito a exigir a distribuição dos rendimentos da herança do falecido José ....., na proporção do seu quinhão na herança da também falecida Isabel ....., não podendo ser privado do exercício de tal direito.

Acresce que o direito à distribuição de rendimentos da herança e o dever de os entregar na medida do quinhão de cada herdeiro têm âmbitos e medidas diversas. Com efeito, o cabeça-de-casal tem o dever de distribuir tais rendimentos, nos termos e com os limites previstos na lei, mas não tem o dever de suportar tal despesa, que é obviamente suportada pela herança, na medida dos rendimentos produzidos.

Daí que em nosso entender, a confluência do direito a rendimentos, decorrente da qualidade de herdeiro, e do dever de os pagar, emergente da qualidade de cabeça-de-casal não conduzam à extinção recíproca de tais posições.

Aliás, basta pensar que o cabeça-de-casal também pode ser herdeiro (art. 2080º do CC), não se descortinando razões para crer que por efeito do exercício de tal cargo deixe de ter direito a receber rendimentos da herança, tal como os demais herdeiros.

A afirmação de que a confluência das duas posições extingue os direitos e obrigações em confronto nas ações de prestação e contas intentadas contra o cabeça-de-casal não tem por objeto o direito a receber rendimentos da herança, mas apenas a faculdade de exigir judicialmente tal distribuição[20].
Simplesmente, tal não sucede com o interessado A.
Por isso, relativamente a este, não pode a lide cessar.
Finalmente, diremos que o facto de não ter sido confessada a existência de qualquer saldo é para nós absolutamente irrelevante. Relevante é a circunstância de a falecida cabeça-de-casal ter chegado a prestar contas, e estas terem sido impugnadas pelos primitivos requerentes, competindo, por isso, ao Tribunal apreciar tais contas e decidir (art. 945º, nºs 4 e 5 do CPC).
Não podendo a lide extinguir-se relativamente ao interessado Francisco ....., não poderá produzir-se tal efeito relativamente às demais interessadas, visto que, como já mencionámos, se verifica uma situação de litisconsórcio necessário ativo.
Daí que concluamos que no caso vertente inexiste fundamento bastante para decretar a extinção da instância.
Termos em que se conclui que a decisão recorrida deve ser revogada, determinando-se o prosseguimento da causa.

3.2.2.– Das custas

Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito“.
No caso em apreço, cremos não ser aplicável a segunda parte deste preceito, na medida em que o presente acórdão não decide sobre o mérito da causa, pelo que apenas poderá aplicar-se a primeira parte.
Porém, considerando que a decisão proferida no presente acórdão redunda num efeito jurídico que nenhuma das partes propugnou, e tendo ainda presente que não foram apresentadas contra-alegações, entendemos que não pode ainda determinar-se quem deu causa ao presente recurso.
Nesta conformidade, deverá considerar-se que deu causa ao presente recurso a parte vencida a final[21].

4.–Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação procedente, e em consequência, revogar o despacho saneador recorrido, com o inerente prosseguimento da presente causa com vista a ser proferida decisão final.
Custas pela parte vencida a final.



Lisboa, 05 de abril de 2022 [22]



Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa



[1]Despacho com a refª 331371992, de 17-02-2015, fls. 16.
[2]Vd. requerimentos com as refªs 5739689/20090361, de 06-07-2015, fls. 38 ss. – Contas do ano de 2013, e 6525733/ 20448698, de 07-09-2019, fls. 176 ss. – Contas do ano de 2014.
[3]Vd. requerimento com a refª 6811285/20614860, de 24-09-2015, fls. 290 ss.
[4]Vd. refª 342974606. Note-se que nestes apensos a requerida havia igualmente apresentado contas. Cfr:
- Refª 3268160, de 03-04-2008, apenso B – contas dos anos de 2005 e 2006;
- Refª 8440825/21523191, de 08-01-2016, apenso F - Contas do ano de 2007;
- Refª 8441070/21523966, de 08-01-2016, apenso  F - Contas do ano de 2008;
- Refª 5275412/19840277, de 05-06-2015, apenso F – contas do ano de 2009;
- Refª 5275532/19840788, de 05-06-2015, apenso F – contas do ano de 2010;
- Refª 5275573/19841069, de 05-06-2015, apenso F – contas do ano de 2011;
- Refª 4338993/ 14966561, de 06-11-2013, apenso H – contas do ano de 2012;
[5]Refª 15132223, de 02-10-2018, fls. 611-627.
[6]Vd. Refª 24449878, de 28-10-2019, dos autos de inventário.
[7]Refª 377499812, de 15-06-2018, dos autos de inventário.
[8]Refª 398752036, de 15-09-2020, dos autos de inventário.
[9]Refª 400186825, de 05-11-2020, fls. 772 e v.
[10]Refª 28249593/37752165, de 18-01-2021, fls. 773 ss.
[11]Refª 406158468, de 08-02-2021, fls. 776-777.
[12]Refª /40006295, de 30-09-2021, fls. 778 ss.
[13]Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116.
[14]Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116.
[15]“Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1.º, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2014, p. 546
[16]“Código de Processo Civil anotado”, Vol. I, Almedina, 2018, p. 321.
[17]Ob cit., p. 321.
[18]“Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação e contas”, Almedina, 2017, pp. 129-130.
[19]Foi também citado o cônjuge da interessada Teresa .....
[20]Porventura no pressuposto de que, por sucederem ao cabeça-de-casal, as pessoas abrangidas ficariam com a faculdade de distribuir tais rendimentos. Pressuposto discutível, pelo menos para quem entenda que o exercício do cargo de cabeça-de-casal não se transmite mortis causa.
[21]Sustentando solução oposta, cfr. SALVADOR DA COSTA, Blog do IPPC, entradas de 25-01-2019 e de 04-04-2019.
[22]Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.