Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | EZAGÜY MARTINS | ||
Descritores: | HERANÇA CABEÇA DE CASAL LEGITIMIDADE LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PRESTAÇÃO DE CONTAS | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/28/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Sumário: | Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 663º, do Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, da responsabilidade do relator, como segue: “I – A ação de prestação de contas deve ser proposta por todos os herdeiros contra o cabeça de casal, sob pena de ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário ativo II – A intervenção principal provocada é o único meio de que dispõe o autor para assegurar tal litisconsórcio, quando quem com ele deve estar associado não quer propor a ação. III – Tendo o A., logo na petição inicial, requerido a intervenção principal provocada da outra herdeira, e tendo o assim requerido sido objeto de despacho de indeferimento – que julgou inadmissível a dedução do incidente na ação de prestação de contas – do qual o A. não interpôs recurso, operou-se caso julgado formal relativamente a tal inadmissibilidade. IV – Nessa circunstância, impõe-se a absolvição do Réu da instância.”. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª Secção (Cível) deste Tribunal da Relação
I – MM intentou ação com processo especial de prestação de contas contra AG, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de AJG e JDG, concluindo a requerer como se prevê no artigo 942º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Alegando, para tanto que o Requerido, desde que entrou no desempenho da função passou a administrar o património da falecida JDG, recebendo os respetivos frutos, bem como os bens comuns do casal, dado que aquela era viúva do referido AJG. E, assim, desde 28-12-2009, data da escritura de habilitação de herdeiros, até 02-03-2012, data da homologação da partilha por sentença. Mais requereu “ao abrigo do estabelecido pelo artigo 2091º do C.C. (…) a intervenção principal provocada de RFG”, sem mais circunstanciar a propósito.
Citado, alegou o Réu ter a A. administrado os bens comuns da herança até pelo menos Maio de 2010, recebendo as respetivas rendas e pagando as despesas que entendeu fazer até essa data. Só depois disso havendo o Réu assumido a administração do prédio respetivo. Apresentando o Réu relação de receitas e despesas relativas ao período de Junho de 2010 a Fevereiro de 2012, da qual extrai um saldo devedor da A. para com ele, de € 122,33.
Notificada, contestou a A., impugnado o assim alegado pelo Réu, bem como as indicadas receitas, contrapondo um saldo positivo de € 40.981,61, “a que acresce “uma receita relativa ao contrato de utilização do telhado para colocação de antenas”, celebrado com a Optimus, e cujo valor “não se encontra apurado”.
Por despacho de 14-11-2014, a folhas 181-183, foi julgado “inadmissível formular pedido de “intervenção principal provocada” na petição inicial (C. P. C. 311º e 316º/1) – motivo por que a mesma não é admitida (não se compreendendo a razão de ser deste pedido). E, considerando-se estar o réu obrigado a apresentar contas relativas ao período compreendido entre 28-12-2009 e 02-03-2012, foi ordenada a sua notificação para, em vinte dias, o fazer, sob a forma de conta corrente.
O que aquele fez nos termos que de folhas 186 vº e 187 se alcançam, apurando o mesmo saldo a que havia anteriormente chegado.
Uma vez mais impugnando a A. as apresentadas contas, nos termos em que o havia já feito.
O processo seguiu seus termos, com saneamento e enunciação dos temas da prova.
Vindo, realizada que foi a audiência final, a ser proferida sentença que julgou “validamente prestadas as contas – com receitas no valor de 37.884,28€ e despesas no valor de 15.949,34€.”. Inconformado, recorreu o R., formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões: “A)-Tendo a acção sido intentada unicamente pela Autora, aqui Recorrida, desacompanhada dos demais herdeiros, a mesma é parte ilegítima, nos termos do art.º 33.º do NCPC, por preterição de litisconsórcio necessário. B)- A ilegitimidade da Autora decorre do facto da relação material controvertida respeitar não apenas à Autora e ao Réu, Recorrida e Recorrente, mas também à herdeira RG. C)- A ilegitimidade é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso – art.º 577.º, n.º 1, al. e) e 578.º, ambos do NCPC. D)- De acordo com o art.º 209º/ 1 do CC, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. E)- Por seu turno, o artigo 33º./2 NCPC refere expressamente que: "É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal". F)- E o efeito útil normal é conseguido quando a decisão possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, como manda o mesmo artº. 33./3 do CPC. G)- Por outro lado, a douta sentença vincula-se ainda a uma interpretação não coincidente com a realidade factual dos autos, na medida em que a prestação de contas apresentada pelo Réu/Recorrente é tudo menos espontânea, até na medida em que só por força do recurso à acção judicial, ele veio aos autos, H)- O que, desde logo, se mostra algo contraditório e excessivo admitir tal comportamento do cabeça de casal como espontânea, e, consequentemente, socorrer-se a douta sentença do disposto no artº. 2093º, do CC, como se tal redacção resultasse uma impossibilidade processual, para declarar a inadmissibilidade ab initio de litisconsórcio necessário, apesar de requerido pela Autora/Recorrida a intervenção provocada dos restantes herdeiros. I - Pelo que, a douta sentença violou o disposto nos artºs. 33º./1/2/3 e artº. 6º./2 do Código de Processo Civil. J)- Por outro lado, a douta sentença não poderia ter dado como provado que as receitas obtidas pelo cabeça de casal foram as indicadas pela Autora na sua petição, situando o início desse recebimento a partir do momento da habilitação de herdeiros. K)- O cabeça de casal só foi investido por Juiz de Direito em Fevereiro de 2010, e não existe prova nos autos de que iniciou tais funções na data constante da habilitação de herdeiros, afastando nesse momento a Autora da administração dito património da herança. L)- O Recorrente, enquanto cabeça de casal, juntou aos autos prova segura de que, só a partir de Junho de 2010, por força das cartas que enviou aos inquilinos em Maio (docs. n.ºs 29 e 30), é que passou a receber algumas rendas do prédio da herança, administrado há muitos anos pela Autora/Recorrida, dado que a existência de dívidas fiscais e fidelidades senhoriais o impediam. M)- Cometeu assim o tribunal a quo, salvo o devido respeito, erro na decisão relativa à matéria de facto, concretamente quanto ao facto designado pelo número 3.º”.
Remata com a procedência do recurso de apelação “e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que convide a Recorrida a provocar a intervenção da Interessada RG;”, ou, “Caso assim não se entenda, deve a douta sentença ser alterada por outra que exclua as quantias referidas como receita entre 28 de Dezembro de 2009 e 31 de Maio de 2010, (data da escritura de habilitação de herdeiros/data do envio das cartas aos inquilinos), por total falta de prova, e que o Tribunal a quo por mera remissão para a p.i. da Autora admitiu como recebidas pelo C.C., aqui Recorrente.”.
Não se mostram produzidas contra-alegações.
II- Corridos os determinados vistos, cumpre decidir. Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do novo Código de Processo Civil – são questões propostas à resolução deste Tribunal: - se a A. é parte ilegítima por preterição de litisconsórcio necessário passivo; - se se verifica erro de julgamento quanto ao provado do facto n.º 3 do elenco respetivo.
*** Julgou-se assente, na 1ª instância, a factualidade seguinte: “1 – JG faleceu em 19 de Outubro de 2009 – deixando, como únicos herdeiros, os filhos AG, MGM, e a neta (filha do pré-falecido filho JG) RFG. 2 – Nos autos de inventário para partilha das heranças abertas por óbitos de AG e JG foram relacionados e partilhados (além do mais) um prédio descrito na 2ª C.R.P. de Oeiras com o nº …(sito no nº … da rua…) e um misto descrito na 2ª C.R.P. de Oeiras com o nº … (sito no nº … da rua…). 3 - Entre 28-XII-09 e 2-III-12 o R. recebeu as seguintes rendas (relativas ao prédio sito no nº … da rua…): Cave e R/C frente – 2.500€; R/C direito – 375€; R/C esquerdo – 4.180€; 1º direito – 2.100€; 1º esquerdo – 2.016€; 2º frente – 2.358€; 2º direito – 2.970€; 2º esquerdo – 5.358€; 3º esquerdo – 1.302€; 4º frente – 2.860€; 4º direito – 2.100€; 4º esquerdo – 1.248€; 5º frente – 520€; 5º esquerdo – 1.248€. 4 – Entre 28-XII-09 e 2-III-12 o R. não recebeu rendas relativas aos 1º frente, 3º frente e 3º direito do prédio 3. 5 – Em 2010 e 2011 foram penhoradas as rendas do prédio 3, e entregues à A.T.A. os seguintes montantes: 2.620€ por … (renda mensal de 262€ entre 12-VI-10 e 1-VI-11); 5.600€ por … (renda mensal de 350€ entre 6-I-10 e 6-IV-11); 2.750€ por … (renda mensal de 250€ entre 31-XII-09 e 16-II-11); 2.340€ por … (renda mensal de 260€ entre 4-VIII-10 e 2-V-11); 768€ por … (renda mensal de 96€ entre 2-IX-10 e 17-IV-11); 1.000€ por … (renda mensal de 125€ entre 7-IX-10 e 8-IV-11); 1.750€ por … (renda mensal de 350€ entre 9-IX-10 e 31-I-11); 2.100€ por … (renda mensal de 380€ entre 17-VIII-10 e 2-V-11); 1.480€ por … (renda mensal de 96€ entre 27-VII-10 e 11-IV-11); e 1.560€ por … (renda mensal de 260€ entre 3-IX-10 e 3-V-11). 6 - O R. recebeu, da ”BE”, relativamente ao arrendamento de um espaço de um prédio da herança nos anos de 2010 a 2012, a quantia total ilíquida de 6.749,28€. 7 - Entre 28-XII-09 e 2-III-12 o R. efectuou as seguintes despesas, no exercício do cabeçalato: Escritura de habilitação de herdeiros – 202,40€; Electricidade da escada – 859,59€; Trabalhos de construção civil – 1.130,10€; Reparação de avaria na coluna central do prédio – 1.458,78€; Despesas de correios – 42,80€; Indemnização ao inquilino do 3º esq – 500€; Taxa de esgotos do prédio – 1.659,16€; I.M.I. dos imóveis – 9.994,56€; Fechaduras – 101,95€.”.
Considerando-se não provado que: “7 - Entre 28-XII-09 e 2-III-12 o R. efectuou as seguintes despesas, no exercício do cabeçalato: certidão 100,86€; honorários de Advogado 492€; taxa de justiça 459€; honorários de Advogado 12.300€; taxa de justiça 179,13€.”. *** Vejamos:
II – 1 – Da (i)legitimidade da A./recorrida. Trata-se esta de questão apenas suscitada pela A. nas suas alegações orais – previstas no artigo 604º, n.º 2, alínea e), do Código de Processo Civil – como aliás se assinala na sentença recorrida, mas que sendo de conhecimento oficioso – cfr. artigos 577º, alínea e) e 578º, ambos do Código de Processo Civil – se não pode descartar.
Tal exceção dilatória verificar-se-ia, na perspetiva do Recorrente, e como visto, por não estarem na ação todos os herdeiros.
Tendo sido afastada na sentença recorrida, com o fundamento de que “tratando-se de pedido de prestação de contas relativo à administração da herança (…) não é aplicável a regra do artigo 2091º do Código Civil, mas, sim, a do 2093º - que não impõe que tenham que ser todos os herdeiros a pedir contas.”.
Já Alberto dos Reis,[1] considerando a hipótese de haver “vários titulares do direito de exigir a prestação de contas” entendia que “a acção deve ser proposta por todos, sob pena de ilegitimidade do autor. É a doutrina mais segura”. Também J. A. Lopes Cardoso,[2] referindo que “Dizendo as contas respeito -como dizem - a uma universalidade de direito (a herança), é mais próprio concluir, como concluíram certos arestos, que elas constituem um todo de cuja responsabilidade o cabeça-de-casal deve eximir-se em relação a todos os herdeiros, o que força a geral intervenção. Doutro jeito, a sentença que as julgasse não produziria o seu efeito útil normal, pois não teria força de caso julgado senão em relação aos que estivessem em juízo (Cód. Proc. Civil, art. 28.°-2).”.
A jurisprudência tem seguido tal orientação, de forma que, de há muito, se nos afigura pacífica. Nessa linha se tendo decidido nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-06-1980[3] – “Se uma interessada num inventário facultativo tiver requerido a prestação de contas ao cabeça-de-casal, desacompanhada dos restantes interessados, verifica-se a sua ilegitimidade por preterição das regras do litisconsórcio activo, constantes do n.º 2 do artigo 28º do Código de Processo Civil, pois que na prestação de contas se exige a intervenção de todos os interessados, só assim ficando assegurados os princípios que a devem reger.” – 17-10-1989[4] - “A prestação de contas atinentes a vários sujeitos activos ou passivos, não ficaria definitivamente resolvida como o exige o n. 2 do artigo 20 do Código de Processo Civil, se só algum ou alguns pedissem ou oferecessem as contas” - de 09-02-1993[5] - “Sempre que, por não intervirem certas pessoas, seja abalada a estabilidade que se procura e deseja, deixando aberta a porta à possibilidade de outros interessados na mesma relação jurídica suscitarem nova demanda, em que poderão obter decisão diferente, impõe-se o litisconsórcio como obrigatório. Havendo vários herdeiros, não pode apenas um deles propor acção de prestação de contas do cabeça de casal e testamenteiro.” - e de 27-05-1997[6] - “A herdeira, ainda que cabeça de casal, não tem legitimidade para, desacompanhada dos outros, pedir contas a quem administrou os bens da herança. Terá de provocar a intervenção deles.”. No mesmo sentido tendo julgado a Relação de Lisboa, em Acórdãos de 30-06-1992,[7] 24-06-1993,[8] 22-02-1994,[9] 15-10-2009[10] e 28-04-2015; [11] e a Relação do Porto, em Acórdãos de 05-06-2001,[12] de 09-10-2008[13] e de 22-11-2010.[14]
Quanto ao artigo 2093º do Código Civil, invocado na sentença recorrida, o mesmo nada dispõe no tocante ao exercício do direito de exigir a prestação de contas… …Mas apenas relativamente à prestação espontânea daquelas, tendo como destinatários todos os herdeiros e posto que “Havendo saldo positivo, é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito…”, cfr. n.º 2 daquele artigo.
Concluindo-se assim, em vista do disposto no artigo 33º, n.ºs 2 e 3, do novo Código de Processo Civil – lugar paralelo do artigo 28º, n.º 2, do anterior Código de Processo Civil – que se verifica litisconsórcio necessário ativo, entre a A. e a outra herdeira habilitada por óbito de JG, viúva de AG.
Sendo a verificada preterição daquele, causa de ilegitimidade da A. * Não cabendo porém considerar o suprimento de tal situação de preterição de litisconsórcio necessário em via de intervenção principal (provocada). Por um lado, como referem José lebre de Freitas e Isabel Alexandre,[15] “Estando em causa a conformação subjetiva da instância, não pode o juiz, de acordo com o princípio do dispositivo, ordená-lo, podendo apenas convidar o autor (ou o reconvinte) a fazê-lo (art. 6-2 in fine).”. Por outro, sendo aquele “o único meio que o autor tem ao seu alcance para assegurar o litisconsórcio necessário ativo, quando quem com ele deve estar associado não quer propor a ação (arts 261º e 316-1)”,[16] ponto é que o requerimento apresentado pela A., na sua petição inicial, foi indeferido no já referido despacho de 14-11-2014. Ora sendo tal despacho autonomamente recorrível – cfr. artigo 644º, n.º 1, alínea a), última parte, do Código de Processo Civil, sendo que o incidente de intervenção principal provocada é um “incidente autónomo” e “o despacho de não admissão, liminar ou subsequente, é também um despacho que põe termo ao incidente”[17] – ponto é que dele não interpôs recurso a A., a quem assistia legitimidade para o efeito. Assim havendo aquele operado caso julgado formal, com força obrigatória dentro deste processo, vd. artigo 620º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Impondo-se, na circunstância, a absolvição do Réu da instância, cfr. artigos 576º, n.º 2), do mesmo Código. * Nesta conformidade procedendo as conclusões do Recorrente. III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação procedente e, revogando a sentença recorrida, absolvem o Réu da instância.
Custas pela A./recorrida. ***
Lisboa, 2016-01-28 (Ezagüy Martins) (Maria José Mouro) (Maria Teresa Albuquerque) _____________________________________________ |