Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
524/11.4TBAMR-C.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Com a morte da cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu falecido marido no decorrer do processo em que ela era demandada pelos três filhos de ambos para prestar contas da administração que levou a cabo no exercício daquelas funções e com a posterior habilitação desses seus três filhos para ocuparem o seu lugar, ocorre uma impossibilidade superveniente da lide, na medida em que quem demanda passou a ser também demandado, deixando de existir um conflito de interesses a dirimir, visto que os interesses até aí conflituantes se reuniram nas mesmas pessoas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I
A instaurou(1) a presente acção especial de prestação de contas, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Amares, contra M, relativamente à administração realizada por esta como cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de D(2).
O requerente, dizendo não ser "o único interessado na partilha [de D] e, por isso pode[r] ser entendido que, no caso, ocorrerá, em sede de legitimidade activa, uma situação de litisconsórcio necessário", deduziu ainda o incidente de intervenção principal dos restantes herdeiros, D e AD, "para virem aos presentes autos, como associados do A., já que têm, como este, um interesse igual, relativamente ao objecto da causa"(3).
M contestou afirmando, em suma, que "ao contrário do que se pretende fazer crer no petitório - têm realmente sido prestadas com a devida periodicidade e detalhamento as contas relativas aos rendimentos gerados pelos indicados bens do acervo hereditário, com tempestiva distribuição das quotas-partes que a cada um dos herdeiros/interessados cabem nesses resultados e proventos".
Foi admitida a intervenção principal de D e AD nos termos solicitados pelo requerente.
D e AD apresentaram articulado em que, em resumo, defendem que "o objecto da peticionada e contestada prestação de contas deverá subsistir circunscrito apenas àquele estabelecimento comercial (…) [da Farmácia Marques Rego], sendo certo que (…) em relação aos demais bens do acervo hereditário não se verificou nenhuma incidência com relevo patrimonial, financeiro ou contabilístico".
A 22 de Janeiro de 2016 faleceu a requerida M.
O Meritíssimo Juiz proferiu despacho dizendo:
"(…) Nos termos e fundamentos acima expostos, julgo procedente a presente habilitação de herdeiros e, consequentemente, declaro o A, o D e a AD como como únicos e universais herdeiros da requerida".
E de seguida decidiu:
"Acontece que, perante este cenário processual em que o requerente assumiu, por via sucessória, a obrigação da requerida, impõe-se concluir que a presente instância não poderá prosseguir os seus termos.
Com efeito, sendo essa obrigação de prestação de contas, dada a sua natureza patrimonial, transmissível por via hereditária, no caso em apreço, é inquestionável que o requerente também assumiu, por via sucessória, essa obrigação de prestar essa mesmas contas.- cfr. neste sentido Prof. Lopes Cardoso, in "Partilhas Judiciais", vol. III, pg.62.; Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 8/3/84, BMJ 335/296; Ac. RL, de 18/6/1985, in CJ, X, Tomo 3, pg.167; Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2011, acessível in www.dgsi.pt, processo 3717/05.0 TVLSB.L1.
E porque o requerente assumiu processualmente essa posição de requerido e não goza de legitimidade distinta dos demais requeridos para o cumprimento dessa prestação de contas, declaro extinta a instância por manifesta impossibilidade superveniente da lide.- 269.º, n.º 3, 277.º, al. e), do C.P.C.".
Inconformado com esta decisão que julga "extinta a instância por manifesta impossibilidade superveniente", o requerente dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
A. I- Sem prejuízo de a acção de prestação de contas a que os presentes autos se reportam, estarem apensos ao competente processo de inventário, pareceu ao ora Recorrente que seria razoável apresentar (aqui) uma introdução onde se fizesse alguma breve história sobre a questão, de modo a enquadrar o assunto e a demonstrar que a administração da respectiva herança, na prática, sempre teve um sujeito -sempre o mesmo- desde o início, até agora. Que, por sinal, até é, neste momento, o cabeça-de-casal. Formal e legalmente falando.
II- A prestação de contas, sendo de natureza patrimonial é susceptível de transmissão para os respectivos herdeiros, o que terá que ser entendido (esta última expressão), com ponderação e pragmatismo. E se a anterior cabeça-de-casal faleceu, não vão ser os seus três filhos a exercer, indistintamente, as funções de cabeça-de-casal. Terá que ser um, concretamente. Por isso, o obrigado à prestação das contas em causa deverá ser o actual cabeça-de-casal. É lógico e natural. Razoável e legal.
III- Ao Juiz cabe, nos termos da lei, proceder/ordenar a adequação formal da instância, sem prejuízo de, no caso sujeito -depois do falecimento da dita M mas antes da prolação da douta sentença recorrida- ter havido designação de novo cabeça-de-casal que, por sinal, seria quem, antes, de facto, administrava a herança, a Farmácia Marques Rego.
IV- E não se diga que a designação do actual cabeça-de-casal faz sentido quanto à herança deixada por óbito da dita M, por causa da indicação contida no já aludido testamento, mas não o fará quanto à herança deixado pelo referido D. É que esse entendimento contrariaria a vontade das partes manifestada, no Tribunal, no dia 19.09.2016 pois que estas quiseram que fosse o mesmo cabeça-de-casal, o que, funcional e realisticamente falando, seria (será) lógico e razoável, além de que tal parece estar subjacente ao douto despacho proferido, a propósito, na referida data de 19.09.2016.
V- A obrigação de prestar contas impende sobre quem administra património alheio. Então, o actual cabeça-de-casal é (e, no fundo, sempre terá sido) quem administrava (administrou) a herança aqui em causa. Sempre por vontade da dita M (agora, por força do testamento junto aos autos pelos interessados e, antes, por força dos mandatos conferidos ao mesmo).
VI- A solução assim preconizada (ser o cabeça-de-casal actual -tout court- o sujeito obrigado à prestação de contas) é imposto pelos princípios da celeridade e economia processuais e da realização do Direito e da Justiça.
VII- Os factos ora aduzidos pelo Recorrente -sem prejuízo de o caso ser, no essencial, mera questão de direito- consubstanciarão situação subsumível à previsão do art.º 412.º, CPC, uma vez que o Tribunal, por força das suas funções, terá tido deles conhecimento (a presente acção de prestação de contas constitui apenso do 1.º inventário, cuja tramitação ainda corre termos pelo Tribunal de Amares, contendo todos os documentos e decisões pertinentes).
VIII- A douta decisão recorrida violou, entre outras, as normas dos art.ºs 269.º, n.º 3, e 277.º, al. e), CPC; E as normas dos art.ºs 547.º, 6.º, 7.º e 412.º, CPC, as quais deveriam ser aplicadas ao caso sujeito, interpretadas de modo a que se mantivesse a instância, sem prejuízo de poder haver, ou não, uma qualquer adequação formal.
D e AD contra-alegaram sustentando que se deverá manter a decisão recorrida.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil(4), delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se ocorre a impossibilidade superveniente da lide que o tribunal a quo considerou existir.
II
1.º
Antes do mais, convém só sublinhar que o requerente, D e AD são filhos dos falecidos D e M.
A decisão recorrida concluiu que "a presente instância não poderá prosseguir os seus termos" por que, em virtude da morte da requerida, "o requerente assumiu, por via sucessória, a obrigação" desta de prestar as contas em causa.
O requerente reconhece que "a prestação de contas, sendo de natureza patrimonial é susceptível de transmissão para os respectivos herdeiros", mas acrescenta que isso "terá que ser entendido (…), com ponderação e pragmatismo. E se a anterior cabeça-de-casal faleceu, não vão ser os seus três filhos a exercer, indistintamente, as funções de cabeça-de-casal. Terá que ser um, concretamente. Por isso, o obrigado à prestação das contas em causa deverá ser o actual cabeça-de-casal."(5) E lembra que "ao Juiz cabe (…) proceder/ordenar a adequação formal da instância"(6).
Vejamos.
No lado activo desta acção encontra-se o requerente acompanhado de D e de AD. Estes assumiram essa posição no processo por via da sua intervenção principal, que foi requerida por aquele com o fundamento de que ela era necessária "em sede de legitimidade activa" por se tratar de "uma situação de litisconsórcio necessário".
No lado passivo estava a requerida M. Mas após a sua morte, pela decisão que habilitou os seus herdeiros, foram habilitados no seu lugar o requerente, D e AD.
Portanto, neste momento quem demanda e quem é demandado são exactamente as mesmas pessoas; quem se encontrava no lado activo passou a estar igualmente no lado passivo.
Conforme resulta do n.º 1 do artigo 3.º, "a acção pressupõe" um "conflito de interesses". "O processo é uma sequência de actos destinados à justa composição (…) de um litígio, ou seja de um conflito de interesses"(7); ele "resulta da necessidade de resolver certo tipo de conflitos de interesses nas relações entre iguais"(8). Por isso é que ele se caracteriza pela dualidade de partes; ninguém se demanda a si próprio.
Assim, quando, por força da decisão de habilitação de herdeiros da falecida M, o requerente, D e AD ocuparam o lugar desta, deixou de existir aquele "conflito de interesses", visto que os interesses até aí conflituantes se reuniram nas mesmas pessoas, o que é quanto basta para que ocorra uma impossibilidade superveniente da lide.
Mas para além disso, verifica-se ainda que quando aqueles que tinham o direito a exigir a prestação de contas passaram a ter igualmente a obrigação de as prestar, a obrigação que M tinha de prestar contas ao requerente, a D e a AD extinguiu-se por confusão(9).
E não nos esqueçamos que, como bem salientou o Meritíssimo Juiz a quo(10), a obrigação que a requerida M tinha de prestar contas pela sua administração da herança aberta por óbito de D, transmitiu-se, por via sucessória, para os seus herdeiros. Significa isso que, na situação concreta em análise, caso se entenda que, logo após essa transmissão, tal obrigação não se extinguiu por confusão, ela então incumbe agora a todos os herdeiros e não unicamente àquele que veio a exercer as funções de cabeça-de-casal da herança aberta com esse óbito (o de M), dado que, nesse cenário, é a todos eles que ela terá que ser judicialmente exigida, pois, nesta hipótese, há que observar o princípio consagrado no n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil de que "os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros". E este princípio conduz-nos a "casos de litisconsórcio necessário (…) em que a falta de qualquer dos herdeiros interessados na acção é fundamento de ilegitimidade de qualquer dos intervenientes."(11)
Finalmente importa dizer que a solução avançada pelo requerente, de "o obrigado à prestação das contas em causa deverá ser o actual cabeça-de-casal", é inviável, não só pelo que já se deixou dito, como também por que ela colide frontalmente com o teor da decisão proferida nestes autos de habilitação de herdeiros da requerida M.
À luz do que acima se deixou dito, é evidente que ocorre uma impossibilidade superveniente desta lide, a qual origina a extinção da instância.
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, pelo que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo requerente.


11 de Maio de 2017


(António Beça Pereira)


(Maria Amália Santos)


(Ana Cristina Duarte)

1 - Em Abril de 2015.
2 - Falecido em Maio de 2001.
3 - Cfr. artigos 10.º e 10.º da petição inicial.
4 - São deste código todas as disposições adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
5 - Cfr. conclusão II.
6 - Cfr. conclusão III.
7 - Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 8.ª Edição, pág. 11.
8 - Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág. 16.
9 - Cfr. artigo 868.º do Código Civil.
10 - E o requerente aceita, cfr. conclusão II.
11 - Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. VI, 1998, pág. 152.