Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3717/05.0TVLSB.L1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TAVARES DE PAIVA
Descritores: CABEÇA DE CASAL
MORTE
HERDEIRO
TRANSMISSÃO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
PROCESSO ESPECIAL
DIREITO DE ACÇÃO
IMPOSSIBILIDADE LEGAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - A natureza patrimonial da obrigação de prestar contas revela-se nomeadamente no próprio objecto da acção, a que alude o art. 1014.º do CPC que visa o “apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”, operações estas que assumem um carácter predominantemente patrimonial.
II - Também o que importa no âmbito dessa acção, em termos de obrigação de prestar contas, é quem de facto administra bens alheios, independentemente da fonte que gera essa obrigação.
III - Uma coisa é a intransmissibilidade do cargo de cabeça de casal, a que alude o art. 2095.º do CC e outra bem diferente é a própria natureza da obrigação de prestar contas, por quem administra património alheio, como afinal acontece no caso em apreço.
IV - E uma coisa é a pessoalidade do cargo de cabeça de casal e outra é a natureza da obrigação de prestar contas a que está obrigado, o que significa que o facto do cargo de cabeça de casal ser de natureza pessoal, não faz com essa pessoalidade se transmita também à obrigação de prestar contas.
V - E sendo a obrigação de prestar contas de natureza patrimonial, ela é susceptível de transmissão para os respectivos herdeiros de quem fez administração de bens alheios, não se verificando, por isso, em sede de acção de prestação de contas, a impossibilidade originária da lide pelo facto de ter ocorrido a morte de quem exerceu essa administração.
Decisão Texto Integral:  

 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I-Relatório

   

AA intentou  acção especial de prestação de contas contra, BB e CC pedindo a citação das Rés, para no prazo de 30 dias, apresentarem as contas da administração realizada por sua falecida mãe, DD, desde 1.1.1999 a Março de 2005, relativamente ao prédio sito na Av. ................ – A em Lisboa.

      A A fundamenta o seu pedido alegando, em síntese, ser comproprietária, em partes iguais  com as Rés  do identificado prédio  e que as Rés como filhas de DD, já falecida em 2005, que era a cabeça de casal e que administrava o imóvel  e que prestou contas na sequência de uma acção pela  autora instaurada  na 1ª vara  Cível 3ª Secção e que se encontrava, à data da propositura destes autos, a aguardar decisão num recurso pela ora falecida instaurada e que a mesma falecida  prestou contas entre ano de 1984 a 1998 mas que as de 1999 não foram pela ora autora aceites por falta de documentos de suporte de várias despesas e por outras serem feitas em proveito das ora Rés, filhas da falecida, pretendendo agora que as Rés prestem contas de administração de sua mãe fez desde 1999 até  Março de 2005, face ao seu óbito nessa altura, alegando reconhecer as receitas de 1999, mas não parte das despesas e, que, por isso, é credora, quanto a tal ano, de um valor que identifica, pedindo ainda a prestação de contas quanto aos demais  anos, até Março de 2005.

      Citadas as Rés vieram contestar, alegando já as terem prestado, extrajudicialmente, concluindo por isso pela sua absolvição do pedido, ou caso assim não se entenda, a declaração da inutilidade superveniente da lide por terem satisfeito o pedido de prestação de contas extrajudicialmente, isto quanto às contas referentes aos anos de 2000 a 2005 e, quanto às contas de 1999, vêm pedir a sua absolvição da instância por entenderem que a Autora não pode vir agora exigir a prestação de contas que a sua mãe prestou espontaneamente em 1999, por o processo de prestação de contas se destinar a obter a sua prestação e não impugnar, vários anos depois de uma prestação espontânea, as contas prestadas.

      A A respondeu à contestação reafirmando a petição inicial.

Por se considerar os que os autos continham todos elementos necessários à decisão foi proferido despacho saneador sentença que decidiu:

a) Julgar extinta, por impossibilidade originária da lide, a presente prestação de contas, absolvendo as demandadas do mesmo pedido, quer quanto ao pedido de prestação de contas relativo aos anos de 1999 a Março de 2005, quer quanto ao pedido de condenação no pagamento do  saldo relativo às contas de 1999, pelas mesmas razões;

b) Julgar improcedente, por não provado, o pedido de condenação das Rés como litigantes de má fé e, consequentemente absolver as mesmas de tal pedido.

            A A não se conformou com esta decisão e interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que concedeu provimento ao recurso e revogando a decisão recorrida determinou a remessa dos autos à 1ª instância para o seu desenvolvimento normal.

            As Rés não se conformaram e interpuseram recurso de revista para este Tribunal concluindo:

1- A Administração do prédio da herança indivisa, no período entre 1999 a Março de 2005, coube á falecida mãe das recorrentes, na qualidade de cabeça de casal, pelo que não tendo as mesmas administrado tal bem, sobre elas não recai qualquer obrigação de prestar contas, visto que não se verifica o pressuposto fundamental em qualquer das fontes de onde possa derivar aquela obrigação  (lei, contrato, boa fé) que é a administração de bens alheios;

2-  As ora recorrentes, contrariamente ao entendimento plasmado no douto acórdão recorrido, consideram que a obrigação de prestar contas que impendia sobre a cabeça de casal, mãe das ora recorrentes, não é transmissível por via hereditária.

3-  Pese embora a regra no tocante às situações jurídicas patrimoniais seja a sua transmissibilidade por morte (cfr. art. 2024 do C. Civil) existem casos de intransmissibilidade sucessória por morte em razão da sua natureza ou por força da lei( cfr. art. 2025 do C. Civil ) e dentro desses, incluem-se os direitos e obrigações inerentes ao cargo de cabeça de casal ( art. 2095 do C. Civil)

4- Não é apenas o cargo de cabeça de casal que é intransmissível por via hereditária, mas todos os direitos e obrigações inerentes a tal cargo, incluindo, pois, a obrigação de prestar contas (prevista no art. 2093 do Código Civil), obrigação esta que resulta da administração da herança que incumbe ao cabeça de casal por estar estritamente ligada à pessoa que exerce tal cargo.

5-  O Acórdão recorrido não fez, assim, uma correcta interpretação e aplicação do disposto no art. 2025, 2095 do C. Civil.

6-  O Tribunal da Relação parte do pressuposto erróneo de que o prédio administrado pela mãe das ora recorrentes, enquanto cabeça de casal, só terá gerado rendimentos, daí que no acórdão seja referida a “ massa monetária” esquecendo-se que a cabeça de casal, realizou despesas tendo procedido ao pagamento de despesas de conservação, contribuições e demais encargos.  

7-  A posição defendida no douto acórdão recorrido não é aquela que melhor realiza os fins da justiça, pois, caso, porventura a ora recorrida considera que houve algum enriquecimento ilegítimo por parte das ora recorrentes, a tutela do direito da autora poderá sempre ser exercido mediante o recurso a outra acção autónoma que não a de prestação de contas.

Nestes termos deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência deve ser substituído o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação pela decisão proferida pelo tribunal da 1ª instância.

            A recorrida apresentou contra-alegações, concluindo no essencial que em caso de falecimento do cabeça de casal a obrigação de prestar contas é transmissível, transmissão esta que ocorre para os herdeiros e sucessores de cabeça de casal, não estando aqui em causa qualquer obrigação pessoal da cabeça de casal e, por isso, deve ser mantido o Acórdão recorrido.

            Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir:

 II- Fundamentação:

      Factos provados pelas instâncias:


A propriedade do prédio urbano sito na Av, ........, n°s. ......., em Lisboa, descrito na 8ª C. R. Predial de Lisboa sob o n° ........ da freguesia de Nossa Senhora de Fátima e inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o art° 719 da mesma freguesia encontra-se inscrita, sem determinação de parte ou direito e desde 12 de Maio de 1988, a favor da Autora e de DD por herança de EE (por documento constante de fls. 10a 14 dos autos).
2     - A Autora instaurou contra DD uma acção de prestação de contas que correu os seus termos na 1ªa Vara, 3ª Secção sob o n° ......, acção em que foi decidido estar a mesma obrigada a prestar as contas quanto ao prédio referido em l - e que prestou até 1998 ( por análise do processo em causa e por acordo).
3     - DD faleceu no dia 25 de Março de 2005 no estado de viúva de FF, óbito esse ocorrido na pendência do processo referido em 2 -, tendo a instância sido declarada suspensa face a tal óbito até ao trânsito em julgado da decisão que habilitasse as suas sucessoras ( por certidão de óbito constante de fls. 15 dos autos e por análise do processo aludido ).
4     - Por sentença proferida em 28 de Junho de 2006 no apenso A) do processo referido em 2 - foram as ora Rés julgadas habilitadas, na posição de DD, para prosseguir aquele processo com a ali e aqui Autora por as aqui Rés serem as filhas da mesma e suas únicas sucessoras ( por análise do apenso A) do processo aludido em 2 ).
5     - Pelo menos a partir de 1988 que foi DD a administrar o prédio referido em  I  -, como cabeça de casal, procedendo a falecida ao recebimento de rendas, pagamento de despesas de conservação, contribuições e demais encargos ( por acordo).
6     - DD apresentou à Autora, extrajudicialmente, as contas referentes à administração do prédio referido em l -, relativamente ao ano de 1999, contas essas a que se reportam fls. 16 a 19 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, contas essas que não foram aprovadas pela Autora (por acordo).
7 - DD não apresentou, além das referidas em 2 - e 6 -, contas à Autora e, designadamente, não as apresentou até à sua morte e desde 2000 até Março de 2005 (por acordo ).
8 - A Autora não aceita as seguintes despesas indicadas pela falecida e referentes ao ano de 1999:
a) as que se referem ao " ordenado Maria ", nos valores de 6.000$00 e 12.000SOO nos meses de Julho e de Dezembro de 1999;
b) a de Julho de 1999, no valor de 3.500$00;
c) a de 13.806$00 referente a 17.8.1999 e relativa a uma avaliação;
d) as de 360$00 e 2.961 $00, relativas a Outubro de 1999;
e) a de 4.212$00 referente a uma consulta na APL, em Outubro de 1999 (por acordo). 9 - A Autora aceita os demais valores referentes às contas de 1999 e relativas às receitas bem como as demais verbas de despesas, sendo o valor das receitas o de Esc. 1.370.054$00 e o valor inscrito de despesas o de Esc. 584.424$00 (por confissão ).
10 - BB foi citada para os termos desta acção por carta registada com aviso de recepção, aviso de recepção esse assinado por terceiro em 12 de Julho de 2005, razão pela qual foi expedida carta à mesma, nos termos do art° 241 do C. P. Civil, advertindo-a de que se considerava citada naquela data c naquela pessoa ( por documentos de fls. 24 a 25, 2-S e 29 a 50 dos autos ).
11 - A segunda Ré aceita mostrar-se citada, face à frustração da sua citação por carta registada com AR e por solicitador de execução, na data de 29.12.2005, data em que o solicitador de execução se dirigiu à morada da mesma constante dos autos para efectivar a sua citação, tendo sido feito constar que a mesma se recusou a assinar a certidão de citação ( por documento de fls. 26 a 27 e 31 a 42 dos autos ).
12 - Após a citação da primeira Ré nestes autos as demandadas prestaram à Autora contas extrajudiciais da administração efectuada por sua mãe quanto ao prédio referido em l -,relativamente aos anos de 2000 a Março de 2005, o que fizeram mediante a expedição, dirigida à Autora, de carta registada com AR datada de 12.7.2005, expedida em 15 de Julho de 2005, carta essa recebida pela Autora em 18 de Julho de 2005 ( por acordo e por documento constante de fls. 54 a 63 dos autos ).
13 - As contas referidas em 12 - foram acompanhadas de uma carta explicativa dirigida à Autora e foram apresentadas sob a forma de conta corrente (por acordo ).
14 - Por não concordar com as contas apresentadas pelas Rés a Autora devolveu as contas à primeira Ré que, porém, não procedeu ao levantamento da correspondência em causa, datada de 9.9.2005, e a primeira Ré não levantou a mesma apesar de avisada para o efeito pelos CTT (por acordo e por documento de fls. 63 dos autos ).
16 - Por registo postal datado de 28.9.2005 o mandatário da Autora procedeu à devolução das contas referidas em 12 - ao Dr. GG, o qual as recebeu e remeteu ao mandatário da Autora por correio registado datado de 7. 10.2005 (por documento constante de fls. 129 a 130 dos autos).
17-A segunda Ré nasceu no dia 16 de Novembro de 1948, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, em Lisboa e encontra-se registada como filha de FF e de DD ( por certidão de nascimento constante de fls. 9 do apenso A) do processo referido em 2 -),
18 - A primeira Ré nasceu no dia 30 de Janeiro de 1950, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, em Lisboa e encontra-se registada como filha de FF e de DD (por certidão de nascimento constante de fls.6 do apenso A) do processo referido em 2 -.

19)  Na acção referida em 2) e 4) supra, o Tribunal da Relação de Lisboa por acórdão de 23/09/2008 decidiu:
a) Julgar incorrectas as contas apresentadas pela Ré relativas à administração do predito sito na Avª .........., nºs ....... a .......-A, em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de N. Sra. de Fátima sob o artº 719º descrito na 8a Conservatória do Registo Predial de Lisboa a fls 6 do Livro B-33 sob o nº ........, no período de tempo decorrido entre 1 de Julho de 1988 e a data da instauração da presente acção (28/05/1998);
b) Declarar que, no referido período de administração do imóvel supra identificado, foram obtidas receitas no valor total de esc. 10.600.742$00 / €52.876,28 (cinquenta e dois mil e oitocentos e setenta e seis e vinte e oito cêntimos) e efectuadas despesas no valor total de esc. 2.947.512$00 / €14.702,13 (catorze mil e setecentos e dois euros e treze cêntimos), resultando o saldo positivo de €38.174,15 (trinta e oito mil e cento e setenta e quatro euros e quinze cêntimos); e
c) Condenar a Ré DD a pagar à Autora AA a quantia de € 19.087,87 (dezanove mil e oitenta e sete euros e sete cêntimos).” 

            Apreciando:

Conforme decorre das precedentes conclusões de recurso, a questão a decidir no presente recurso consiste em saber se numa acção especial de prestação de prestação de contas relativa á administração exercida pela cabeça de casal durante um determinado período, pode ser dirigida contra os herdeiros da cabeça de casal, face ao falecimento desta.
Note-se também que estamos perante uma acção de prestação de contas ainda  na  sua fase inicial, em que há antes de mais definir se as Rés devem ou não prestar contas ( cfr. art. 1014-A do CPC), sendo  também sobre esta questão que  incide o mérito do  presente recurso.
 Registe-se, então, as divergências das instâncias sobre esta problemática:
A 1ªinstância, depois de julgar improcedente a arguida nulidade de erro na forma de processo (acção especial de prestação de contas) e baseando-se no no Ac. do STJ de 29/11/2005 acessível in  www.dgsi.pt/stj e considerando  a obrigação de prestação de contas, como uma obrigação de natureza pessoal, concluiu pela intransmissibilidade da obrigação aos respectivos herdeiros e, consequentemente julgou extinta , por impossibilidade originária da lide, a presente acção de prestação de contas, absolvendo as demandadas do pedido, quer quanto ao período de prestação de contas relativo aos anos de 1999 a Março de 2005, quer quanto ao pedido de condenação no pagamento do saldo relativo às contas de 1999.
            Por seu turno, o Acórdão da Relação de Lisboa entendeu que a obrigação de prestar contas tem natureza patrimonial, sendo, por isso, transmissível por via hereditária , pertencendo aos herdeiros do cabeça de casal, a obrigação de prestar contas como sucessores na obrigação em causa, estribando esta posição no Ac. do Tribunal da Relação de  Lisboa nº 0051771 de 14/11/2000 e Ac. STJ nº 071705 de 8/03/1984 acessível pela internet in www.dgsi.pt.
Importa,  sublinhar também que estamos no domínio de uma acção de prestação de contas e não numa prestação de contas, no âmbito de um processo de inventário, com referência ao art. 2093 do C. Civil.   
            E o objecto da acção com processo especial de prestação de contas encontra-se definido no art. 1014 do CPC segundo o qual “ A acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
            Resulta daqui que o direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionada com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem.
            Conforme refere Vaz Serra, Scientia Iuridica, Vol. XVIII, 115, a obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios  ou de negócios, ao mesmo tempo , alheios e próprios .Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou de princípio geral da boa fé. Por consequência. a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte»
            Também o Prof. Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, 303 referia que a obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém que administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar administrar os bens ou interesses em causa, mas que a lei faz corresponder a fonte dessa obrigação.
            Isto para dizer que para efeitos de aferir da existência da obrigação de prestar contas, não interessa a fonte da administração que gera essa obrigação, mas o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte e, por isso, no que interessa para o caso dos autos, não releva o facto da administração ter como base o cargo de  cabeça casal, mas sim o facto de ter havido administração de bens alheios. 
            É seguramente nesta perspectiva que as autoras vêm pedir através da presente acção a prestação de contas às herdeiras da cabeça de casal, que de facto  administrou o imóvel no período desde 01/01/1999 a Março de 2005.
            A 1ªinstância considerando tratar-se de uma obrigação pessoal da cabeça de casal, não transmissível pela sua morte, julgou extinta a instância, por impossibilidade originária da lide.
            É aqui, que reside o diferendo entre a 1ª instância e o Acórdão recorrido, que  se impõe  dirimir:
            E neste domínio importa acentuar novamente, que estamos no âmbito de uma acção de prestação de contas, que, aliás, a 1ª instância, considerou adequada, do ponto de vista da forma de processo, ao pedido formulado, tratando-se, agora de saber se as Rés, como herdeiras da cabeça de casal, devem ou não prestar contas.
             Tratando-se de um acção especial de prestação de contas, não interessa saber a fonte, mas o facto de ter havido  administração bens alheios, e, por isso, a qualidade de cabeça de casal, como fonte dessa administração, não interessa para esta acção, não  fazendo, por isso, sentido socorrer-se do disposto no art. 2095 do C. Civil, que aqui, não tem cabimento.
Note-se, também, que o citado Acórdão do STJ ( 29/11/2005) em que se baseou a decisão da 1ª instância, não chega  verdadeiramente a pronunciar-se sobre a natureza da obrigação de prestar contas, referindo-se apenas à intransmissibilidade do cargo de cabeça de casal face   a  sua natureza pessoal, que por morte deste,   extingue as relações  jurídicas atinentes a essa  administração da herança.
 Mas uma coisa é a intransmissibilidade do cargo do cabeça de casal e outra  bem diferente é a  própria obrigação de prestar contas por quem administra património alheio, como, aqui, afinal aconteceu.
            Na verdade, no caso em apreço, a acção é dirigida directamente contras as herdeiras de quem durante o mencionado período administrou o prédio e não pelo facto de a  administradora   ter sido  cabeça de casal. 
            O que releva, como se disse, é o facto de a mãe das RR, DD, falecida em 25/3/2005, ter exercido   a administração do prédio urbano, sito na Av. ........ nº ... a ..... em Lisboa, de que AA e RR são comproprietárias.
Acresce também que não acolhemos a posição da 1ª instância no sentido da natureza pessoal da obrigação de prestar contas, sufragando-se, antes, a posição explanada no Acórdão recorrido, quando concluiu pela natureza patrimonial dessa obrigação, sendo, por isso, transmissível pela via sucessória.
            Efectivamente, a natureza patrimonial da obrigação de prestar contas revela-se  nomeadamente no próprio objecto da acção que visa o “ apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se” , operações estas de  natureza predominantemente patrimonial.
            Este carácter patrimonial é também acentuado no Ac. deste Supremo de 9/06/2009 acessível in www.dgsi.pt/stj a respeito da prescrição da obrigação de prestação de contas onde se considerou “ No que contende com os direitos que impõem a uma pessoa uma prestação de dar ou fazer, a regra geral aplicável é a de que o prazo de prescrição começa a correr a partir do momento em que a obrigação se tornou exigível e, no caso dos direitos ou créditos meramente eventuais, como acontece com a prestação de contas, a respectiva prescrição começa a correr desde o dia em que os obrigados cessam a gerência, mas, se o resultado for ilíquido ,a partir do dia em que as contas se tornarem líquidas , quer por consenso, quer por decisão transitada em julgado”
            Traduzindo -se a obrigação de prestar contas essencialmente no apuramento de receitas obtidas e despesas realizadas por quem administra bens alheios, com vista a apurar-se um saldo final, dúvidas parecem não existir quanto ao carácter patrimonial  dessa obrigação.

Em conclusão:
 1-A natureza patrimonial da obrigação de prestar contas revela-se nomeadamente no próprio objecto da acção, a que alude o art. 1014 do CPC que visa o “ apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”, operações estas que assumem um carácter predominantemente patrimonial.
2- Também o que importa, no âmbito dessa acção em termos de obrigação de prestar contas, é quem de facto administra bens alheios, independentemente da fonte que gera essa obrigação.
3- Uma coisa é a intransmissibilidade do cargo de cabeça de casal, a que alude o art. 2095 do CC e outra bem diferente é a própria natureza da obrigação de prestar contas, por quem administra património alheio, como afinal acontece no caso em apreço.  
4-  E  uma coisa é a pessoalidade do cargo de cabeça de casal e outra é a natureza da obrigação de prestar contas a que está obrigado, o que significa que o facto do cargo de cabeça de casal ser de natureza pessoal, não faz com essa pessoalidade se transmita também à obrigação de prestar contas.
5- E sendo a obrigação de prestar contas de natureza patrimonial é susceptível de transmissão para os respectivos herdeiros de quem fez administração de bens  alheios, não se verificando, por isso, em sede de acção de prestação de contas a impossibilidade originária da lide, pelo facto de ter ocorrido a morte de quem exerceu essa administração.
 

 III- Decisão:

            Nestes termos e considerando o exposto, acordam os Juízes deste Supremo em negar a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.
            Custas pelos RR.
   
         Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Junho de 2011   
 
   
Tavares de Paiva (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereita da Silva