Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
861/08.5TBBCL-E.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
MORTE
CONFUSÃO
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CAUSAS DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES ALÉM DO CUMPRIMENTO / CONFUSÃO / NOÇÃO.
Doutrina:
-Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume III, 3ª edição, p.52;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Volume II, 2ª edição, p.141.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 868.º.
Sumário :

I - A obrigação do cabeça-de-casal da prestar contas do exercício do cargo, transmite-se, por morte, aos seus sucessores, em concreto, a requerente cônjuge e os requeridos filhos.
II - Estando os sucessores investidos na obrigação de prestarem e de exigirem contas, ocorre uma situação de confusão, extintiva do crédito e da dívida – art. 868.º do CC.
III - Por consequência, improcede a acção de prestação de contas proposta pela requerente contra os requeridos.



Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Relatório.

Na Secção Cível da Instância Local de ..., AA intentou o presente processo especial de prestação de contas contra, para além de si própria, BB, CC, DD e EE.

Alega a requerente que, juntamente com os requeridos, são os únicos e universais herdeiros de FF, a primeira viúva deste (na sequência de segundo matrimónio) e os demais filhos do falecido (fruto do primeiro matrimónio), o qual exerceu, no inventário apenso, as funções de cabeça-de-casal do inventário aberto por óbito de GG, até à data do seu (dele) óbito, ocorrido a 20 de Agosto de 2013.

Mais alega que, na sequência do falecimento daquele FF, os autos de inventário prosseguiram para partilha da herança deixada por este, adquirindo deste modo a requerente a posição de interessada no mesmo.

Alega, também, que a propositura da presente acção se justifica com o facto do acervo hereditário do seu falecido marido depender do julgamento das contas resultantes da administração que o mesmo fez da herança aberta por óbito daquela GG.

Alega, por outro lado, que o dever de prestação de contas por parte do cabeça-de-casal tem natureza patrimonial e que, como tal, tal dever é hereditariamente transmissível para os herdeiros do cabeça-de-casal, estes estão obrigados a prestar contas.

Alega, ainda, que a acção deve ser proposta por todos os herdeiros de FF, razão pela qual a propôs e requereu a intervenção principal provocada (activa) dos demais herdeiros e, no reverso, deve ser proposta contra todos os herdeiros do falecido, ou seja, contra si própria e contra aqueles que demandou e cuja intervenção principal provocada requereu pelo lado activo.

Requereu, por último, a nomeação de um curador especial por aplicação analógica do artigo 2074.º n. º 3, do C. Civil.

Proferido despacho, indeferindo a nomeação de um curador especial, assim como os pedidos de intervenção principal provocada formulados, tendo-se ordenado a citação dos requeridos.

Os Requeridos BB e CC contestaram, invocando, no essencial, não estarem obrigados a prestar contas, nem estarem em condições de o fazer.

A requerente respondeu, concluindo como na petição inicial.

Seguidamente, foi proferida sentença, julgando a acção totalmente improcedente, por não estarem os Requeridos obrigados a prestar contas da administração feita por FF da herança aberta por óbito de GG.

Inconformada, a requerente interpôs recurso de apelação daquela sentença, tendo, então, sido proferido o Acórdão da Relação de Guimarães, de 26/1/17, que julgou procedente o recurso e revogou a sentença recorrida, decidindo que os requeridos estão obrigados a prestar contas à requerente da administração feita por FF da herança aberta por óbito de GG, pelo que determinou o prosseguimento do processo para esse efeito.

Inconformados, os recorridos BB e CC interpuseram recurso de revista daquele acórdão.

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.

2.1. No acórdão recorrido consideraram-se provados os seguintes factos:

1. GG faleceu no dia 04 de Agosto de 2007, no estado de casada com FF;

2. Deixou a suceder-lhe, para além do seu cônjuge, os seguintes 4 (quatro) filhos, fruto desse casamento: BB, CC, EE e DD;

3. FF foi nomeado, a 29 de Fevereiro de 2008, cabeça-­de-casal, no âmbito do processo de inventário que se abriu por morte de GG;

4. Na data referida em 3), FF havia já casado com AA, na sequência de matrimónio contraído a 9 de Fevereiro de 2008, sob o regime imperativo de separação de bens;

5. Em 22/02/2013 o cabeça-de-casal apresentou contas no referido processo de inventário, as quais foram contestadas pelos interessados CC e EE;

6. FF faleceu a 20 de Agosto de 2013, mantendo-se, até esta data, como cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de GG;

7. FF deixou a suceder-lhe, para além da mulher, aqui Requerente, AA, os mesmos quatro filhos aludidos em 2).

8. No apenso de prestação de contas foi declarada deserta a instância, a qual se encontrava suspensa há mais de seis meses em virtude do falecimento do cabeça-de-casal, por inércia das partes em deduzir o competente incidente de habilitação de herdeiros.

2.2. Os recorrentes rematam as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 ° - O recorrente não se pode conformar com o douto acórdão proferido pelo digníssimo tribunal da Relação o qual revogou a sentença recorrida proferida na primeira instância e em consequência decidiu que os aqui recorrentes estão obrigados a prestar contas à recorrida AA da administração feita por FF, enquanto cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de GG, determinando-se o prosseguimento do processo para esse efeito. Salvo melhor opinião, não se decidiu bem nos presentes autos, sendo que há errada aplicação do direito aos factos dados  como provados nos presentes autos, com violação de lei substantiva, pois conforme veremos infra, nos presentes opera-se o instituto da confusão, prevista no artigo 868º do C.C., bem como há violação dos artigos 2032º e 2058º, ambos do C.C. e arts. 33º e 941º do C.P.C.

2° - Os presentes autos tiveram início com a instauração de uma ação de prestação de contas por parte da recorrida AA, visando o apuramento do acervo hereditário do falecido cabeça-de-casal FF no inventário aberto por óbito da primeira cônjuge do mesmo, tendo por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens da herança, nos termos do artigo 941 ° do C.P.C. - cfr. pontos 3 e 5 dos factos dados como provados.

3º - Na verdade, dispõe o artigo 2093º/l do C.C. que o cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente e tendo o falecido FF sido nomeado como administrador dos bens da herança, este encontrava-se obrigado a prestar contas.

4° - É entendimento comum e pacífico quer na doutrina, quer na jurisprudência, que, na hipótese daquele que administrou os bens falecer sem ter dado cumprimento ao seu dever de prestação de contas, tal obrigação transmite-se para os seus herdeiros, recorrida incluída.

5º - Assim, todos os herdeiros do cabeça-de-casal, isto é, os mencionados no ponto 7 dos factos dados como provados, são titulares de um direito de exigir a prestação de contas, bem como, simultaneamente, estão obrigados com a obrigação de prestar.

6° - Contudo, a posição adotada no acórdão recorrido permite a todo e qualquer herdeiro de um cabeça-de-casal falecido eximir-se à obrigação de prestar contas, a qual é transmissível por via hereditária.

7º - Posição que não podemos sufragar, porque no nosso humilde entendimento e numa primeira ordem de argumentos, a obrigação de prestar contar transmite-se para todos os herdeiros, (como resulta da economia dos art. 2087.º a 2091.º do C. Civil) da herança aberta por morte do administrador que faleceu sem prestar contas. ( sublinhado nosso).

8° - Entendimento, perfilhado pelo Dr. Lopes Cardoso (ln Partilhas Judiciais, Vol. III, pág. 57, 3.ª ed.) que diz que a obrigação de prestar contas "é transmissível via hereditária, incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça-de-casal que dela não se desobrigou".

9º - Assim, a presente ação de prestação de contas exige um litisconsórcio necessário sendo que a recorrida está obrigada a apresentar as contas, por a referida obrigação ser transmissível para si, algo que o acórdão colocado em crise reconhece, mas paradoxalmente invoca que esta é terceira para efeitos da obrigação de prestar contas.

10º - E se a recorrida invoca que a prestação é essencial para se poder determinar na sua integralidade o acervo hereditário do falecido cabeça de casal, do qual é somente herdeira, expressando que possui um interesse diverso e antagónico dos aqui recorrentes, a verdade é que o interesse destes é o mesmo daquela: também estes querem e necessitam do apuramento do quinhão hereditário do cabeça de casal na herança da sua mãe para comporem os seus quinhões e qual o quinhão do " De cujus" que integrará na massa da herança aberta por óbito de FF.

MAIS,

11 º - Numa segunda ordem de argumentos, verifica-se que dos factos dados como provados, constata-se que o decesso cabeça-de-casal aceitou a herança aberta por óbito da sua primeira cônjuge, GG, tendo em consideração diversos os atos praticados ao longo dos autos de inventário que comprovam a aceitação do mesmo, nos termos dos artigos 2050° e ss. do C.C, sendo esta aceitação irrevogável, por força do artigo 2061 º do C.C.

12º - Após a sua morte, abre-se novo fenómeno sucessório e aberta a sucessão opera-se o chamamento dos herdeiros deste à titularidade das relações jurídicas do falecido, nos termos do artigo 2032º, n.º 1 do C.C.

13 º - Ora, apesar de estarmos na presença de duas heranças distintas - a herança aberta por morte de GG e a herança aberta por morte de FF, a verdade é que na massa da herança por óbito de FF já consta o direito de aceitação à herança de GG. E assim sendo, todos os herdeiros, recorrida incluída, são chamados a representar e a intervir na qualidade de herdeiros e interessados no inventário da herança aberta por óbito da mãe dos aqui recorrentes, GG.

14 º - Isto é, a recorrida AA passa a ser titular dos direitos e obrigações decorrentes das relações jurídicas estabelecidas pelo decesso cabeça-de-casal e por isso, é parte interessada e obviamente herdeira, em representação do cabeça-de­casal, no inventário por óbito de GG, conjuntamente com os aqui recorrentes, por força do artigo 2032º e 2058º do C.C.

15º - E o douto tribunal da Relação ao não considerar o presente raciocínio, operou uma grave violação da lei substantiva ao não interpretar de forma correta os preceitos supra enunciados, bem como não determinou a norma aplicável ao presente caso concreto.

16º - Face ao supra alegado, concluímos que no presente caso concreto há uma verdadeira "confusão" - reunião nas mesmas pessoas das qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, levando à extinção do crédito e da dívida ( cfr. art. 868.º do C. Civil)- na medida em que todos os herdeiros, recorrida incluída podem pedir a prestação de contas da administração da herança aberta pela morte de GG, pois verifica-se uma integral e correspectividade sobreposição de direitos e deveres.

17º - E quando isso acontece a obrigação extingue-se, por se tomar descabido o sacrifício imposto pelo vínculo obrigacional a um dos sujeitos da relação obrigacional em beneficio do outro, recordando neste ponto as lições dos insignes professores Pires de Lima e Antunes Varela, os quais taxativamente expressam que " a confusão resulta normalmente de sucessão hereditária. " - Código Civil Anotado, Volume II, 4º Edição revista e aumentada, página 156.

18° - Assim, e perante o supra exposto, temos que reconhecer que nos presentes autos o instituto jurídico da confusão é admissível e verifica-se, o que origina a extinção da obrigação e consequentemente a improcedência da ação.

19° - Por último, é nosso humilde entendimento que os aqui recorrentes não estão obrigados a prestarem contas nos autos, pois só quem efectivamente administra os bens da herança é que está ou possui a obrigação de prestar contas aos respectivos interessados.

20º - Pois nos presentes autos os recorrentes nunca exerceram quaisquer funções de cabeça de casal no inventário aberto pelo óbito da mãe, GG e nem exerceram qualquer administração sobre os bens da herança, pelo simples facto de que a administração foi exercida pelo falecido cabeça de casal FF conjuntamente com a recorrida.

21 º - E não tendo os recorrentes administrado a herança, requisito essencial para a exigência da prestação de contas, não impende sobre estes a obrigação de prestação de contas, pelo que, a improcedência da ação seria o resultado natural e normal a acontecer nos presentes autos.

22º - Face ao supra exposto, é notório que a douto acórdão recorrido violou as seguintes normas jurídicas: artigos 868°, 2032º e 2058º todos do código civil, artigos 33º e 941 ºe ss. do C.P .C.

23º - E por isso, deve o honorável Supremo Tribunal de Justiça alterar a douta decisão proferida pelo tribunal "a quo", apreciando a presente questão de forma conveniente e declarar que os aqui recorrentes não estão obrigados a prestar contas da administração feita pelo falecido cabeça-de-casal, nos termos supra expostos.

TERMOS EM QUE,

Deve o presente recurso merecer provimento, decidindo-se em conformidade com o supra alegado e revogando-se o douto acórdão.

2.3. A recorrida contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

I. É entendimento da recorrida que o douto Acórdão proferido pela Relação de Guimarães, ora sob censura, veio subsumir, de forma primorosa, os factos ao direito, dir-se-ia: com um rigor inabalável.

II. Contudo, os recorrentes, munindo-se das respetivas alegações, chegam a três conclusões, para estes, a bem dizer, cumulativas:

a) Em primeiro lugar vêm defender que a ação de prestação de contas exige um litisconsórcio necessário, devendo a recorrida ser também obrigada a prestar contas a par dos restantes herdeiros do cabeça de casal falecido, algo que o douto acórdão reconhece, mas que depois infirma por invocar que a recorrida é terceira para efeito da obrigação de prestar contas;

b) Em segundo lugar, vêm defender que, pese embora assentindo que os herdeiros de FF, falecido aquando do cabecelato que veio de assurnir na herança de uma outra pessoa, GG, estejam obrigados à prestação de contas, verificar-se-á, na opinião destes, nos presentes autos, uma integral e correspetiva sobreposição de direitos e deveres entre a recorrida e os recorrentes - por conseguinte, justificativa, tornando a prestação de contas desnecessária, da observância do instituto da "confusão", nos termos do artigo 868º do Código Civil;

c) Em último lugar, sem prejuízo do supra exposto, vêm, ao mesmo tempo, defender que, pese embora concordem no sentido daqueles se acharem obrigados, enquanto herdeiros de FF, a prestar contas, consideram que os recorrentes não estão afinal e apesar de tudo, obrigados a prestar contas pela administração daquele - sendo esta, conclusão a bem dizer algo rocambolesca, pois contraria o que começam por afirmar - porque, imagine-se, estes “não administraram a herança”.

III. É com perplexidade que a ora recorrida observa o primeiro argumento dos ora recorrentes.

IV. Com efeito a recorrida há muito que assumiu a posição processual exclusiva de requerente e os recorrentes de requeridos.

V. A decisão contida no despacho liminar de 05.01.2016, há muito que transitou em julgado, tendo o meritíssimo juiz considerado que não se impunha a observância radical do litisconsorcio necessário passivo uma vez que “quando a relação material controvertida não envolva, nem implique a demanda de terceiros alheios a esse conjunto de herdeiros, a legitimidade processual está assegurada com a simples presença de todos os herdeiros na lide, mesmo que fraccionados pelo lado activo e passivo, com(o) sucede quando os interesses desses não estão alinhados entre si, antes se assumindo como dissonantes”.

VI. No concernente ao enquadramento do segundo argumento dos recorrentes, será de referir e realçar que a ora recorrida, ao contrário dos demais intervenientes na presente lide, assume-se, com efeito, tão só, herdeira do inventariado FF, o qual, por sua vez, veio de assumir o cabecelato da herança aberta por óbito de GG (assumindo a administração da mesma entre 04 de Agosto de 2007 e 20 de Agosto de 2013).

VII. Os demais intervenientes, designadamente BB, CC, DD e EE, aqui recorrentes, reputam-se, não só herdeiros do inventariado FF, como ainda de GG.

VIII. É, por conseguinte, apenas e tão só, na qualidade de herdeira de FF, que a ora recorrida veio de interpor a presente ação especial, com o fim de ver prestadas as contas devidas pela administração que esteve a cargo e responsabilidade deste último, no supra referido cabecelato.

IX. Contas que se reputam essenciais para o efeito de apurar, com devido critério, na sua integralidade e à presente data, o acervo hereditário daquele.

X. Esta premissa demonstrar-se-ia, por si só, bastante, para dar a ver a inexistência de uma total identidade de direitos e obrigações, se nos ativéssemos à diferença que merecem as partes e interesses em jogo.

XI. Diferença que não existiria se, por hipótese, todos os intervenientes, recorrida incluída, fossem filhos de FF e de GG, como, de resto, o comprova o próprio Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo nº 91/14.7T8SEI.C1, citado pelos recorrentes - algo que, como se sabe, não acontece nos presentes autos.

XII. Não poderemos, pois, por mais esforço a que nos devotemos a querê-lo, a tratar como igual, o que dissemelhante se afigura, como o fazem, por exemplo, os recorrentes, ao referir que a recorrida AA é obviamente herdeira em representação do cabeça-de-casal de GG, conjuntamente com os aqui recorrentes, por força do artigo 2032º e 2058º do C.C.".

XIII. Com efeito, o direito de representação não se reporta aplicável ao caso em apreço e o mesmo se dirá, relativamente ao direito de transmissão citado pelos recorrentes, com a expressa alusão que fazem do artigo 2058º do Código Civil.

XIV. É que, FF, ao momento do respetivo falecimento, já havia aceitado a herança de GG, não estando, por isso, em causa a necessidade de transmissão de tal direito.

XV. Assim, AA, não é, como o sabem os recorrentes - há que dizê-lo, cumprindo-nos precisão terminológica - "obviamente herdeira" de GG. Argumento que, nestes termos, cai por terra.

XVI. Doutra banda, quando os recorrentes vêm de referir que “se a recorrida invoca que a prestação é essencial para se poder determinar na sua integralidade o acervo hereditário do falecido cabeça-de-casal, do qual é somente herdeira, expressando que possui um interesse diverso e antagónico dos aqui recorrentes, a verdade é que o interesse destes é o mesmo daquela: também estes querem e necessitam do apuramento do quinhão hereditário do cabeça de casal na herança da sua mãe para comporem os seus quinhões e qual o quinhão que integrará na massa da herança aberta por óbito de FF”, dão os recorrentes, por assim dizer, inteira razão à pretensão da aqui recorrida, ainda que tentem apelidar como iguais, interesses atinentes a duas heranças distintas.

XVII. Assim, será de compreender que, pese embora o esforço empregue pelos recorrentes em tentar demonstrar o contrário - deixando escapar pelo caminho, algumas verdades - a recorrida e os recorrentes não se revelam, nem se poderiam revelar, como que uma única pessoa ou entidade, incindível, como voltamos a repetir, nos seus direitos, interesses e obrigações, como se revelam os recorrentes, entre si, na recíproca qualidade de irmãos.

XVIII. Ora, dúvidas não restam qµe, no caso em apreço, tal não se verifica, encontrando-se afirmada uma relação intersubjetiva entre mais do que duas pessoas, distintas, observando-se diversos interesses e direitos a tutelar - não se afirmando em momento algmn, "descabida", tal diferenciação.

XIX. Num plano abstrato, é certo que o apuramento das receitas e despesas, no âmbito de uma acção especial de prestação de contas, se reportaria, para todos os efeitos, inócuo, ou descabido, como advertido por Antunes Varela, se a parte que as pretendesse, fosse, a um só tempo e integralmente, exata credora e devedora das contas a prestar.

XX. Contudo, na situação em apreço, ao contrário do que vem de ser defendido pelos recorrentes, longe de "descabida", utilizando a já citada terminologia de Antunes Varela, a prestação de contas tal qual requerida, revela-se essencial para, entre outras razões, se determinar o acervo hereditário de FF, assim afetando, com particular acuidade, a recorrida, ao contrário dos recorrentes.

XXI. Isto é, reputa-se, assim, imprescindível dar uma resposta à mesma, corno vieram de entender os ilustrados senhores juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, que se recusaram a relegá-la a fim incerto, isto é: sem solução.

XXII. Já no âmbito da sua última conclusão, humildam-se, os recorrentes, quando, por fim, vêm referir que não estarão obrigados a prestar contas, porquanto “não administraram a herança”,

XXIII. Tal entendimento - que, de humilde, nada tem, sendo, por sinal, bastante ousado - reporta-se absolutamente antagónico e incompatível face àquele que veio, inicialmente, de ser exposto pelos recorrentes.

XXIV. Não obstante a aparente ausência de lógica das alegações apresentadas pelos recorrentes, mormente da respetiva estruturação, sempre se dirá, quanto a este último argumento, que a leitura que os recorrentes fazem do Acórdão de 08 de Junho de 1978 do Tribunal da Relação do Porto é, mais do que parcial, inalcançável.

XXV. Salvo melhor entendimento, a melhor forma de interpretar o referido aresto, será atender à condição aí enunciada: "desde que efetivamente administre os bens da herança, tem obrigação de prestar contas aos respectivos interessados, não obstando a tal a inexistência de qualquer nomeação para o cargo", sendo, pois, unicamente essencial, que "se administre os bens da herança, não importando se tal ocorre porque se é cabeça de casal - nomeado ou de facto – ou porque se é simples herdeiro".

XXVI. Ora, arriscamo-nos a responder que a referida condição se observa nos presentes autos: existe inquestionavelmente um cabeça-de-casal que, aceitando tal desígnio, veio administrar os bens da herança de GG, de seu nome, FF.

XXVII. Tudo o mais reportar-se-á, salvo melhor entendimento, irrelevante, sobretudo se os recorrentes tiveram, ou não, qualquer ato de administraçào sobre os bens da referida herança.

XXVIII. Eis, por fim, em jeito de conclusão e munindo-nos de capacidade de síntese que nos é possível, o que verdadeiramente consubstancia o caso vertente: a obrigação de prestar contas respeitantes ao período em que o inventariado FF administrou os bens da herança da falecida GG, i.e. entre 04 de Agosto de 2007 e 20 de Agosto de 2013.

XXIX. A prestação de tal informação reporta-se, volta-se a repetir, indiscutivelmente significante para os interesses da aqui recorrida, tanto é que dela dependerá o acervo hereditário do próprio FF, enquanto inventariado.

XXX. Será de enfatizar, pois, que o interesse em agir desta última, lhe advém, não só da sua qualidade de herdeira de FF, como se afigura um interesse próprio i.e. diferenciado dos demais herdeiros, na medida em que, do resultado dessas contas dependerá, para todos os efeitos, o próprio enquadramento do seu direito à herança do inventariado FF, distinto daqueles outros, uma vez que não se reporta, para todos os efeitos, herdeira da GG.

2.4. A única questão que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se os requeridos estão obrigados a prestar contas à requerente da administração feita por FF da herança aberta por óbito de GG.

Na sentença da 1ª instância concluiu-se negativamente, com os seguintes fundamentos:

«Ora, no caso, os herdeiros do falecido FF, cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de GG e que nessa qualidade tinha, simultaneamente, o direito e a obrigação de prestar, voluntária ou forçadamente, contas da administração que fez dessa herança, são os seus quatro filhos (BB, CC, EE e DD), assim como o seu cônjuge (AA) [art.º 2133.º, n.º 1, al. a), do CPC)].

Significa isto, pois, que, por efeito do óbito do cabeça-de-casal FF, o referido direito e a obrigação de, voluntária ou forçadamente, prestar contas da administração que fez da herança aberta por óbito de GG, concentrou-se na requerente AA e nos requeridos BB, CC, EE e DD.

Daí que, em função da transmissão daquele direito/obrigação de prestação de contas da administração feita pelo falecido, todos os interessados são titulares do direito de prestar aqueles contas como, simultaneamente, estão onerados com a obrigação de as prestar, sendo certo que, quando assim sucede, ou seja, a na ocorrência de uma situação de "confusão", a «reunião nas mesmas pessoas das qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, leva à extinção do crédito e da dívida (art. º 868. º, do CC)» [cfr. em situação não idêntica, mas similar, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02 de Fevereiro de 2016 (processo n.º 91/14. 7T8SEI.C1, relator Barateiro Martins].

Deste modo, independentemente dos interesses invocados pela requerente para ver prestadas conta.s da administrtão feita pelo cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de GG, o certo é que, não tendo nenhum dos requeridos sido cabeça-de-casal daquela herança, a única via possível para lhes impor a prestação dessas contas, seria a transmissão sucessória desta obrigação por efeito da morte FF, sendo certo que, pela mesma via, também os mesmos são titulares do correspondente direito, o que, nos termos do art.º 868.º do CC («confusão»), implica a extinção do direito e da obrigação.

Deverá, assim, concluir-se pela inexistência da obrigação de prestação de contas por banda de qualquer um dos requeridos».

No acórdão recorrido entendeu-se que os requeridos estão obrigados a prestar contas à requerente, com base na seguinte argumentação:

«A Requerente, na qualidade de herdeira do cabeça-de-casal, nomeado no inventário aberto por morte do respectivo cônjuge, pretende, através da presente acção, que os interessados naquele inventário, lhe prestem contas, justificando com o facto do acervo hereditário do seu falecido marido depender do julgamento das contas resultantes da administração que o mesmo fez, na qualidade de cabeça-de-casal, da herança aberta por óbito da sua primeira mulher.

A sentença não acolheu a pretensão da Autora por ter considerado, seguindo a linha de raciocínio do Acórdão da Relação de Coimbra de 02/02/2016[1], que, em função da transmissão daquele direito/obrigação de prestação de contas da administração feita pelo falecido, todos os interessados são titulares do direito de prestar aqueles contas como, simultaneamente, estão onerados com a obrigação de as prestar, sendo certo que, quando assim sucede, ou seja, a na ocorrência de uma situação de "confusão ", a «reunião nas mesmas pessoas das qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, leva à extinção do crédito e da dívida (art. o 868.º do CC)»

Portanto, a questão de direito suscitada neste processo requer uma solução para o problema de saber se os Requeridos, na qualidade de sucessores do cabeça-de-casal, seu pai, entretanto falecido, têm a obrigação de prestar contas à Requerente, que também é herdeira daquele, mas que não é herdeira do acervo hereditário deixado por morte da mãe dos Requeridos.

A acção de prestação de contas, nos termos do art. 941.º do C.P.Civil, pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

Por morte de GG, casada com FF, foi instaurado inventário, no qual eram interessados, para além do respectivo cônjuge, nomeado cabeça-de casal, os seus quatro filhos.

A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (cfr. art. 2079.º do CC).

No cumprimento da sua obrigação de prestação de contas, prevista no artigo 2093.º, n.º 1 do C.Civil, o cabeça-de-casal, FF, em 22/02/2013, no âmbito do referido processo de inventário, apresentou as receitas e as despesas referentes à herança deixada por sua mulher, GG.

Com o falecimento do cabeça-de-casal, a instância foi declarada deserta, por inércia dos interessados em promoverem o seu prosseguimento, com a competente habilitação de herdeiros.

É pacífico na doutrina e na jurisprudência que a obrigação de prestação de contas, como se refere na sentença, é transmissível por via hereditária dada a sua natureza patrimonial, razão pela qual não se extingue por morte do cabeça-de-casal, incumbindo, por isso, aos seus herdeiros, o cumprimento da mesma.

Numa acção de prestação forçada de contas, o autor deve alegar a razão por que se julga no direito de exigir a prestação de contas e por que entende que sobre o réu impende a obrigação de as prestar.[2]

A Requerente, na qualidade de herdeira de FF, exige que lhe sejam prestadas as contas devidas pela administração que esteve a cargo e responsabilidade deste último, enquanto cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de GG, por reputar esse apuramento essencial para o efeito de se poder determinar, na sua integralidade, o acervo hereditário daquele.

Sendo a Requerente herdeira de FF, por terem sido casados, não há dúvida de que lhe assiste o direito de apurar a composição exacta do acervo hereditário deixado por morte daquele.

Mas tal só é possível, após terem sido prestadas as contas no inventário aberto por morte do primeiro cônjuge de FF, ou seja, após o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas pelo cabeça-de-casal.

Assim, não obstante ser sucessora do referido cabeça-de-casal e consequentemente, igualmente obrigada a prestar essas contas a terceiros, tal situação não poderá ser impeditiva de as poder exigir aos demais sucessores, únicos interessados no inventário aberto por morte de sua mãe, GG, sob pena de não se poder determinar, na totalidade, o património do falecido cônjuge.

Por isso, acompanhamos o raciocínio da Recorrente quando afirma que tem um interesse próprio e diferenciado dos demais herdeiros, na medida em que, do resultado dessas contas dependerá, para todos os efeitos, o próprio enquadramento do seu direito à herança do inventariado FF, distinto daqueles outros, uma vez que, ao contrário daqueles, não se reporta, para todos os efeitos, herdeira da GG.

Na verdade, a Apelante, ao contrário do caso analisado no referido Acórdão da Relação de Coimbra de 02/02/2016, apenas é herdeira de FF, enquanto que os Recorridos são herdeiros de ambos os inventariados, seus pais, FF e GG, não existindo, como refere a Apelante, uma integral e correspetiva sobreposição de direitos e deveres.

Configurada a acção desta forma, a posição da Apelante, perante os demais herdeiros de GG, é a de uma terceira interessada no apuramento e aprovação das contas da herança, do qual depende o valor global da herança deixada por morte de seu cônjuge, FF.

E compete aos Requeridos cumprir essa obrigação, na qualidade de sucessores do cabeça-de-casal, uma vez que a administração dos bens da herança gerou receitas e despesas, cujo saldo irá influir necessariamente na composição do quinhão hereditário da Apelante.

Esta é a solução que se nos afigura seguramente mais acertada face aos interesses antagónicos que sobressaiem no processo, sob pena de se impedir o direito da Apelante, como sucessora legitimária, de saber a composição rigorosa do acervo hereditário, com os respectivos direitos e deveres, deixado pelo falecido marido, FF».

Vejamos.

Nos termos do disposto no art.941º, do CPC, «A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se».

Do disposto no citado artigo pode formular-se o princípio geral de que, quem administrou bens ou interesses alheios, está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses.

O Código Civil oferece-nos exemplos da aplicação deste princípio, designadamente no art.2093º, de onde resulta que o cabeça de casal deve prestar contas anualmente (cfr. o seu nº1).

As contas do cabeça de casal são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita (art.947º, do CPC).

Essa obrigação de prestar contas deriva da administração da herança que incumbe ao cabeça de casal (art.2079º, do C.Civil), sendo uma garantia de que essa administração será exercida com diligência, competência e honestidade, e que o administrador não se afastará das regras que a prudência indica e a probidade impõe (cfr. Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, vol.III, 3ª ed., pág.52).

Assim, o cabeça de casal arrecada receitas e efectua despesas, tanto podendo resultar daí um saldo positivo como negativo.

Havendo saldo positivo, o mesmo é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, nos termos do disposto no nº3, do citado art.2093º.

Havendo saldo negativo, deverá ser satisfeito ao cabeça de casal o que se lhe mostrar devido.

Claro que as contas a prestar pelo cabeça de casal, por apenso ao processo de inventário, só podem respeitar ao período de tempo em que, após a nomeação nesse inventário, administrou os bens da herança.

Tem-se entendido, na doutrina e na jurisprudência, o que, aliás, não vem posto em causa no presente recurso, que a obrigação de prestar contas por parte do cabeça de casal, por ter natureza eminentemente patrimonial, é transmissível via hereditária, incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça de casal que dela se não desobrigou.

No caso dos autos, verifica-se que, por óbito de GG, em 4/8/07, sucederam-lhe o seu cônjuge FF e quatro filhos fruto desse casamento, BB, CC, EE e DD.

O FF, em 9/2/08, contraiu novo matrimónio com AA, tendo sido nomeado cabeça de casal, no âmbito do processo de inventário que se abriu por óbito da referida GG, em 29/2/08.

Em 22/2/13, o cabeça de casal FF apresentou contas no referido processo de inventário, as quais foram contestadas pelos interessados seus filhos, CC e EE.

Entretanto, em 20/8/13, faleceu o aludido FF, tendo-se mantido, até essa data, como cabeça de casal da referida herança.

No apenso de prestação de contas, foi declarada deserta a instância, a qual se encontrava suspensa há mais de seis meses, em virtude do falecimento do cabeça de casal e por inércia das partes em deduzir o incidente de habilitação de herdeiros.

O falecido cabeça de casal, FF, deixou a suceder-lhe a sua mulher AA e os quatro filhos atrás identificados.

Face a esta matéria de facto e de acordo com o entendimento atrás exposto, haverá que concluir que a obrigação de prestar contas por parte daquele cabeça de casal se transmitiu para os respetivos herdeiros, ou seja, a sua mulher AA e os seus quatro filhos.

São, pois, estes a quem agora incumbe, por via hereditária, a obrigação de prestar contas que competia ao cabeça de casal AA.

Mas quem é que tem direito a exigir a prestação de contas relativas ao período de tempo em que aquele cabeça de casal administrou os bens da herança por óbito de GG?

A prestação forçada de contas pode ser exigida pelas pessoas directamente interessadas na partilha daqueles bens.

No caso, pela mulher do falecido FF, AA, na sua qualidade de cônjuge daquele, que é herdeiro da inventariada GG, e, ainda, pelos quatro filhos daquele.

Por conseguinte, poder-se-á dizer que estão em juízo todas as pessoas que têm interesse directo na partilha por óbito da referida GG.

Só que, enquanto o cônjuge do herdeiro, AA, figura como requerente, os quatro filhos daquele figuram como requeridos.

E é aqui que surge a discrepância das decisões das instâncias.

Assim, a 1ª instância considerou que todos os interessados são titulares do direito de exigir contas e, simultaneamente, estão onerados com a obrigação de as prestar, o que implica a extinção do direito e da obrigação, por confusão, nos termos do art.868º, do C.Civil.

Já a 2ª instância entendeu que, sendo a requerente herdeira de FF, por terem sido casados, não há dúvida que lhe assiste o direito de apurar a composição exacta do acervo hereditário deixado por morte daquele, o que só é possível após terem sido prestadas as contas no inventário aberto por morte de GG.

Mais entendeu que a requerente apenas é herdeira de FF, enquanto que os requeridos são herdeiros deste, seu pai, e de GG, sua mãe.

Para, depois, concluir que, configurada a acção desta forma, a posição da requerente perante os demais herdeiros de GG é a de uma terceira interessada no apuramento e aprovação das contas da herança daquela, competindo aos requeridos cumprir essa obrigação, dada a influência que o saldo irá ter na composição do quinhão hereditário da requerente.

A nosso ver, porém, a composição do acervo hereditário deixado por morte de FF não está, directamente, dependente do que for apurado em sede de prestação de contas.

Na verdade, como já se referiu, o processo de prestação de contas relaciona-se com a obrigação a que alguém está sujeito a prestar a outrem contas dos seus actos, já que, quem administra bens ou interesses alheios, está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses.

Sendo que, no caso, o art.2093º, nº1, do C.Civil, prevê que o cabeça de casal deve prestar contas anualmente, derivando tal obrigação da administração da herança que lhe incumbe, nos termos do art.2079º, do mesmo Código.

Na qualidade de administrador dos bens da herança, o cabeça de casal arrecada receitas e efectua despesas, podendo daí resultar um saldo positivo, que será distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano (nº3, do citado art.2093º), ou um saldo negativo, que terá direito a receber, na medida em que se lhe mostrar devido.

Assim sendo, a prestação de contas não tem influência directa no acervo hereditário que o cabeça de casal vier a deixar por sua morte.

Para se determinar esse acervo existe o processo de inventário, que se destina, precisamente, a arrolar, descrever, relacionar coisas ou objectos, isto é, a acautelar o património que advém ao respectivo dono, inventariando-o.

Aliás, tanto quanto resulta dos autos, existe inventário pendente por morte da inventariada GG e do inventariado FF, sendo, pois, aí que a requerente deverá apurar a composição exacta do acervo hereditário deixado por morte daquele.

E sempre se dirá que, ainda que se entenda que a prestação de contas tem influência no acervo hereditário que o cabeça de casal vier a deixar por sua morte, os requeridos também teriam o direito de saber a composição rigorosa desse acervo, pois também são herdeiros dele, tal como a requerente, pelo que também as podiam exigir.

Ou seja, o saldo que, eventualmente, se viesse a apurar, teria que ser distribuído por todos aqueles interessados.

Note-se que as contas da administração de bens ou interesses alheios devem ser prestadas ao titular desses bens ou interesses.

Ora, no caso, o cabeça de casal FF administrou bens da herança por óbito da sua 1ª mulher, GG.

Sendo que, a sua 2ª mulher, AA, não é herdeira desses bens, mas, tão só, cônjuge do herdeiro FF, embora seja, nessa medida, directamente interessada na partilha de tais bens.

Seja como for, o que nos parece certo é que, sendo a requerente e os requeridos sucessores do falecido FF, a obrigação de prestar contas que a este incumbia, na sua qualidade de cabeça de casal da herança por óbito de GG, transmitiu-se àqueles, via hereditária, competindo-lhes, pois, agora tal obrigação.

A pergunta que surge de seguida é a seguinte: mas a quem é que devem ser prestadas essas contas?

A resposta não pode deixar de ser: aos interessados na partilha dos bens administrados.

Só que, esses interessados são, precisamente, os mesmos que têm a obrigação de prestar contas, por via hereditária.

O que nos reconduz ao entendimento defendido na 1ª instância, porquanto estamos perante uma situação em que, quer a requerente, quer os requeridos, podem pedir a prestação de contas da administração da herança aberta pela morte de GG, até ao falecimento do seu marido, FF, administrador daquela herança, sendo ainda eles que, agora, como herdeiros do falecido, também estão obrigados à prestação de tais contas.

Segundo cremos, tal situação traduz uma verdadeira confusão, isto é, a reunião nas mesmas pessoas das qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, o que, nos termos do art.868º, do C.Civil, conduz à extinção do crédito e da dívida.

Em caso semelhante decidiu, neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 2/2/16, citado pelos recorrentes, sendo indiferente o facto de, aí, requerente e requeridos serem herdeiros de ambos os inventariados e de, aqui, a requerente ser apenas herdeira do inventariado, já que também é directamente interessada na partilha dos bens da inventariada.

Como notam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil, Anotado, vol.II, 2ª ed., pág.141, a confusão resulta normalmente de sucessão hereditária e o que é sempre necessário é que o crédito e a dívida se reúnam (confundam) na mesma pessoa em consequência de qualquer facto jurídico.

Deste modo, do que se trata, no caso, é da falta de direito da requerente sobre os requeridos quanto às contas da administração do falecido FF, pelo que, tal como na sentença da 1ª instância, deverá entender-se que a acção não poderá deixar de ser julgada improcedente.

Haverá, assim, que concluir que os requeridos não estão obrigados a prestar contas à requerente da administração feita por FF da herança aberta por óbito de GG.

Não poderá, pois, confirmar-se o acórdão recorrido, que antes deverá ser revogado, para se manter a sentença proferida na 1ª instância.

3 – Decisão.

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso de revista e revoga-se o acórdão recorrido, repristinando-se aquela sentença.

Custas do recurso e da acção pela autora-recorrida.

Roque Nogueira (Relator)
Alexandre Reis
Pedro Lima Gonçalves

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[1] Disponível em www.dgsi.pt.
[2] A. dos Reis, Processos Especiais, vol. I. pág. 314