Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
233/14.2TTCSC.L1-4
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTENCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. O facto susceptível de determinar a extinção da instância por inutilidade da lide deve ser superveniente, isto é a sua verificação deve ocorrer depois da constituição da instância. Não é suficiente, portanto, a existência de um facto que torne a lide inútil.

II. Demonstrado documentalmente que o trabalhador e a R., antes da proposituta da acção pelo MP,  celebraram um acordo por escrito, assinado por ambos, mediante o qual acordaram por termo a relação contratual existente desde 1 de Agosto de 2009, contra a compensação paga ao primeiro no valor de € 15 000,00, que declarou receber, declarando ainda considerar-se integralmente ressarcido dos créditos emergentes da cessação da relação contratual,  acrescendo que a veracidade daquele conteúdo foi confirmado por aquele primeiro perante a Senhora Juíza, a questão que persiste é a de saber se neste quadro fará algum sentido prosseguir a acção.

III.  A desnecessidade no prosseguimento da acção, caso exista desde momento anterior à propositura da acção, reconduz-se à falta de um pressuposto processual, que é a falta de interesse em agir, o qual constitui uma excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso (artigos 577.º e 578.º do NCPC), conducente à absolvição da instância.

IV. Por força do interesse processual exige-se “uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção(..)”.

V. Neste contexto, crendo-se, como afirmámos e procurámos demonstrar, que o prosseguimento da acção não conduz a qualquer efeito útil, desde logo relativamente ao trabalhador, é forçoso concluir não existir qualquer necessidade justificada, razoável ou fundada, na manutenção da instância, faltando assim o interesse em agir por parte do Ministério Público e, logo, devendo o Réu ser absolvido da instância por falta da verificação desse pressuposto processual inominado, com a consequente extinção da instância.

         (Elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I.RELATÓRIO

I.1 No Tribunal do Trabalho de Cascais, o Ministério Público veio, nos termos do disposto no art.º 15º-A da Lei nº 17/2009 de 14 de Setembro e art.º 186º-K do C.P.T., na redacção introduzida pela Lei 63/2013 de 27 de Agosto, intentar a presente  Acção de Reconhecimento de Existência de Contrato de Trabalho contra “AA”, pedindo que seja “declarada a existência de um contrato de trabalho entre a R. e BB, nos termos já formalizados pelos mesmos, com início a 3 de Agosto de2009”.

No essencial, alegou o seguinte:

(…)

Regularmente citada, a R. BB ., veio apresentar contestação. (…)

O Tribunal a quo procedeu ao saneamento dos autos, designou data para a realização da audiência de julgamento e ordenou a notificação do A., com o duplicado da petição inicial e contestação apresentadas, com a expressa advertência de poder, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário (art.º 186ºL, n.º 4, e 186ºN, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo do Trabalho).

A audiência de julgamento realizou-se na data designada. Iniciado esse acto, estando presentes o Trabalhador, a Digna Procuradora da Republica e o Ilustre Mandatário da Ré, pela Senhora Juíza foi exibido ao Autor o teor de fls. 40 dos autos (declaração invocada pela R. e junta com a contestação) e dada a palavra para se pronunciar, tendo aquele declarado “(..) confirmar ter subscrito a declaração junta pela Ré a fls. 40 dos presentes autos, que lhe foi exibido. Mais declarou ter cessado em tal data a relação que mantinha com a Ré».

Pela Senhora Juíza foi de imediato proferido o despacho seguinte:

- «No seguimento da participação prevista no n.º 3 do art.º 15º A da Lei n.º 107/2009, de 14.09, o Ministério Público apresentou petição inicial nos presentes autos peticionando que seja declarada a existência de um contrato de trabalho entre a Ré e BB com início a 03/08/2009.

Regularmente citada, veio a Ré apresentar contestação onde alega que foi conseguida uma composição amigável do diferendo que a opunha a BB. Junta declaração para comprovar que a relação que mantinha com João Barbosa cessou em 17/03/2014.

Notificada da petição inicial, bem como da contestação apresentadas o Autor reconheceu ter subscrito a declaração junta pela Ré, constante de fls. 40 dos presentes autos, bem como ter cessado em tal data a relação que mantinha com a Ré.

Analisada a Lei n.º 63/2013, de 27.08, bem como o projeto lei que esteve na sua origem e debates que o precederam, forçoso é concluir que o objeto e motivação do aludido diploma legal é combater a precaridade no emprego, instituindo mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.

Posto isto, e tendo presente que a relação mantida entre BB e a Ré cessou em momento anterior à instauração da presente instância (que ocorre com o recebimento da participação do ACT em 11/04/2014 – cfr. art.º 26º, n.º 6, do CPT), forçoso é concluir que à data da sua instauração já não havia qualquer precaridade no emprego a proteger, pois entre a Ré e BB já não vigorava qualquer relação, que havia cessado por comum acordo de ambos.

Nestes termos, forçoso é concluir verificar-se uma impossibilidade legal originária da lide, pelo que, ao abrigo do disposto no art.º 277º, al. e) do CPC, ex vi art.º 1º, n.º2, al .a) do CPT, se declara extinta a presente instância.

Sem custas.

Registe e notifique.

Valor da ação: o previsto no art.º 12º, n.º 1, al. e), do Regulamento das

Custas Processuais (ex vi art.º 186ºQ, n.º 1, do CPT)».

I.2 Inconformado com essa decisão, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito próprios. As alegações foram concluídas nos termos seguintes:

(…)

I.3 A Recorrida não apresentou contra alegações.

I.4 Foram colhidos os vistos legais.

I.7 Delimitação do objecto do recurso

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do NCPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] a questão colocada para apreciação consiste em saber se o tribunal a quo errou na aplicação do direito ao considerar verificar os necessários pressupostos para julgar extinta a instância por impossibilidade legal originária da lide.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1.    MOTIVAÇÃO DE FACTO

Os factos relevantes para a apreciação do presente recurso são os que constam do relatório. Para além desses, releva, ainda o teor do documento de fls. 40, assinado por A. e R., datado de 17/03/2014, que se passa a reproduzir:

(…)

II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO

II.2.1 A apreciação do presente recurso aconselha que se inicie com algumas considerações sobre o enquadramento legal da nova acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

A Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, tem como objectivo proclamado no seu artigo 1.º,  “instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado”.

Para viabilizar a concretização desse objectivo, o legislador introduziu alterações ao regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social (Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro) e ao Código de Processo do Trabalho.

Quanto ao primeiro daqueles diplomas, através dos artigos 2.º e 4.º, foram-lhe aditados novos preceitos:

-  O primeiro,  ao art.º 2.º, que passou a ter um n.º3, atribuindo competência ao ACT, para além das que já lhe estavam ali cometidas, para  «(..) instaurar o procedimento previsto no artigo 15.º -A da presente lei, sempre que se verifique uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, que indicie características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro»;

- O segundo, introduzindo art.º 15-A, prevendo o novo procedimento a adotar em caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviços, determina que, “caso o inspetor do trabalho verifique a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho, nos termos descritos no artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente” [n.º 1]; sendo o procedimento “imediatamente arquivado no caso em que o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral [n.º2]; ou, caso tal não aconteça findo aquele prazo, devendo a ACT remeter “em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público da área de residência do trabalhador, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”.

No que respeita ao Código do Processo de Trabalho, as alterações introduzidas resultam dos artigos 3.º e º5.º, consistindo, respectivamente, na previsão de um novo processo especial, com natureza urgente, em concreto “A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho” [art.º 26.º al. i)], e no aditamento de um novo “capítulo VIII ao título VI do livro I (..), denominado «Ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho», composto pelos artigos 186.º -K a 186.º -R”.

Em traços largos, o novo processo especial apresenta as caraterísticas seguintes:

- Inicia-se com o recebimento da participação do ACT [n.º 3 do novo artigo 15.º -A, da Lei 107/2009], dispondo o Ministério Público do prazo de 20 dias, contados do início do processo “para intentar ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho” [Art.º 186.º -K, n.º1];

- A petição inicial a ser apresentada pelo Ministério Público, não carece de forma articulada, dela devendo constar exposição sucinta da “pretensão e os respetivos fundamentos”, sendo juntos “todos os elementos de prova recolhidos até ao momento” [art.º 186.º L, n.ºs 1 e 3];

- O empregador é citado para contestar no prazo de 10 dias, não se exigindo igualmente que a contestação seja articulada [art.º 186.º L, n.ºs 2 e 3].

- A intervenção processual do trabalhador é suscitada com a notificação da data para a audiência de julgamento, sendo-lhe simultaneamente remetidos o duplicado da petição inicial e da contestação e feita a “expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário” [art.º 186.º L, n.º4].

- Na falta de contestação pelo empregador, no prazo de dez dias, o juiz profere “decisão condenatória, a não ser que ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente” [Art.º 186.º -M].

-Se houver contestação a acção prossegue, podendo “o juiz julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa”, devendo a audiência de julgamento ser realizada “dentro de 30 dias”, nesse acto oferendo as partes as provas, entre elas podendo “apresentar até três testemunhas” [art.º 186.º- N, n.ºs 1 a 3].

- Previamente ao início do julgamento, “Se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los” [art.º 186.º -O, n.º1];

 - Frustrando-se a conciliação “inicia -se imediatamente o julgamento, produzindo -se as provas que ao caso couberem”, não sendo “motivo de adiamento a falta, ainda que justificada, de qualquer das partes ou dos seus mandatários [art.º 186.º -O, n.º2].

- Finda a produção de prova é possibilitado a “cada um dos mandatários fazer uma breve alegação oral”, sendo a sentença logo proferida, sucintamente fundamentada”  e ditada para a ata. [art.º 186.º -O, n.ºs 6 e 7].

- A sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho “fixa a data do início da relação laboral” [art.º 186.º -O, n.º8].

Releva ainda referir que a Lei n.º 63/2013, de 27 de Agosto, teve origem no projecto de lei n.º 142/XII, que conforme nele se menciona, “é da autoria de um conjunto de cidadãos eleitores, constituindo uma iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC)”, intitulado “Lei contra a precariedade”.

No aludido projecto de lei, sobre o título “2. Objecto, motivação e conteúdo da iniciativa”, menciona-se que de acordo com a exposição de motivos que o integra, “a precariedade atinge hoje cerca de 2 milhões de trabalhadores em Portugal e o seu crescimento ameaça todos os outros”. (..) Assim, a presente lei contra a precariedade introduz mecanismos legais de modo a evitar a perpetuação das formas atípicas e injustas de trabalho, incidindo sobre três vetores fundamentais da degradação das relações laborais com prejuízo claro para o lado do trabalhador: os falsos recibos verdes, a contratação a prazo e o trabalho temporário”.

Em suma, no que aqui releva, através desta alteração legislativa procurou-se combater o recurso ao contrato de prestação de serviços nas situações em que tal consiste num expediente que visa camuflar um verdadeiro contrato individual de trabalho, tendo como propósito desrespeitar a tutela que a legislação laboral confere ao trabalhador. Em poucas palavras, através dos mecanismos instituídos visa o legislador combater o falso trabalho autónomo.

II.2.2 O Tribunal a quo julgou extinta a instância, sustentando verificar-se “impossibilidade legal originária da lide, (..)ao abrigo do disposto no art.º 277º, al. e) do CPC, ex vi art.º 1º, n.º2, al .a) do CPT”, na consideração de que “(..)  a relação mantida entre BB  e a Ré cessou em momento anterior à instauração da presente instância (que ocorre com o recebimento da participação do ACT em 11/04/2014 – cfr. art.º 26º, n.º 6, do CPT)” concluindo, assim, “que à data da sua instauração já não havia qualquer precaridade no emprego a proteger, pois entre a Ré e BB já não vigorava qualquer relação, que havia cessado por comum acordo de ambos”.

Insurge-se o recorrente  Ministério Público, argumentando que a “A ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho prevista na Lei 63/2013 de 27.8 prossegue um interesse de natureza pública”, visando a lei “combater a utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado”, impondo aquele interesse “que se julgue e decida se entre trabalhador e empregador vigorou um vínculo de natureza laboral de trabalho subordinado”, pois o que releva “(..) é o período temporal durante o qual se verificou a existência e execução da relação laboral, independentemente de a mesma ter cessado, legal ou ilegalmente, no decurso do processo”.

Vejamos então.

Concordamos com o recorrente Ministério Público, quando afirma que a Lei n.º 63/2013, prossegue um interesse público no combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços  em relações de trabalho subordinado. Como no ponto anterior procurámos evidenciar, assim resulta claramente da Lei. O objectivo desta intervenção legislativa  consiste no combate ao trabalho aparentemente autónomo ou, como dissemos, ao falso trabalho autónomo.

Mas interessa aprofundar a razão de ser desta intervenção legislativa.

Sendo certo que qualquer trabalhador sempre poderá recorrer às vias judiciais, propondo uma acção judicial com processo comum para ver reconhecida a existência do contrato de trabalho subordinado, cremos poder afirmar-se que através dos mecanismos instituídos pretendeu o legislador, como propósito mais directo, actuar em protecção do trabalhador, normalmente reconhecido como a parte mais fraca e vulnerável de uma relação de trabalho subordinado. Dai referir-se na motivação que acompanhou o projecto que “a precariedade atinge hoje cerca de 2 milhões de trabalhadores em Portugal e o seu crescimento ameaça todos os outros”, e que “a presente lei contra a precariedade introduz mecanismos legais de modo a evitar a perpetuação das formas atípicas e injustas de trabalho, incidindo sobre três vetores fundamentais da degradação das relações laborais com prejuízo claro para o lado do trabalhador: os falsos recibos verdes (..)”.

Na verdade, o legislador tem noção de que em muitos casos, embora o trabalhador possa ter todos os fundamentos para reagir a uma situação de falso trabalho autónomo, opta por não exercer o seu direito, não tomando qualquer iniciativa com o receio de um resultado que antecipa poder vir a ser pior para si. Por um lado, prevendo a possibilidade de ver imediatamente cessada a prestação da sua actividade quando o empregador for confrontado com a acção, em consequência ficando no desemprego até que a acção tenha o seu desfecho; por outro, porventura tendo também noção do risco relativamente ao desfecho da acção, pois não pode excluir a possibilidade de poder ter um desfecho desfavorável para si, caso não logre provar os fundamentos necessários; e, ainda por outro, por antever que mesmo que não se verifique qualquer um daqueles cenários, reconhecida a existência de uma relação de trabalho subordinado, provavelmente dai em diante a relação com a entidade empregadora passará a desenrolar-se em condições adversas.

A solução passou, pois, pela introdução destes mecanismos, em face dos quais o trabalhador não tem que tomar qualquer iniciativa directa, tudo dependendo à partida da intervenção da ACT, que tanto poderá ocorrer no âmbito de uma acção inspectiva aleatória, como motivada pela denúncia do trabalhador ou trabalhadores.

Atentemos, agora, nas consequências, quer caso o empregador regularize a situação assumindo que existe um contrato de trabalho subordinado na sequência da notificação da ACT, quer quando não o faça mas venha a ser condenado por decisão judicial. Em qualquer dos casos resultará a fixação de uma data que marca o início da relação laboral e, consequentemente, o trabalhador passa a beneficiar do regime jurídico do trabalho subordinado com efeitos reportados àquela data, o que se traduzirá, para além do mais, na proteção contra despedimentos sem justa causa e, logo, numa certa estabilidade e garantia de durabilidade do vínculo contratual, mas também no direito à atribuição de uma determinada categoria, com o consequente direito a auferir pelo menos a retribuição mínima prevista para a categoria, bem como a adquirir o direito a férias, retribuição de férias e subsídio de férias, subsídio de Natal, etc. Em suma, o trabalhador verá a sua posição garantida, através do reconhecimento de todos os direitos que a lei confere aos trabalhadores vinculados por contrato de trabalho sem termo, inclusive com efeito retroactivo, relativamente àqueles em que a retroactividade possa operar.

Revertendo ao caso, a questão colocada pelo recorrente é, pois, a de saber se o interesse público, que visa proteger o trabalhador que presta sua actividade ao abrigo de uma relação contratual precária sob a capa de um falso contrato de prestação de serviços, impõe que a acção tivesse prosseguido, tendo em vista reconhecer - caso esse visse a ser o desfecho mediante a prova produzida - que este trabalhador se encontrava nessa situação e, logo, que existia uma relação de “um vínculo de natureza laboral de trabalho subordinado” que vigorou desde a data indicada na petição inicial, em concreto em 3/8/09.

Importa ter presente que o contrato de trabalho é um contrato de direito privado, “um negócio jurídico bilateral, isto é, um acordo vinculativo formado por duas declarações de vontade contrapostas, em que cada um dos contraentes prossegue interesses opostos, mas que através do contrato, chega a uma regulamentação comum, e, portanto, a um resultado unitário” [Bernardo da Gama Lobo Xavier, Iniciação ao Direito do trabalho, 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 199, p. 141].

Sendo o vínculo laboral uma relação contratual de direito privado, não pode arredar-se a aplicação do princípio da liberdade contratual, consagrado no art.º 405.º do CC, que se desdobra em vários aspectos, entre eles, “a possibilidade das partes contratarem ou não contratarem, como melhor lhes aprouver” [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 355].

Por outro lado, não pode também esquecer-se o contrato de trabalho, como qualquer outro, pode cessar mediante a celebração de acordo entre o empregador e o trabalhador, prevendo a lei laboral expressamente essa modalidade de cessação [art.º 340.º(al.b)], depois estabelecendo o artigo 349.º que “O empregador e o trabalhador podem fazer cessar o contrato de trabalho por acordo” (n.º 1), devendo o mesmo ser celebrado por escrito assinado por ambas as partes (n.º2), mencionando “expressamente a data da celebração do acordo e a de início da produção dos respectivos efeitos” (n.º3).

Ora, como resulta do documento acima reproduzido, o trabalhador BB e a Ré AA, celebraram um acordo por escrito, assinado por ambos, mediante o qual acordaram por termo a relação contratual existente desde 1 de Agosto de 2009, contra a compensação paga ao primeiro no valor de € 15 000,00, que declarou receber, declarando ainda considerar-se integralmente ressarcido dos créditos emergentes da cessação da relação contratual. Num segundo parágrafo, consta  ainda que o trabalhador “declara reconhecer que a referida relação laboral não configura uma relação de trabalho subordinado” e que renuncia “de forma expressa e livre, ao direito de requerer judicialmente o reconhecimento de eventual existência de uma relação de  trabalho”.

Salvo o devido respeito, não decorre da Lei 63/2013 seja o que  for que obste a este acordo e imponha a estes contraentes o prosseguimento da acção, para se saber se houve ou não um contrato de trabalho iniciado a 1 de Agosto de 2009.

Nem mesmo em razão do constante no segundo parágrafo que, salvo melhor entendimento, acaba por ser irrelevante. O que releva é as partes terem posto termo à relação contratual, fosse ela um contrato de trabalho subordinado ou um contrato de prestação de serviços.

Mas para o caso dessa segunda parte suscitar dúvida, cremos que a mesma não processe, pois, como se escreve no Acórdão desta Relação e Secção, de 24-09-2014, sendo “indiscutivelmente, o contrato de trabalho um contrato de direito de privado, cremos não poder negar-se aos outorgantes do contrato cuja qualificação jurídica é suscitada em tribunal pelo M.P., o direito de ver, ou não, essa questão jurisdicionalmente decidida. É, aliás, a lei que, ao estabelecer no art. 186º-O do CPT[3] que “se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los”, deixa claro que o direito em causa – de ver jurisdicionalmente definida a qualificação jurídica do contrato – é disponível, pois, de outro modo, não se compreenderia a previsão legal de tal tentativa de conciliação, sendo certo que o que está em causa na acção é apenas e só o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho. Não faria sentido, salvo o devido respeito, prever a realização de uma tentativa de conciliação se a única conciliação possível passasse apenas pela confissão, por parte do empregador, da pretensão formulada nos autos, como vem sustentar o recorrente. A tentativa de conciliação visa, em princípio, alcançar uma transacção, através de cedências recíprocas» [Proc.º n.º  1050/14.5TTLSB.L1-4, Desembargadora MARIA JOAO ROMBA, disponível em www.dgsi.pt].

Para que melhor se perceba, imagine-se que o trabalhador, por sua iniciativa,  tinha intentado uma acção declarativa com processo comum, pedindo o reconhecimento da existência de uma relação de trabalho subordinado reportada a 1 de Agosto de 2009 e, consequentemente, a declaração de determinados direitos, desde logo à manutenção do vínculo laboral, mas também com natureza retributiva, p.ex, os relativos a férias, retribuição de férias e subsídio de férias e subsídio de Natal, relativos ao período temporal decorrido entre a data de início da relação contratual e a da propositura da acção. Caso fosse celebrado extrajudicialmente aquele mesmo acordo e junto aos autos, poderia o Juiz obstar aos efeitos dele decorrentes e prosseguir com a acção?

Não vemos como, para mais tanto a partir da confirmação da sua veracidade e aceitação do conteúdo pelo trabalhador.

Contém a Lei 63/2013 de 27 de Agosto, algo mais que obste à livre vontade das partes em porem termo à relação contratual que existiu entre ambos, independentemente de se tratar de um contrato de trabalho subordinado ou de prestação de serviços?

Voltamos a repetir que não o cremos. 

Poderá argumentar-se que o reconhecimento de uma relação de trabalho subordinado implicaria, paralelamente, o emergir de obrigações de natureza fiscal e contributiva, quer para o trabalhador quer para o empregador, nomeadamente relativos ao IRS e à taxa contributiva prevista para o regime geral dos trabalhadores por conta de outrem.

Contudo, com o devido respeito, não decorre da lei que esse seja também m desiderato a alcançar, impondo que se caminha sempre até à decisão final, com o propósito de ver reconhecido, ou não, um eventual vínculo laboral. Se o legislador assim pretendesse, certamente não deixaria de o ter consagrado expressamente, o que indiscutivelmente não acontece, sendo certo que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” [n.º3, art.º 9.º do CC].

Neste percurso, em oposição à posição defendida pelo recorrente, a questão que se coloca é a de saber qual seria então o interesse útil em prosseguir com a acção. Certamente que não se lhes iria impor o prosseguimento de uma relação de trabalho subordinado, quando livremente entenderam por termo à relação contratual, independentemente da sua natureza. Por outro lado, ainda que não se chegasse a esse extremo, também nenhum interesse prático se retiraria em benefício do trabalhador, por se ver reconhecido (se esse viesse a ser o caso), que existiu uma relação de trabalho subordinado entre 1 de Agosto de 2009 e a data de celebração do acordo, pois convém não esquecer que as partes estabeleceram uma compensação de natureza global, abrangendo quaisquer créditos, ainda que emergentes de eventual relação laboral.

II.2.3 A inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, actualmente prevista no art.º 277.º al. e), do NCPC, norma correspondente à al. e), do pretérito CPC, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou se encontra fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio [José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, I Volume, 2ª Edição, Almedina, 2003 anotação 3 ao art.º 287.º, p. 512].

A instância extingue-se porque se tornou inútil o prosseguimento da lide: verificado o facto, o tribunal não conhece do mérito da causa, limitando-se a declarar aquela extinção.

Mas o facto susceptível de determinar a extinção da instância por inutilidade da lide deve ser superveniente, isto é a sua verificação deve ocorrer depois da constituição da instância. Não é suficiente, portanto, a existência de um facto que torne a lide inútil.

No caso, a acção inicia-se com o recebimento da participação do ACT [n.º 3 do novo artigo 15.º -A, da Lei 107/2009], dispondo depois o Ministério Público do prazo de 20 dias, contados do início do processo “para intentar ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho” [Art.º 186.º -K, n.º1].

Ora, embora o facto apenas tenha sido conhecido pelo tribunal e, também, pelo Ministério Publico, já na pendência da acção, através da sua alegação na contestação e junção do documento comprovativo pela R., o certo é que a sua ocorrência é anterior à propositura da acção. O acordo foi celebrado em 17/03/2014, antes do recebimento da participação remetida pelo ACT.

Por conseguinte, o facto não é superveniente e, logo, a instância não poderá ser extinta com esse fundamento.

Contudo, tal não significa que a acção deva prosseguir, sem que se retire qualquer efeito processual do que está demonstrado documentalmente, isto é, que o trabalhador e a R. celebraram um acordo por escrito, assinado por ambos, mediante o qual acordaram por termo a relação contratual existente desde 1 de Agosto de 2009, contra a compensação paga ao primeiro no valor de € 15 000,00, que declarou receber, declarando ainda considerar-se integralmente ressarcido dos créditos emergentes da cessação da relação contratual,  acrescendo que a veracidade daquele conteúdo foi confirmado por aquele primeiro perante a Senhora Juíza. 

A questão que se coloca é, então, se neste quadro fará algum sentido prosseguir a acção. Como se escreve no Acórdão do STJ de 15-03-2012, “Há situações em que embora a parte insista na continuação da lide, manifestando, assim, o seu interesse, em obter uma decisão, o desenrolar da mesma aponta para um desfecho que sempre será inócuo, ou indiferente, em termos de não modificar, a situação que existia antes de ser posta em juízo” [Processo 01/10. 2TVLSB.S1, Conselheiro SEBASTIÃO PÓVOAS, disponível em www.dgsi.pt].

Pois bem, considerando o que já se questionou acima, nomeadamente através do recurso a exemplos, cremos que esta é claramente uma das situações em que o prosseguimento da acção não conduz a qualquer efeito útil.

Ora, a desnecessidade no prosseguimento da acção, caso exista desde momento anterior à propositura da acção, reconduz-se à falta de um pressuposto processual, que é a falta de interesse em agir, o qual constitui uma excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso (artigos 577.º e 578.º do NCPC), conducente à absolvição da instância.

Como elucida o citado aresto do STJ 15-03-2012, «O interesse processual tem duas facetas: o interesse em demandar e o interesse em contradizer. Aquele é aferido pelas vantagens na obtenção de tutela judicial para o impetrante, sendo que o de contradizer é a não concessão daquela tutela o que é avaliado pelas desvantagens impostas ao réu quando o interesse da contraparte é defendido.

E tal como acima se acenou – e é defendido pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “O Interesse Processual na Acção Declarativa”, 1989, p. 6 – “a vantagem do autor e a desvantagem do réu são necessariamente apreciadas em relação à situação das partes no momento da propositura da acção; só conhecendo esta situação se pode saber se o autor vai obter algum beneficio com a atribuição da tutela requerida ou se o réu vai sofrer algum prejuízo com a concessão dessa tutela. O interesse processual não pode ser afirmado ou negado em abstracto: apenas comparando a situação em que a parte (activa ou passiva) se encontra antes da propositura da acção com aquela que existirá se a tutela for concedida, se pode saber se isso representa um benefício para o autor e uma desvantagem para o réu. Se a situação relativa entre as partes não se alterar com a concessão dessa tutela judiciária, então falta o interesse processual.”

Em suma, o interesse processual determina-se perante a necessidade de tutela judicial através do meio pelo qual o autor, unilateralmente, optou».

Sobre o interesse em agir, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora -  na obra conjunta Manual de Processo Civil – observam o seguinte:

Entre os pressupostos processuais referentes às partes, deve ainda incluir-se o interesse processual, embora a lei lhe não faça referência expressa.

O interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.

(..)

Relativamente ao autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser una necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (..) ou o puto interesse subjectivo  (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial.

O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais do que isso».[2.º Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, p. 179 e segts]

 Neste contexto, crendo-se, como afirmámos e procurámos demonstrar, que o prosseguimento da acção não conduz a qualquer efeito útil, desde logo relativamente ao trabalhador, é forçoso concluir não existir qualquer necessidade justificada, razoável ou fundada, na manutenção da instância, faltando assim o interesse em agir por parte do Ministério Público e, logo, devendo o Réu ser absolvido da instância por falta da verificação desse pressuposto processual inominado, com a consequente extinção da instância.

Concluindo, embora com fundamentação parcialmente diversa, confirma-se a sentença recorrida, improcedendo o recurso.

***

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida, embora com fundamentação parcialmente diversa.

Lisboa,  3 de Dezembro  de 2014

Jerónimo Freitas (relator)

Francisca Mendes

Maria Celina de J. Nóbrega

Decisão Texto Integral: